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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022
A vez da Política dos Atores1
A vez da Política dos Atores1
Nivaldo T. Manzano
O movimento dos Comuns ou Comum ressurge de modo vigoroso na atualidade,
com indícios de fincar raízes profundas, em resposta ao tsunami neoliberal que
devasta o que resta da democracia e do Estado de bem-estar social. Esse
movimento é visto como uma dentre as diversas modalidades institucionais que
visam, aparentemente, ao mesmo fim - recuperar e fortalecer a capacidade de
intervenção social de cada cidadão por meio do fortalecimento da ação conjunta.
Neste capítulo, será exposto em que consiste a sua peculiaridade. Apresentam-se
os fundamentos e se delineiam os desafios e a problemática.
O Comum emerge da frustração e da insuficiência teórica e ineficiência estratégica
na oposição ao Capitalismo e à ideologia em que se sustenta, em sua investida
de apropriação de tudo o que consiga privatizar. Ou seja, o movimento do Comum
opõe-se à mercantilização do mundo e da vida, da pilhagem realizada pelas
grandes corporações daquilo que até então era domínio público, ou permanecia sob
controle das comunidades locais. Opõe-se à privatização da saúde, da educação,
da aposentadoria, da assistência social, da água, da eletricidade, dos
correios; dos serviços públicos em geral.
O movimento avança na contracorrente da nova onda de apropriação da riqueza
social, muito desigualmente distribuída, por efeito do conluio entre o poder
público e as forças privadas, que para tanto buscam esvaziar a capacidade de resistência
democrática dos cidadãos, por meio da restrição crescente, institucional ou
malandra, de seu acesso aos recursos de poder inscritos pela Constituição no
Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Nessa luta, o Movimento do Comum reivindica
o direito de ter direitos, que consiste, em geral, em recuperar para o domínio
comum o que foi apropriado, ou assegurar sob o domínio das comunidades o acesso
ao recursos naturais e bens não apropriáveis, incluídos os inapreensíveis, como
a luz do sol.
É uma resposta ao novo cercamento do mundo. Essa resposta apoia-se na “força
coletiva”, a que aludia Pierre-Joseph Proudhon (1809 – 1865). Por força
coletiva, neste contexto, entende-se o direito de toda comunidade de constituir
o seu modo de vida, no sentido mais elevado da expressão, que precede todo
intento do Estado de fazê-lo em seu lugar.
Entre as características do Comum estão a autogestão, que começa por
criar as regras de criação de regras que a comunidade se dá; a revogação do
instituído mediante o poder instituinte, com o objetivo de se estar em
sincronia com a mudança da realidade; a mobilização a partir das próprias forças;
a renúncia à hierarquia na organização; o apoio ao empoderamento das
comunidades; o foco nos desafios do cotidiano; a convergência na ação com
outros movimentos sociais... Como pode imaginar-se, trata-se de um acercamento
pelas beiradas, como diria Leonel Brizola, a partir dos problemas sociais mais
próximos de cada um, no âmbito de uma comunidade ou de uma temática.
Exemplos: Um grupo de taxistas cooperados da cidade de Araraquara-SP,
com apoio da administração municipal do Partido dos Trabalhadores, lançou em
janeiro de 2022 o Bibi Mob, um app em substituição ao app da multinacional Uber,
oferecendo ao taxista um retorno sobre o ganho bruto de 95%, contra cerca de
60%, devolvidos pelos serviços concorrentes. Na Europa, o caso mais conhecido é a CoopCycle, uma federação de
cooperativas de entregadores, governadas por autogestão, que fornece software
para as iniciativas federadas. Em fevereiro de 2022, a CoopCycle chegou à
América Latina e já opera no México. Na Argentina realiza parceria com a Federación Argentina de Cooperativas de Trabajo de
Tecnología, innovación y Conocimiento (Facttic). A propósito, leia-se o livro A Cultura é Livre, de Leonardo Foletto.
Dissemina-se por toda parte a construção de
plataformas e infraestruturas comunitárias e autônomas, como a MariaLab no Brasil, que avançam na resistência ao colonialismo
de dados. Em movimentos
de tecnologias não alinhadas, dentre exemplos
latino-americanos destaca-se a rede Tierra Común, dentre outras
formas de resistência
algorítmica. A cidade de Barcelona adotou como política
pública um programa de fomento e aceleração de plataformas ligadas à economia
solidária, a partir de uma perspectiva transversalmente feminista, o MatchImpulsa. O que o Comum visa em todas essas iniciativas é colocar no
centro das políticas públicas a soberania digital.
O princípio distintivo que inspira a ação política do Comum é a
percepção da realidade apreendida na história vivida, na experiência pessoal,
de caráter necessariamente social, que associa as emoções e a racionalidade, a
ética, a estética, a intuição e os sentimentos. Ou seja, o Comum não é uma
transposição da cartilha para a realidade. Uma ação política torna-se eficaz somente
se extrai o seu sentido da vida real. Ela é percebida como tanto mais
convincente quanto mais os seus membros recarregam as suas energias no
exercício da reciprocidade e do reconhecimento – a percepção de si em outrem e
a percepção de outrem em si mesmo/a. Do
mesmo modo como o seu contrário – a indiferença –, a empatia não é um dom inato,
mas brota e resulta da prática (práxis).
O Comum alimenta-se da inesgotável reserva de criatividade das
comunidades, que se manifesta no compartilhamento dos saberes e das
competências, em livre circulação. Um outro exemplo – este de alcance
planetário - da fecundidade resultante da explosão da criatividade são a criação
do software livre e das enciclopédias no estilo Wikipedia; da mesma forma, a Wikimedia Commons, um projeto multilinguístico, criada em 2004, mantido pela Fundação
Wikimedia com o objetivo de ser um repositório central de imagens e outras
modalidades de multimídia livre -, uma midiateca -, que já conta com 80 milhões
de arquivos de acesso livre.
Outra iniciativa do Comum é o êxito fulminante dos blogues progressistas
orientados para a divulgação de notícias, comentários e artigos sobre a real
situação do Brasil e do mundo, em reação à imprensa corporativa, cuja função é
acobertar a demolição do Estado, mediante a apropriação pela iniciativa privada
dos monopólios naturais sob controle e gestão estatal, como água e energia, e a
eliminação das políticas públicas, como a educação e a saúde. Em pouco menos de
uma década, a audiência dessa rede superou -, também por efeito da migração
para o meio virtual -, o total de assinaturas e vendas dos jornais diários e
semanários. São empreendimentos sob autogestão e sustentação financeira autossuficiente,
graças à contribuição voluntária de seus assinantes e seguidores. O seu impacto
social é cumulativo e exponencial na consolidação da nova cultura nas comunicações.
Observe-se que essa é uma área de interesse vital na disputa pelo controle da
opinião pública, sobre a qual o domínio das maiores corporações financeiras do
mundo é total
A proliferação de iniciativas dessa natureza é evidência eloquente de
que está em curso uma outra Economia Política, fundada numa outra concepção de
riqueza - o Comum -, observam os
cientistas franceses Pierre Dardot e Christian Laval (2017). O novo paradigma
teve como marco editorial a publicação em 2003 do livro Reclaiming the Commons,
de autoria da jornalista e ativista canadense Naomi Klein (1970 -).
Importa advertir que o movimento do Comum não avoca para si a
exclusividade nas iniciativas aventadas
ao longo dos séculos XIX e XX, anteriormente ao advento do sistema neoliberal,
para conter e limitar a tendência de fortalecimento e centralização do poder
econômico e/ou do poder político, muitas delas, porém, promovidas às expensas
da democracia, tais como as revoluções de feitio clássico, como a soviética,
chinesa ou cubana; ao “socialismo de face humana” (inspirado em Alexander
Dubcek, líder do Partido Comunista da Tchecoslováquia (1968), com objetivo de assegurar
alguns graus de democratização e liberdade política, restritas sob o regime
soviético; ao “socialismo de autogestão”, nos anos 1950, por Josip Broz Tito,
na Iugoslávia, entre outras experiências similares. Na década de 1970, em nova
versão essa proposta apresentou-se como eurocomunismo, movimento que empolgou
partidos comunistas de países da Europa Ocidental, em especial Itália, França e
Espanha. À parte a experiência da China, em andamento, todas não obtiveram
sucesso na sua continuidade -, entre os principais motivos de ordem interna, a
intervenção burocrática do Estado.
O Comum não é comunismo
Embora possa ocorrer sobreposição de significado de um termo a outro, o
Comum não se identifica com o Bem comum, com o interesse público, com o
interesse geral, com o interesse universal, no sentido técnico e jurídico
desses conceitos, ou com o comunitário no sentido que se encontra na República
de Platão, de compartilhamento no consumo coletivo de bens coletivamente
possuídos, com vistas à realização de um ideal de vida pelo desfrute de uma
comunidade de bens. Ou seja, não se trata da utopia comunista, segundo descrita
pelo sociólogo francês Émile Durkheim, em seu livro Le socialisme (1928), uma
comunidade de iguais que consomem bens em comum, em contraposição, na visão
dele, ao socialismo, que, ao contrário do comunismo, não se prestaria à
rejeição da riqueza -, fonte de dissolução moral ou religiosa da integridade do
grupo (Rousseau) – de acordo com o ideal do cristianismo primitivo (Dardot e
Laval, 2017). Sob o controle e a centralização do Estado, o ideal da autogestão
comunitária foi convertido, na realidade, na expressão de Cornelius Castoriadis
(1983), a um “socialismo de linha de montagem”, que cometeu a proeza de
associar os males da gestão estatal-socialista da produção aos males da gestão
privada.
De peculiar no Comum tem-se que, em lugar da concepção revolucionária,
do partido condutor das massas, e da democracia liberal, que convoca as massas
apenas para referendar as suas escolhas, é o Sujeito, individual ou coletivo,
que assume o proscênio na Política como ator em primeira pessoa, acima do e no
centro do social, como observa o sociólogo francês Alain Touraine (1988), que adverte: “Em nenhum tipo de sociedade é
possível suprimir a autonomia do Político, sem cair na dependência de um poder
autoritário... Trata-se de “assegurar o acesso dos dominados à influência e à
ação política; de se aproximarem ainda mais do sistema político, porque estão
ameaçados, menos por uma classe dominante do que pelo funcionamento impessoal
do mercado”.
Sobre o pano de fundo da recrudescência do Comum, avulta a evidência de
que em ambos os casos se rejeitam acertadamente a exploração e a tradição, mas
à custa da eliminação do ator social, do sujeito. Esse é o tema para o qual
chama atenção Touraine, ao discorrer sobre a era da Política dos Atores (1998),
que refuta e deixa para trás, por insuficientes e frustrantes, tanto a concepção
revolucionária como a concepção da democracia liberal, porque ambas conduzem à eliminação
da Política; e, em lugar de submeter a sociedade civil às intervenções da
Política, a subordinam a abstrações, tais como os supostos degraus a transpor
no movimento da História, ou o amadurecimento das relações de produção, das
quais o próprio Marx fez pouco caso, por exemplo, ao se deixar convencer por
uma missivista russa de que a revolução social em seu país prescindia, como
pré-condição, da expansão da classe operária, que inexistia. Por isso entenda-se,
com Touraine, que ambas as utopias mudam de conteúdo ou de consequências, mas todas
mantêm a ideia de que se deve subordinar a vida em sociedade a um “princípio
racional de regulação das trocas sociais, para não sucumbir na barbárie”.
A rejeição do acesso direto dos atores à Política explicita-se sem
rodeios no século XVIII no bojo da crítica dos Federalistas norte-americanos, de
Alexis de Tocqueville ou dos Whigs ingleses à “tirania da maioria”. Entre os
Federalistas grassava a crença na suspeição do povo e da necessidade de
mantê-lo distante da gestão dos negócios públicos. Quem parece ter expressado
mais claramente a opinião de que não eram todos os cidadãos capacitados pela
virtude da boa ação política foi o federalista Alexander Hamilton (1775 – 1804).
Ele advertia sobre o perigo do senso dos muitos, quando estariam diretamente no
comando político, em decorrência de sua inconstância, pois oscilariam entre “os
extremos da tirania e [da] anarquia”. Escreveu: “...é mais possível que a
vontade pública, expressa pelos representantes do povo, esteja em harmonia com
o interesse público do que no caso de ser ela expressa pelo povo mesmo, reunido
para este fim” (O Federalista, 1788). Daí a ideia, que transbordou o seu contexto
original, de que ao povo competia escolher entre propostas e equipes de
governo, mas não era de sua alçada intervir diretamente na sua elaboração, obra
exclusiva de um partido, na concepção revolucionária, ou de uma elite
econômica, política ou da mídia, na concepção da democracia liberal, elite
responsável por promover a união do poder político com o poder do dinheiro.
“Com o esvaziamento histórico de seu conteúdo, as soluções liberal e
revolucionária perderam o seu principal fundamento - a confiança no progresso; e
a ideia democrática passou a ser nutrida da defesa de identidades pessoais e
coletivas, num mundo dominado pelo mercado, que interfere sempre mais no domínio
da cultura e da personalidade, e não apenas no dos bens e dos serviços
materiais” (Touraine, A.1998).
A Economia Política do Comum, de que falam Pierre Dardot e Christian Laval
(2017), combina estratégias econômicas e de identidade individual a partir do
próprio indivíduo, como ator, indissociável de sua cultura, diversa por
definição. Ela sobrevém ao mundo da vontade geral e do contrato social por
motivo do caráter abstrato de ambas, que dissolve as diferenças entre os cidadãos,
reduzindo-os a uma identidade serial. São concepções de filosofia política que caducaram,
mostrando-se insuficientes na atualidade para reconhecer a diversidade na
unidade; por exemplo, a legitimidade da pauta feminina, em defesa da igualdade
de gênero na representação política. Somente o ator individual ou coletivo, em
contraste com o indivíduo indiferenciado na identidade lógica consigo mesmo, está
apto a conferir densidade diferencial à sua existência e imprimir, assim, um
sentido geral ao conjunto das situações e das condutas.
Já não é possível, pois, manter-se atado à ordem política como a
estabeleceu a filosofia política no passado. Não é mais na vontade geral ou no
contrato social de Rousseau que se expressa com exclusividade o ideal
democrático na luta contra a desigualdade social, ao afirmar que somos todos
semelhantes como cidadãos. Pois o que se observa nos movimentos sociais e na
vida de cada um é a ênfase no seu oposto – que todos somos diferentes, cada um
à sua maneira, e que todos se mostram interessados em combinar, na experiência
de vida, atividades técnicas e comuns a todos, com a particularidade da
identidade pessoal e coletiva de cada um, diz Touraine (1998).
Somos iguais e diferentes a um só tempo. Iguais, porque nos
reconhecemos um no outro; diferentes, porque sabemos que um não é o outro. É na
presença, ou na evocação, de outrem que cada um se reconhece a si mesmo. Entre
mim e outrem, assim como entre as culturas ou entre as nações existe uma
continuidade e uma descontinuidade, dimensões ao mesmo tempo conflitantes na
sua inconsistência e solidárias no caráter humano que as une, sem que se possa torná-las
idênticas. Esse foi o ovo de colombo antropológico de Giambattista Vico (1668 –
1744), filósofo e historiador napolitano, cuja intuição encantou Hegel e Marx.
Assegurar a coexistência e retirar proveito de ambas as dimensões – ideia já
manifesta por Aristóteles em sua Política -, é atuar na contracorrente da
uniformização dos globalismos e de outros universais vazios. A identidade é
estéril, de caráter linear, enquanto a equivalência é profícua, de caráter
complexo.
O Brasil na liderança
A explosão das desigualdades realimenta, potencializando, a
concentração e centralização do poder econômico e de sua interferência no
sistema político, com efeitos regressivos e inibitórios sobre a capacidade
democrática de responder aos desafios das desigualdades. A resposta mais
vigorosa vem do Comum. Iniciativas do Comum estão presentes em todos os
continentes. Nos EUA, por exemplo, o Comum conta com 250 empreendimentos e
congrega milhares de pessoas.
Mas é o Brasil que se destaca por sediar o maior movimento mundial do
Comum – o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, com mais de 400 mil famílias e
quase dois milhões de associados. Permita-me um testemunho pessoal: Meu neto
trabalhou como intérprete num dos assentamentos do MST. Recebia, em média, 10 visitantes
estrangeiros por semana, em geral pesquisadores. Explica-se tal interesse: As
cooperativas do MST no Estado do Paraná igualam ou superam em produtividade
(produção por unidade de área), as maiores cooperativas paranaenses, como a Coamo,
com receita anual de R$ 23 bilhões em 2021, e a Cocamar, com receita anual de R$
6,9 bilhões em 2020. Isso é suficiente como demonstração de que a exploração
comunitária dos recursos naturais, associada no caso do MST à propriedade
individual da terra, disputa seus resultados competitivos com os do mercado, com
as vantagens associadas à saúde alimentar e à qualidade de vida. Mas o êxito
dos empreendimentos do Comum não se mede pelo crescimento linear, senão pela
velocidade de sua expansão exponencial. Por exemplo, a Creative Commons,
organização não governamental sem fins lucrativos, de compartilhamento e acesso
livre à sua midiateca, após vinte anos de atividade já dispõe de 80 milhões de
arquivos.
Historicamente, o termo inglês Commons refere-se, no sistema feudal, ao
uso comum das terras de pastoreio e de lavoura, as terras comunais, de que se
serviam os camponeses, os senhores feudais, os nobres e cavaleiros, para o
pastejo dos animais e para a caça, terras que deviam permanecer em pousio do
cultivo durante três anos, para regeneração da fertilidade natural do solo. Regras
pormenorizadas de acesso e uso das terras comunais foram editadas pelo imperador
Carlos Magno (742 – 814) no seu Capitularia regum francorum, que é o primeiro
édito ocidental de caráter ambiental - uma obra prima de fazer inveja a
ambientalistas da atualidade. Aqui vai chamar-se “comum” e “comunais”, no
plural, não somente as terras comunais, mas também os seus usuários, os
commoners, sem tradução correspondente em português numa única palavra.
Na Bolívia, uma experiência a meio caminho
Um aceno apenas longínquo à experiência do Comum, embora híbrida e ainda
distante de seu potencial, é o que ocorre na Bolívia há 15 anos, com expressão
nas elevadas taxas de crescimento com distribuição de renda e ênfase na justiça
social, um caso inédito na América Latina. O êxito e a estabilidade política da
experiência boliviana, que superou de permeio um golpe de Estado mediante
pressão popular, devem-se ao enxerto na democracia representativa de
componentes da cultura ameríndia, politicamente centrada no poder comunitário, de
comando horizontal, ainda que mediado pelo poder sindical, de organização
vertical. É de ressaltar, no que diz respeito ao Comum, que o seu caráter
híbrido -, que se faz emblemático e transborda as fronteiras bolivianas, para
além do mundo andino -, está em que é do lado ameríndio que se manifesta a
Política do ator em ação na primeira pessoa, por sobre a mediação do estatuto
da representação, a que se refere Alain Touraine.
Oficialmente, o regime boliviano se assume como “socialismo
comunitário” uma expressão contígua à ideia de uma racionalidade comunitária.
Em contraposição à racionalidade eurocêntrica do Iluminismo de Immanuel Kant, no
que tem de individual, autista e pretensamente soberana e universal, intelectuais
latino-americanos vinculados ao movimento conhecido como pensamento
descolonial, em oposição à lógica da colonialidade, advogam a racionalidade
comunitária, diversa, local, inclusiva e convivial. Na Bolívia, destaca-se o
sociólogo Juan José Bautista.
A propósito, registro uma ironia da História, como nota de rodapé: O
sociólogo e jornalista peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930), um dos pioneiros
do pensamento marxista na América Latina, foi expulso da Internacional
Comunista (Comintern) - organização fundada em 1919 por Vladimir Lênin e
pelo seu partido, para reunir os partidos
comunistas de
diferentes países -, por ter proposto a incorporação de ingredientes da tradição
cultural ameríndia ao marxismo. “Sem a consciência da classe operária, não há
revolução”, retrucavam-lhe os ideólogos oficiais do marxismo, expressão que no
Ocidente se tornou o marco categorial do movimento comunista por todo o século
XX.
A “Tragédia dos Comuns”
Em uma reação previsível, a primeira escaramuça pesada contra o Comum
deu-se na sua contrafação como estigma, lançada no centro dos embates sobre a
ideologia neoliberal, em 1968, por Garret Hardin (1915 - 2003), zoólogo e
professor de Ecologia Humana, da Universidade de Stanford, com o seu artigo The
Tragedy of the Commons (A tragédia dos comuns), publicado em Science 162 (3859):
1243–1248). Trata-se de uma tese embebida numa visão malthusiana da gestão dos
recursos naturais, que pretende demonstrar que numa situação em que indivíduos
agindo de forma independente e racional, de acordo com seus próprios
interesses, comportam-se na contramão dos interesses de uma comunidade. O
argumento de Hardin fundamenta-se no postulado do comportamento do homo
oeconomicus, que desconsidera, em busca do lucro, os efeitos da exploração
descontrolada dos recursos naturais. Assim, aduz ele, mesmo antes dos
cercamentos as terras comunais já se encontravam degradadas em consequência do
sobrepastejo pelos rebanhos, a que foram submetidas pelo interesse egoísta dos
criadores. Que o mundo seja de todos, que seja um banquete aberto a todos – estaria
aí o destino inexorável e impiedoso – a tragédia no sentido grego - reservado a
todos numa sociedade em que cada um fundamente o seu interesse na exploração
dos comuns.
No Brasil, a tragédia ocorre, de fato, por exemplo, no município de São
Gotardo-MG, no qual o excesso de pivôs centrais de irrigação na agricultura
provoca uma disputa entre os próprios irrigantes pelo risco de escassez
crescente da disponibilidade de água, além de sua escassez induzida para outros
usos, como os da rede doméstica e da indústria, em que pese a disponibilidade
de água de dois rios que cortam o território do município. A irrigação agrícola
responde por 69% do consumo efetivo dos recursos hídricos do País (ANA, 2005). Os
pivôs centrais -, equipamentos de grande porte, dotados de um braço lateral
mecânico de cerca de 70 m a 800 m de comprimento, preso a um eixo na forma de
torre, no qual estão ligados aspersores, que se movimenta em círculo, acima do
solo -, despejam centenas de milhões de litros de água por turno de rega de 20
horas (Embrapa CPAC, Doc 71, 1998).
O Comum assim explorado, redundaria, de fato, em tragédia
necessariamente, por não se tratar do Comum. Pois, esse não é o caso das terras
comunais, em que se apoia equivocadamente a tese de Hardin, terras sujeitas às
normas consuetudinárias contempladas por Carlos Magno nas Capitularia. Ou seja,
por não terem dono, as terras comunais nem por isso eram exploradas pela lógica
do interesse individualista. A exploração se dá num contexto normativo auto
consentido, que exclui precisamente esse tipo de comportamento – isso é o que
está expresso nas Capitularia, ou seja, regras para prevenir o risco de superexploração
dos recursos naturais. E o princípio da sustentabilidade vale também para a
criação de galinhas, cujo bando, em número, não podia superar mais de cem aves por
galinheiro, para prevenir o risco de enfermidades. De modo que a tese aventada
por Hardin, de degradação do solo por efeito do sobrepastejo e consequente ruína
dos comunais, é um sofisma. Ele confunde, identificando, o que não é apropriado
por ninguém, como o mar ou o ar, com a livre exploração sem restrição de bens
retirados de um estoque disponível e limitado. No caso das terras comunais, o
“estoque” consistia no processo de pousio e rotação trienal no uso do solo,
para a recomposição de sua fertilidade natural, como prescrevia a experiência secular,
contemplada nas normas.
O sofisma de Hardin, engendrado pela desatenção para com o caráter autorregulatório
da ação coletiva dos comunais, deu aos ideólogos neoliberais a oportunidade que
buscavam de fazer da suposta tragédia o seu prato de resistência. Assim
ocorreu, por exemplo, a Mancur Olson (1932 - 1998), economista e sociólogo
norte-americano, professor da Universidade de Maryland. Em seu livro A Lógica
da Ação Coletiva (Edusp, 2015), Mancur Olson argumenta que as ações coletivas
não seguem a mesma lógica que rege as ações individuais: Indivíduos em um grupo
não agirão em prol de um objetivo comum, a menos que haja coerção. Olson
popularizou a figura do carona (free rider), o indivíduo racional (calculista),
que prefere deixar por conta dos outros o peso de pagar pelo uso dos bens de
livre acesso. O carona tira proveito da ação coletiva do mesmo modo como os que
contribuem para obter o benefício comum a todos. Está aí o fundamento do
individualismo liberal. O carona ganha hoje sem se dar conta de que o ganho de
amanhã está na dependência do agenciamento de respostas que o seu cálculo mercantil
não contempla, nem tampouco a burocracia estatal. É no descaso para com esse
amanhã que sobrevém a tragédia.
Mas o equívoco metodológico de Garret Hardin e Mancur Olson é
elucidativo, pois dele se pode retirar a verdade que se esconde no seu avesso.
Ambos os autores naturalizam o homo oeconomicus, como se tratasse de uma
característica inata da espécie. Com o homo oeconomicus naturalizado, na sua profissão
de fé no laisser-faire, é certo que a História estaria destinada a terminar necessariamente
em tragédia, ou na necessidade de coerção inescapável, à falta de outra opção que
preserve a liberdade. Assim, o zoólogo Garret Hardin, improvisado no papel de historiador,
pratica o pecado mortal da disciplina – o anacronismo -, que se permite fazer
com os comunais o que fez o diretor de cinema Mel Brooks em sua comédia Banzé
no Oeste, de 1974, ambientado no Velho Oeste (1845-1890), em que o xerife usa
jeans da grife Gucci e um automóvel, ao invés de montaria. Pois é inevitável
reconhecer-se no comportamento de seus comunais do Medievo a mesma mentalidade de
ex-alunos da Universidade de Chicago, ninho de neoliberais, que de lá tivessem
saído de cabeça feita por Milton Friedman, Friedrich Hayek ou Karl Popper.
Sim, a verdade escondida no seu avesso, pois, ao contrário dos mercadistas,
que só entendem de disputar, isoladamente, uns contra os outros, em prejuízo
virtual de todos, o que faziam os comunais do Medievo era se manterem abertos e
solícitos para o entendimento comum, a cooperação, a reciprocidade e a
solidariedade, um comportamento que, antes de ser virtuoso, é uma prática indispensável
para se assegurar a sustentabilidade, condição de sobrevivência. E está ao
alcance da evidência dar-se conta de que, assim como o espírito adestradamente belicoso
do homo oeconomicus, a cooperação e a reciprocidade também não são um dom
inato. Pode presumir-se, assim, que os comunais têm, como diferencial, uma história
assentada na autorregulação, na autoconstrução e na autogestão, preservando-se
ao mesmo tempo a individualidade de cada um e a da comunidade de interesse no
qual ele se insere.
O barulho midiático malfazejo provocado pelo sofisma da Tragédia dos
Comuns deu impulso benfazejo ao desenvolvimento da economia institucional, disciplina
acadêmica na qual se filia a norte-americana Elinor Ostrom, ganhadora do Prêmio
Nobel 2009 a primeira mulher economista a ganhá-lo. Elinor Ostrom descreve a instituição,
não como um sistema de propriedade, contratos e mercados, mas como um conjunto
de normas, regras sociais e mecanismos de gestão postos em prática por um grupo
de indivíduos na organização de atividades repetitivas com efeito sobre esses
indivíduos e, eventualmente, sobre outros. A ênfase incide no direito ao uso,
mais que ao direito de propriedade. Com base nesse enunciado, ela mostrou,
apoiada num descomunal conjunto de pesquisas empíricas em todo o mundo, que
Hardin e Olson estavam errados e que a gestão coletiva continua viva e escapa à
lógica do mercado, sem produzir desperdício. Anteriormente, porém, já se
dispunha da evidência histórica de que por mais de 800 anos os comunais da
Inglaterra e de toda a Europa, tinham praticado com sucesso o manejo de suas
pastagens, sem risco de degradação. Há registro na França de exploração sustentável
de terras de pastagem por pelo menos mil anos, segundo se lê em escritos do cientista
e pesquisador francês André Voisin (1903 – 1964).
Se as Capitularia serviam para manter vivas as práticas
consuetudinárias, não foi porque a luz do Espírito Santo iluminou Carlos Magno,
mas porque o imperador valeu-se da experiência já então longeva e consolidada dos
comunais para estatuir as Capitularia. Esta é a questão decisiva, não
assinalada por Ostrom, confiante que estava na tutela governamental em que
assentava o seu modelo: Havia sido, antes de tudo, a autogestão, que tornara possível
manter produtivo e estável por séculos, em meio a condições naturais favoráveis
ou adversas, o regime do pastoreio e do pousio trienal, enquanto a tutela
burocrática do Estado, consolidada no Império Carolíngio, a isso se sobrepôs somente
como um efeito contingente do poder político.
Assim é que a leitura retroativa dos comuns, estimulada no mundo
intelectual pela obra de Elinor Ostrom, teve o efeito de despertar, de seu pressentimento
latente, a necessidade de se formular uma nova Economia Política em consonância
com o revigoramento do espírito comunitário nos movimentos sociais, a partir
dos anos 1990. É então que se acelera a incorporação da categoria do Comum como
prioritária na agenda das lutas contra a apropriação do que resta do espaço
público ou estatal e contra o descalabro social do neoliberalismo.
O novo Robinson Cruzoe na oposição
Observa-se que a luta pelo Comum, ao reagir aos obstáculos postos pela
burocracia do Estado, não desconsidera, contudo, o seu poder de regulação,
enquanto a universalização do Comum não se realiza. O seu reconhecimento não
ocorre de modo imediato ou espontâneo, mas resulta, ao contrário, da ação
política, tanto mais necessária quanto mais se estreita o vínculo ideológico e
financeiro entre a imprensa corporativa e o interesse neoliberal em aliança com
governos, empenhados todos em incutir no imaginário popular a ficção do
empreendedor. Em seus apontamentos de leitura, Marx observa que no plano
ideológico a força que mais resiste à superação do Capitalismo é a
sobrevivência caricata em que se converteu a figura alegórica de Robinson Cruzoe,
que, em versão atualizada, exercita a sua meritocracia empreendedora no ramo do
uberismo.
Em contraste, percebe-se no caso dos quilombolas, por exemplo, quão
dependentes da ação política são as suas iniciativas comunitárias, que se veem
assim forçados a remar contra a corrente. É a duras penas que eles têm obtido o
seu reconhecimento. Segundo estudo do IBGE, em 2019 existiam 5.975 localidades
quilombolas no Brasil, das quais apenas 404, ou menos de 10% delas, são
oficialmente reconhecidas.
O desafio é o direito do direito
As iniciativas do Comum no Brasil, assim como ocorre em outras partes
do mundo, tendem a se multiplicar rapidamente, estimuladas, na contracorrente,
pelo desmantelamento de cunho neoliberal do que resta das instituições voltadas
para o social, em proveito de um individualismo selvagem. Assim, a boa acolhida
por parte de seus associados e dos beneficiários amplifica ainda mais a visão dos
desafios na perspectiva do futuro.
O primeiro deles é superar a oposição aberta por parte
do Estado e da iniciativa privada, que operam em sintonia na obstrução da
expansão e consolidação do Comum. Isso dá-se, em primeiro lugar, no contexto do
Direito, pois, à diferença do direito privado e do direito público, o direito
do Comum não está dado e precisa ser criado. É o desafio do direito contra
direito, e o exemplo mencionado dos quilombolas é autoexplicativo. Não há
receitas prontas para isso, e cabe recorrer à inventividade das próprias forças,
amparadas nos especialistas afinados com a causa.
Aqui, a prática (práxis instituinte) é a palavra-chave na afirmação do
direito sobre o Estado. É emblemática nesse sentido a criação do Direito
Canônico, que resultou da porfia secular da Igreja Romana para emancipar-se da
tutela dos imperadores. Outro exemplo clássico é a Magna Carta (1215),
compromisso que arrebatou do monarca inglês o poder absoluto sobre os súditos. As
caçadas senhoriais foram objeto de contestação social durante todo e período do
Antigo Regime, do século XV ao fim do século XVIII (Le Goff e Schmitt, 2017). No
Brasil, a luta pelo direito de posse da terra é rotina dos ribeirinhos e
moradores junto à costa marítima, ameaçados de expulsão, em geral, por
aventureiros, um problema gerador de violência por parte do Estado em todo o
território nacional. Os direitos dos operários foram arrancados dos patrões à
custa de demissões, repressão policial e greves. São causas ganhas ou
fortalecidas com frequência graças à ação coletiva dos comuns, assim como as
causas contra as leis injustas.
Há fundamento jurídico para o costume (acepção jurídica) nas atividades
dos pobres, que impede certos objetos de serem apropriados em razão de sua
natureza. Uma Constituição Social é produto de diferentes grupos organizados,
que transformam as suas reivindicações em direito comum formalizado. “Um
direito social resulta da prática coletiva, que gera uma razão comum, que dá
origem a regras sociais” (Dardot e Laval, 2018). Enfim, é vastíssimo o campo da
geração do direito contra direito, no qual o movimento do Comum encontra oportunidade
de se exercer.
A política do Comum
Com a divulgação da obra “Comum – ensaio sobrea revolução no século XXI”,
chega ao público leitor uma proposta abrangente de uma política do Comum, de
autoria de Pierre Dardot e Christian Laval (2017). A proposta ecoa a apologia
feita por Marx da chamada constituição “comunal” dos communards de 1871. A sua palavra
de ordem estratégica é “convergir em vez de contornar”. Por convergir
entende-se a cooperação em rede entre todas as entidades de autogestão
democrática – ONGs, associações, cooperativas etc.-, autônomas e independentes,
organizadas por seus próprios membros, que participam ativamente da formulação
de suas políticas e na tomada de decisões. Os membros têm direito de voto (um
membro, um voto); no movimento do Comum, porém, diferentemente das cooperativas,
não há voto duplo, como no caso das cooperativas de segundo e terceiro grau,
assim como não há hierarquia (veja abaixo). Outra diferença é que a política do
Comum visa à reorganização da sociedade, fazendo do direito de uso o eixo
jurídico da transformação social e política, em lugar do princípio da
propriedade. Assim, o âmbito próprio e diferencial do Comum estende-se e se
limita ao que é comum a todos. Nos termos do sociólogo francês Maurice Godelier
(1989), não basta, como os animais, viver em sociedade; é preciso produzir a
sociedade, ou seja, dar-se forma política democrática à produção comum da
sociedade por si mesma – e nessa perspectiva, a propriedade privada é uma
limitação.
A seguir, a menção sucinta de algumas proposições políticas enunciadas
por Dardot e Laval e explanadas amplamente no livro citado:
- O Comum é o princípio de transformação do social.
- É preciso contrapor o direito de uso à propriedade.
- O Comum é o princípio da emancipação do trabalho.
- É preciso instituir a empresa comum como instituição da sociedade
democrática.
- A associação na economia deve preparar a sociedade do Comum.
- O Comum deve fundar a democracia social.
- Os serviços públicos devem ser instituições do Comum.
- É preciso instituir os comuns mundiais.
- É preciso instituir uma federação dos comuns.
O sistema cooperativista como motor da institucionalização
O
sistema cooperativista brasileiro, além de seu papel relevante na geração de
trabalho, emprego e renda, tem associada à sua história a contribuição
fundamental para a construção da institucionalidade no País. Como é sabido, uma
das características negativas de nossa sociedade é a precariedade institucional,
responsável em grande parte pela recorrência de nosso atraso cultural nas
dimensões política, econômica e social.
Instituições
são as “regras do jogo” que a sociedade se autoimpõe para organizar as
interações de seus partícipes. Essas regras são de caráter formal (leis) e de
caráter informal (códigos de conduta). A instituição maior de um país é a sua
Constituição. Um país funciona bem quando as interações do ambiente
institucional (regra do jogo) com as organizações (jogadores) exercem um papel
encorajador e propício ao desabrochar da criatividade e à expansão das
capacidades, condição para se estimular as atividades materiais e espirituais, incrementando
a melhoria no estado do bem-estar social. Um país funciona mal quando as
instituições deixam de atender a essas expectativas. A situação assim criada
caracteriza a precariedade institucional.
A
precariedade institucional é um sintoma de regressão no nível de interação
social, da perda do senso de união, da ausência de um propósito comum, da
desarticulação dos jogadores, da exposição ao risco do autoritarismo e à
instabilidade política, estado de coisas que engendra e promove, como reação
defensiva, o individualismo do cada um por si, em prejuízo, em última
instância, de todos. Considerando-se a sociedade como um todo, o resultado, em
termos de eficácia e eficiência, não será melhor, ao contrário, do que o dos empreendimentos
baseados na cooperação, na participação e na solidariedade, valores indispensáveis
para a consolidação da democracia. Assim o demonstrou empiricamente a
economista Elinor Ostrom, Prêmio Nobel 2009, no maior inventário já realizado,
por iniciativa acadêmica, sobre comunidades que conduzem os seus afazeres
coletivamente, mediante a autogestão.
É
no contexto da institucionalidade que avulta o papel agregador do
cooperativismo, em especial o das cooperativas agropecuárias, que em terras
brasileiras encontraram circunstâncias propícias à sua expansão, como a grande
extensão do território e as longas distâncias entre os centros urbanos e as
áreas rurais, o que estimula os interessados nas atividades econômicas
interioranas, por exigência de sua natureza, a cooperar entre si, para romperem
o isolamento geográfico e se apoiarem, por exemplo, na associação para a
redução de custo no transporte de insumos e de máquinas, para a produção e para
o escoamento do produto com destino aos centros urbanos e ao exterior.
Com
mais de 170 anos de existência no Brasil, as cooperativas agropecuárias têm como função social
específica reunir e organizar produtores rurais para fortalecer o
seu poder de escala e a sua atuação no mercado. Além de fomentar a organização
da atividade, elas exercem um papel relevante na assistência técnica, industrialização e
comercialização da produção dos cooperados. Isso ocorre igualmente nas atividades
extrativista, agroindustrial, aquícola e pesqueira. Com a incorporação de novas tecnologias, as
cooperativas agropecuárias levam a modernização ao campo, abastecem os lares brasileiros
com alimentos e contribuem diretamente para a economia. Em 2020, operavam 1.173 cooperativas agropecuárias registradas
na Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), das 4.868 do total, com mais de 1 milhão de
cooperados, dentre um total de 17 milhões, e 223 mil empregos diretos (455.095 mil no
total). Em 2020, o seu ativo total elevou-se a R$ 655
bilhões, um aumento de 33% em relação ao ano anterior, enquanto o patrimônio atingiu
R$ 145 bilhões. 15% acima do alcançado no ano anterior (OCB, 2020).
Mas
começar pelas cooperativas agropecuárias para exaltar o aporte da contribuição
do cooperativismo para a institucionalização, sugere, à primeira vista, tratar-se
de um anacronismo, pois o movimento cooperativista no País, que surgiu no
século XIX, foi estimulado inicialmente por funcionários públicos citadinos -
militares, profissionais liberais e operários. A primeira cooperativa com
registro no Brasil foi de consumo, criada em Ouro Preto-MG, em 1889.
Atualmente, elas se distribuem em sete ramos: agropecuário; crédito; consumo;
infraestrutura; saúde; trabalho; produção de bens e serviços; e transporte.
Anacronismo
não o é, considerando-se o papel relevante, na sua abrangência territorial, das
cooperativas agropecuárias como agentes de sua interiorização, ao levar
consigo, disseminando, no vasto território e, por efeito demonstração sobre o
conjunto da sociedade, o que inicialmente se limitava ao espaço urbano, a
saber, a autogestão democrática no
trabalho, como princípio norteador; processos de emancipação social, como
autonomia e construção de conhecimento; a educação com vistas ao empoderamento
dos trabalhadores, no provimento de uma consciência crítica sobre os conflitos
e contradições sociais, no exercício da liberdade e repúdio a toda a forma de
sujeição; a prática dos contratos, a melhoria na organização da produção e dos
serviços; a produção em escala, o incremento na racionalidade da gestão; os
serviços da justiça, da saúde; da assistência social; o seu influxo sobre a
qualidade da administração pública; sobre a cultura do planejamento e sobre os
procedimentos democráticos na representação política e nas representações
classistas, como os sindicatos e as associações de profissionais; a difusão das
tecnologias de comunicação, a segurança pública etc.
O
Estado claudicante entre o apoio e o desestímulo
Em
que pese o papel decisivo do cooperativismo na construção de um Brasil
democrático, coeso e solidário, o apoio do Estado no seu fortalecimento e na
sua expansão tem sido claudicante, ou negativo, como pode observar-se, por
exemplo, em dispositivos legais e normativos que regeram historicamente as suas
atividades. Não é por acaso que no Brasil as cooperativas de crédito tenham
sido mantidas atrofiadas, ao contrário do que ocorre em países, como os do
Hemisfério Norte: A exploração da atividade financeira privada no Brasil está sob
o controle de um pequeno grupo de banqueiros, que a exercem sob o regime de
monopólio, enquanto no Hemisfério Norte encontra-se disseminada por um grande número
de agentes. Essa disparidade não se justifica, por exemplo, à luz de algum
atraso nos avanços da informática abaixo do Equador, pois o Brasil foi pioneiro
e líder mundial na automação das operações bancárias.
A
dissimetria temporal na expansão entre os ramos do cooperativismo, em especial
no caso das cooperativas de crédito e de consumo, deve-se a medidas
restritivas, de caráter tributário e de outra natureza, impostas no período da ditadura
militar, à revelia do debate público, em razão do vínculo estreito do regime
autoritário com os interesses das grandes corporações empresariais. Assim, foi
nesse período que, por efeito de tais medidas, atrofiou-se o ímpeto da difusão
das cooperativas de consumo, que avançava pari passu com a aceleração do
crescimento da atividade industrial e do contingente de
trabalhadores-consumidores nos anos de 1960, 1970 e 1980, a ponto de asfixiar a
quase totalidade delas, levando à suspensão das atividades. A Lei 5.5764/71,
que disciplinou a criação de cooperativas, restringiu a autonomia dos
associados, interferindo na criação, funcionamento e fiscalização do
empreendimento cooperativo.
A
limitação somente foi superada pela Constituição de 1988, graças à restauração
da normalidade democrática, que proibiu a interferência do Estado nas
associações, dando ensejo à retomada da autogestão no cooperativismo. Quanto às
cooperativas de crédito, somente saíram, de fato, de seu estado anterior de
arremedo, a partir do novo milênio, quando já não se consegue esconder a
evidência de sua capacidade competitiva, comprovadamente de potencial superior
à da iniciativa privada e estatal, como o demonstra a experiência consolidada
do Hemisfério Norte. É de ressaltar nesse aspecto a resistência renhida do
cooperativismo às pressões de grandes conglomerados pela sua desagregação, via
propostas mercantis aparentemente sedutoras.
O
inimigo dentro de casa
Mas
o desestímulo à expansão do cooperativismo opera também no interior do sistema,
em razão das distorções que comprometem, em seu fundamento, o princípio
igualitário do um voto/um membro. Assim, por exemplo, no caso da industrialização
da matéria-prima produzida pelo cooperado, mediante a constituição de uma
unidade industrial por aporte de cotas, a participação do cooperado nos
resultados da transformação da matéria-prima pode não se dar de acordo com o
princípio de um voto/um membro. Ocorre em grandes cooperativas de leite, de
perfil tradicional, que congregam centenas de cooperados, que o acesso dos
cooperados ao número e ao valor das cotas não é igualitário. Os detentores de
maior número de cotas passam, então, a dispor de maior poder de influência
tanto na gestão da fase industrial quanto na definição do preço pago ao
produtor do leite. Em se tratando de um mesmo cooperado produtor de leite e comprador
de leite ao mesmo tempo, pode ocorrer que ele esteja interessado na definição
do preço do leite entregue na plataforma da cooperativa ao valor mais baixo possível
pago ao produtor (sendo ele mesmo produtor), em proveito do resultado de sua
transformação em laticínio, de cuja venda ele obtém um ganho superior ao que
obteria como simples ofertante da matéria-prima.
Além
disso, a estrutura hierárquica na gestão das cooperativas, ao distanciar burocraticamente
dos cooperados o corpo dirigente, constitui-se com frequência em porta aberta à
corrupção. Mais importante ainda, no cotejo entre o sistema cooperativista e o
movimento do Comum ocorre uma diferença de caráter estrutural entre os objetivos
finais de cada entidade. Enquanto boa parte do sistema cooperativista orienta-se
para o mercado, visando ao aumento do patrimônio, o Comum visa à reorganização da sociedade, fazendo do
direito de uso, e não do direito de propriedade, o eixo jurídico da
transformação social e política. Orientando-se, porém, pelo primado da diretriz
do convergir sobre o contornar, o movimento do Comum mantém interface aberta com
o sistema cooperativista, nos aspectos comuns da associação, da cooperação, da
reciprocidade e da solidariedade – em ambos os casos, procedimentos educativos
para a autogestão.
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