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terça-feira, 21 de novembro de 2023
FOUCAULT LEITOR DE KANT
tefile:///C:/Users/HOME/Desktop/area%20de%20trabalho/ontologia%20do%20presente.pdf
Ricardo R. Terra
USP/CEBRAP
Em uma de suas últimas aulas no Collège de France, em 5 de janeiro de 19832,
Michel Foucault comentou o texto de Kant “Was ist Aufklärung?” e, o que é surpreendente, colocou-se na trilha aberta por Kant, na medida em que este, ao lado
da recusada analítica da verdade, teria fundado uma outra perspectiva crítica, a
da ontologia do presente. Postura distinta da de 1961 quando Foucault defendeu
a tese complementar para o Doctorat ès Lettres, intitulada Introduction à
l’anthropologie de Kant. Esta era composta por uma introdução de 128 páginas seguida pela tradução do livro de Kant e foi oficialmente dirigida por Jean
Hyppolite, sendo defendida junto com a tese principal, Folie et déraison - Histoire
de la folie à l’âge classique.
Henri Gouhier, presidente do júri, em seu relatório oficial sobre a defesa, resumiu o debate e, após elogiar a cultura, a fluência e a elegância de Foucault, escreveu, a respeito da tese complementar, que aqui e ali “se percebe uma certa indiferença com relação às tarefas que sempre acompanham os trabalhos mais eminentes: tradução exata, porém, um pouco apressada, não ‘refinada’, do texto de
Kant; idéias sedutoras, porém rapidamente elaboradas a partir de alguns fatos
apenas; monsieur Foucault é mais filósofo que exegeta ou historiador. Os dois
(1) Agradeço ao prof. R. Brandt pelas referências bibliográficas e a Silvio Rosa e José Teixeira Neto
pela revisão do texto.
(2) “Qu’est-ce que les Lumières? In :Magazine littéraire, n. 207, maio de 1984, pp. 35-9,
republicado em Foucault, M. Dits et écrits 1954-1988. Paris, Gallimard, 1994, pp. 679-88.
74 da tese complementar ressaltam a justaposição de duas obras: 1) uma introdução histórica, que é o esboço de um livro sobre antropologia, mais inspirado
por Nietzsche que por Kant, observa monsieur Hyppolite, e 2) a tradução do texto
de Kant, que, reduzida ao papel de pretexto, deveria ser revisada. Monsieur de
Gandillac aconselha ao candidato que, por ocasião da publicação, separe essas
duas partes, desenvolvendo o livro esboçado sob o nome de introdução e apresentando uma edição realmente crítica do texto de Kant”3.
O conselho não foi seguido, ou não foi seguido completamente. Foucault
não transformou a Introdução em livro e, como não autorizou a publicação dos
inéditos, ela continuará de difícil acesso4. Quanto à tradução5, ele a publicou com
uma pequena “Notice historique” e com algumas poucas variantes, o que não constitui uma edição realmente crítica do texto de Kant.
A tradução de Foucault foi durante muitos anos uma referência importante,
e hoje ela divide as atenções com novas traduções. Quanto à Introdução, se não
tem maior relevância nos estudos kantianos, pelo menos apresenta um grande interesse relacionado com o pensamento de Michel Foucault. E, como é inédita,
convém retomar suas linhas gerais, deixando o maior número possível das vezes
falar o próprio autor.
A Introduction à l’anthropologie de Kant é o esboço parcial de uma obra que visaria criticar as “antropologias filosóficas” contemporâneas6, como ressaltou
Hyppolite, obra de cunho nietzschiano. Nas últimas páginas fica sugerido esse propósito, entretanto, a maior parte do texto é um trabalho acadêmico sobre a
Anthropologie du point de vue pragmatique, de Kant, apesar de certa pressa e descuido
na comprovação de afirmações às vezes polêmicas e o pouco uso da bibliografia
(3) Gouhier, H. apud Eribon, D. Michel Foucault - Uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 122.
(4) Pode-se consultar o microfilme da tese na Bibliothèque de la Sorbonne sob a côte FB506.
(5) Kant. Anthropologie du point de vue pragmatique. Paris, Vrin, 1964.
(6) Cf. Eribon, D. Op. cit., pp. 119, 160, 161.
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secundária. Mas, de todo modo, a leitura foucaultiana é estimulante e sem dúvida
pode esclarecer certos aspectos do lugar reservado a Kant em Les mots et les choses.
Foucault parte da especificidade da elaboração do texto kantiano, proveniente dos cursos de antropologia ministrados durante mais de 25 anos, pois é provável que esses cursos tenham começado em 1772-1773. Convém ressaltar que
desde essa data até a publicação, em 1798, Kant elabora toda a sua obra crítica.
Daí a questão: há uma continuidade da concepção antropológica, que dessa forma
persistiria e mesmo orientaria de alguma maneira o projeto crítico, ou, ao contrário, a antropologia mudaria com a crítica? “A arqueologia do texto, se ela fosse
possível, não permitiria ver nascer um ‘homo criticus’, cuja estrutura seria diferente no essencial do homem que a precedeu?”(4)7. Colocada de maneira unívoca,
Foucault crê que não se pode dar uma resposta a essa questão. O texto que possuímos é a última versão, e as Reflexionen, Collegentwürfe e as anotações de aulas feitas por alunos fornecem apenas indícios não conclusivos.
Para dar conta, tanto da formação da obra, como de suas várias camadas,
que em alguns casos persistem e em outros não, como também da articulação da
análise antropológica com o projeto crítico, Foucault propõe que se mantenha, ao
lado da perspectiva genética, o método estrutural.
A antropologia kantiana estaria articulada a três conjuntos de pesquisas:
em primeiro lugar, às obras pré-críticas, como as Observações sobre o sentimento do
belo e do sublime (1764), o Ensaio sobre as doenças do espírito (1764) e o Ensaio sobre as
raças (1775), nas quais se encontram temas da Antropologia, mas com grandes diferenças na ordenação dos materiais. Em segundo lugar, às críticas; Foucault deixa a
comparação estrutural com a Crítica da Razão Pura para mais tarde. Em último lugar, à Antropologia, que em sua versão final é contemporânea de outras obras de
Kant, de leituras dessas obras realizadas por outros filósofos que procuraram
aprofundar o projeto da filosofia crítica e também de textos sobre questões
(7) Os números entre parênteses, sem outras indicações, referem-se à página da tese de Michel
Foucault Introduction à l’anthropologie de Kant.
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antropológicas. Foucault insiste em três casos: na correspondência com Beck deixam-se entrever a preocupação de Kant com Fichte e o reforço do lugar da antropologia e do conhecimento de si; nas discussões sobre a Metafísica do Direito
transparece o sentido da antropologia como pragmática; por sua vez, o texto de
Huferland sobre a Macrobiótica ajuda Kant a articular o homem como natureza e
sujeito de liberdade. Assim, “de uma maneira paradoxal, esse tríplice
engajamento torna a Antropologia contemporânea ao mesmo tempo do que
precede a crítica, do que a realiza e do que vai em breve liquidá-la”(7).
Podemos entender por que a questão da relação do pensamento antropológico kantiano com o trabalho crítico, se colocada de maneira unívoca, não tem resposta. Mas, levando em conta os diversos níveis da questão, Foucault pode buscar
indícios da dependência da postura da última versão da Antropologia com relação à
obra crítica. A Antropologia publicada modifica os Collegentwürfe. Para esses, “o
pragmático então era apenas o útil passado ao universal”; para aquela, “o modo de
ligação entre Können e Sollen”(40); para os Collegentwürfe, tem-se “a repartição aceita da natureza e do homem, da liberdade da utilização, da Escola e do mundo”;
para a Antropologia, “seu equilíbrio é agora encontrado em sua unidade admitida
(...) Ela explora uma região onde liberdade e utilização já estão enlaçadas na reciprocidade do uso, onde o poder e o dever se relacionam na unidade de um jogo que
os mede um ao outro, onde o mundo torna-se escola nas prescrições de uma cultura.
Tocamos no essencial: o homem na Antropologia não é homo natura, nem sujeito
puro de liberdade; ele é tomado nas sínteses já operadas de sua ligação com o mundo”(42-3). O texto de 1798 pode chegar a essas afirmações, que não estão presentes
nos Collegentwürfe, porque está em sintonia com a filosofia crítica.
A diferenciação do texto de 1798 em relação aos textos antropológicos anteriores aponta para uma articulação dos temas que só é possível caso se levem em
conta as soluções da filosofia crítica. Tem-se uma articulação peculiar de natureza,
liberdade, cultura e mundo8. O conhecimento do homem implica certo
(8) “A Antropologia não será pois história da cultura nem análise sucessiva de suas formas, mas
prática ao mesmo tempo imediata e imperativa de uma cultura completamente dada. Ela ensina
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conhecimento do mundo. Para Foucault, o objeto da Antropologia, conforme o
Prefácio, “é o homem residindo no mundo - Weltbürger”(42).
Ora, aí surge imediatamente uma dificuldade: foi dito que o objeto da antropologia é a dimensão cosmopolita do Welt, embora a maior parte do texto de
Kant trate não do Welt, mas do Gemüt. Para resolver essa dificuldade Foucault
formula três questões que articulam basicamente sua análise: “1) Como um estudo do Gemüt permite o conhecimento do homem como cidadão do mundo?
2) Qual a relação do conhecimento antropológico e a reflexão crítica? 3) Em que
se distingue de uma psicologia racional ou empírica?”(44).
Foucault inverte a ordem, começando pela questão da distinção da antropologia em relação à psicologia. A antropologia pragmática é o estudo
não da Seele, mas do Gemüt, que é vivificado por idéias, pelo Geist. É o Geist
“que abre ao Gemüt a liberdade do possível”(53), e, desta forma, esse “não é
apenas ‘o que é’, mas ‘o que ele faz de si mesmo’. E não é esse precisamente
o campo que a Antropologia definiu para sua investigação?”(52). Diferentemente da psicologia, os elementos do possível e da liberdade estão vinculados com a natureza, constituindo um conhecimento de outra ordem. E o
Geist seria, na leitura de Foucault, um elemento estruturante do pensamento
kantiano, “um fato originário único e soberano - a necessidade de crítica e
possibilidade da Antropologia”(55-6).
Encontra-se aqui a passagem para a segunda questão, o Geist como algo que
parece comum à reflexão crítica e à antropológica. Em um primeiro momento,
Foucault procede a uma comparação estrutural da Crítica e da Antropologia, o que
leva a um resultado que é, à primeira vista, paradoxal. A Antropologia aparece
como o negativo da Crítica em vários aspectos:
ao homem reconhecer em sua própria cultura a escola do mundo. Ela tem nesta medida como
que um parentesco com o Wilhelm Meister, pois também ela descobre que o Mundo é Escola. Mas
o que o texto de Goethe e todos os Bildungsromane dizem ao longo da história, ela repete incansavelmente na forma presente, imperiosa, sempre recomeçada do uso cotidiano. O tempo reina aí,
mas na síntese do presente”(42).
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1) As relações da síntese com o dado aparecem como a imagem invertida da Crítica; nessa o eu não é objeto, mas forma da síntese, já na Antropologia o eu não é considerado em sua função sintética, “sem entretanto reencontrar um simples estatuto de objeto”(57). Ocorre o contrário em relação à dispersão do dado. Na Antropologia o dado não
aparece como pura dispersão, e sim de alguma maneira como organizado, sintetizado previamente fora da visibilidade da consciência. Na
Crítica o dado está do lado da passividade, contraposta claramente à
espontaneidade do sujeito que sintetiza.
2) Apesar de a distinção das faculdades ser a mesma, na Antropologia o que
é privilegiado é sua fraqueza, a patologia, e não o que têm de positivo.
3) Nos Collegentwürfe a divisão da obra se dava como Elementarlehre e
Methodenlehre, como na Crítica. Já no texto de 1798, apesar de continuar com duas divisões, elas levam os títulos de Didática e Característica, o que marca a inversão em relação à Crítica. “A teoria dos elementos torna-se prescrição em relação a todos os fenômenos possíveis (o
que era, propriamente falando, o fim da Methodenlehre); inversamente, a teoria do método torna-se análise regressiva em direção ao núcleo primitivo dos poderes (o que era o sentido da Elementarlehre). Reprodução especular”(64).
Depois da comparação estrutural, Foucault dá um segundo passo visando
estabelecer as relações entre a Crítica e a Antropologia e para tanto analisa
dois textos importantes.
O primeiro é uma passagem da Metodologia Transcendental da Crítica da Razão
Pura, onde, numa perspectiva arquitetônica, é feita a contraposição entre a física e psicologia racionais, de um lado, e, de outro, a física, antropologia e psicologia empíricas.
A antropologia, ao contrário da física e da psicologia, só se localiza no lado empírico.
O segundo texto, ao contrário desse, parece abrir para a antropologia um
âmbito muito mais vasto que a perspectiva empírica de consideração do homem.
Trata-se da passagem da Lógica que trata das quatro questões fundamentais. Kant
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afirma que as três perguntas: “O que posso saber? O que devo fazer? O que me é
lícito esperar?” estão relacionadas a uma quarta: “O que é o homem?”9.
Ora, a posição da questão antropológica nesse último texto é muito diferente daquela da Crítica da Razão Pura, não é uma parte empírica menor da
arquitetônica do saber, passa a ser um lugar-chave, um ponto de fuga para
todo o filosofar. Convém dizer, entretanto, que a Antropologia de 1798 não responde à questão posta na Lógica. Articular a teoria, a prática, a finalidade natural e Deus em torno da questão sobre o que é o Homem constitui algo que
escapa à Antropologia, pois diz respeito a uma totalização posterior do pensamento kantiano, indicada na Lógica e constituindo o esforço sempre retomado
do Opus Postumum.
Foucault envereda por esses textos procurando ver a questão antropológica de um outro ângulo para confrontá-lo com a perspectiva meramente
empírica. Em certos textos de 1800 e 1801, com a divisão da filosofia
transcendental em Deus, Mundo e Homem, a questão da Lógica adquire toda
a sua relevância e torna-se uma dimensão fundamental da filosofia (ver pp.
69 e ss.). O homem desempenha o papel de termo médio, como ato de pensamento em certos textos, noutros como cópula lógica e finalmente noutros
como síntese universal. Assim, “é a partir do homem que o absoluto pode ser
pensado”(71).
Retomando o texto da Lógica, Foucault lembra que três outras questões vinculam-se imediatamente à pergunta: “O que é o homem?” Citando a Lógica: “O
filósofo tem, por conseguinte, que poder determinar:
1) as fontes do saber humano,
2) a extensão do uso possível e útil de todo saber e, finalmente,
3) os limites da razão”10.
(9) Kant. I. Lógica. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992, p. 42.
(10) Id. ibid. p. 42.
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Ou seja, a interrogação sobre o homem desdobra-se de tal maneira que retoma,
repetindo, as três primeiras questões. E, desta forma, é retomada a empresa crítica.
Mas a repetição que articula os três conceitos fundamentais de Quelle, Umfang e
Grenze (que Foucault traduz por source, domaine e limite) aponta para o Opus
Postumum, onde essa estrutura ternária caracteriza o Inbegriff des Daseins (ver p. 77).
A relação do homem com o mundo também pode ser pensada nesta direção:
a de considerar o mundo como fonte do saber, como domínio de todos os
predicados e limite da experiência possível (ver pp. 78 e ss.). Assim, “vê-se a amplitude do campo da reflexão que essas três noções cobrem: fonte, extensão, limite. Em certo sentido, elas recobrem a trilogia, interna à primeira Crítica, da sensibilidade, do entendimento e da razão. Mais longe, elas retomam e encerram
numa palavra o trabalho de cada crítica: razão pura, razão prática, e faculdade de
julgar. Elas repetem as três questões fundamentais que, segundo Kant, animam
todo o Philosophieren. Elas dão, enfim, um tríplice conteúdo à interrogação sobre o
homem, à qual se relacionam todas as outras. Mas, retomando assim cada uma
das tripartições, elas fazem atingir, por sua própria repetição, o nível fundamental e substituem a essas divisões sistemáticas a organização dos correlatos
transcendentais. Percebe-se assim que o mundo não é apenas fonte para uma ‘faculdade’ sensível, mas, sobre o fundo de uma correlação transcendental, passividade-espontaneidade; que o mundo não é domínio simplesmente para um entendimento sintético, mas, sobre o fundo de uma correlação transcendental, necessidade-liberdade; que o mundo não é limite simplesmente para o uso das idéias,
mas, sobre o fundo de uma correlação transcendental, razão-espírito (VernunftGeist). E, em tal sistema de correlações, funda-se a transcendência recíproca da
verdade e da liberdade”(79, 80).
Foucault pode então concluir sobre esse ponto insistindo que a quarta questão repete a crítica, ressaltando entretanto as relações do homem com o mundo e
apontando para a coesão fundamental das partes da crítica.
Voltando à Antropologia de 1798, fica clara sua diferença em relação à Lógica,
que apresenta uma questão antropológica muito mais ampla. Fica clara também
sua diferença em relação ao Opus Postumum, que propõe a questão do Homem
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imediatamente em relação com a investigação sobre o mundo e Deus. Ora, a Antropologia é uma passagem, tem o caráter de passagem para a filosofia
transcendental, daí sua relação paradoxal com a Crítica.
De um lado, a Crítica considera a Antropologia apenas como empírica; de outro, a Antropologia, apesar de retomar a articulação das faculdades da Crítica, não
faz desta o fundamento daquela. Assim, “a Antropologia pode ser ao mesmo tempo marginal em relação à Crítica, e decisiva para suas formas de reflexão que se
davam por tarefa completá-la”(83), daí seu caráter de passagem.
Como a Antropologia repete a Crítica, só que no plano popular do conselho,
do exemplo e, ao mesmo tempo, tem o papel de passagem, Foucault encontra
nela um aspecto sistemático e outro popular.
Já na rápida comparação estrutural da Antropologia com a Crítica ficou indicado o caráter sistemático da primeira. A Antropologia repete a Crítica, os três livros da
Didática repetem as três Críticas e a Característica repete os textos sobre a filosofia
da história e sobre a política. Mas, como já foi visto, ela repete de certa forma como
negativo, sendo ressaltada a possibilidade do erro e as maneiras de evitá-lo.
Quanto ao aspecto popular, Foucault o desenvolve retomando a distinção da Lógica entre perfeição popular e perfeição escolástica. A primeira acrescenta à segunda a
exigência de um discurso que se volta para a totalidade e uma referência ao reconhecimento por todos os homens de seu valor. “Para tornar-se popular um conhecimento
deve repousar em ‘eine Welt- und Menschenkenntniss, um conhecimento dos conceitos,
dos gostos e das inclinações dos homens’ (Logik, p. 363)11. Como, nessa frase da Lógica
que circunscreve as exigências do conhecimento popular, não encontrar a definição
mesma da Antropologia? (Anthropologie, Prefácio, p. 1)”(91). A própria definição de
popularidade remete diretamente à perspectiva antropológica.
O desenvolvimento dessa questão por Foucault é intrigante. A Antropologia, ao
contrário da Crítica, que tinha uma referência à universalidade do latim, se dá no âmbito do sistema alemão. Apesar das citações em latim, da referência a outros povos
(11) Foucault cita a Lógica de Kant pela edição Cassirer, tomo VIII.
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etc., a Antropologia estaria no âmbito da experiência e expressão alemãs. O plano da
experiência antropológica seria mais lingüístico que psicológico. Daí a importância
da Unterhaltung. O grupo social de referência não é a família nem o Estado, mas a
Tischgesellschaft, e Foucault pergunta: “Não é, com efeito, quando ela obedece fielmente a suas próprias regras, como que a imagem particular da universalidade?”(99).
Retomando o que já foi dito, convém lembrar que Foucault articulou sua
análise do texto de Kant formulando três questões, duas das quais já foram abordadas: 1) sobre a diferença da antropologia e da psicologia; 2) sobre as relações
entre antropologia e crítica. Ora, já estão aparecendo os elementos para a
explicitação da questão de como o conhecimento do cidadão do mundo pode ser
realizado através da análise do Gemüt.
O convívio, a conversação permitem que as liberdades se encontrem e se
universalizem. “De fato, o homem da Antropologia é Weltbürger, mas não na medida em que faz parte de tal grupo social ou de tal instituição. Mas pura e simples- mente porque fala. É na troca da linguagem que, ao mesmo tempo, ele atinge e
realiza o universal concreto. Sua residência no mundo é originariamente permanência na linguagem”(101).
Visto que a Antropologia é pragmática e seu caráter popular repousa em
uma linguagem dada e uma expressão articulada, ela se dirige para a formação da
universalidade - “é por aí que a análise do Gemüt, na forma do sentido interno,
torna-se prescrição cosmopolita, na forma da universalidade humana”(102).
Ao explicar como a análise do Gemüt constitui a maneira de desenvolver o
objeto da Antropologia, ou seja, o homem no mundo (Weltbürger), Foucault completa seu estudo da Antropologia de 1798. Mas seu objetivo não consistia apenas
em expor o pensamento kantiano. Pretendia, na verdade, preparar o quadro de
uma crítica das antropologias filosóficas contemporâneas. Podemos nos pergun- tar então qual a situação de Kant diante da crítica arrasadora das antropologias. À
primeira vista parece ser das piores.
Há uma ambigüidade básica na antropologia kantiana, presente na questão do
conhecimento empírico da finitude, que está entre o conjunto empírico e a reflexão
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proveniente da empresa crítica. A antropologia kantiana depende da crítica e também das questões antropológicas do século XVIII. Estas modificam a
concepção de homem de tipo cartesiano. A dimensão física do homem é vista como
natureza, mas não é mecânica, e com Kant tem-se uma nova articulação de natureza
e liberdade permitida pela crítica. Mesmo assim a ambigüidade da antropologia permanece: “A Antropologia será, pois, não apenas ciência do homem, e horizonte de
todas as ciências do homem, mas ciência daquilo que, para o homem, funda e limita seu conhecimento. É aí que se esconde a ambigüidade dessa Menschenkenntniss pela
qual se caracteriza a Antropologia: ela é conhecimento do homem, em um movimento que o objetiva, no nível de seu ser natural e no conteúdo de suas determinações
animais; mas ela é conhecimento do conhecimento do homem, num movimento que
interroga o sujeito sobre ele mesmo, sobre seus limites, e sobre aquilo que ele autoriza
no saber que dele se tem”(118). A tensão do empírico e do crítico permanece, e é essa
tensão que será desfeita nas antropologias contemporâneas.
A crítica foucaultiana à filosofia contemporânea, apenas rapidamente
esboçada, nem sempre é muito clara. O contra-senso básico é querer que a antropologia faça o papel de crítica. Partindo de um campo de positividades, tem-se a
pretensão de fundar as ciências humanas, perdendo-se assim a dimensão crítica
do limite. Foucault é contundente: “Em nome daquilo que é, ou seja, daquilo que
deve ser segundo sua essência a Antropologia no todo do campo filosófico, é preciso recusar todas as ‘antropologias filosóficas’ que se dão como acesso natural ao
fundamental; e todas essas filosofias cujo ponto de partida e horizonte concreto
são definidos por uma certa reflexão antropológica sobre o homem. Aqui e lá intervém uma ‘ilusão’ que é própria à filosofia ocidental desde Kant. Ela equilibra,
em sua forma antropológica, a ilusão transcendental que encobria a metafísica
pré-kantiana. Por simetria e referindo-se a ela como um fio condutor, é que se
pode compreender em que consiste essa ilusão antropológica”(123, 124).
A questão Was ist der Mensch? levou à ilusão antropológica que
desestruturou o “Philosophieren”; ao mesmo tempo, noções como “sentido”, “estrutura” e “gênese” passam indiferentemente pelas ciências humanas e pela filosofia: sem o rigor que poderiam ter (ver p. 127). Mas haveria um remédio para
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esta situação. A última frase da tese aponta para o programa foucaultiano:
“A trajetória da questão Was ist der Mensch? no campo da filosofia se completa na
resposta que a recusa e a desarma: der Übermensch”(128).
O tema que tinha proposto para esse colóquio era: “Foucault leitor de Kant:
da Antropologia à ontologia do presente”12. Minha intenção era comparar a posição ocupada por Kant em três de suas obras: na tese sobre a Antropologia, em Les
mots et les choses e no curso sobre “Was ist Aufklärung?”. Mas como o colóquio é
sobre a antropologia e a tese de Foucault é e, ao que parece, continuará inédita,
achei que seria melhor fazer uma comunicação centrada apenas na tese de
doutoramento (na tese complementar). Reitero que o ineditismo do texto me fez
citar tantas vezes trechos tão longos.
De maneira extremamente esquemática, poderia esboçar a comparação do
seguinte modo:
I) Para Foucault, na tese, Kant teria transformado a fundo a questão antropológica, mas não teria conseguido resolver a ambigüidade da relação
entre o empírico e o transcendental. Porém, diferentemente das antropologias filosóficas posteriores, a ambigüidade teria uma dimensão também positiva, na medida em que ela significa que não se abandonou a
perspectiva crítica. Foucault ressalta a presença da dimensão crítica
kantiana, mesmo na filosofia que mais radicalmente a demole, quando,
após criticar as psicologias fenomenológicas, escreve: “Por qual cegueira
fomos acometidos para não ver que a articulação autêntica do
Philosophieren estava de novo presente, e sob uma forma bem mais constrangedora, em um pensamento que não tinha, ele próprio, notado corretamente o que conservava da filiação e fidelidade em relação ao velho
‘chinês de Königsberg?’”(107).
(12) Uma primeira versão desse texto foi apresentada no colóquio : “Naissance de
l’anthropologie au siècle des lumières”, organizado pela Société d’ Études Kantiennes de Langue
Française, em Dijon, em maio de 1996.
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Como se vê, Foucault está mais preocupado em demolir as antropologias filosóficas contemporâneas do que a de Kant. A análise desta, em certo sentido,
permite entender o equívoco daquelas.
II) Já em Les mots et les choses, Kant é afogado na episteme, mas nem por isso deixa
de desempenhar ali um papel estratégico. Se se fizesse uma leitura do parágrafo VIII do capítulo IX, que tem por título “O sono antropológico”, poderse-ia ver como ali se recuperam muitos elementos da tese. Sempre
esquematicamente, lembro que o próprio título do parágrafo retoma a noção
de “ilusão antropológica”, da tese. Nesta, podem ser encontradas frases que
parecem ter sido diretamente retomadas em Les mots et les choses, como, por
exemplo, a frase onde se diz que a questão Was ist der Mensch “percorre o pensamento desde o começo do século XIX, é ela que opera, furtiva e previamente, a confusão entre o empírico e o transcendental, cuja distinção, porém, Kant
mostrara. (...) A Antropologia constitui talvez a disposição fundamental que
comandou e conduziu o pensamento filosófico desde Kant até nós”13.
Em relação à postura de Nietzsche, encontra-se na tese: “A empresa
nietzschiana poderia ser entendida como um basta enfim dado à proliferação da
interrogação sobre o homem. Com efeito, a morte de Deus se manifestou num
gesto duplamente mortal que, colocando um termo ao absoluto, é ao mesmo tempo assassino do próprio homem. Pois o homem, em sua finitude, não é separável
do infinito do qual ele é ao mesmo tempo a negação e o arauto; é na morte do
homem que se completa a morte de Deus”(127-8).
E em As palavras e as coisas:
“Nietzsche reencontrou o ponto onde o homem e Deus pertencem um ao
outro, onde a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro, e
onde a promessa do super-homem significa, primeiramente e antes de tudo, a
iminência da morte do homem”14.
(13) Foucault, M. As palavras e as coisas. São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1985, pp. 357 e 358.
(14) Id., ibid., p. 358.
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Seria possível desenvolver essas comparações, mas, como não há tempo, contentei-me em indicar algumas passagens. De qualquer forma, talvez se pudesse
dizer que as leituras foucaultianas de Kant na tese e em Les mots et les choses apresentam as diferenças seguintes: 1) na primeira, a valorização da perspectiva crítica
se faz também em nome de sua retomada muito particular por Nietzsche; 2) em Les
mots et les choses, o ponto de vista arqueológico impede toda valorização da crítica,
visto que ali todo pensamento está aprisionado numa episteme.
III)No curso de 1983 sobre “Was ist Aufklärung?”, Foucault não está
mais preso estritamente à camisa-de-força da arqueologia e pode retomar o projeto crítico kantiano. Não, evidentemente, a antropologia ou a analítica da verdade, também tributárias de Kant, mas uma
ontologia do presente que se encontraria em textos como Was ist
Aufklärung e Der Streit der Fakultäten, onde Kant se perguntaria sobre a atualidade, na medida em que se interroga pela Aufklärung ou
pela Revolução Francesa.
Foucault apresenta as opções filosóficas de nossa época nos termos seguintes: “Parece-me que a escolha filosófica com a qual nós nos encontramos confrontados atualmente é esta: pode-se optar por uma filosofia crítica que se apresentará como uma filosofia analítica da verdade em geral, ou pode-se optar por
um pensamento crítico que tomará a forma de uma ontologia de nós mesmos,
de uma ontologia da atualidade; é esta forma de filosofia que, de Hegel à Escola
de Frankfurt, passando por Nietzsche e Max Weber, fundou uma forma de reflexão dentro da qual tentei trabalhar”15.
A quantidade de questões que se abrem é enorme. Pode-se mesmo acrescentar que, antes de sua morte, Foucault teria proposto a Habermas e Rorty a
realização de um colóquio sobre o texto “Was ist Aufklärung?”. O curso de
(15) Foucault, M . “Qu’est-ce que les Lumières”. In: Dits et écrits. Paris, Gallimard, 1994, vol. IV,
pp. 687-8; tradução em português: O dossier. Últimas entrevistas Escobar, C. H. (org.) Rio de Janeiro , Livraria Taurus Editora, 1984, p. 112.
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volume 2
número 1
1997
RICARDO R. TERRA
Foucault tem provocado muitos debates e até a hipótese de que ele teria mudado de posição, induzido pelas críticas feitas por Habermas e alguns pensadores
americanos à sua noção de poder.
Infelizmente, não é possível desenvolver hoje esse debate. Devo-me contentar em indicá-lo.
Mas, para terminar, levando em conta o tema desse colóquio, seria interessante, talvez, formular a questão seguinte:
No contexto da filosofia kantiana - tal como foi interpretada pelo jovem
Foucault -, na elaboração de uma ontologia do presente, a Antropologia pragmática não ocuparia necessariamente uma posição central? Na Lógica, Kant distingue
um conceito escolástico - Schulbegriff - e um conceito cósmico - Weltbegriff - da
filosofia, ora, esta distinção é correlata a uma outra, analisada por Foucault, entre
perfeição escolástica e perfeição popular. A contraposição entre a analítica da verdade e a ontologia do presente não poderia ser vista como uma retomada dessas
distinções kantianas? E uma “ontologia de nós mesmos” seria, em perspectiva
kantiana, uma pergunta pelo significado da Aufklärung, da Revolução Frances
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