segunda-feira, 25 de abril de 2022

Machado sobre Site logo image Das grandes robinsonadas: o sujeito autocrático machadiano bbb

 

Site logo image

Das grandes robinsonadas: o sujeito autocrático machadiano

mundodasformas

abr 25

Cláudio R. Duarte

1-As aventuras do dinheiro no coração do escravismo neocolonial

O "sujeito autocrático" do esclarecimento, segundo Adorno e Horkheimer, se realiza plenamente na figura histórica do senhor de escravos, do burguês e do administrador estatal. Em Ulisses e em Robinson Crusoé, segundo uma página célebre da Dialética do esclarecimento, teríamos então elementos de uma prefiguração do "homo oeconomicus" da modernidade*.


Estudo para panorama do Rio de Janeiro, por Victor Meirelles (1885). Ao fundo o Morro do Castelo

Ora, Machado de Assis encontra esse sujeito autocrático em formação no coração da periferia colonial escravagista. As referências à Odisseia e ao Robinson Crusoé são explicitadas, mas lidas em sua chave negativa consciente. As robinsonadas do trabalho e do dinheiro como que se transformam numa versão extremamente complexa do homo oeconomicus, justamente por este aparecer mesclado como burguês e proprietário à moda antiga, de maneira a desenvolver as virtualidades do próprio Robinson Crusoé (cujo escravismo esporádico se dá por sua passagem pelo Brasil e depois mais tarde em sua relação com Sexta-Feira e os demais habitantes de sua Ilha convertida em "império" privado). Esse sujeito autocrático brasileiro combina assim três tipos de poder: o poder do dinheiro, o do domínio direto sobre o trabalho escravo e/ou dependentes, o poder de narrador volúvel e caprichoso, capaz de atropelar todas as regras sociais e convenções realistas, no limite liquidando toda a esfera da alteridade. É o que veremos melhor na sequência, com breves incursões por Memórias póstumas de Brás Cubas e Esaú e Jacob.

Num conto como "Só!” (1885), no entanto, o contraste com Robinson Crusoé se torna explícito. Bonifácio e Tobias, dois parentes da elite proprietária fluminense se encontram na situação “um pouco estranha mas agradável” do total isolamento, na “espécie de Robinson”.1 Tobias é descrito como um “filósofo” com fama de “maluco”, pois “costuma ele desaparecer da cidade durante um ou dous meses; metia-se em casa, com o único preto que possuía, e a quem dava ordem de lhe não dizer nada.”2 Querendo imitar essa robinsonada, Bonifácio pergunta-lhe pelas razões desse costume que o parente diz ser “o maior regalo do mundo”. Respondendo ao parente, o filósofo Tobias aponta os motivos de uma alienação radical, que conjuga razão e loucura:

“Trago um certo número de ideias; e, logo que fico só, divirto-me em conversar com elas. Algumas vêm já grávidas de outras, e dão à luz cinco, dez, vinte e todo esse povo salta, brinca, desce, sobe, às vezes lutam umas com as outras, ferem-se e algumas morrem; e quando dou acordo de mim, lá se vão muitas semanas”3.

Um tipo de dedutivismo demencial que dá, aqui em chave satírica, a magnitude dos horrores e perversões que o narrador machadiano da segunda fase será capaz de propor e realizar. Uma dessas ideias de Tobias era simples e brutal, uma “máxima social dos cães” feita para justificar a perseguição e a violência de cães furiosos da rua: “-Quem persegue ou morde, tem sempre razão, - ou, em relação à matéria da perseguição, ou, quando menos, em relação às pernas do perseguido. Já reparou? Repare e verá”4. Quanto a Bonifácio, seu exílio do mundo burguês durará só dois dias pois sua “alma interior” escorrega e naufraga pelas lembranças da “vida exterior, figuras e incidentes, namoros de um, negócios de outro, diversões, brigas, anedotas, uma conservação, um enredo, um boato”5 – desfilando as aparências de um mundo alienado da cultura, feito de máscaras de bacharel, jantares finos, whist e vida granfa em Petrópolis, bilhetes esquecidos e amores falhados, tempestades de cabelo e parvoíces tais que só a cifrada linguagem da dilaceração machadiana é capaz de condensar satiricamente, mesmo num conto menor. Surge o quadro de um espírito volúvel, enfim, que salta de galho em galho, voraz e impaciente, mas termina esmagado nessa impossível solidão reflexiva, tal qual aliás o solitário Jacobina de O espelho, reduzido à posição do escravo pelas “paredes de um cárcere misterioso”6. Bem mais aliás do que a vida do poor Robinson original (ou a do observador do “Homem das Multidões”, de Poe, também invocado como comparação no texto7), sua vida aliena-se no automatismo dos negócios (de outros) e no ritual do consumo de vaidades. Seu “eu” é um tal vazio que, Tobias, ao final, lhe dá a seguinte recomendação, lembrando a linguagem dos marinheiros: “você esqueceu-se de levar o principal da matalotagem, que são justamente as ideias...”8. Na realidade, Tobias e Bonifácio têm ideias abstratas e uma vida separada em última instância suportada pela escravidão, que são da mesma família tresloucada das grandes personagens machadianas: a volubilidade e a ideia fixa de Brás Cubas, as parábolas alucinadas e criminosas de Quincas Borba e as alucinações imperiais de Rubião, tanto quanto o delírio de ciúmes de Bento Santiago e a imaginação cínica e perversa do conselheiro Ayres.

A diferença em relação ao romance de Defoe é que este ponto de vista de classe dominante, que unifica e torna compatível toda oposição (liberalismo e escravismo, pensamento esclarecido e obscurantismo etc.), penetra ainda mais na forma total da prosa, fazendo-se enredo, personagens, estilo da prosa e sobretudo foco narrativo. Eis o que Schwarz bem resume numa passagem fundamental:

“A partir de 1880, a ousadia [machadiana] se torna abrangente e espetacular, desacatando os pressupostos da ficção realista, ou seja, os andaimes da normalidade burguesa. A novidade está no narrador, humorística e agressivamente arbitrário, funcionando como um princípio formal, que sujeita às personagens, a convenção literária e o próprio leitor, sem falar na autoridade da função narrativa, a desplantes periódicos. As intrusões vão da impertinência ligeira à agressão desabrida. Muito deliberadas, as infrações não desconhecem nem cancelam as normas que afrontam, as quais entretanto são escarnecidas e designadas como inoperantes, relegadas a um estatuo de meia vigência, que capta admiravelmente a posição da cultura moderna em países periféricos. Necessárias a essa regra de composição, as transgressões de toda sorte se repetem com a regularidade de uma lei universal. A devastadora sensação de Nada que se forma em sua esteira merece a letra maiúscula, pois é o resumo fiel de uma experiência, em antecipação das demais regras ainda por atropelar”9.

2- Memórias póstumas mas vivíssimas do trabalho precário

Sirva-se de exemplo desse narrador despótico o episódio de D. Plácida nas Memórias póstumas, seguindo de perto aqui a esplêndida análise de Schwarz10. A vida da costureira, cozinheira e alcoviteira de Brás e Virgília alterna “trabalhos insanos, as desgraças, doenças e frustrações”, reunindo o pior dos dois mundos que constituem o país: “trabalho abstrato, mas sem direito a reconhecimento social”, a “paga material incerta e mínima”, além de “nenhuma estima pelo esforço”, tal qual corresponde ao universo escravista. Essa matéria é escarnecida pela forma extremamente “cínica” em que o narrador a relata: reunindo uma variedade de estilos (a prosa fria e fatalista do naturalismo, certo timbre cristão amalucado mesclado à brevidade do conto filosófico setecentista da Auklärung), a análise serve à justificação dos privilégios e vantagens materiais da classe de Brás Cubas, que assim delata a si mesma trazendo à tona uma vez mais seu “horror aos pobres” e a existência aparentemente sempre “acima da lei”11. Como saldo, contudo, não fica qualquer valorização ideológica do trabalho livre: “resta uma noção radicalmente desideologizada do esforço, o qual é despido de mérito intrínseco”. Ou antes, resta apenas o silêncio da mulher: um “ponto de vista [que] permanecerá inexpresso” – e ignorado mesmo pelo socialismo produtivista de nosso tempo (mas decerto não de todo inconsciente para D. Plácida)–, contrapondo-se assim à eloquência perversa de Brás Cubas.

3- A abstração fetichista do dinheiro convertida em "aventura diplomática": Esaú e Jacob como nec plus ultra.

“Nada em cima de invisível”12 será também, com efeito máximo, uma das ideias principais do narrador de Esaú e Jacob, o conselheiro Ayres, cuja estratégia cínica leva esse esquema ao zênite da ironia (em sentido técnico: a ironia do primeiro romantismo alemão), a saber: narrar a matéria do romance de maneira onisciente, supostamente objetiva e impessoal (em terceira pessoa), combinando intrusões diretas em primeira pessoa e o registro pessoal do conselheiro como personagem refletora, mas fingindo imparcialidade, afetada por um timbre objetivista ao mesmo tempo naturalista, metafísico e religioso, mal camuflando tais imposturas, distorções e mentiras como certezas factuais e verdades “puríssimas”, que praticamente inventam o grosso de uma trama ao mesmo tempo real e fantástica, baseando-se em deduções e adivinhações puramente subjetivas13. Uma ironia que fica subentendida no capítulo de abertura, em que Aires encontra a cabocla no Morro do Castelo, que vaticina obviedades a respeito dos filhos de Natividade: as "cousas futuras" são as coisas de sempre, as metamorfoses da "eterna" dominação oligárquica no país. A visão diplomática de Ayres nasce então do alto, do lugar de fundação da cidade, do lugar mítico que funda essa dominação de classe.


Esquema topográfico do Morro do Castelo

A máscara do diplomata ardiloso e especioso cola-se em seu rosto: “[Ayres] não atribuía a esta [cidade do Rio de Janeiro] tantas calamidades. A febre amarela, por exemplo, à força de a desmentir lá fora, perdeu-lhe a fé, e cá dentro, quando via publicados alguns casos, estava já corrompido por aquele credo que atribui toda as moléstias a uma variedade de nomes”14.

Ocupando todos os cantos do relato (narrador e personagem onipresentes através do foco onisciente, dos registros de seu diário e dos diálogos com Flora e os membros das famílias Santos e Baptista), Ayres leva a volubilidade de Brás e a paranoia de Bento ao seu ponto “último” (fazendo ressoar o lema nec plus ultra e a “teoria dos ídolos” de Bacon), pois aqui ele tem o poder de fabricar o real em escala verdadeiramente industrial, ficcionalizando a ficção de maneira a solapar toda objetividade do relato e no limite eliminar toda a alteridade. Uma forma construída para espelhar não só o estúpido intelecto autocrático e o poder inconteste da oligarquia, mas o dinheiro autonomizado durante a febre especulativa do Encilhamento (D-D’), bem como as conciliações e confusões entre o mesmo e o outro num país em transição (Império e República, escravismo e trabalho livre, liberalismo e decretação de estados de sítio etc.) no contexto do domínio imperialista do mundo. Desde o Spleen et Idéal baudelaireano, marcado pelo malogro da revolução de 1848, tais criptogramas abissais da literatura anunciavam os potenciais negativos e aniquiladores da forma capitalista; e a obra de Machado de Assis não fica atrás nessa tarefa de representação, trazendo à tona o fundo perverso obsceno das elites ilustradas, sua volubilidade e seu encapsulamento em “compensações imaginárias”, dando sinal da “ilegalidade estrutural assumida” pela época imperialista15. Deixando entrever a própria impostura narrativa, Ayres cria uma prosa suspensiva, como que em “estado de sítio”, que invisibiliza e liquida, por fim, a situação social do negro excluído e abandonado à própria sorte após a Abolição, tal como em via paralela destrói gratuitamente o moral da moça Flora (com seus anseios de independência e reconhecimento individual), apoiando-se na ideia fixa do seu suposto interesse por ambos os gêmeos (“quisera-os ambos naturalmente”16), herdeiros do banqueiro Santos. Nada fica provado nesse suposto “caso embrulhado”, apenas uma relação de amizade tênue seguida por um distanciamento por parte da moça, que demonstra, alheia a qualquer afeto amoroso, certa aversão e mesmo repulsa face à infantilidade, à soberba e à insipidez dos dois rapazes.


Desmonte do Morro do Castelo

No plano político, a República representa para Ayres a ascensão da “multidão” – que lhe causa “horror”17, ou seja, o horror das ruas ocupadas pelos pobres, os trabalhadores, os negros, as mulheres e toda esfera da subordinação, suportados pelos valores potencialmente democráticos do novo regime competitivo em formação após a Abolição. Todo o enredo de Esaú e Jacob, então, poderia ser interpretado como ressentimento de classe e vingança machista do diplomata decadente contra a queda da Monarquia e seus valores hierárquicos, mas estrilando alto o status de classe, raça e gênero inalterado pelo advento da República: a dominação patriarcal dos plutocratas como fato inexorável sobre esse populacho desprezível de amanuenses, cocheiros, confeiteiros, carroceiros, criados e uma série de marginalizados (os potenciais “gatunos” ex-escravizados que tomam doravante as ruas), que logo engendrarão as primeiras greves e rebeliões populares na passagem do século, que de alguma forma condensam-se para ele na menina Flora, que cresce e resiste, “anárquica” e “alucinada” como a música “fora do tempo e do espaço”, “idealidade pura”, alheia ao trabalho e ao dinheiro, dispensando um casamento de ouro, em meio à família Baptista, a casa de políticos oportunistas e corruptos18.

As referências simpáticas embora esvaziadas à Antiguidade clássica, à Bíblia, Shakespeare etc., mescladas ao universo da prosa esclarecida altamente refinada por traços impressionistas, condensam-se nos símbolos arcaicos escolhidos para caracterizar o monarquista Pedro e o republicano Paulo: para o primeiro, o astuto (“velhaco”) Ulisses; para o segundo, a cólera de Aquiles (“furioso”)19. O que se revela como caracterização do próprio caráter perverso, despótico e projetivo de Ayres, que os têm como seus filhos postiços; ele próprio, por fim, chega a se identificar com Ulisses, ou melhor, com as “obsessões” de contar as mesmas coisas para o rei Alcinoos, obsessões que ele projeta no caráter de Flora20. Como n’O Castelo de Kafka, o sonho alucinado de Ayres é destravar o poder patriarcal até o limite em que suas regras já não valham e confirmem o vale-tudo da velha propriedade escravagista21, sugerindo Flora como “republicana” anárquica e “mulher pública” (prostituta), supostamente louca e delirante, aberta à posse sexual dos dois irmãos (como transparece em sonho por ele imaginado e narrado na cena da “grande noite”22). Depois deste último lance ignominioso, em que se infiltra ainda a franca atração sexual de Ayres pela bela moça (traduzida por um discurso eufêmico como “amor” e “flor descorada e tardia de paternidade, ou, mais propriamente, de saudade dela...”23), algo que ela parece claramente perceber em ato nesta conversa e, mais adiante, nas sórdidas sugestões do conselheiro no episódio do desenho dos gêmeos, resta-lhe a estratégia da recusa, da fuga e do silêncio24.


Destruição do Morro do Castelo em 1921.

Notas e referências

* Este texto é um excerto levemente modificado de meu artigo "Pequenas e grandes robinsonadas - Da pré-história da subjetividade ao declínio do sujeito autocrático", publicado em Sinal de Menos, nº15, vol. 1, 2022. Disponível em: sinaldemenos.net

1 Machado de Assis, Obra completa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1959, vol. II, p. 1010.

2 Ibidem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário