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sexta-feira, 16 de junho de 2023
Alienação em Hegel e Marx
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Teoria da reflexão como alienação em Hegel e Marx
Christian Iber 1
Eduardo Garcia 2
Agemir Bavaresco 3
Introdução4
A teoria da reflexão, que Hegel desenvolve no 1º capítulo da
lógica da essência, desempenha um papel ontológico e
epistemológico na teoria marxiana do trabalho alienado e na teoria
da propriedade privada nos Manuscritos econômico-filosóficos
(1844). Qual é o ponto de comparação entre a teoria da reflexão
hegeliana e marxiana? É a teoria da alienação. Em Hegel temos a
alienação do pensar no pensar reflexionante, ou seja, no modo de
operar do entendimento; e em Marx temos a alienação do trabalho
sob as condições da propriedade privada. Marx defende, sobretudo,
nos Manuscritos (1844) uma teoria da exteriorização do trabalho. O
trabalho como atividade tem para Marx, tal como a atividade do
espírito e do pensar em Hegel, a estrutura da negatividade, isto é, da
exteriorização e do retorno da exteriorizão para dentro de si mesmo.
Porém, a alienação do trabalho impede que o trabalho como
1 Doutor em Filosofia. Bolsista PNPD/CAPES. E-mail: christian.iber@yahoo.de
2 Doutorando no PPG Filosofia PUCRS. Bolsista CAPES. E-mail: eduardo-g-l@hotmail.com
3
Professor e Coordenador do PPG Filosofia e Professor no PPG em Teologia da PUCRS. E-mail:
abavaresco@pucrs.br - https://orcid.org/0000-0002-7967-4109; CV: http://lattes.cnpq.br/
6597683266934574
4 Agradecemos a leitura rigorosa, as observações críticas e as sugestões interpretativas de Federico
Orsini.
342 | De Kant a Hegel: Leituras e atualizações
exteriorização possa efetuar seu retorno para dentro de si mesmo.
O trabalho se torna exteriorizado, sai de si e permanece fora de si,
pois é apropriado pela propriedade privada.
(i) Apresentamos, inicialmente, a teoria da reflexão hegeliana.
A tese de que a lógica da essência é uma teoria da alienação do
pensar, implica que a lógica da reflexão trata de uma teoria da
exteriorização e do retorno da exteriorização, porém, o retorno
permanece deficitário ou incompleto. Isso significa que nas
determinações de reflexão, como são apresentadas pelas leis do
pensar da lógica tradicional, a reflexão está fora de si. Elas são
determinações alienadas do pensar especulativamente dialético.
Para Hegel, a lógica formal, enquanto segue as leis do pensar,
simplesmente não pensa. Se a lógica formal opera com um pensar
que não pensa, isso é uma contradição. Diferentemente do pensar
da lógica formal (reflexão externa do entendimento subjetivo) a
reflexão determinante (reflexão objetiva) permanece reflexão
também em face das suas determinações alienadas. A reflexão
determinante abre, portanto, uma dupla dimensão: a da lógica
formal e, ao mesmo tempo, a da crítica a lógica formal. Trata-se de
uma autocrítica da reflexão exteriorizada de modo alienado nas
determinações de reflexão, isto é, uma autocrítica da reflexão
alienada, na forma do entendimento reflexionante.
(ii) Depois, explicitamos a teoria da alienação marxiana. Para
Marx a alienação não se relaciona apenas com o pensar ou com o
espírito5
, mas com as relações materiais entre indivíduos que
constituem a sociedade. A norma imanente6 – afirma Marx – é o
estar junto a si mesmo do ser humano no seu outro tanto no pensar
como na realidade social. Nesse caso, o outro significa a efetividade
objetiva que está configurada pela sociedade. Essa norma imanente
5 O espírito é para Hegel um sujeito supraindividual, acima do nível individual, para Marx o verdadeiro
sujeito são os indivíduos.
6 O pensar e a realidade social têm uma finalidade imanente: verdade e reconciliação que para Hegel
e Marx tem a estrutura do estar junto a si mesmo no seu outro. Essa finalidade imanente pode ser
designada como “norma imanente”.
Christian Iber; Eduardo Garcia; Agemir Bavaresco | 343
da realidade social implica uma crítica ao trabalho alienado que
produz a propriedade privada que apropria os resultados do
trabalho dos quais os trabalhadores estão excluídos. A relação
excludente do trabalho alienado e da propriedade privada é uma
oposição que se desenvolve para a contradição, sendo esta uma
relação que tende à dissolução.
(iii) Enfim, apresentamos aproximações e diferenças entre
Hegel e Marx. Enquanto Hegel defende um idealismo realista, Marx
sustenta um realismo idealista. Embora Hegel não negue a realidade
independente do pensar, este tem a primazia, porque é capaz de
configurá-la. Para Marx o mundo objetivo não pode ser um produto
da criatividade do conceito teórico, o mundo objetivo apenas pode
ser mudado pela prática. Isso significa que a racionalidade do
mundo e sua reflexividade não são o produto do conceito, mas da
prática social.
1. A reflexão absoluta como movimento circular
Na Doutrina da Essência (Hegel, 2017), Hegel apresenta a
teoria da reflexão como unidade da aparência e da essência, ou seja,
“a aparência é o mesmo que a reflexão” e “a essência é reflexão” (id.
p. 42-43). A reflexão em sentido absoluto é explicada assim: “o
movimento do nada para o nada, e, através disso, de retorno a si
mesmo”(p. 43). Trata-se de um movimento circular que é imanente,
uma negatividade pura em que nada está fora ou exterior, mas tudo
está num movimento reflexivo interior. O movimento da reflexão
desdobra-se em três momentos: ponente, exterior e determinante.
1.1 Circularidade desenvolvida: a reflexão ponente como
unidade do pôr e do pressupor
O conceito de reflexão hegeliano não é uma reflexão subjetiva
da consciência, nem uma reflexão do entendimento, mas trata-se de
uma estrutura lógico-objetiva de todo o efetivo. A reflexão ponente
tem a estrutura lógica da reflexão absoluta, isto é, o movimento do
nada para o nada. A essência reflexiva junta-se consigo como
igualdade imediata, uma igualdade que é negativa. Então, a reflexão
é a unidade da negatividade e da imediatidade, ou seja, é a dialética
da negatividade que se relaciona consigo mesmo.
A reflexão ponente se desdobra na dialética do pôr e do
pressupor. O ser posto é o produto do retorno para dentro de si da
essência enquanto reflexão. A reflexão é pôr como retornar, ou seja,
é o negativo que se relaciona consigo e, ao mesmo tempo, é negação
de si mesmo. Ao negar o negativo (enquanto pôr) a reflexão é
pressupor. Então, temos a reflexão que é pôr e pressupor. O pôr tem
a estrutura da negação como retorno do negativo para dentro de si
mesmo: esta é a atividade da reflexão. A estrutura da negação como
pressupor resulta daquela do pôr, pois, a reflexão suprassume o pôr
em seu pôr. “O retorno da essência é, seu repelir-se de si mesma. Ou
seja, a reflexão dentro de si é essencialmente o pressupor daquilo a
partir do qual ela é o retorno” (Hegel, 2017, 45, §5). A reflexão, ao
se repelir de si, pressupõe-se e, então retorna para dentro de si. Este
é o jogo dialético do pôr da reflexão e do pressupor como repelir-se
para retornar dentro de si. Aqui, ocorre a duplicação da reflexão que
Hegel chama como movimento reflexionante enquanto
“contrachoque absoluto dentro de si mesmo” (id. p. 46, §7). Tratase de um movimento de progressão que se volta imediatamente para
dentro de si mesmo, ou seja, é um automovimento do pensamento
como unidade do pôr e pressupor, como um movimento circular de
ir e vir incessantemente. Esse movimento é destituído de substrato
e nessa circularidade da reflexão ponente que se relaciona dentro do
outro apenas consigo mesmo, há, ao mesmo tempo, um deficit que
impede de pensar uma relação de alteridade efetiva. Porém, como a
estrutura da essência é a reflexão circular, ela contém a negatividade
dentro de si que é capaz de romper esta própria estrutura da
reflexão ponente aparecendo, então, como reflexão exterior (Ver
Iber (a), 2018, p. 5 – 8). A reflexão se torna exterior e alheia a si, na
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medida em que ela se opõe a um imediato, a outro, com o qual ela
se relaciona externamente.
1.2 Exteriorização da reflexão: a reflexão exterior
Na Observação a respeito da reflexão exterior, Hegel refere-se
ao modo como a reflexão é habitualmente compreendida, isto é,
como uma atividade subjetiva. Hegel diz: “O que a reflexão externa
determina e põe no imediato são, neste aspecto, determinações
externas ao mesmo”, isto é, ao imediato pressuposto. A reflexão
externa age sobre o imediato dado como uma forma que molda o
conteúdo e a matéria desde fora.
A reflexão exterior se relaciona negativamente consigo e se
relaciona com outro que tem um caráter de substrato real. Na
reflexão exterior a reflexão está exteriorizada e duplicada, enquanto
tem outro pressuposto ao qual ela se relaciona externamente. Assim,
criou-se uma situação em que a reflexão está diante de si como
exteriorizada, porque o outro ou imediato ao qual ela se relaciona
não aparece mais como seu produto. Aqui temos a alteridade ou
dualidade entre a reflexão e seu outro que forma o modelo para a
estrutura da consciência natural7
.
7 Cabe destacar que a lógica de Hegel é sempre uma apresentação especulativamente dialética de formas
não especulativas do pensar. Assim, a reflexão exterior não é idêntica à consciênica intencional do objeto da
consciência natural, mas explica a estrutura intencional da consciência natural de modo dialético perante o
pano de fundo da duplicação e da exteriorização da reflexão que conduz à reflexão exterior.
Há uma diferença entre a Fenomenologia e a Lógica no que diz respeito ao movimento de “alienação”:
A Fenomenologia mostra tanto o caminho para dentro da alienação quanto a saída da alienação. No
sentido epistemológico a oposição da consciência já é uma exteriorização de modo alienado. O espírito
que se aliena no sentido mais estrito (Ver Fenomenologia: B. O espírito alienado de si. A cultura) se
refere à idade média e a modernidade inicial. Porém, com a sociedade civil e o Estado moderno a
alienação começa a ser suprassumida. No saber absoluto, como saber verdadeiro que é o princípio da
lógica, a alienação é completamente suprassumida.
Quanto ao conceito de alienação na lógica da essência, Hegel apresenta a crítica da alienação da
reflexão. Isso implica desde já uma saída da alienação que será completa apenas na passagem para a
lógica do conceito.
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1.3 Transição para a reflexão determinante: imersão da reflexão
no seu outro
Na reflexão ponente não se alcança a autossubsistência do ser
posto, pois ela é imediatamente suprassumida. Porém, na reflexão
exterior o imediato se torna o outro imediato: o pressuposto. O
imediato obtém subsistência com a duplicação da reflexão. Como
essa situação é superada? A superação não ocorre pela retirada da
exteriorização, mas pela transformação da exteriorização na autoexteriorização. “A autorrenúncia (negar do negar) da reflexão é um
pôr extraordinário, pelo qual a reflexão se determina ela mesma
como idêntica ao seu objeto, ao imediato. A reflexão que nega a si
mesma e a imediatidade, ambas estão postas como idênticas no lado
da imediatidade” (Iber (b), p. 3), ou seja, não mais distintas, uma
imediatidade essencial. Aqui a reflexão exterior está superada em
relação ao imediato, pois a reflexão se torna imanente no outro, ou
seja, “a exteriorização da reflexão exterior é a imersão da reflexão
no imediato” (id. p. 4).
O avanço em relação à reflexão exterior não se dá pelo retorno
à reflexão ponente, mas pelo aprofundamento de sua exterioridade.
Trata-se de manter a autossubsistência da imediatidade e de não
suprassumi-la na unidade em si da reflexão ponente. A reflexão se
instancia, agora, na própria imediatidade pressuposta. “O objetivo é
que a reflexão se reencontre dentro do outro, ou seja, superar a
exterioridade juntando-se com o imediato”. Em outras palavras, “a
unificação da reflexão e da imediatidade realiza-se na própria
imediatidade” (Iber (b), p. 2). A reflexão torna-se assim seu próprio
outro, isto é, ela é uma “reflexão imanente da própria imediatidade”
(Hegel, 2017, 48), uma reflexão que existe no outro. Imediatidade e
reflexão coincidem no lado do ser posto, com isso acentua-se a
exterioridade e ela terá primazia no desenvolvimento da essência.
Porém, a exterioridade se despoja de seu dualismo, uma vez que ela
subsiste unida como “imediatidade essencial” (Hegel, 2017, p. 47).
Então, a reflexão não é mais exterior, mas imanente à própria
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imediatidade. A reflexão que é em si e para si seu outro será a
reflexão determinante (Ver Iber (b), 1-2). Em outras palavras, a
objetividade enquanto exterioridade carrega nela a interioridade da
reflexão. Esta imersão da reflexão no imediato pressuposto é, ao
mesmo tempo, o sair de si da reflexão, isto é, a auto-exteriorização
da reflexão.
Esquema (Iber (b), 2018, 4):
I. Reflexão exterior → o imediato
II. Reflexão põe-se no outro: Junta-se
consigo no imediato
→ “a imediatidade essencial”: a
reflexão está imanente ao imediato
III. Reflexão determinante - a reflexão existe como ser posto que
é reflexão dentro de si: a
determinação da reflexão ou a
reflexão determinante
A tese principal é a seguinte: A reflexão exterior é superada
assim que a reflexão se torna a si mesma externa. Ela existe somente
como reflexão imanente ao seu outro. A reflexão não se torna
exterior como na reflexão exterior, mas se torna exterior a si
mesma, isto é, ela se torna alheia a si mesma, vem para fora de si,
existe apenas como determinação de reflexão. Hegel se expressa da
seguinte maneira: “a reflexão determinante é a reflexão que veio
para fora de si; a igualdade da essência consigo mesma está perdida
na negação, que é o que domina” (Hegel 2017, 51).
1.4 A reflexão determinante e a determinação de reflexão como
ser posto refletido dentro de si
A reflexão determinante é apresentada por Hegel em três
itens: 1. Resumo da reflexão ponente e exterior. 2. A determinação
de reflexão como ser posto autorreflexivo. 3. A estrutura relacional
da determinação de reflexão (Ver Iber (c), p. 1-6).
1. A reflexão determinante é a unidade da reflexão ponente e
da reflexão exterior. A ponente apenas põe o outro como uma
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alteridade efêmera que desaparece imediatamente, pois é uma
autorrelação negativa da reflexão. Ou seja, é uma imediatidade da
reflexão que é, imediatamente, suprassumida. Porém, com a
reflexão determinante emerge a unidade da ponente com a exterior.
Hegel apresenta a correspondência entre o ser aí da esfera do ser
com o ser posto na esfera da essência. O ser aí tem a negação nele
de modo imediato, enquanto o ser posto é a imediatidade refletida,
portanto, suprassumida pela negatividade. O ser aí torna-se um ser
posto através da constituição da negatividade da essência. Ou seja, o
ser aí é silogizado pela essência. O ser posto é, então, superior em
relação ao ser aí, porque o ser posto é a explicitação do processo da
reflexão objetiva da essência. O ser aí na esfera do ser é o ser posto
na lógica da essência. “O ser aí é apenas ser posto; essa é a
proposição da essência do ser aí” (Hegel 2017, 50).
2. A determinação da reflexão é o ser posto que se reflete
dentro de si, pois, ela consegue reunir em si a reflexão ponente e
exterior como o todo da reflexão, absorvendo-a como seu produto.
A determinidade no ser é diferente da determinação da reflexão na
essência. Hegel afirma que ambas são determinidades em relação ao
outro, porém, a determinidade do ser posto da essência é reflexão
dentro de si, isto é, trata-se de uma determinação correlativa que,
na medida em que ela se relaciona com a outra, é ao mesmo tempo
independente.
Na categoria da qualidade o ser determinado é apresentado
como negação do outro, porém, é uma negação desigual, porque a
qualidade é um passar incessante para o outro, incapaz de se igualar
em si. Ao contrário, a determinação de reflexão tem no ser posto a
reflexão dentro de si e não é, por isso, desigual a si dentro de si
mesma, a “determinidade essencial” (Hegel 2018, 51). Ou seja, aqui
na lógica da essência a relação reflexiva do ser posto é igual a si
mesmo, não é um passar para o outro como ocorria na lógica do ser
da qualidade que é um passar incessante para outro. Ou seja, o ser
posto subsiste em si mesmo refletindo-se como correlativo
essencial.
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Por causa da perda da unidade da essência nas determinações
de reflexão alcançamos um ponto em que as determinações de
reflexão (identidade, diferença, contradição e fundamento)
aparecem como “essencialidades livres”, ou seja, essencialidades
abstratas e formais, sem a tensão dialética imanente, portanto,
separadas pela abstração do entendimento.
As determinações de reflexão são produtos da reflexão
determinante e constituem a aparência da essência de modo
determinado. Então, a reflexão é dominada pelo seu outro posto
como negação, ou seja, a reflexão saiu de si e se alienou no outro. A
reflexão determinante é como pôr um “pressupor absoluto” (Hegel
2017, 50): a reflexão se identifica com o seu outro, de tal modo que
ela existe somente no seu outro. Por causa disso ela não aparece
como fundamento das determinações de reflexão e elas se afirmam
como um fato originário da razão (Ver Iber (c), 2018, p. 4).
A determinação da reflexão tem dois lados em tensão dentro
da essência: (i) De um lado, o ser posto como mero negativo da
unidade consigo mesmo da essência. A reflexão permanece uma
essência que não sai de si e as diferenças são postas, isto é,
retomadas novamente dentro da essência. (ii) O outro lado é a
reflexão dentro de si em que as diferenças não são postas como
outro, mas refletidas dentro de si em igualdade compacta consigo.
O que temos, então, é a essência dividida, ou seja, ela ficou dominada
pelo ser posto refletido dentro de si. Ela irá carregar essa
predominância da perda da unidade da essência ao longo de todo o
percurso lógico da identidade, diferença e contradição. Hegel
explicitará as determinações de reflexão como predomínio alienante
da negação ou do ser posto refletido dentro de si sobre a unidade da
reflexão. As determinações de reflexão são formas abstratas ou
formais de explicação de uma coisa, porque dentro delas o ponto de
referência da essência plena de conteúdo substancial ainda não está
presente. Por isso, as determinações de reflexão são submetidas à
dialética até alcançar a contradição, onde serão dissolvidas para
350 | De Kant a Hegel: Leituras e atualizações
encontrar novamente no fundamento sua unidade, que elas
perderam no início. (Ver Iber (c), 2017, p. 4, nota 1).
3. A estrutura relacional da determinação da reflexão: Hegel
explica o conceito de determinação de reflexão em três passos: (1) A
determinação de reflexão constitui-se no ser posto e na reflexão
dentro de si. O ser posto e a reflexão dentro de si são momentos
diversos que, na sua unidade, constituem a determinação de
reflexão. (2) Como reflexão dentro de si a determinação de reflexão
tem autossubsistência, como ser posto ela é um momento negativo
numa relação com outro. Ela é uma determinação correlativa que é
autossubsistente na sua relação com a outra. (3) Depois, porque a
determinação de reflexão é unidade do ser posto e da reflexão dentro
de si, ela se relaciona com o outro nela mesma, inclui esse dentro de
si, e como reflexão consigo mesmo ela suprassume seu ser posto e
exclui o seu correlato. “Com isso, as determinações de reflexão
geram a aparência da sua fixação absoluta uma contra a outra, que
na sequência, será submetida a uma crítica lógica de reflexão” (Id.
Iber (c), 2017, p. 5; Ver Hegel, 2017, p. 52).
Em todas as determinações de reflexão temos o seguinte
comportamento da essência: a determinação de reflexão contém em si
uma contradição. A determinação de reflexão inclui a sua
determinação correlativa e a exclui ao mesmo tempo. Em outras
palavras: a reflexão dentro de si é um caráter do ser posto que, ao
mesmo tempo,suprassume o ser posto. Então,caberá ao programa da
lógica das determinações de reflexão tornar explícita esta contradição
imanente na estrutura da determinação de reflexão, em que a reflexão
dentro de si exclui o ser posto. Hegel fará isso dissolvendo cada
determinação de reflexão (identidade, diferença, diversidade, oposição
e contradição), em que a reflexão dentro de si incluirá o ser posto.
Fazer explícita a contradição da determinação de reflexão significa
mostrar que ela é mero momento de uma unidade mais elevada, da
unidade do fundamento que é a contradição dissolvida.
A essência está sob o poder do ser posto refletido dentro de si, o
que a impede de desenvolver a identidade plena da essência, porém,
isso apenas será alcançado com o fundamento. “Apenas no
fundamento a essência alcançará sua explicitação, porque com a
dissolução da contradição das determinações de reflexão
autossubsistentes, ela se torna novamente livre como instância
ponente. No fundamento, a essência está posta como essência” (Iber
(c), 2017, p. 5).
Porém, aqui temos ainda a alienação da essência na sequência
das determinações de reflexão (o ser posto como reflexão dentro de
si): identidade, diferença, diversidade, oposição e contradição. O
conflito interno das determinações de reflexão autossubsistentes
conduz à contradição.
As determinações de reflexão estão no fundamento dos
princípios da lógica formal e da metafísica tradicional (o princípio da
identidade, da diversidade, do terceiro excluído e da contradição
excluída). Esses princípios são a fixação das determinações por meio
do entendimento o que causa a alienação da reflexão de si mesma
nessas determinações. Mas a lógica dialética mostra que as
determinações de reflexão são susceptíveis de um tratamento racional.
A lógica das determinações de reflexão é uma apresentação crítica da
alienação da reflexão no entendimento reflexionante, na medida em
que ela põe em liberdade o outro lado do ser posto, da relacionalidade
das determinações que o entendimento não tem em mente8
.
A tríade da reflexão consiste em três momentos:
Reflexão ponente: Círculo, reflexão dentro de si
Reflexão exterior Dualismo, reflexão para dentro de outro
Reflexão determinante: Contradição, reflexão para dentro de outro
como reflexão dentro de si
8
Federico Orsini observa que as determinações de reflexão não podem ser identificadas simplesmente
com os princípios da lógica formal e da metafísica tradicional (o princípio da identidade, da
diversidade, do terceiro excluído e da contradição excluída). Esses princípios são a fixação das
determinações por meio do entendimento que é a alienação da reflexão de si mesma nessas
determinações. Mas a lógica dialética explicita as determinações de reflexão como um processo de
determinação da razão especulativa. Ou seja, a lógica dialética apresenta a crítica da alienação da
reflexão no entendimento reflexionante, e, ao mesmo tempo, a relacionalidade das estruturas da razão
objetiva reflexiva.
352 | De Kant a Hegel: Leituras e atualizações
A reflexão se efetua como retorno circular para dentro de si,
como exteriorização em relação ao outro e como auto-exteriorização
nas determinações de reflexão o que é equivalente com a alienação
da reflexão de si mesma. A alienação da reflexão está definida pela
exteriorização sem retorno completo. Sob o título das determinações
de reflexão, Hegel critica as categorias da lógica e da metafísica
tradicionais como pensamentos alienados do pensar que são
atravessados de contradições. Marx retoma a teoria hegeliana da
reflexão como alienação para decifrar e estrutura do fenômeno
central da sociedade moderna. Ele critica a propriedade privada que
exclui ostrabalhadores dos produtos do seu trabalho como alienação
social. O objeto da crítica é em ambos os pensadores a contradição,
seja no pensar tradicional, seja na realidade social que ficam presos
na alienação.
2. Trabalho: exteriorização e alienação no jovem Marx
O ponto de comparação entre a teoria da reflexão hegeliana e
marxiana é a teoria da alienação. Em seus primeiros escritos, Marx já
discute modalidades distintas de alienação (e.g., a alienação religiosa,
filosófica e política), em que uma determinada entidade também
adquire capacidades propriamente humanas (respectivamente a
partir do exemplo, Deus, a abstração da Ideia hegeliana e o Estado).
Entretanto, não obstante as especificidades e as aplicações de seu uso
do conceito de alienação já possibilitem marcar os contornos de seu
engajamento crítico com o pensamento dos autores da Esquerda
Hegeliana (especialmente Ludwig Feuerbach e Moses Hess) na Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel (1843) e em A Ideologia Alemã
(1845/46), foi a partir dos Manuscritos Econômico-filosóficos (1844),
quando se engaja com os trabalhos de Economia Política de autores
clássicos como Adam Smith, James Mill, Jean-Baptiste Say, que o uso
da categoria trabalho alienado (entfremdete Arbeit) permite-lhe
efetivamente transportar “a problemática da alienação da esfera
Christian Iber; Eduardo Garcia; Agemir Bavaresco | 353
filosófica, religiosa e política para a esfera econômica da produção
material” (MUSTO, 2014, p. 64).
Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx anuncia que
a tarefa imediata da filosofia é desmascarar, então, a auto-alienação
nas suas formas não sagradas — na forma da crítica do direito e da
política (MARX, 2010, p. 146). Nos Manuscritos Econômicofilosóficos, contudo, é a alienação na esfera econômica que se torna
“o pressuposto para compreender e superar as primeiras” (MUSTO,
2014, p. 64): essa permite a Marx analisar como os próprios
produtos do trabalho tomam uma forma estranha ou hostil em
relação ao produtor, na medida em que o trabalhador encerra a sua
vida no objeto (“que passa a pertencer ao objeto”) (MARX, 2015, pp.
80-1). Para Marx, essa alienação do trabalho no capitalismo aparece
sob quatro aspectos distintos: na alienação do trabalhador do seu
próprio produto; na alienação do trabalhador da atividade produtiva
(“de sua própria função ativa, de sua atividade vital”, que “mortifica
sua physis e arruína o seu espírito”); na alienação do trabalhador de
seu “ser genérico” (Gattungswesen); e, finalmente, na alienação do
trabalhador em relação aos demais trabalhadores — o
“estranhamento do homem pelo [próprio] homem” (MARX, 2015,
p. 84, 86). Marx entende a alienação do homem em relação ao
produto do trabalho como apenas “o resumo (Resumé) da atividade,
da produção”. Ou seja, a alienação, do trabalhador não se reduz
apenas a sua relação para com os produtos do seu trabalho; em vez
disso, essa alienação se mostra, outrossim, na própria atividade
produtiva (MARX, 2015, pp. 82-3)9
.
Entre exteriorização (Entäusserung) e alienação
(Entfremdung), existe, pois, uma distinção de gênero e espécie, de
acordo com a qual toda alienação é uma exteriorização, mas nem
toda exteriorização é uma alienação. No capitalismo, o trabalho se
efetua como uma exteriorização alienante: o trabalho não pertence
9 O tradutor dos Manuscritos traduz entfremdet como “estranhado”. Nós optamos por “alienado” para
manter a coerência terminológica com a tradução da Doutrina da Essência de Hegel e com o mesmo
termo usado por Marx.
354 | De Kant a Hegel: Leituras e atualizações
ao trabalhador, tampouco esse se afirma em seu trabalho — esse não
pertence ao seu ser. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx
descreve o trabalho como “atividade vital do homem”, sua
“atividade de espécie”, “essência espiritual” do homem, “sua
essência humana”, de modo que o trabalho desempenha um papel
essencial na distinção entre seres humanos e os demais animais em
que os seres humanos não são mais seres puramente naturais, mas
autoconsciente, com “ser para si” na medida em que deixam de
apenas consumir objetos diretamente presentes em seus ambientes
naturais, “sob o domínio da carência física imediata” (MARX, 2015,
p. 85). O trabalho, como atividade, tem para Marx, tal como a
atividade do espírito e do pensar em Hegel, a estrutura da
negatividade, isto é, da exteriorização e do retorno da exteriorização
para dentro de si mesmo.
Na filosofia hegeliana, o problema de uma teoria da estrutura
do trabalho em que esse atua na exteriorização da subjetividade na
objetividade permeia sua trajetória intelectual desde seu período em
Jena e perpassa a filosofia do direito da maturidade. Na filosofia
hegeliana, embora o problema da alienação colocado na forma de
Positivität já aparecesse em seus primeiros escritos, à época da
Fenomenologia do Espírito, sua ideia de alienação passa a configurarse como espécie particular da atividade humana que dá origem a
formaçõessociais específicas(LUKÁCS,1975). Em DerJungeHegel (“O
jovem Hegel”), Lukács aponta que Hegel começara a utilizar-se do
conceito de exteriorização à medida que passa a interessar-se pelos
avanços da economia política no final de seu período em Frankfurt e
desenvolve sua tríade básica (necessidade, trabalho e gozo), junto com
o trabalho como aniquilação do objeto (LUKÁCS, 1975). Para Hegel, a
alienação consistia na dificuldade de apreender o fato de que o mundo
não era externo ao Espírito e apenas por meio da atividade humana
tem-se a eliminação do positivo.
Na tradução para o francês da Fenomenologia do Espírito,
Labarrière e Jarkczyk explicam que, em sua “[...] acepção lógica,
[alienação, Entfremdung] conota a impossibilidade de um retorno a
Christian Iber; Eduardo Garcia; Agemir Bavaresco | 355
partir de uma exterioridade radicalmente “estranha” (Fremd)”, ao
passo que “a saída de si que expressa a interioridade como
exterioridade se expressa através do termo “exteriorização”
(Entäusserung)” (1993, nota de rodapé na p. 82). O neologismo
externação, entendido como “simples saída de si” (JARCZYK, 2004, p.
118), utilizado para traduzir Äusserung distinguir-se-ia tanto de
“exteriorização” quanto de “alienação” na tradução para o Francês da
Ciência da Lógica e expressa uma situação em que o sujeito não se
torna completamente externo a si, não se tem um esvaziamento
completo de seu interior no exterior10
. Em vez disso, “mantém seu
caráter interior ainda distinto do exterior, com o qual ele, ao mesmo
tempo, se relaciona” (IBER, 2018d, p. 130). Tratar-se-ia de uma
distinção que Hegel teria desenvolvido na explicitação das figuras
fenomenológicas, bem como na Doutrina da Essência, onde interior e
exterior formam a dualidade da “relação essencial” (segunda seção).
Na medida em que Hegel denomina a exteriorização do
pensar na oposição sujeito-objeto igualmente como alienação, a
exteriorização acaba sendo tomada como alienação. A partir disso,
começa-se a delinear a crítica de Karl Marx. Se, por um lado, Marx
atribui a Hegel o mérito de, por exemplo, na seção “B. Consciênciade-si” da Fenomenologia do Espírito, ter logrado apreender “[...] a
essência do trabalho e [conceber] o homem objetivo, verdadeiro,
porque homem efetivo, como o resultado de seu próprio trabalho”
(MARX, 2015, p. 123); por outro, Hegel acabaria por, ainda assim,
inserir-se no ponto de vista da economia política clássica na medida
em que “[...] vê somente o lado positivo do trabalho, não seu [lado]
negativo” (MARX, 2015, p. 124). Embora contenha os gérmens de
sua própria crítica, Marx assinala que, como crítica da alienação, a
Fenomenologia do Espírito permanece dentro da alienação na
medida em que nela, tem-se somente a suprassunção teórica da
alienação, “que deixa existir a realidade alienada e, ao mesmo
10 Ver também HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência da lógica: 2. A doutrina da essência. Trad.
Christian G. Iber; Federico Orsini. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 24; MENESES, Paulo. Entfremdung e
Entäusserung. Ágora Filosófica, v. v. 1, n
o
1, p. 27–42, 2001.
356 | De Kant a Hegel: Leituras e atualizações
tempo, acredita tê-la superado, na medida em que ela é tomada
como “autoconfirmação” da autoconsciência pensante” (IBER,
2018d, p. 128; MARX, 2015, p. 125).
Para Marx, em seu trabalho,“na medida em que ele não reserva
nada de sua essência” e “em sua exposição completa de sua essência,
altera e consuma sua própria essência” (IBER, 2018d, p. 130), o ser
humano se exterioriza. Contudo, no trabalho sob o modo de produção
capitalista, esse também se aliena: a conexão entre os dois conceitos,
alienação e exteriorização, consiste, pois, no fato de que, em sua
exteriorização, a atividade é “impedida no seu retorno para dentro de
si mesma”, de tal modo que a alienação separa essa conexão entre
exteriorização e retorno da exteriorização. Ou seja, enquanto, por
exteriorização, entender-se-ia o fato de que o trabalho produz um
produto externo; por alienação, dever-se-ia entender o fato de que “o
produto se torna um alheio pela sua ocupação pela propriedade
privada”(IBER, 2018d, p. 131). Para Marx, a alienação não se relaciona
apenascom o pensar ou com o espírito, mascom asrelações materiais
que constituem a sociedade. Com efeito, a norma imanente seria o
estar junto a si mesmo do ser humano no seu outro tanto no pensar
como na realidade social, o que, por sua vez, implica uma crítica ao
trabalho alienado que produz a propriedade privada e que se apropria
dos resultados do trabalho dos quais os trabalhadores estão excluídos.
Ainda assim, a relação excludente do trabalho alienado e da
propriedade privada é uma oposição que se desenvolve para a
contradição, uma relação que tende à dissolução.
3. Explicação de Marx da propriedade privada no recurso à
lógica hegeliana das determinações de reflexão11
Nos Manuscritos econômicos-filosóficos, de 1844, Marx
esclarece em três passagens a relação da propriedade privada
11 A lógica das determinações de reflexão se encontra no 2º capítulo da lógica da essência de Hegel. Cf.
HEGEL, 2017, p. 53-92.
Christian Iber; Eduardo Garcia; Agemir Bavaresco | 357
enquanto relação entre trabalho e capital com ajuda da lógica das
determinações de reflexão de Hegel. A propriedade privada é a
relação fundamental da sociedade burguesa; contudo, ela é uma
relação excludente e, como a relação da essência em Hegel, é uma
relação da negatividade. Como tal, a relação da propriedade privada
é a causa da pobreza e da riqueza, tal qual do trabalho e do capital
na sociedade moderna.
Na primeira passagem Marx parte da propriedade privada
como relação fundamental (Ver MARX, 2015, p. 93). A relação da
propriedade privada se mostra como relação entre dois correlatos:
trabalho ecapital. O fato de que, por um lado, a propriedade privada
enquanto trabalho e, por outro, a propriedade privada enquanto
capital, se relacionam um com o outro, é esclarecida com a ajuda da
lógica hegeliana da essência.
Na lógica das determinações de reflexão, a essência inteira
como negatividade que se relaciona consigo se apresenta na sua
diferencialidade interna primeiramente como identidade e
diferença. Identidade e diferença são produtos da relação da essência
como negatividade absoluta. A relação da diferença da identidade e
da diferença (= a diferença absoluta) se determina
progressivamente para a relação da diversidade de igualdade e
desigualdade até a relação da oposição do positivo e do negativo, que
passa para a contradição do positivo e do negativo. Na contradição,
a essência como relação da negatividade finalmente se suprassume
e regressa a seu fundamento (cf. IBER, 2018).
Tanto a atividade humana enquanto trabalho, a redução do
ser humano à “existência abstrata” de “um puro homem que
trabalha” (MARX 2015, 93), como a “produção do objeto da
atividade humana como capital” (id.) são produtos da relação da
propriedade privada. Por um lado, o homem, que – excluído da
riqueza objetiva – exerce trabalho assalariado para o capital, vive no
“seu pleno nada” (id.) e, no caso do seu desemprego, está em perigo
de “precipitar-se diariamente de seu pleno nada no nada absoluto e,
portanto, na sua efetiva (wirkliche) não existência [Nichtdasein =
não ser aí CI]” (id.) que ameaça sua vida; por outro lado, com o
capital está extinta “toda determinidade natural e social do objeto”
(id.), porque este tem sua utilidade apenas para o capital. O capital
é indiferente em relação ao seu conteúdo objetivo. Como valor
monetário, o capital pode ser investido em quaisquer bens
materiais. Com a propriedade privada enquanto capital, a
propriedade privada perde a aparência ingênua de ser mesclada com
relações puramente humanas (propriedade privada da escova de
dentes, da bicicleta etc.).
A propriedade privada aliena o ser humano da própria
atividade que a produziu, na medida em que o separa do produto do
seu próprio trabalho, e torna independente o “objeto da atividade
humana” (id.), separando-o da sua unidade com a atividade e
transformando-o em capital. Aqui se revela a contradição da
propriedade privada. A atividade que deveria efetivar a plenitude do
ser humano, o trabalho, se torna a sua aniquilação quando o
trabalho se torna trabalho assalariado que permanece em serviço da
propriedade privada. A contradição da propriedade privada se torna
saliente na autonegação e autoexclusão do trabalho como atividade
humana que visa ao preenchimento dos carecimentos do ser
humano.
A propriedade privada é, como relação do trabalho e do
capital, uma relação da oposição que, no auge da contradição,
conduz necessariamente ao declínio de toda a relação. Essa
caracterização segue a determinação progressiva da oposição do
positivo e do negativo para a contradição dessas determinações em
Hegel. Na contradição, ambos os correlatos da relação vão ao fundo
e, como Hegel diz, finalmente “regressam a seu fundamento”
(HEGEL, 2017, p. 82).
Resumo: como relação excludente, a propriedade privada tem
por seus correlatos o trabalho e o capital, que se relacionam numa
oposição um para com o outro e caem em contradição uns com os
outros o que, por fim, conduz ao declínio de toda a relação. Devido
ao seu caráter contraditório, a propriedade privada não é, no final
Christian Iber; Eduardo Garcia; Agemir Bavaresco | 359
das contas, sustentável. Em vez disso, a propriedade privada é
tornada sustentável apenas pelo Estado moderno com seu poder.
Na segunda passagem (Ver MARX, 2015, p. 97-98, notas de
rodapé suprimidas), Marx explica o decurso “do movimento da
propriedade privada”(id., 97)como relação entre trabalho e capital. O
movimento parte de uma “unidade imediata” (id.), na qual o trabalho
e o capital ainda estão unidos.No caso da unidade imediata do trabalho
e do capital, trata-se da propriedade que se baseia no trabalho próprio
dos pequenos camponeses e dos artífices. Por meio da separação do
trabalho e da propriedade privada que surge com a monopolização dos
meios de produção pela propriedade privada, o trabalho e o capital
entram em tensão: nessa, por um lado, se elevam e se fomentam
“reciprocamente enquanto condições positivas”(id.); e, por outro lado,
excluem-se mutuamente como oposição. Na oposição entre capital e
trabalho — na qualse sabem como seu não ser aí e procuram arrancar
seu ser aí do outro (por exemplo, o salário e o ganho desenvolvem-se
emsentido contrário umao outro)—ambos entramem“oposição [CI]
[...] um contra si mesmo” (id.).
Como oposição contra si mesmo, cada correlato da oposição é
ele mesmo e seu outro e é, por isso, contraditório. O capital é,
enquanto “trabalho acumulado” (id.), ele mesmo e seu outro, o
trabalho. Ao mesmo tempo, ele se decompõe também “em si e nos
seus juros” (id.), isto é, em capital material (propriedade dos meios
de produção) e capital monetário. Por exemplo, caso o capitalista
não possa mais pagar os juros do capital monetário, ele tem que se
sacrificar como capitalista e “decai na classe trabalhadora” (id.).
Também o trabalhador pode tornar-se capitalista, “mas só
excepcionalmente” (id.).
Na Ciência da Lógica, Hegel apresenta essa inversão dos
momentos da oposição no seu oposto, quando aborda o positivo e o
negativo. Ambos se mostram como o outro de si mesmos. O positivo
e o negativo têm seu outro tanto na sua relação com seu outro
quanto neles mesmos. Assim, o positivo e o negativo são negativos
um em relação ao outro: estão numa oposição um ao outro e, ao
360 | De Kant a Hegel: Leituras e atualizações
mesmo tempo, entram numa oposição contra si mesmos. Para
Hegel, essa inversão pertence à natureza das determinações de
reflexão (cf. lógica da essência. Cap. 2. C. A contradição. Observação
1, HEGEL, 2017, p. 83-86).
Como “momento do capital” (MARX 2015, p. 98), o trabalho
como dedução do ganho impõe “custos” (id.) e é, portanto, um item
negativo que precisa ser minimizado. O salário se apresenta como
“sacrifício do capital” (id.). Como trabalho assalariado, o trabalho se
decompõe “em si e no salário” (id.). O trabalhador é como que “ele
mesmo um capitalista”, porque ele trata seu trabalho como
“mercadoria” (id.). Entre capital e trabalho existe uma “oposição
recíproca hostil” (id.) que é mantida politicamente pelo Estado
moderno.
Na terceira passagem (MARX, 2015, p. 103), Marx usa
explicitamente o conceito de contradição da lógica hegeliana da
essência. Marx explica a “oposição entre sem propriedade e
propriedade” (id.), quer dizer, entre pobreza e riqueza mediante a
“oposição entre o trabalho e o capital” (id.). Na oposição entre
trabalho e capital, a oposição entre pobreza e riqueza é apreendida
“em sua relação ativa, em sua relação interna” (id.) e, com isso,
como “contradição” (id.). O trabalho como “essência subjetiva da
propriedade privada enquanto exclusão da propriedade” (id.)
produz seu outro, o capital como dominação sobre si mesmo.
Inversamente: o capital, “o trabalho objetivo enquanto exclusão do
trabalho” (id.), produz o trabalho como trabalho assalariado.
“Sem o movimento avançado da propriedade privada” (id.), a
oposição da propriedade privada” assume a “primeira figura” da
oposição “ainda indiferente” (id.) da pobreza e da riqueza, mas que
ainda não aparece posta ou produzida pela própria propriedade
privada. Como relação excludente da oposição entre trabalho e
capital, a propriedade privada mostra-se causadora da oposição
entre pobreza e riqueza e, com isso, como “relação desenvolvida da
contradição, e, por isso, uma relação enérgica que tende à solução
(melhor: dissolução)” (id.).
Christian Iber; Eduardo Garcia; Agemir Bavaresco | 361
Para Marx, a dissolução da contradição é inevitável, porque a
relação da contradição entre os correlatos trabalho e capital é, ao
mesmo tempo, “a contradição do trabalho alienado consigo mesmo”
(MARX, 2015, p. 88). Se o trabalho alienado se torna consciente de
sua alienação, ele não pode permanecer alienado. Marx constata: “o
trabalho alienado é a causa imediata da propriedade privada.
Consequentemente, com um dos lados tem de cair também o outro”
(MARX, p. 2015, 88). Do lado dos trabalhadores, a dissolução da
contradição se põe inevitavelmente em movimento com a
consciência da alienação, uma consciência da contradição. Ao
impulso da dissolução da contradição, que se realiza com a
consciência da alienação do trabalho, opõe-se o poder do Estado
moderno, que insiste na manutenção da propriedade privada
contraditória.
Aqui deve ser observado o seguinte: a diferença entre Marx e
Hegel não consiste, conforme entende Ernst Michael Lange, no fato
de que existe em Marx – diferentemente de Hegel – uma “assimetria
fundamental dos correlatos da relação da oposição” (LANGE, 1980,
p. 191). Uma assimetria dos momentos da oposição se encontra
tanto em Hegel como em Marx. Do mesmo modo que, em Hegel, o
positivo é apenas a contradição em si e o negativo é a contradição
posta em Marx, a contradição do capitalcomo “trabalho acumulado”
funda-se na “contradição do trabalho alienado consigo mesmo”
(MARX, 2015, p. 88).
A diferença entre Hegel e Marx consiste unicamente no fato
de que Hegel examina as determinações de reflexão nos moldes da
lógica, ao passo que Marx as emprega no contexto científico da
crítica da economia política - uma ciência específica. Apesar dessa
aplicação, elas não alteram seu significado.
A assimetria das determinações da contradição é também a
razão pela qual o “regresso ao fundamento” em Hegel procede
essencialmente por meio da negatividade posta do negativo e em
Marx por meio da consciência da contradição dos trabalhadores.
Qual é o resultado da dissolução da contradição em Hegel e Marx?
362 | De Kant a Hegel: Leituras e atualizações
Em Hegel, com a dissolução da contradição, a essência enquanto
reflexão encontra sua identidade positiva consigo em sua
negatividade; em Marx, com a dissolução da contradição da relação
do capital e do trabalho, os trabalhadores podem apropriar-se da
organização do próprio trabalho social, visando suprassumir sua
alienação e “estar junto de si mesmos” no seu outro objetivo, isto é,
nos produtos de seu trabalho.
Para a emancipação da sociedade da propriedade privada,
para a qual unicamente os trabalhadores dispõem de recursos
materiais é necessária a “forma política da emancipação dos
trabalhadores” (MARX, 2015, p. 88), quer dizer, a luta contra o
Estado moderno que apoia a propriedade privada por meio de seu
poder. Para Marx, na emancipação dos trabalhadores da
propriedade privada capitalista está contida também a emancipação
“humana universal”, “porque a opressão humana inteira está
envolvida na relação do trabalhador com a produção, e todas as
relações de servidão são apenas modificações e consequências dessa
relação” (MARX, 2015, p. 89). A emancipação humana forma o
análogo marxiano do „retorno ao fundamento” de Hegel.
Considerações finais
Qual é a diferença entre Hegel e Marx no que diz respeito à
teoria da reflexão como exteriorização e alienação? Hegel
desenvolve sua teoria da reflexão na Doutrina da Essência que
examina a atividade do pensar como exteriorização, ou seja, a
reflexão realiza um movimento da exteriorização e do retorno da
exteriorização. Na lógica da essência, a reflexão ainda não está
consumada. Trata-se como que de um retorno reduzido à metade,
isto é, a reflexão e seu retorno permanece na exteriorizidade. Nesse
sentido a reflexão está alienada. O retorno ainda não suprassume,
completamente, a exteriorização. Isso distingue a lógica da essência
da lógica do conceito: na essência, o retorno da reflexão da sua
Christian Iber; Eduardo Garcia; Agemir Bavaresco | 363
exteriorização permanece marcado com a alienação; ao passo que,
no conceito, o movimento da reflexão supera essa deficiência.
Para Marx, o mundo objetivo não pode ser um produto da
criatividade do conceito teórico, mas pode ser transformado apenas
pela prática. Isso significa que a racionalidade do mundo e sua
reflexividade não são o produto do conceito, mas da prática social.
O conceito apenas pode antecipar essa racionalidade no pensar, mas
ela é realizada apenas pela atividade prática do ser humano. A razão
entra na realidade pela práxis. Hegel defende um idealismo absoluto
como unidade do idealismo e do realismo. Marx propõe um
materialismo verdadeiro como naturalismo realizado, ou seja, um
humanismo como unidade do idealismo e do realismo. O ser
humano não é, em primeiro lugar, uma essência espiritual como em
Hegel, mas uma essência natural-espiritual. É isso que faz a
verdadeira diferença entre Hegel e Marx (ver Manuscritos 1844).
Referências
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Trad. Christian G. Iber; Federico Orsini. Petrópolis: Vozes, 2017.
IBER, Christian. A reflexão ponente. Seminário: A contradição na Lógica da
essência de Hegel. PUCRS/PPGFILOSOFIA: Porto Alegre, 2018/1 (a).
IBER, Christian. A passagem da reflexão exterior para a reflexão determinante.
Seminário: A contradição na Lógica da essência de Hegel.
PUCRS/PPGFILOSOFIA: Porto Alegre, 2018/1 (b).
IBER, Christian. A reflexão determinante. Seminário: A contradição na Lógica da
essência de Hegel. PUCRS/PPGFILOSOFIA: Porto Alegre, 2018/1 (c).
IBER, Christian. O desenvolvimento da essência como reflexão e a lógica das
determinações de reflexão. Manual renovado 2018-01. Porto Alegre, 2018.
IBER, Christian. Revolução como negação da negação? Revista Dialectus, v. 5, n
o
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364 | De Kant a Hegel: Leituras e atualizações
JARCZYK, Gwendoline. O conceito do trabalho e o trabalho do conceito em Hegel.
In: Filosofia Política 1. Porto Alegre: L&PM, 1984.
LANGE, Ernst Michael. Das Prinzip Arbeit. Drei metakritische Kapitel über
Grundbegriffe, Struktur und Darstellung der Kritik der Politischen
Ökonomie von Karl Marx. Frankfurt am Main/Berlin/Wien: Ullstein, 1980.
LUKÁCS, Georg. The Young Hegel: Studies in the Relations between Dialectics and
Economics. Trad. Rodney Livingstone. Cambridge: MIT, 1976.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2015.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle;
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MUSTO, Marcello. Revisitando a concepção de alienação em Marx. In: ROIO,
Marcos Del (Org.). Marx e a dialética da sociedade civil. Marília: Cultura
Acadêmica, 2014, p. 61–94.
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