Amor e ódio
Luis Fernando Veríssimo
Um historiador do futuro - figura retórica tão útil quanto o Marciano
Hipotético para se olhar o Brasil atual de uma certa distância - terá
duas grandes dificuldades para entender que diabos se passou por aqui
nos últimos anos. Uma será explicar o amor ao Lula. A outra será
explicar o ódio ao Lula. As duas coisas transbordaram de qualquer
parâmetro racional. Lula terminou seu mandato com um índice de aprovação
popular inédito, e odiado na mesma proporção. O amor resistiu a
escândalos, gafes, alianças indefensáveis, uma imprensa hostil e uma
oposição ativa. O ódio se manteve constante até depois do mandato e não
se diluiu nem numa natural simpatia pelo homem doente - o antilulismo
feroz não é solidário nem no câncer.
Nosso historiador talvez desista de encontrar explicações para essa
polarização extrema na disputa política e sucumba a simplificações
sociorromânticas. Talvez conclua que Lula teria o amor da maioria pelo
seu tipo físico e sua biografia independentemente de qualquer outra
coisa, e seria aprovado pelos seus semelhantes não importa que governo
fizesse. E que o ódio ao Lula se explicava por nada menos científico ou
novo no Brasil do que o preconceito social, uma repulsa atávica a quem
ultrapassa sua classe e com isto ameaça todo o conceito de classe
predestinada. No caso um torneiro mecânico inculto metido a grande
coisa.
No fundo o que o perplexo historiador do futuro estaria dizendo é que é
impossível confiar em padrões históricos como os que explicam outras
sociedades para nos explicar. Não se trata de reativar a frase que o De
Gaulle nunca disse, sobre nossa falta de seriedade. Somos sérios, sim.
Mas também somos movidos a paixões que sabotam toda coerência histórica.
O Lula foi um catalisador de paixões, a favor e contra. E o mais
extraordinário e brasileiro disso é que o amor e o ódio não têm nada a
ver com os sucessos ou os fracassos do seu governo. Existem num plano
ahistórico e apolítico de pura devoção ou pura raiva.
Publicado na edição "online" do jornal O Globo de 01/12/2011.
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