sábado, 8 de maio de 2021

Papel - Raoul Vaneiguem

 Papéis*

Raoul Vaneigem

  

Os estereótipos são as imagens dominantes de uma época; as imagens do espetáculo dominante. O estereótipo é o modelo do papel; o papel é um comportamento modelo. A repetição de uma atitude cria um papel; a repetição de um papel cria um estereótipo. O estereótipo é uma forma objetiva à qual cabe ao papel moldar-se. A habilidade de lidar com os papéis determina o lugar a ocupar no espetáculo hierárquico. A decomposição espetacular multiplica os estereótipos e os papéis; ao fazê-lo, condena os papéis ao ridículo, levando-os a alinhar-se junto à sua negação, que é o gesto espontâneo. A identificação é o modo de apresentação formal do papel. A necessidade de se identificar importa mais para a tranqüilidade do poder que as escolhas dos modelos de identificação.

A identificação é um estado doentio, mas somente os acidentes de identificação caem sob a rubrica oficial chamada “doença mental”. O papel tem por função vampirizar a vontade de viver. O papel pretende repre­sentar o vivido, ao converter-se em coisa; é utilizado para consolar a vida, que ele empobrece. Torna-se um prazer vicário e neurótico.

É preciso livrar-se dos papéis e confiná-los ao lúdico. A vitória do papel assegura a promoção do espetáculo, a passagem da categoria a uma categoria superior; é a inflação, que se concretiza especialmente no culto do nome e da imagem. Os especialistas são os mestres iniciados da iniciação. A soma de suas inconseqüências define a conseqüência do poder que destrói se destruindo. A decomposição do espetáculo torna os papéis permutáveis. A multiplicação das falsas mudanças cria as condições de uma mudança real, de uma mudança radical. O peso do inautêntico suscita uma reação violenta e quase biológica do querer-viver.

Nossos esforços, nossas atribulações, nossas frustrações, o absurdo de nossos atos provêm, na maior parte do tempo, da imperiosa necessidade em que nos encontramos de desempenhar personagens híbridos, hostis a nossos verdadeiros desejos sob o pretexto de satisfazê-los. “Queremos ­viver”, diz Pascal, “na idéia dos outros, numa vida imaginária, e nos esforçamos para nos darmos essa impressão. Trabalhamos para embelezar e conservar esse ser imaginário, e nos esquecemos do verdadeiro”. Original no século XVII, num tempo em que o parecer apresenta-se bem comportado, em que a crise da aparência organizada aflora somente à consciência dos mais lúcidos, a observação de Pascal ganha relevo atualmente, no ­momento em que os valores se decompõem, no momento da banalidade, evidente para todos. Por qual mágica atribuímos a formas sem vida a vivacidade das paixões humanas? Como sucumbimos à sedução de atitudes emprestadas? O que é o papel?

Será que o que estimula o ser humano a buscar o poder é a fraqueza a que o poder o reduz? O tirano irrita-se diante dos deveres a que a própria submissão de seu povo o submete. A consagração divina de sua autoridade sobre os homens ele a paga com um perpétuo sacrifício mítico, com uma humilhação permanente diante de Deus. Ao deixar o serviço de Deus, ele deixa ao mesmo tempo o serviço de um povo que se dispensa de servi-lo. A vox populi, vox Dei deve ser interpretada da seguinte forma: “O que Deus quer o povo quer”. O escravo irrita-se num gesto de submissão que não tenha contrapartida num naco de autoridade. De fato, toda submissão dá direito a qualquer poder e não há poder senão ao preço de uma submissão. Essa é a razão por que muitos aceitam facilmente ser governados. O poder exerce-se por toda parte parcelarmente, em todos os níveis da escada hierárquica. Está aí a sua ubiqüidade contestável.

O papel é um consumo de poder. Ele instala-se na representação hierárquica, no espetáculo, portanto. No alto, em baixo, no meio, nunca aquém nem além. Como tal, o papel intromete-se no mecanismo cultural: é a sua iniciação. O papel é também a moeda de troca do sacrifício individual. Como tal, exerce uma função compensatória. Resíduo da separação, ele esforça-se por criar uma unidade comportamental, apela para a identificação.

A expressão “desempenhar um papel na sociedade” mostra pelo seu uso restritivo que o papel é uma distinção reservada a um certo número de eleitos. O escravo romano, o servo na Idade Média, o camponês diarista, o operário embrutecido por treze horas de trabalho quotidiano não tinham nenhum papel a desempenhar. Ou, então, desempenhavam-no a um grau tão rudimentar que a polícia os enxergava mais como animais do que como seres humanos.

 Existe, de fato, uma condição miserável de ser, aquém da miséria do espetáculo. Desde o século XIX, a noção de bom e mau trabalhador vulgarizou-se como a noção de senhor-escravo se havia expandido no mito, com Cristo. Ela vulgariza-se à custa de menos meios e com menos importância, embora Marx tenha acreditado oportuno protestar. Assim, o papel, como o sacrifício mítico, democratiza-se: o inautêntico ao alcance de todos ou o triunfo do socialismo.

(...)

Existe uma vida e uma morte dos estereótipos. Tal imagem seduz, serve de modelo a milhares de papéis individuais, depois se esboroa e se desfaz, segundo a lei do consumo, que atualiza seu caráter perecível. De onde a sociedade do espetáculo retira os seus novos estereótipos? Da parte de criatividade que impede certos papéis de se conformar ao estereótipo em decadência (da mesma forma que a linguagem se renova em contato com as formas populares), na parte do jogo que transforma os papéis.

À medida que o papel se conforma a um estereótipo, ele tende a se congelar, a assumir o caráter estático de seu modelo. Ele não tem nem presente, nem passado, nem futuro, porque ele é um tempo de pose e, por ­assim dizer, uma pausa do tempo, do tempo comprimido no espaço-tempo ­dis­sociado, que é o espaço-tempo do poder (sempre de acordo com a lógica de que a força do poder reside na sua capacidade conjugada de separar de verdade e de unir de mentira). É-se tentado a compará-lo à imagem do cinema ou, melhor ainda, a um de seus elementos, a um de seus fotogramas que, reproduzidos rapidamente e um grande número de vezes com suas variações mínimas, compõem um plano.

A reprodução aqui está assegurada pelos ritmos da publicidade e da informação, pela faculdade de fazer o papel falar e, por conseguinte, pela sua possibilidade de se erigir um dia em estereótipo. Basta que as ­opi­niões dominantes ganhem algum peso na sua balança, e o papel terá por função especialmente adaptar-se às normas da organização social, de se integrar ao mundo funcional das coisas. É por isso que se vêem as câmeras de televisão enfiar-se por toda parte em busca de se apropriar de existências banalizadas, de fazer de uma bobagem uma questão transcendental (...). À medida que se decompõe, a organização do espetáculo estende seus tentáculos sobre as populações menos favorecidas, ela se nutre dos dejetos que produz (...).

Sobram os irrecuperáveis, aqueles que recusam os papéis, aqueles que elaboram ao mesmo tempo a teoria e a prática dessa recusa. Com certeza, é de sua inadaptação à sociedade do espetáculo que surgirá uma nova poesia da existência, uma reinvenção da vida. Viver intensamente não é desviar o curso do tempo, perdido na aparência? E a vida, em seus momentos mais felizes, não é um presente dilatado que rejeita o tempo acelerado do poder, esse tempo que se esvai em rios de anos vazios, o tempo da decadência?

A identificação — (...). A doença mental não existe. É uma categoria cômoda para manter à parte os acidentes da identificação. Aos que o poder não pode governar nem matar chama-os loucos. Nessa categoria encontram-se os extremistas e os monomaníacos do papel. Encontram-se também os que ridicularizam os papéis ou os rejeitam. Seu isolamento é o critério que os condena (...).

O papel é a caricatura de si mesmo que se leva para toda parte, levando consigo a responsabilidade de nelas fazer valer a sua ausência. Nem por isso a ausência deixa de cuidar de si, de engalanar-se. Paranóicos, esquizofrênicos, criminosos sádicos, cujo papel não é reconhecido como de utilidade pública (não traz o crachá como traz o policial, o chefe, o militar), encontram sua utilidade em lugares específicos, asilos, penitenciárias, ­espécie de museu do qual o governo retira um duplo proveito, ao eliminar concorrentes perigosos e ao enriquecer o espetáculo de estereótipos negativos. Os maus exemplos e sua punição exemplar dão sabor picante ao ­espetáculo e o mantém em funcionamento. Basta encorajar a identificação, acentuando o seu isolamento, para destruir a falsa distinção entre a alienação mental e a alienação social.

No outro pólo da identificação absoluta, existe uma maneira de estabelecer uma distância entre o papel e si mesmo, uma zona lúdica que é um verdadeiro ninho de atitudes rebeldes à ordenação do espetáculo. Ninguém se perde inteiramente num papel. Mesmo negada, a vontade de viver ­mantém um potencial de violência sempre pronta a retificar os caminhos que lhe são traçados. O sabujo fiel que se identifica com o seu senhor pode também cortar-lhe o pescoço na hora oportuna. Chega um momento em que seu privilégio de morder como um cão excita nele o desejo de se bater como um homem. Diderot mostrou-o bem em sua novela “O sobrinho de Rameau” e as irmãs Papin melhor ainda.

É que a identificação, como toda desumanidade, tem também suas raízes no humano. A vida autêntica alimenta-se de desejos autênticos ressentidos. A identificação mediante o papel age duplamente: reabsorve o jogo das metamorfoses, o prazer de se mascarar e de se apresentar sob todas as formas. Ela faz sua a velha paixão labiríntica de se perder para melhor se encontrar, o jogo das escamoteações e das metamorfoses. Ela recupera também o reflexo de identidade, a vontade de encontrar nos outros a parte mais rica e mais autêntica de si. O jogo cessa então de ser um jogo, petri­fica-se, impedindo de se entregar ao jogo de criar novas regras. A busca da identidade converte-se em identificação.

Mas, invertamos a perspectiva. Um psiquiatra escreveu: “A busca do reconhecimento pela sociedade leva o indivíduo a descarregar as suas ­pulsões sexuais num fim cultural, que é a melhor maneira de se defender contra elas”. Trocado em miúdos, isso significa que se atribui ao papel a missão de absorver a energia vital, de reduzir a força erótica em seu proveito por uma sublimação permanente. Por isso, quanto menos realidade erótica se manifesta, mais o espetáculo promove as formas sexualizadas. O papel — Reich diria a “carapaça” — garante a impotência de gozar.

Contraditoriamente, o prazer, a alegria de viver, o gozo de arrebentar a carapaça destroi o papel. Se alguém quisesse considerar o mundo não na perspectiva do poder, mas numa perspectiva em que ele seja o ponto de partida, deveria abrir caminho para os atos que o liberam realmente, os momentos mais autenticamente vividos, que são como clarabóias de luz na penumbra dos papéis. A análise dos papéis à luz da vida autêntica, a sua radiografia permitiria reaproveitar a energia que neles foi investida, retirar a verdade da mentira. Trata-se de um desafio individual e coletivo. Embora sejam igualmente alienantes, os papéis não oferecem a mesma resistência. É mais fácil livrar-se do papel de sedutor que de policial, de governante, de pastor. Compete a cada um estudar a questão.

A compensação — Por que os homens atribuem ao papel um preço às vezes superior ao preço que dão à própria vida? Na verdade, porque a sua vida não tem preço; a expressão significativa aqui, na sua ambigüidade, é que a vida está além de qualquer avaliação pública, de qualquer medida oficial, e também que uma tal riqueza, à luz dos critérios da sociedade do espetáculo, é de uma pobreza lamentável. Para a sociedade de consumo, a pobreza é o que foge da esfera do consumo. Nela, reduzir o ser humano ao consumo corresponde a uma promoção social, do ponto de vista do espetá­culo. Quanto mais coisas se têm e mais papéis a desempenhar, mais se é. É o que dispõe a organização das aparências. Mas, do ponto de vista da realidade vivida, o que se ganha em graus de poder se perde na mesma medida em realização autêntica. O que se ganha em parecer se perde em ser e dever-ser.

Assim, o vivido está sempre disponível como matéria-prima do ­contrato social. É ele quem paga a entrada. É ele que se sacrifica, enquanto a compensação está nos arranjos lustrosos da aparência. E quanto mais pobre a vida quotidiana mais se exacerba a atração do inautêntico. Quanto mais a ilusão convence mais a vida quotidiana se empobrece. Desalojada do essencial à força de proibições, de coações e de mentiras, a realidade vivida parece tão pouco digna de interesse que as soluções da aparência encar­regam-se de todos os cuidados.

Vive-se, então, o papel melhor do que se vive a vida. A compensação oferece, no estado de coisa, o privilégio de pesar mais. O papel preenche uma falta: tanto de insuficiência de vida, tanto de insuficiência na forma de papel (...) A compensação, como o álcool, fornece o doping necessário à realização do poder-ser inautêntico. Existe uma embriaguez da  identificação.

A sobrevivência e suas ilusões protetoras formam um todo ­indissociável. Os papéis, evidentemente, desaparecem quando desaparece a ­sobrevivência, se bem que certas mortes podem vincular seu nome a um ­estereótipo. A sobrevivência sem os papéis é uma morte civil. Da mesma forma como somos condenados à sobrevivência, somos condenados a manter uma boa aparência no inautêntico. A armadura impede a liberdade dos gestos e amortece os choques. Sob a carapaça tudo é vulnerável. Resta, então, a solução lúdica de fazer de conta, ser astuto com os papéis (...)

Em fim de contas, é o mundo que deve estar de acordo comigo para que eu esteja de acordo com ele. Rejeitar os papéis como uma trouxa de roupa suja seria negar a separação e cair no misticismo e no solipsismo. Eu estou na casa do inimigo e o inimigo está na minha casa. Não é necessário que ele me mate, mas é por isso que me protejo sob a carapaça dos papéis. Trabalho, consumo, apresento-me como gente bem comportada, não ofendo os bons costumes.

Mas, como é necessário ao mesmo tempo destruir esse mundo fictício, as pessoas mais espertas passam a jogar entre si com os papéis. Passar por um irresponsável, eis a melhor maneira de ser responsável perante si ­mesmo. Todas as tarefas são sujas, façamo-las de maneira suja; todos os papéis são mentirosos, deixemos que eles se desmintam a si mesmos (...). Basta-me ser verdadeiro com os que me são mais próximos, com os que defendem uma vida autêntica.

Quanto mais alguém se livra do papel, tanto mais pode manipular o papel contra o adversário. Quanto mais se previne contra o peso das coisas, tanto mais liberdade de movimento ganha. Os amigos não se escondem atrás das formas, eles polemizam a descoberto, sabendo que não se machucam. Onde a comunicação é real, o mal-entendido não é um crime (...).

 

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A iniciação  Para proteger a miséria da sobrevivência e para ­protestar contra ela, o movimento de compensação distribui a cada um certo número de possibilidades formais de participar do espetáculo, espécie de salvo ­conduto que autoriza a representação cênica de um ou vários momentos da vida, pública ou privada, pouco importa. Assim como Deus confere a graça a todos os seres humanos, deixando a cada um a liberdade da salvação ou da condenação, também a organização social dá a cada um o direito de ganhar ou perder nos círculos do mundo.

Mas, enquanto Deus alienava a subjetividade totalmente, a burguesia a esmigalha em um conjunto de alienações parcelares. Num sentido, a subjetividade, que não era nada, torna-se alguma coisa; passa a ter a sua verdade, o seu mistério, as suas paixões, a sua razão, os seus direitos. Seu reconhecimento oficial passa por sua divisão em fragmentos escalonados e homologados segundo as normas do poder. O subjetivo entra nas formas ­objetivas, que são os estereótipos, por meio da identificação. Entra como migalhas, como fragmentos absolutizados, decomposto de maneira ­ridícula.

Ser é possuir representações do poder. Para ser alguém, o sujeito deve, como se diz, fazer parte das coisas, desempenhar seus papéis, poli-los, atualizá-los, avançar até merecer a promoção espetacular. A fábrica de alunos, a publicidade, os condicionamentos de todo tipo ajudam solicitamente a criança, o adolescente e o adulto a conquistarem seu lugar na grande família dos consumidores. Esta fragmenta-os, convertendo-os em gente sem importância. A quantificação da subjetividade cria categorias espetaculares para os gestos mais prosaicos ou para as disposições mais comuns: um jeito de sorrir, uma empinação do peito, um tipo de penteado. Há cada vez menos grandes papéis; cada vez mais, figurações. Mesmo os Ubu-Stalin, Hitler, Mussolini não deixaram senão pálidos descendentes. A maior parte das pessoas conhecem o desconforto de aderir a um grupo, de entrar em contato com seus membros: é o medo do comediante de se sair mal no papel. Para remover o medo, é preciso atingir aquele estágio em que se fragmentam as atitudes e em que as poses oficiais caem sob controle. A origem do medo não está no mal desempenho do papel mas na perda de si no espetáculo, na ordem das coisas (...).

 

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 (...). Há muito tempo as mesmas novidades sucedem-se no mercado de bugigangas e de idéias, mudando-se apenas a sua aparência. A mesma ­coisa ocorre no mercado dos papéis. Como dispor de papéis com a qualidade de um papel medieval? Como consegui-lo, sabendo que o critério da quantidade é em si uma barreira e que a mentira se esconde atrás da novidade?

Não somente a multiplicação dos papéis tende a torná-los equivalentes, mas existem ainda os degraus de iniciação. Nem todos os grupos socialmente reconhecidos dispõem da mesma dose de poder, e essa dose eles não a repartem igualmente entre seus membros. Entre o presidente e seus ­acólitos, o cantor e seus fãs, o deputado e seus eleitores estendem-se os caminhos da promoção. Certos grupos são solidamente estruturados, outros são frouxos. Entretanto, todos constroem-se graças ao sentimento ilusório de participação de que estão imbuídos os seus membros, sentimentos que são estimulados por reuniões, insígnias, pequenos afazeres, responsabilidades... Coerência mentirosa e muito frágil. Nesse escotismo estafante encontram-se estereótipos (...).

Será que a socialização dos papéis substitui o velho poder decaído das grandes ideologias? Não se pode esquecer de que o poder está ligado à sua organização da aparência. A recaída do mito em fragmentos ideológicos manifesta-se hoje em uma poeira de papéis. Isso significa que a miséria do poder, para se dissimular, não conta mais senão com a miséria de sua mentira estilhaçada. O prestígio de uma vedete, de um pai de família ou de um chefe de Estado não valem um traque. Nada escapa à decomposição nihilista, senão a sua superação (...).

 O especialista prefigura esta era fantasma, esta engrenagem, esta coisa mecânica estabelecida na racionalidade de uma organização social, de uma ordem abstrata. Ela pode ser vista em toda parte, na política ou nos assaltos a mão armada. Em certo sentido, a especialização é a ciência do papel. Ela faz brilhar com brilho de bijuteria o que antes era jóia autêntica, as tiradas “inteligentes”, o luxo e a conta bancária. Mas o especialista faz mais. Ele converte-se em papel para converter os outros em papel.

É o elo na cadeia entre a técnica de produção e de consumo e a técnica da representação espetacular. Mas é um elo isolado, uma mônada, de certa forma. Sabendo tudo de um pedaço, ele leva os outros a produzir e a consumir nos limites desse pedaço, de tal maneira que recolhe uma mais-valia de poder, aumentando assim o seu pedaço de representação na hierarquia. Por necessidade, ele é levado a renunciar à multiplicidade de papéis para conservar um deles, condensando seu poder em vez de juntá-lo, reduzindo sua vida à linearidade. Torna-se, então, um manager.

A desgraça faz com que o círculo no qual a sua autoridade se exerce seja sempre muito estreito, muito parcelar. Encontra-se na situação do ­gastro-en­terólogo que cura as enfermidades de sua área e envenena o resto do corpo. Certamente, a importância do grupo que ele oprime pode dar-lhe a ilusão de seu poder, mas ao mesmo tempo acaba por revelar-lhe a sua impotência. Assim como dois chefes de Estado de potências inimigas neutralizam mutuamente a força de seu arsenal, assim os especialistas constróem e acionam uma gigantesca máquina — o poder, a organização social — que os domina e os esmaga, com mais ou menos habilidade, de acordo com seu lugar na engrenagem. Eles a acionam cegamente, pois ela é o conjunto de suas interferências.

Por isso, pode-se supor da maior parte dos especialistas que a repentina consciência de uma passividade tão desastrosa, à qual se entregam tão obstinadamente, os desperte para a vontade de uma vida autêntica. É também previsível que um certo número dentre eles, expostos durante um tempo mais longo à radiação da passividade autoritária, deve, como na história de Kafka, morrer com a máquina, torturados pelos seus próprios ­sobressaltos.

 

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A deterioração do papel caminha historicamente passo a passo com a insignificância do nome. Para o aristocrata, o nome contém em resumo o mistério de seu nascimento e de sua estirpe. Na sociedade de consumo, a ostentação publicitária do nome de Bernard Buffet transforma em pintor célebre um dinossauro medíocre. A manipulação do nome serve para ­fabricar dirigentes da mesma forma que se vende loção capilar. Isso significa também que um nome célebre já não pertence àquele que o carrega. Sob a etiqueta Buffet, não se encontra senão uma coisa. Um pedaço de poder.

 

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Ao mudar a perspectiva, tomo consciência de que nome algum é capaz de esgotar ou cobrir o que sou. Meu prazer não tem nome. Nos raros ­momentos em que me construo, nada fica do lado de fora, como uma alça que pudesse ser manipulada do exterior. Somente a alienação de si é que se petrifica no nome das coisas, que nos esmagam.

 

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Um filósofo chinês dizia: “A confluência é a proximidade do nada. Na confluência total, a presença se inquieta”. A alienação estende-se a todas as atividades do ser humano, dissociando-as ao extremo; mas, ao fazê-lo, ela se torna mais vulnerável. Na desagregação do espetáculo, as coisas se passam como  “a vida que toma consciência de si, que destroi o que estava destruído, rejeita o que havia sido rejeitado”(Marx). Sob a dissociação, encontra-se a unidade; sob a usura, a concentração de energia; sob o estilhaçamento, a subjetividade radical, a qualidade (...).

 

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O estado de degradação do espetáculo, as experiências individuais, as manifestações coletivas de contestação devem expressar nos fatos o assédio tático à liberdade do papel de se movimentar. Coletivamente, é possível eliminar os papéis. A criatividade espontânea e o sentido da festa, que se manifestam nos momentos revolucionários, oferecem muitos exemplos. Quando a alegria de viver toma conta do coração do povo, não há chefe nem espetáculo capaz de contê-lo. É somente roubando a alegria do povo que alguém se torna senhor das massas revolucionárias; impedindo-as de ir além e de estender as suas conquistas. No imediato, um grupo de ação teórica e prática é capaz de entrar nesse espetáculo político-cultural
para subvertê-lo.

Apêndice II

A tríade unitária: realização, comunicação, participação*

 

Raoul Vaneigem

 

A unidade repressiva do poder em sua tríplice função de coação, de sedução e de mediação não é senão a forma, inversa e pervertida pelas técnicas de dissociação, de um tríplice projeto unitário. A nova sociedade, tal como ela se engendra confusamente na clandestinidade, tende a se definir praticamente como uma transparência de relações humanas que favorecem a participação real de todos na realização de cada um. A paixão de criar, a paixão do amor e a paixão do jogo estão para a vida assim como a necessidade de se alimentar e a necessidade de se abrigar estão para a sobrevivência. A paixão de criar funda um projeto de realização; a paixão de amar funda um projeto de comunicação; a paixão de jogar funda um projeto de participação. Dissociados, esses três projetos reforçam a unidade repressiva do poder. A subjetividade radical é a presença —- ainda presente na maior parte das pessoas — de uma mesma vontade de fazer de sua vida uma vida apaixonada. O erótico é a coerência espontânea que oferece a sua unidade prática à coerência do vivido.

A reconstrução da vida quotidiana realiza no mais alto grau a unidade do racional e do passional. O mistério que se mantém sobre a vida serve ao obscurantismo no qual se dissimula a trivialidade da sobrevivência. Na verdade, a vontade de viver é inseparável de uma certa vontade de organização. A atração que exerce sobre cada pessoa a promessa de uma vida rica e múltipla passa à frente de um projeto submetido no todo ou em parte ao poder social encarregado de refreá-lo. Assim como o governo dos homens recorre essencialmente a um triplo modo de expressão — a coação, a mediação alienante e a sedução mágica —, assim também a vontade de viver retira sua força e sua coerência da unidade de três projetos indissociáveis: a realização, a comunicação e a participação.

Numa história dos seres humanos que não se reduzisse à sua sobrevivência, sem no entanto se dissociar dela, a dialética desse projeto tríplice, vinculado à dialética das forças produtivas, contemplaria a maior parte dos comportamentos. Não há sublevação ou revolução que não expresse a ­busca apaixonada de uma vida exuberante, de uma transparência nas relações humanas e de um modo conjunto de transformação do mundo. Embora aquém da evolução histórica, podem-se divisar três paixões fundamentais, que são para a vida o que a necessidade de se nutrir e abrigar é para a sobrevivência. Bem entendido, esses elementos não ganham importância senão no quadro histórico, mas é precisamente a história de sua dissociação que aqui é questionada, em nome de sua totalidade sempre reclamada.

O Estado do bem-estar tende a envolver a questão da sobrevivência numa problemática da vida. Nesse quadro histórico em que a economia da vida absorve a economia da sobrevivência, a dissociação dos três projetos, e das paixões que os subentendem, aparece distintamente como um prolongamento da distinção aberrante entre vida e sobrevivência. Entre a ­separação, que é o fiel do poder, e a unidade, que é o domínio da revolução, a existência somente consegue exprimir-se, na maior parte do tempo, na ambigüidade. Falarei separada e unitariamente sobre cada projeto.

 O projeto de realização nasce da paixão de criar, no momento em que a subjetividade se entumece e quer reinar. O projeto de comunicação nasce da paixão do amor, cada vez que os seres humanos descobrem em si ­mesmos uma vontade idêntica de conquista. O projeto de participação nasce da paixão do jogo, quando o grupo apoia a realização de cada um.

Isoladas, as três paixões se pervertem. Dissociados, os três projetos tornam-se falsos. A vontade de realização torna-se vontade de poder; sacrifício em favor do prestígio e do papel, ela reina em um universo de coações e de ilusões. A vontade de comunicação converte-se em mentira objetiva; fundada sobre relações entre objetos, ela distribui aos semió­logos os sinais, que eles revestem de uma aparência humana. A vontade de participação organiza o isolamento na multidão, ela cria a tirania da ilusão comunitária.

Separadas umas das outras, cada paixão se integra numa visão metafísica que a absolutiza e a torna, como tal, inacessível. Não falta humor aos homens de pensamento: eles desconectam os elementos do circuito, e ­depois anunciam que a corrente não passa. Podem, então, afirmar sem receio que a realização total é um engodo, a transparência uma quimera, a harmonia social uma falácia. Onde reina a separação, cada um está ­preso, de fato, à impossibilidade. A mania cartesiana de fragmentar e avançar por etapas garante sempre a inconclusão. Os exércitos da Ordem não recrutam senão mutilados.

(...)

Expulso da organização social hierárquica, a paixão do jogo funda, ao destrui-la, uma sociedade de novo tipo, de participação real. Sem pretender adivinhar o que será uma organização das relações sociais aberta sem reservas à paixão do jogo, pode-se assentir em que ela apresenta as características seguintes:

— rejeição do chefe e de toda a hierarquia;

— rejeição do sacrifício;

— rejeição do papel;

— liberdade de realização autêntica;

— transparência das relações sociais.

O jogo não se concebe sem regras nem sem o jogo de criar regras. É observar o que fazem as crianças quando brincam. Trapaceiam, sim, mas em busca de um novo jogo. Às vezes, dá certo. Sem descontinuar, elas reavivam a consciência lúdica.

A partir do momento em que se instala uma autoridade, o jogo cessa. É verdade que a leveza do jogo não dispensa o espírito de organização, no que isso implica disciplina. Mas, mesmo se é preciso um coordenador ­investido do poder de decidir, esse poder nunca está dissociado do poder de que dispõe cada jogador de maneira autônoma; ele é o ponto de con­centração de todas as vontades individuais, o dual coletivo de cada exigência particular.

O projeto de participação implica pois uma coerência tal que as decisões de cada um sejam as decisões de todos. São, é certo, os grupos numericamente mais fracos, as microsociedades que apresentam as melhores garantias de desempenho. Nelas, o jogo regula de maneira soberana os mecanismos da vida comum, harmoniza os caprichos, os desejos, as ­paixões. Tanto mais que o jogo assemelha-se ao jogo insurrecional pelo grupo e torna-se necessário pela vontade de viver fora das normas oficiais.

A paixão do jogo exclui o recurso ao sacrifício. Pode-se perder, pagar, submeter-se à lei, atravessar um mau momento: é a lógica do jogo, não a lógica de uma Causa, não a lógica do sacrifício. Quando aparece a exi­gência do sacrifício, o jogo se sacraliza, suas regras tornam-se ritos. No jogo, as regras são estabelecidas de maneira que possam ser mudadas, para se brincar também com elas. No sagrado, ao contrário, o ritual não deixa ­jogar; seria preciso quebrá-lo, desafiar o interdito (mas profanar uma ­hóstia é ainda uma maneira de render preito à Igreja). Somente o jogo dessacra­liza, somente ele se abre para uma liberdade sem limites. Ele é o princípio do desvio, a liberdade de mudar de sentido de tudo o que serve ao poder; a liberdade, por exemplo, de transformar a catedral de Chartres em lupanar, em labirinto, em campo de tiro ou em cenário onírico...

Em um grupo organizado em torno da paixão do jogo, as corveias e as obrigações estafantes encontram um meio de serem partilhadas por ocasião de uma falha ou de um erro lúdico. Ou, mais simplesmente, elas preenchem o tempo ocioso, o repouso passional assumindo, por contraste, um valor de excitação, que torna mais instigantes os momentos por vir. As ­situações a construir vão fundar-se necessariamente na dialética da ­presença e da ausência, da riqueza e da pobreza, do prazer e do desprazer, a intensidade de um espicaçando a intensidade do outro.

Além disso, as técnicas empregadas numa atmosfera de sacrifício e de coação perdem a sua eficácia. O valor instrumental redobra-se em efeito de uma função repressiva; a criatividade oprimida reduz o rendimento das máquinas opressivas. Somente a atração lúdica garante um trabalho não alienante, um trabalho produtivo.

O papel no jogo somente se concebe como um jogo de papéis. O papel espetacular exige uma adesão; o papel lúdico, ao contrário, postula uma distância, um recuo a partir de onde se toma consciência de que se é livre, à maneira como os comediantes tarimbados que, entre duas tiradas dramáticas, trocam gracejos. A organização espetacular não resiste a esse tipo de comportamento. Os irmãos Marx mostraram em que se converte um papel quando o lúdico o assume, e observe-se que isso não passa de um exemplo pervertido pelo cinema. O que seria um jogo entre papéis no epicentro da vida real?

Se alguém entra no jogo com um papel fixo, um papel sério, ou ele está perdido ou corrompe o jogo. É o caso do provocador. O provocador é um especialista do jogo coletivo. Deste ele conhece a técnica, mas não a dialética. Pode ser que ele seja capaz de traduzir as aspirações do grupo em matéria ofensiva — o provocador sempre açula ao ataque, — mas é incapaz de representar o interesse defensivo do grupo. Essa incoerência entre o ofensivo e o defensivo denuncia cedo ou tarde o provocador, é a causa de seu triste fim. Quem é o melhor provocador? Aquele que de manifes­tante ou coordenador torna-se chefe.

Somente a paixão do jogo é capaz de fundar uma comunidade cujos interesses identificam-se com os do indivíduo.

(...).

 

 

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