quinta-feira, 26 de julho de 2012

Eleições e representação - Manin e Przeworski

Representação é um tema de discussão porque os políticos têm
objetivos, interesses e valores próprios, e eles sabem coisas
e tomam decisões que os cidadãos não conseguem observar
ou só podem monitorar com certo custo. Mesmo se,
uma vez no cargo, os políticos possam não querer fazer
nada a não ser atuar a serviço do interesse público, para
serem eleitos eles podem ter que, em primeiro lugar, satisfazer
certos interesses. E uma vez eleitos, podem querer
dedicar-se aos seus objetivos pessoais ou a alguns interesses
públicos que diferem daqueles dos cidadãos. Se eles
tiverem tais motivações, eles vão querer fazer outras coisas
distintas de representar a população. E os eleitores não
sabem tudo que precisariam saber, tanto para decidir prospectivamente
o que os políticos deveriam fazer, quanto para
julgar retrospectivamente se eles fizeram o que deveriam ter
feito. Se os eleitores sabem que existem coisas que eles não
sabem, eles não querem obrigar os políticos a realizar seus
desejos. Por sua vez, se os cidadãos não tiverem informações
suficientes para avaliar o governo em exercício, a ameaça
de não ser reeleito é insuficiente para induzir os governantes
a agirem de acordo com os interesses dos cidadãos. (mais em:
http://www.scielo.br/pdf/ln/n67/a05n67.pdf

AS METAMORFOSES DO GOVERNO REPRESENTATIVO


Bernard Manin
http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs29_01.htm 
Freqüentemente se afirma que a representação política está passando por uma crise nos países ocidentais. Durante décadas, a representação parecia estar fundamentada em uma forte e estável relação de confiança entre o eleitorado e os partidos políticos; a grande maioria dos eleitores se identificava com um partido e a ele se mantinha fiel. Hoje, porém, o eleitorado tende a votar de modo diferente de uma eleição para a outra, e as pesquisas de opinião revelam que tem aumentado o número dos eleitores que não se identificam com partido algum. Até pouco tempo atrás, as diferenças entre os partidos pareciam um reflexo das clivagens sociais. Mas hoje tem-se a impressão que são os partidos que impõem à sociedade clivagens, cujo caráter "artificial" é lastimado por alguns observadores. No passado, os partidos propunham aos eleitores um programa político que se comprometiam a cumprir, caso chegassem ao poder. Hoje, a estratégia eleitoral dos candidatos e dos partidos repousa, em vez disso, na construção de imagens vagas que projetam a personalidade dos líderes. As preferências dos cidadãos acerca de questões políticas expressam-se cada vez mais freqüentemente por intermédio das pesquisas de opinião e das organizações que visam fomentar um objetivo particular, mas não têm a intenção de se tornar governo. A eleição de representantes já não parece um meio pelo qual os cidadãos indicam as políticas que desejam ver executadas. Por último, a arena política vem sendo progressivamente dominada por fatores técnicos que os cidadãos não dominam. Os políticos chegam ao poder por causa de suas aptidões e de sua experiência no uso dos meios de comunicação de massa, não porque estejam próximos ou se assemelhem aos seus eleitores. O abismo entre o governo e a sociedade, entre representantes e representados, parece estar aumentando. 
Nos últimos dois séculos, o governo representativo passou por importantes modificações, especialmente durante a segunda metade do século XIX. A mudança mais evidente, que mais chamou a atenção dos historiadores do governo representativo, diz respeito ao direito de voto: a propriedade e a cultura deixaram de ser representadas e o direito ao sufrágio foi ampliado. Essa mudança ocorreu paralelamente a uma outra: a emergência dos partidos de massa. O governo representativo moderno foi instalado sem a presença de partidos organizados, seguindo os exemplos das revoluções inglesa, americana e francesa. A maioria dos fundadores do governo representativo chegava a pensar que a divisão entre partidos ou "facções" era uma ameaça ao sistema que pretendiam estabelecer.(1) A partir da segunda metade do século XIX, porém, a presença de partidos políticos na organização da expressão da vontade do eleitorado passou a ser vista como um componente essencial da democracia representativa. Além disso, os programas políticos também tinham um papel de reduzida importância no modelo original dos governos representativos: a própria idéia de plataforma política era praticamente desconhecida no final do século XVIII e início do. século XIX. Mas com o aparecimento dos partidos de massa, os programas políticos passaram a ser um dos principais instrumentos da competição eleitoral. 
O aparecimento dos partidos de massa e de seus programas veio transformar a própria relação de representação. A existência de partidos organizados aproximava os representantes dos representados. Os candidatos passaram a ser escolhidos pela organização partidária, na qual militantes de base tinham a oportunidade de se manifestar. A massa do povo podia, assim, ter uma certa participação na seleção de candidatos e escolher pessoas que compartilhassem de sua situação econômica e de suas preocupações. Uma vez eleitos, os representantes permaneciam em estreito contato com a organização pela qual se elegeram, ficando, de fato, na dependência do partido. Isso permitia aos militantes, ou seja, aos cidadãos comuns, manter um certo controle sobre seus representantes fora dos períodos eleitorais. Apresentando-se diante dos eleitores com um programa, os partidos pareciam dar aos próprios cidadãos a possibilidade de determinar a política a ser seguida. 
No final do século XIX, vários analistas interpretaram o novo papel dos partidos e das plataformas políticas como sinal de uma crise da representação (Ostrogorski, especialmente vol. I, p. 568). O protótipo do governo representativo era, então, encontrado no "parlamentarismo" ou no "parlamentarismo liberal", do qual o sistema inglês, na forma que assumiu até cerca de 1870, era tido como o exemplo mais acabado.(2) No início do século XX, multiplicaram-se as análises sobre uma "crise do parlamentarismo".(3) Mas, com o tempo, tornou-se claro que, embora a emergência de partidos de massa tivesse ocasionado a falência do parlamentarismo, o governo representativo não estava agonizando. Alguns observadores compreenderam que tinha surgido uma forma nova e viável de representação. Esse novo modelo não foi definido por um conceito tão preciso quanto o de parlamentarismo, e seu reconhecimento como fenômeno relativamente estável e internamente coerente foi assinalado pela criação de dois termos novos: "governo de partido", entre os analistas anglo-americanos, e parteiendemokratie, entre os teóricos alemães. Cada um desses dois termos visava reunir sob uma só denominação as características que distinguiam a nova forma de governo representativo do modelo do parlamentarismo. 
Foi possível, então, chegar a diversas conclusões. A maioria dos analistas concordou com a idéia de que a nova forma de representação era radicalmente diferente do parlamentarismo. Além disso, firmou-se a convicção de que a relação de representação típica do parlamentarismo tinha sido substituída por outra de novo formato, na qual o papel dos partidos de massa e das plataformas políticas parecia ter evoluído como conseqüência da extensão do direito de voto. Já que não se imaginava um retorno a padrões mais restritivos, concluiu-se que a relação de representação tinha sido irreversivelmente modificada. Enfim, ainda que alguns analistas lastimassem o declínio do parlamentarismo, o surgimento de um novo formato de governo representativo foi entendido, de modo geral, como um progresso, um indício de avanço da "democracia". Essa percepção decorreu não só do fato de que o novo sistema acompanhava a extensão do direito de voto, como também do tipo de relação de representação que implicava. O "governo de partido" parecia criar uma maior identidade social e cultural entre governantes e governados e parecia também dar aos últimos um papel mais importante na definição da política pública. O governo representativo parecia, assim, aproximar-se do ideal de autogoverno, do povo governando a si mesmo. Esse progresso rumo à democracia, entendida como o governo do povo pelo povo, chegou a ser interpretado como um prolongamento da história dos Whigs ou, numa versão mais próxima de Tocqueville, como um degrau no avanço inexorável dos direitos de igualdade e autonomia dos indivíduos, que o "parlamentarismo liberal" realizava de modo imperfeito. 
Há uma notável simetria entre a situação atual e a do final do século XIX e início do século XX. Hoje, como então, a idéia de uma crise de representação é um tema usual, o que nos leva a crer que estamos diante de uma crise que é muito menos da representação como tal do que de uma forma particular de governo representativo. Cabe, portanto, indagar se as mudanças que hoje atingem a representação não estariam sinalizando a emergência de uma terceira forma de governo representativo, tão estável e coerente quanto o modelo parlamentar e a democracia de partido. 
É ainda mais extraordinário que a chamada crise de representação atual seja atribuída ao desaparecimento ou enfraquecimento daquelas mesmas características que distinguiam a democracia de partido do parlamentarismo e que pareciam aproximar a primeira de um governo do povo pelo povo. O que está atualmente em declínio são as relações de identificação entre representantes e representados e a determinação da política pública por parte do eleitorado. Isso sugere que talvez existam semelhanças entre a forma de representação que hoje está emergindo e o tipo de governo representativo que a democracia de partido teria substituído definitivamente. A mudança que adveio no fim do século XIX talvez tenha sido menos radical do que se imaginava. 
Três tipos-ideais de governo representativo serão construídos neste ensaio: o "parlamentar", a "democracia de partido" e a "democracia do público" (ver Quadro na página 31).(4) Esses tipos ideais não esgotam todas as formas possíveis de governo representativo, nem mesmo todas as formas que ele assumiu na realidade. O estudo examina apenas os modelos mais significativos e estáveis, sob o ângulo da relação de representação que estabelecem. Em determinado ponto do tempo e em um dado país, as várias modalidades de representação política aqui analisadas podem coexistir e se fundir umas nas outras, mas, dependendo do tempo e do lugar, uma forma ou outra predomina. 
Os princípios do governo representativo
Examinando-se as origens do governo representativo à luz de sua história posterior, percebe-se a existência de um certo número de princípios, formulados no final do século XVIII, que praticamente nunca foram postos em questão desde essa época. Ao me referir a "princípios" não estou falando de meras abstrações ou ideais, e sim de idéias que se traduziram em práticas e instituições concretas. Quatro princípios, entendidos dessa maneira, foram formulados nos primeiros tempos do governo representativo moderno. 
1) Os representantes são eleitos pelos governados
A natureza exata da representação tem sido objeto de muita controvérsia, mas, de modo geral, há concordância no entendimento de que não existe representação quando os governantes não são periodicamente eleitos pelos governados. Eleições periódicas não têm como conseqüência uma identidade rousseauniana entre governantes e governados por duas razões principais. 
Em primeiro lugar, as eleições não eliminam a diferença de status e função entre o povo e o governo. Em um sistema eletivo o povo não governa a si mesmo. O processo eletivo resulta na atribuição de autoridade a determinados indivíduos para que governem sobre outros: o poder não é conferido por direito divino, nascimento, riqueza ou saber, mas unicamente pelo consentimento dos governados. A eleição reflete o princípio fundamental do pensamento político moderno, de que nenhum título de origem sobrenatural ou superioridade natural dá a uma pessoa o direito de impor sua vontade a outras. A eleição é um método de escolha dos que devem governar e de legitimação de seu poder. 
Em segundo lugar, um sistema eletivo não requer que os governantes sejam semelhantes àqueles que eles governam. Os representantes podem ser cidadãos ilustres, social e culturalmente diferentes dos representados, contanto que o povo consinta em colocá-los no poder. Um governo eletivo pode ser um governo de elites, contanto que essas elites não exerçam o poder unicamente em função de suas qualidades de distinção. Essa característica do processo eletivo torna-se mais clara quando comparada com um outro método possível de escolha de governantes, o sorteio(5). A indicação de autoridades públicas por sorteio impõe obstáculos ao governo de elites e assegura que os governantes sejam semelhantes aos demais cidadãos. Vale lembrar que, até o século XVIII, a escolha por sorteio era tida como o procedimento democrático por excelência. O fato de que os fundadores do governo representativo tenham escolhido a eleição, e não o sorteio, como método legítimo de seleção de representantes mostra que eles não viam incompatibilidade alguma entre representação e governo de elites. É digno de nota, embora raramente tenha sido analisado, o fato de que ao longo dos últimos dois séculos jamais tenha sido proposta a indicação de representantes por meio de sorteio. 
Portanto, um sistema eletivo não cria uma identidade entre os que governam e os que são governados. Isso não significa que os cidadãos comuns têm apenas uma posição subordinada no governo representativo. Embora o povo não governe, ele não está confinado ao papel de designar e autorizar os que governam. Como o governo representativo se fundamenta em eleições repetidas, o povo tem condições de exercer uma certa influência sobre as decisões do governo: pode, por exemplo, destituir os representantes cuja orientação não lhe agrade. Por outro lado, o governo representativo pode ser um governo de elites, mas cabe aos cidadãos comuns decidir que elite vai exercer o poder:
2) Os representantes conservam uma independência parcial diante das preferências dos eleitores
Embora sejam escolhidos, e possam ser destituídos, pelos governados, os representantes mantêm um certo grau de independência em suas decisões. Esse princípio se traduz na rejeição de duas práticas que igualmente privariam os representantes de qualquer autonomia de ação: os mandatos imperativos e a revogabilidade permanente e discricionária dos eleitos, a "recall".(6)Nenhum dos governos representativos instituídos desde o final do século XVIII admitiu mandatos imperativos ou concedeu o estatuto de obrigação legal às instruções dadas pelos eleitores. Nenhum deles tampouco instituiu um sistema de permanente revogabilidade dos representantes.
Ao longo do século XVIII, firmou-se na Inglaterra a concepção de que os deputados representam o conjunto da nação, e não o distrito eleitoral específico que os elegeu. Os eleitores de cada distrito não estavam, portanto, autorizados a lhes dar "instruções" (Pote, 1983, p. 103). No início do século XIX, os radicais tentaram reintroduzir uma prática análoga à das instruções, exigindo dos candidatos "promessas" (pledges) e, após o First Reform Act, reivindicaram que a lei obrigasse ao cumprimento dessas promessas. O principal objetivo dos radicais era reduzir o tamanho dos mandatos parlamentares (que, desde o SeptennialAct, de 1716, era de sete anos). Ao que parece, os radicais encaravam o sistema de pledges como um substituto vantajoso para mandatos parlamentares mais curtos (Gash, 1971, p. 30). De sua parte, Bentham (1983, vol. I, p. 26) mostrou-se particularmente contrário à prática das instruções: o único mecanismo de influência dos eleitores sobre seus representantes deveria ser o direito de não os reeleger. De qualquer modo, o cumprimento das "promessas" eleitorais nunca foi imposto como obrigação legal na Inglaterra. 
A prática das instruções era extensamente disseminada nos Estados Unidos, tanto durante o período colonial quanto nos dez primeiros anos após a independência do país (Reid, 1989, pp. 1002). Alguns estados, sobretudo a Nova Inglaterra, chegaram a incluir o direito de instrução em suas constituições. Quando o First Congressional Congress (eleito de conformidade com a Constituição de 1787) discutia o Bill of Rights, alguns de seus membros propuseram que se acrescentasse à Primeira Emenda (que garante a liberdade de religião e de expressão) o direito de dar instruções aos representantes. A proposta foi longamente discutida, mas acabou sendo rejeitada.(7) Os eleitores americanos continuaram livres para dar instruções como quisessem, mas estas não teriam caráter de obrigação legal.
Na França, os delegados aos Estados-Gerais, inclusive os que foram convocados em 1789, eram portadores de instruções (cahiers de doléances). Uma das primeiras decisões dos revolucionários franceses, em julho de 1789, foi proibir a prática dos mandatos imperativos. Essa decisão nunca foi posta em questão durante ou após a Revolução. Em 1793-94, uma parte do movimento dos sansculottes propôs que os eleitos fossem passíveis de perda do mandato, a qualquer momento, por ato das assembléias eleitorais de base local. O projeto de Constituição submetido à Assembléia Geral em 1793 previa esse sistema, mas ele jamais foi posto em prática. Em 1870, o breve governo revolucionário da Comuna de Paris instituiu um sistema de revogabilidade.
Na prática, é possível criar instituições e procedimentos que confiram ao povo maior controle sobre seus representantes; disposições desse tipo chegaram a ser propostas e eventualmente estabelecidas. Isso dá maior relevo ao fato de que essas instituições e práticas tenham sido rejeitadas no final do século XVIII por razões de princípio, e não de ordem prática, e que tal decisão jamais tenha sido questionada. Promessas podiam ser feitas, programas podiam ser apresentados, mas os representantes, sem exceção, mantiveram a liberdade de decidir se deviam ou não cumpri-los. Sabendo que as eleições se repetiriam a intervalos regulares, os representantes que haviam assumido compromissos públicos podiam contar com dificuldades para se reeleger, caso não cumprissem as promessas feitas. Contudo, eles tinham liberdade para sacrificar a perspectiva de uma reeleição, caso circunstâncias excepcionais lhes impusessem prioridades mais relevantes do que a carreira política. Mais importante ainda é que os representantes podiam manter a esperança de que, numa nova candidatura, viessem a ter condições de convencer os eleitores de suas razões para desrespeitar as promessas anteriores. O governo representativo nunca foi um sistema em que os eleitos têm a obrigação de realizar a vontade dos eleitores: esse sistema nunca foi uma forma indireta de soberania popular.
Nesse aspecto reside uma grande diferença entre o governo representativo e a democracia, entendida como um regime de autonomia coletiva em que as pessoas submetidas a normas fazem as normas. Essa diferença era muito visível no final do século XVIII, como demonstra a crítica da representação formulada por Rousseau. Não é a presença de delegados que diferencia a representação do governo do povo pelo povo. A delegação de funções de governo a um organismo político separado do povo pode ser compatível com o princípio do autogoverno do povo. 0 próprio Rousseau estava perfeitamente convencido dessa possibilidade. Em Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau propõe um sistema em que o povo delegaria a uma assembléia de deputados o exercício do poder soberano. Extraindo a conseqüência lógica de sua concepção de liberdade política como autogoverno, ele recomenda, então, a prática de mandatos imperativos (Rousseau, 1986, p. 193). A diferença entre governo representativo e governo do povo pelo povo não está na existência de um corpo específico de delegados, mas na ausência de mandatos imperativos.
É surpreendente constatar que dois homens que tiveram um papel decisivo na,concepção do governo representativo, Madison e Siéyès, tenham percebido a existência de um nítido contraste entre representação política e democracia. Em diversas ocasiões, Madison opõe o "governo republicano, caracterizado pela representação, à "democracia" das pequenas cidades-estados da Antigüidade. Em sua opinião, o governo representativo não é apenas uma forma aproximada de democracia, que teria se tornado tecnicamente necessária devido à impossibilidade concreta de reunir o povo em Estados de grandes extensões. Ao contrário, Madison considera o governo representativo como uma forma diferente e superior de exercício do poder. O efeito da representação, observa Madison, é:
(...) refinar e ampliar as opiniões do povo, fazendo-as passar pelo crivo de um corpo de cidadãos selecionados, cuja sabedoria pode melhor discernir o verdadeiro interesse de seu país e cujo patriotismo e amor à justiça fazem deles cidadãos menos suscetíveis a sacrificar esse interesse por considerações efêmeras e parciais. Em um sistema desse tipo; é provável que a vontade popular, expressa pelos representantes do povo, venha a ser mais compatível com o bem público do que se fosse manifesta pelo próprio povo, reunido para esse fim (Hamilton et al., 1961, p. 82).
Madison sublinha que um dos objetivos do sistema plenamente representativo, conforme proposto na Constituição dos Estados Unidos, é colocar no poder pessoas mais aptas a resistir às "paixões desordenadas" e aos "equívocos e ilusões efêmeros" que podem tomar conta do povo: somente deveria prevalecer o "julgamento sereno e ponderado da coletividade" (1787, p. 384).(8) Não resta dúvida de que, na sua opinião, não é papel do representante votar da maneira como o povo desejaria em todas as ocasiões. A superioridade do sistema representativo se encontra no fato de permitir um distanciamento entre as decisões do governo e a vontade popular.
Em vários textos e discursos, Siéyès sublinha a "enorme" diferença que separa uma democracia, na qual os próprios cidadãos legislam, de um sistema representativo, em que o exercício do poder é delegado a outros por meio de eleições (Siéyès, 1789c e 1789b). Para Siéyès, assim como para Madison, a representação não é uma versão imperfeita da democracia direta, decorrente de necessidades práticas; é uma forma de governo totalmente diferente e preferível. Siéyès considera o governo representativo como um sistema superior, não tanto por redundar em um processo decisório mais racional e menos passional, quanto por constituir uma forma política mais adequada às sociedades mercantis modernas, onde as pessoas estão permanentemente ocupadas na produção e troca de riquezas. Nessas sociedades, observa Siéyès, os cidadãos não dispõem mais do tempo necessário para se ocupar constantemente dos negócios públicos. Sendo assim, eles precisam confiar o governo, por intermédio de eleições, a indivíduos que dediquem todo seu tempo a essa tarefa. Acima de tudo, Siéyès vê na representação uma aplicação da divisão do trabalho à esfera da política, princípio este que ele acredita ser um fator essencial para o progresso social. "O interesse comum, o aperfeiçoamento das condições da própria sociedade, reclamam que se faça do governo uma profissão especial" (Siéyès, 1789d). Ele observa ainda que não é função dos representantes agir como meros transmissores da vontade dos eleitores. "É portanto incontestável", diz ele, "que os deputados não estão na Assembléia Nacional para afirmar vontades já formuladas por seus eleitores, mas para deliberar e votar livremente, de acordo com o juízo que façam no momento e esclarecidos por todas as luzes que a Assembléia possa lhes proporcionar." (Siéyès, 1789c). 
3) A opinião pública sobre assuntos políticos pode se manifestar independentemente do controle do governo
Desde o final do século XVIII, prevalece a idéia de que um governo representativo supõe que os governados possam formular e expressar livremente suas opiniões políticas. A ligação entre governo representativo e liberdade de opinião foi definida rapidamente nos Estados Unidos, de maneira mais progressiva na Inglaterra, e seguiu um roteiro mais lento e mais complexo na França.
A liberdade de opinião política requer dois elementos. Para que os governados possam formar opinião sobre assuntos políticos, é necessário que tenham acesso à informação política, o que supõe tornar públicas as decisões governamentais. Quando os políticos tomam suas decisões em segredo, os governados dispõem de meios muito frágeis para elaborar opiniões em matéria política. O princípio da divulgação dos debates parlamentares foi reconhecido na Inglaterra entre 1760/90 - antes disso, o caráter secreto dos debates era considerado uma prerrogativa do Parlamento, essencial para protegê-lo das interferências da Coroa (Pole, 1983). Nos Estados Unidos, os debates, tanto no Congresso Continental quanto na Convenção de Filadélfia, foram mantidos em segredo. O primeiro senado eleito sob a nova Constituição decidiu, inicialmente, realizar debates secretos, mas essa prática foi definitivamente abandonada quatro anos depois (Pole, op. cit.). Na França, os Estados-Gerais de 1789 decidiram, desde sua instalação, que as deliberações seriam públicas e, de fato, todos os debates das assembléias revolucionárias foram abertos. O povo reunido nas galerias fazia intensa pressão sobre as discussões realizadas durante as sucessivas assembléias revolucionárias. A comparação entre os casos francês e americano sugere, porém, que, embora a divulgação de atos políticos seja necessária para informar os cidadãos, ela não é indispensável em todos os estágios do processo decisório: é bastante razoável pensar que o público americano dispunha de melhores condições para formar opinião acerca da Constituição dos Estados Unidos do que o público francês com relação a suas várias constituições revolucionárias. 
O segundo requisito da liberdade da opinião pública é a liberdade para expressar opiniões políticas. A relação entre a liberdade de opinião e o caráter representativo do governo não é, porém, tão óbvia assim. De qualquer modo, não seria de estranhar que os governos. representativos tornassem sagrada a liberdade de opinião, devido a sua adesão ao princípio liberal segundo o qual uma parte da vida dos indivíduos deve ser resguardada das decisões coletivas. Seguindo a distinção popularizada por Isaiah Berlin, poderia ser reivindicado que a liberdade de opinião fosse incluída entre as "liberdades negativas", que protegem os indivíduos das intromissões do governo. Nesse sentido, a liberdade de opinião não tem uma relação direta com o caráter representativo do governo. A representação diz respeito ao modo de participação dos cidadãos no governo e garante "liberdade positiva". Há, entretanto, um vínculo essencial entre a liberdade de opinião e o papel político do cidadão em um governo representativo, claramente exposto no conteúdo da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos e evidenciado nos debates travados em torno de sua adoção. A Primeira Emenda estabelece que "o Congresso não aprovará nenhuma lei que vise à oficialização de uma religião ou que proíba sua livre prática; que limite a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito de reunião pacífica e o direito de petição". 
A liberdade de religião e a liberdade de expressão política se encontram, assim, associadas. Cabe notar, além disso, que essa formulação vincula a expressão individual e a expressão coletiva de opiniões: a liberdade de religião, aplicável a indivíduos, é associada aos direitos de reunião e de petição, que são manifestações coletivas. É o caráter coletivo de uma manifestação que faz dela um ato político: as autoridades do governo podem, sem grandes riscos, ignorar opiniões individuais expressas de maneira dispersa, mas não podem fazer pouco caso de uma multidão nas ruas, por mais pacífica que ela seja, nem deixar de considerar petições que reúnem milhares de assinaturas. Agregando na mesma cláusula o direito de reunião e o direito de petição, a Primeira Emenda evidencia sua dimensão política: ela visa proteger não só a expressão coletiva de opiniões gerais, quanto a manifestação de idéias dirigidas ao governo, com o intuito de dele obter algum benefício. Por garantir, ao mesmo tempo, a liberdade de religião e o direito de expressar opiniões políticas coletivamente dirigidas aos governantes, a Primeira Emenda não estabelece apenas uma "liberdade negativa" para os indivíduos; ela também garante aos cidadãos um modo de agir frente ao governo. 
O debate que culminou na adoção da Primeira Emenda mostra ainda que suas implicações políticas eram perfeitamente claras para os constituintes. O simples fato de terem sido colocados em discussão os temas das instruções e dos mandatos imperativos demonstra que os redatores percebiam a existência de um elo entre a liberdade de expressão e a representação. A intervenção de Madison esclarece melhor o alcance político da Primeira Emenda. Madison pronunciou-se contra a inclusão do direito de instrução na Emenda. Os defensores da inclusão desse direito tinham alegado que, num governo republicano, o povo deve ter direito de fazer prevalecer a sua vontade. Madison respondeu, então, que esse princípio é verdadeiro "em certos casos", mas não em outros, e acrescentou: 
No sentido em que ele é verdadeiro, esse direito já está suficientemente afirmado no que estabelecemos até aqui; se não quisermos mais do que isso, que o povo tenha direito de expressar e comunicar seus sentimentos e desejos, isso já está garantido. O direito à liberdade de expressão está assegurado; a liberdade de imprensa está explicitamente colocada fora do alcance do governo; o povo pode, portanto, dirigir-se publicamente aos seus representantes, pode aconselhar a cada um separadamente, ou manifestar seus sentimentos ao conjunto da assembléia através de petição; por todos esses meios, ele pode dar conhecimento de sua vontade (Madison, 1789, vol. 1, p. 415).
Em sua dimensão política, a liberdade de opinião surge, assim, como contrapartida à ausência do direito de instrução. Não se exige que os representantes ajam de acordo com os desejos do povo, mas eles não os podem ignorar: a liberdade de opinião garante que, existindo esses desejos, eles serão levados ao conhecimento dos representantes. Como estes sabem que estão sujeitos ao teste da reeleição, têm um bom motivo para levar em consideração os desejos do povo. Dessa maneira, a vontade popular se torna um componente reconhecido do ambiente que cerca uma decisão. À parte as situações em que a população esteja ameaçando seriamente a ordem pública e coagindo o governo por um ato de força, a única vontade impositiva dos cidadãos é o voto. Mas os governados sempre têm a possibilidade de, no momento das eleições ou em outras ocasiões, manifestar uma opinião coletiva diferente da que é defendida por seus representantes. Costuma-se chamar de opinião pública essa voz coletiva do povo que, sem ter valor impositivo, sempre pode se manifestar independentemente do controle do governo.
A liberdade de opinião pública distingue o governo representativo do que tem sido chamado de representação absoluta, cuja formulação mais conhecida é encontrada em Hobbes. Segundo Hobbes, um grupo de indivíduos somente constitui uma unidade política após ter conferido autoridade a um indivíduo ou assembléia, a quem esses indivíduos prestam obediência, para expressar sua vontade (evidentemente, o representante pode ser uma assembléia). Antes da designação do representante, e independentemente de sua pessoa, o povo não tem unidade alguma; é uma multitudo dissoluta, uma multidão dispersa. O povo somente adquire força política por intermédio da pessoa do representante, que, a partir do momento em que chega ao poder, substitui completamente aqueles que representa. Os representados não têm outra voz senão a dele.(9) É precisamente essa substituição absoluta dos representados pelo representante que a liberdade de opinião pública impede. A massa do povo sempre pode se manifestar como uma entidade política dotada de uma certa unidade, independente do representante. Quando os indivíduos, agindo como grupo, dão instruções aos seus representantes, quando grupos exercem pressão sobre o governo, quando uma multidão se reúne nas ruas ou assina uma petição, o povo está se manifestando como uma entidade política capaz de falar e agir independentemente dos que estão no governo. A liberdade de opinião pública mantém a permanente possibilidade de que o povo fale por si mesmo. O governo representativo é um sistema em que os representantes jamais podem declarar com confiança e segurança absolutas: "Nós, o povo". 
Tanto o autogoverno do povo quanto a representação absoluta redundam na eliminação da distância entre governantes e governados: o primeiro porque transforma os governados em governantes; a segunda porque substitui os representados pelos representantes. O governo representativo, ao contrário, mantém essa distância.
4) As decisões políticas são tomadas após debate
Já se tornou usual a idéia de que o governo representativo foi originalmente concebido e justificado como um governo do debate. As análises de Carl Schmitt tiveram grande influência na disseminação dessa interpretação (Schmitt,1988 e 1928). Vale notar que os textos mencionados por Schmitt em apoio às suas concepções datam principalmente do século XIX, época em que o governo representativo não era mais uma novidade. Ele cita com muita freqüência escritos e discursos dos séculos XVII e XVIII, quando os princípios da representação foram elaborados e aplicados pela primeira vez. (10) As virtudes do debate parlamentar são evidentemente muito elogiadas por Montesquieu, Madison, Siéyès ou Burke, mas, como objeto de reflexão, o tema ocupa um espaço muito menor nas obras de Guizot, Bentham e John Stuart Mill. O debate sequer é mencionado no Segundo tratado do governo civil, de Locke. Nem os revolucionários americanos nem os constituintes franceses de 1789/91 definiram o governo representativo como um governo do debate. Além disso, a expressão "governo do debate" é muito pouco clara. Ela não indica com precisão o lugar ocupado pela discussão dentro do governo. Será que o debate está presente em todas as etapas do processo decisório ou apenas em algumas? A expressão significa que, no governo representativo, assim como "no diálogo permanente", tão caro aos românticos alemães, tudo é submetido a uma discussão interminável? 
Ainda que o debate não figure com tanto relevo no pensamento dos fundadores do governo representativo quanto no das análises do século XIX, é evidente que, desde suas origens, a idéia de representação esteve ligada à da discussão, nesse tipo de governo. Dispositivos legais adotados na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França comprovam esse fato: os representantes gozam da mais ampla liberdade de expressão dentro do recinto da assembléia. O elo entre representação e discussão só pode ser entendido pela introdução da noção intermediária de assembléia. O governo representativo sempre foi interpretado e justificado como um sistema político em que a assembléia desempenha um papel decisivo. Seria possível imaginar, como assinala corretamente Schmitt, que a representação fosse o apanágio de um único indivíduo, designado e autorizado pelo povo.(11) É inegável, porém, que o governo representativo não foi proposto, nem estabelecido, como um regime em que o poder seria confiado a um único indivíduo escolhido pelo povo; ao contrário, foi criado como um regime em que um órgão decisório coletivo deveria ocupar uma posição central. Schmitt e diversos outros analistas posteriores vêem muito mais do que a existência de um vínculo entre a idéia de representação e o papel da assembléia: consideram o papel predominante atribuído à assembléia como efeito de uma crença anterior e mais fundamental nas virtudes do governo da verdade (veritas non auctoritas facit legem).(12)Segundo essa linha de interpretação, a estrutura de crenças que justifica o governo representativo, definido como governo por meio de uma assembléia, seria a seguinte: a verdade deve ser a base da lei, o debate é o caminho mais adequado para determinar a verdade; portanto, o órgão central de tomada de decisões deve ser um local de debates, em outras palavras, uma assembléia. 
O fato é que os argumentos defendidos pelos primeiros partidários do governo representativo não seguiram esse padrão. Em Locke, Montesquieu (quando analisa o regime inglês), Burke, Madison ou Siéyès, o caráter coletivo de um órgão decisório representativo nunca é inferido a partir de um argumento sobre as vantagens da discussão. O fato de a representação exigir uma assembléia é considerado óbvio. A associação entre representação e assembléia não foi uma criação ex nihilo do pensamento político moderno, mas um legado da história. Os parlamentos modernos efetivamente se formaram ao longo de um processo gradual de mudança (na Inglaterra), de uma transformação violenta (na França), ou por imitação (nas colônias americanas) dos organismos representativos da sociedade feudal, as "assembléias dos estamentos". Os primeiros defensores das modernas assembléias representativas insistiam na idéia de que a forma de governo que propunham era muito diferente das instituições anteriores, mas essa própria insistência sugere a percepção de continuidades entre o velho e o novo. A natureza coletiva dos órgãos decisórios era um dos elementos dessa continuidade. O debate aparece nos textos e nos discursos dos fundadores da representação moderna como uma característica inevitável e de certo modo natural das assembléias. 
A noção de governo representativo, além disso, sempre esteve vinculada à aceitação da diversidade social. Em sua primeira formulação, a representação aparecia como uma técnica que permitia a instauração de um governo do povo em nações muito populosas e diversificadas. Madison e Siéyès repetiram várias vezes que a homogeneidade e o tamanho reduzido das comunidades políticas é que possibilitavam a democracia direta nas antigas repúblicas. Esses autores alertaram que essas condições não existiam mais no mundo moderno, que se caracteriza pela divisão do trabalho, pelo progresso do comércio e pela diversificação dos interesses. O mais ilus tre opositor da representação, Rousseau, ao contrário, condenava a "sociedade mercantil" e o progresso da ciência e das artes, exaltando as pequenas comunidades homogêneas. Durante o século XVIII, admitia-se, em geral, que as assembléias representativas deveriam refletir essa diversidade. Até mesmo analistas como Siéyès e Burke, que insistiam em realçar o papel da assembléia na produção da unidade, reconheciam que os delegados, eleitos por diferentes localidades e populações, davam às assembléias uma feição de reflexo da diversidade social. (13)A assembléia representativa sempre foi vista, portanto, como simultaneamente coletiva e diversificada. 
A natureza coletiva e diversificada do organismo representativo, e não a existência de uma convicção prévia e independente nas virtudes do debate parlamentar, é que explica o papel atribuído à discussão. Em um organismo decisório de caráter coletivo, cujos numerosos integrantes são eleitos por populações diferenciadas, e que provavelmente têm opiniões divergentes, o problema é alcançar um acordo, uma convergência de vontades. Os fundadores do governo representativo colocaram a igualdade das vontades na base de suas concepções políticas: nenhuma superioridade intrínseca confere a determinados indivíduos o direito de impor sua vontade aos demais. Por conseguinte, se uma convergência de vontades deve ser atingida numa assembléia onde nem o mais forte, nem o mais competente, nem o mais rico, têm razões para impor sua vontade aos demais, todos os participantes devem procurar conquistar o consentimento dos outros através da persuasão. A obviedade dessa solução explica por que ela raramente é objeto de contestação explícita entre os fundadores do governo representativo, e por que, além disso, o debate é proposto como uma atividade natural nas assembléias. O princípio da igualdade das vontades, que torna as eleições o método mais legítimo de designação de representantes, também faz do debate a forma legítima de interação entre esses representantes. 
A noção de debate e sua função predominante entre os primeiros partidários da representação estão expressas com toda clareza em um dos textos básicos do governo representativo moderno, Vues sur les moyens d'exécution, de Siéyès. O trecho dedicado ao exame do tema do debate parlamentar esclarece alguns pontos cruciais e merece ser examinado mais detidamente. É preciso observar, primeiramente, que Siéyès introduz suas considerações a respeito do debate depois de ter afirmado a necessidade do governo representativo e para responder às objeções levantadas "contra as grandes assembléias e contra a liberdade de expressão". Sem mais justificativas, Siéyès admite que o sistema representativo requer uma assembléia e que a razão de ser desta é o debate. Respondendo às objeções, Siéyès afirma que: 
Em primeiro lugar, há uma desaprovação da maneira complicada e lenta com que os assuntos são tratados em grandes assembléias deliberativas. Isso se deve ao fato de que, na França, já nos acostumamos a decisões arbitrárias, tomadas em segredo, nos meandros dos escritórios ministeriais. Uma questão discutida em público por um grande número de pessoas que têm opiniões divergentes, todas com igual direito a usar a palavra de modo mais ou menos prolixo, e que se permitem expor suas idéias com um brilho e um entusiasmo estranhos ao modo de ser da sociedade, é algo que naturalmente assusta nossos bons cidadãos, da mesma maneira que um concerto de instrumentos barulhentos cansaria o ouvido frágil de um doente no hospital. Fica difícil imaginar que pudesse ocorrer uma opinião sensata durante um debate tão livre e agitado. É tentador que se queira, então, chamar alguém muito superior aos demais para fazer toda essa gente entrar em acordo em vez de passar o tempo todo brigando entre si (Siéyès, 1789a, p. 92, grifos meus). 
Siéyès considera inevitável que, de início, reine a discordância geral na assembléia; mas, como o governo representativo se fundamenta na igualdade, ele tende a rejeitar a tentadora solução recomendada pelos seus críticos: que se ponha um fim à discórdia apelando para a intervenção de uma vontade superior às demais. Em um trecho posterior do livro, Siéyès escreve: 
Em todas as deliberações, há um problema a ser resolvido: o de saber, em cada caso, o que prescreve o interesse geral. Quando começa o debate, não se pode saber que rumo ele tomará até que se tenha certeza da descoberta desse interesse. Não há dúvida de que o interesse geral nada representa se não for o interesse de alguém: esse interesse específico é que é comum ao maior número de eleitores. Daí decorre a necessidade da competição entre as opiniões.(14) O que aparenta ser uma mistura, uma confusão capaz de tudo obscurecer, é um passo preliminar indispensável para se alcançar a luz. É preciso deixar que todos esses interesses pressionem uns aos outros, concorram entre si, lutem para definir o problema, e é preciso incita-los, na medida da força de cada um, em direção à meta proposta. Nesse processo de teste, idéias úteis e perniciosas são separadas; as últimas são abandonadas, as primeiras prosseguem em busca de um equilíbrio até que, modificadas e purificadas por sua ação recíproca, por fim se fundem numa só opinião (Siéyès, 1789a, pp. 93-4).
No pensamento dos fundadores do governo representativo, o debate parlamentar realiza, portanto, a tarefa específica de produzir acordo e consentimento; não constitui, em si mesmo, um princípio de tomada de decisões.O que faz de uma proposta uma decisão pública não é a discussão, mas o consentimento. Entretanto, é preciso acrescentar que esse consentimento deve ser de uma maioria, e não uma concordância universal, menos ainda uma expressão da verdade.(15)A respeito disso, assim escreveu Locke:
Pois sendo o que leva qualquer comunidade a agir o consentimento dos indivíduos que a formam, e sendo necessário ao que é um só corpo, se mover em uma direção, é necessário que esse corpo se mova para o lado para o qual o arrasta a força mais forte, que é o consentimento da maioria; não sendo assim, é impossível que continue a agir ou continue a ser um corpo, uma comunidade (...).(16)
Vale notar que neste texto, central em seu pensamento, Locke não fundamenta o princípio majoritário em qualidades ou virtudes da maioria, como, por exemplo, sua capacidade de expressar o que é verdadeiro ou justo, mas no simples fato de que é preciso agir e tomar decisões. Por si mesmo, o debate parlamentar não preenche essa função. Aliás, por si mesmo, ele também não contém um princípio de limitação. A regra majoritária é que, de fato, fornece um princípio para a tomada de decisões, porque ela é compatível com as limitações temporais às quais está submetida toda ação, especialmente a ação política. A qualquer momento, é possível contar o número de votos e determinar qual proposta obteve aceitação mais ampla. Debates acadêmicos podem ser travados exclusivamente no âmbito do princípio da discussão, porque, ao contrário do que se passa na política, não estão submetidos a limites de tempo. Essa é uma situação que não se aplica aos debates políticos. Os fundadores do governo representativo certamente não confundiam um parlamento com uma sociedade de intelectuais. O princípio do governo representativo deve ser formulado da seguinte maneira: nenhuma medida tem a validade de uma decisão enquanto não obtiver o consentimento de uma maioria, ao final dos debates. 
É digno de nota que os quatro princípios que acabamos de expor - eleição de representantes pelos governados, independência parcial dos representantes, liberdade da opinião pública e decisões políticas tomadas após deliberação - tenham permanecido constantes ao longo de toda a história do governo representativo. A representação política, na realidade, mudou muito menos do que se pensa. É certo, porém, que esses quatro princípios tiveram conseqüências e implicações diferentes de acordo com as circunstâncias dentro das quais foram postos em prática. Essas diferenças deram origem a três formas de governo representativo que passamos a analisar a seguir. 
O governo representativo de tipo parlamentar
1) Eleição dos representantes pelos governados
As eleições foram concebidas como um meio de conduzir ao governo indivíduos que gozavam da confiança de seus concidadãos. Nos primórdios do governo representativo, essa confiança se baseava em circunstâncias especiais: os candidatos vitoriosos eram pessoas que inspiravam confiança nos eleitores, em virtude de uma rede de relações locais, de sua notoriedade social ou da deferência que suscitavam. 
A relação de confiança tem um caráter essencialmente pessoal no modelo parlamentar. O candidato inspira confiança por sua personalidade, não por suas relações com outros representantes ou com organizações políticas. O representante mantém uma relação direta com os eleitores: ele é eleito por pessoas com quem tem contato freqüente. As eleições parecem ser um reflexo e uma expressão da interação não-política. A confiança decorre do fato de que o representante pertence à mesma comunidade de seus eleitores, e essa comunidade se define em termos puramente geográficos ou em função "dos grandes interesses do reino" (propriedade fundiária, mercantil, manufatureira etc.). As relações de proximidade local ou de pertencimento a uma dessas áreas de interesse são conseqüências espontâneas dos laços sociais e da interação. Não são produzidas pela competição política. Ao contrário, elas constituem recursos prévios que os atores políticos mobilizam na disputa pelo poder. Ao mesmo tempo, os representantes alcançaram proeminência na comunidade em virtude de sua personalidade, riqueza ou ocupação. As eleições selecionam um tipo particular de elite: os notáveis. O governo parlamentar é o reinado dos notáveis. 
2) Independência parcial dos representantes
Os deputados são livres para votar de acordo com sua consciência e seu julgamento pessoal. Não faz parte de seu papel transmitir uma vontade política já formulada do lado de fora do Parlamento. Os representantes não são porta-vozes dos eleitores, mas seus homens de confiança, seus trustees. Esta é a definição de representante elaborada por Burke no célebre "Discurso aos Eleitores de Bristol" (Burke, 1774). A esse respeito, suas palavras apenas refletem a opinião dominante na época e que prevaleceu durante toda a primeira metade do século XIX. 0 período que vai da primeira Reform Bill (1832) até a segunda (1867) chegou a ser chamado de ".a idade de ouro do private M. P (Membro do Parlamento)", quer dizer, do deputado que vota unicamente em função de suas convicções pessoais e não de compromissos assumidos fora dó Parlamento (Beer, 1982). Entre o fim das guerras napoleônicas e a segunda Reform Bill, a Cãmara dos Comuns pode ser considerada um modelo arquetípico de parlamentarismo. A independência de cada deputado deve-se em parte ao fato de que sua eleição foi conseqüência de um fator não-político, o prestígio local. 
3) A liberdade da opinião pública
A primeira metade do século XIX assistiu a uma proliferação de associações políticas extraparlamentares, como o cartismo, e de movimentos de defesa dos direitos dos católicos, da reforma parlamentar e de repúdio à lei do trigo. Numerosas associações organizavam manifestações públicas, petições, campanhas de imprensa. (17) Um aspecto particular merece ser ressaltado: as linhas de clivagem dessas diversas questões cortavam as divisões entre os partidos. O que tenho chamado de "opinião pública" não podia encontrar expressão adequada através do voto. A eleição de representantes e a expressão da opinião pública (através de associações, petições, campanhas de imprensa etc.) diferiam não só por seu status constitucional - apenas a primeira tinha efeitos legais -,como também por seus objetivos. Algumas questões, como a liberdade de religião, a reforma do Parlamento e o livre comércio, não eram temas discutidos durante as campanhas eleitorais, nem eram decididos pelos resultados da votação. Foram levadas ao centro da arena política por organizações ad hoc e resolvidas por meio de pressões exercidas de fora do Parlamento. 
A diferença de objetivos que separa a eleição dos representantes e a expressão da opinião pública decorria não só do caráter restritivo do direito de voto, como da natureza dessa forma de governo representativo. Se as eleições escolhiam as pessoas tendo em vista a confiança pessoal que elas inspiravam, as opiniões dos cidadãos sobre assuntos e orientações políticas precisavam encontrar outro canal de expressão. O eleitorado nem sempre dispunha dessas opiniões; isso ocorria apenas em situações de crise. Mas a estrutura do governo de tipo parlamentar implica que, havendo essas opiniões, elas devem ser expressas fora dos momentos de eleição. 
Assim, no sistema parlamentar de representação, a liberdade de expressão da opinião pública possibilita a existência de uma não-correspondência, ou mesmo de um conflito, entre a opinião pública e as preferências políticas manifestas nas eleições. Recorrendo a uma imagem espacial, pode-se falar na possibilidade de um corte horizontal entre a vontade superior do povo, que elege o Parlamento, e sua vontade inferior, que se manifesta nas ruas e através da imprensa. A estrutura fundamental dessa configuração aparece de modo mais evidente quando a voz da multidão, do lado de fora do Parlamento, expressa preocupações que não repercutem do lado de dentro. Os analistas mais sensíveis têm observado que a possibilidade dessa divergência, por mais ameaçadora que seja à ordem pública, é essencial para a forma parlamentar do governo representativo. Analisando o funcionamento do parlamentarismo inglês, antes da constituição dos partidos de massa, Ostrogorski escreveu: 
Além dos períodos eleitorais, quando assume sua forma alais elevada, a opinião pública supostamente também representa uma permanente fonte de inspiração para os deputados e seu líderes, e exerce um permanente controle sobre eles. Manifestando-se independentemente de qualquer via constitucional, esse poder da opinião pública se impõe e leva a melhor (...). Mas para que esse poder, de uma natureza eminentemente sutil e instável, se faça sentir, é preciso que lhe seja dada total liberdade para assumir formas diversas e contrárias às regras e para que chegue até as portas do Parlamento (Ostrogorski, s/d, vol. 1, p. 573).
Mas quando o povo se encontra fisicamente presente nas portas do Parlamento, aumentam os ris-
cos de desordem e violência. Essa forma de governo representativo caracteriza-se pelo fato de que a liberdade de opinião é inseparável do risco da desordem pública.
4) Decisões políticas tomadas após debates
Como os representantes não estão submetidos à vontade de seus eleitores, o Parlamento pode ser um local de deliberação no sentido pleno da palavra, ou seja, um lugar onde os políticos definem suas posições através da discussão e onde o consentimento de uma maioria é alcançado através da troca de argumentos. Uma discussão só pode gerar um acordo entre participantes que têm, de início, opiniões divergentes, se estes puderem mudar de idéia no transcorrer das argumentações. Se, em determinadas circunstâncias, essa mudança for impossível, a discussão não se prestará à construção do consentimento da maioria. Exatamente para permitir a deliberação é que, no parlamentarismo clássico, os deputados não estão presos à vontade de seus eleitores. Na Inglaterra, durante a primeira metade do século XIX, predominava a crença de que os deputados deviam votar de acordo com as convicções que tivessem formado por intermédio do debate parlamentar, e não em função de decisões previamente tomadas. Ainda que esse modelo nem sempre tenha sido seguido, a maioria dos candidatos e dos deputados, na prática, defendia tal princípio. A liberdade do representante pode ser constatada pela contínua mobilidade de suas clivagens e reagrupamentos.(18)
A democracia de partido
1) Os representantes são eleitos pelos governados
O aumento do tamanho do eleitorado, gerado pela extensão do direito de voto, impediu-o de manter relações pessoais com seus representantes. Os cidadãos não votam mais em alguém que conhecem pessoalmente, mas em um candidato que carrega as cores de um partido. Os partidos políticos, juntamente com suas burocracias e sua rede de militantes, surgiram exatamente para mobilizar esse eleitorado mais numeroso. 
Na época de sua formação, acreditava-se que os partidos de massa conduziriam o "cidadão comum" ao poder. Aparentemente, a ascensão desses partidos prefigurava não só a falência do notável, como também o fim do elitismo que caracterizara o parlamentarismo. Nos países em que os partidos de massa se baseavam em divisões de classe, havia a crença de que, por meio do partido socialista ou social-democrata, a classe operária estaria representada no Parlamento por seus próprios integrantes, os trabalhadores comuns. Mas a análise de Michels sobre o partido social-democrata alemão logo desmentiu essas expectativas (Michels, 1962, especialmente a parte IV, "Social Analysis of Leadership"). 
Michels mostrou, e denunciou com amargura, a distância que separava a liderança da base operária em um partido tipicamente de massa e de classe. Demonstrou que, embora os líderes e deputados do partido tivessem origem social operária, na realidade eles levavam uma vida mais pequenoburguesa do que proletária. Michels afirmou que os líderes e deputados do partido da classe operária se tornavam diferentes, quando ascendiam ao poder, mas também enfatizou que eles já eram diferentes antes disso. Segundo Michels, o partido proporciona "aos membros mais inteligentes [da classe operária] uma oportunidade de ascensão na escala social", e eleva os proletários "mais capazes e mais bem-informados" (op. cit., pp. 263-4). Na aurora do capitalismo, esses trabalhadores "mais inteligentes e ambiciosos" poderiam ter se tornado pequenos empresários, mas agora se tornavam burocratas de partido (idem, ibidem, pp. 258-9). Por essa razão, o partido é dominado por elites "desproletarizadas" que perderam a marca distintiva da classe operária. Essas elites, no entanto, ascendem a posições de poder a partir de qualidades e talentos especiais, notadamente o ativismo e a capacidade de organização. 
A análise de Michels mostra que o caráter elitista do governo representativo não desaparece quando o sistema é dominado pelos partidos de massa. 0 que acontece é a emergência de um novo tipo de elite. As qualidades que especificam os representantes não são mais o prestígio social e a notoriedade local, mas o ativismo e a capacidade de organização. Os eleitores não escolhem seus representantes por essa razão, mas essas qualidades são selecionados pela estrutura interna do partido. A democracia de partido é o governo do ativista e líder partidário, ou do "chefe político". 
Observamos anteriormente que, nessa forma de governo representativo, o povo vota em um partido e não em uma pessoa. O fenômeno da estabilidade eleitoral é uma prova disso. Os eleitores tendem a escolher, dentre uma longa lista de candidatos apoiados por diferentes partidos, aqueles que pertencem à mesma organização. As pessoas não só se inclinam a votar constantemente no mesmo partido, como também as preferências partidárias são transferidas de uma geração para a outra: os filhos votam como os pais, e os habitantes de uma localidade votam no mesmo partido durante décadas. André Siegfried, um dos primeiros analistas a observar a estabilidade do comportamento eleitoral, falava da existência de "climas de opinião". A estabilidade dos comportamentos eleitorais, importante descoberta da ciência política na virada do século, foi confirmada por inúmeras pesquisas realizadas até a década de 70.(19) Contudo, a estabilidade eleitoral atinge uma das bases do parlamentarismo clássico, na medida em que a eleição não é mais a escolha de uma pessoa que os eleitores conhecem pessoalmente e em quem confiam. Como o modelo parlamentar foi identificado com o governo representativo, ao surgirem os partidos de massa, a desintegração desse vínculo pessoal foi interpretada como um indício de crise na representação política. 
Por outro lado, a estabilidade eleitoral deriva, em grande medida, da determinação das preferências políticas por fatores socioeconômicos. Na democracia de partido as clivagens eleitorais refletem divisões de classe. Embora já se observasse, na primeira metade deste século, em todos os países democráticos, a influência dos fatores socioeconômicos sobre o comportamento, eleitoral, ela é particularmente evidente nos países em que um dos grandes partidos foi formado e explicitamente concebido para ser a expressão política da classe operária. Os partidos socialistas ou social-democratas são geralmente considerados como os arquétipos do partido de massa contemporâneo, que se transformou, desde o final do século XIX, no núcleo de organização das democracias representativas. Por essa razão, nos países onde os partidos social-democratas são fortes é que se pode encontrar a forma mais pura do tipo de representação gerada por lealdades partidárias estáveis. 
Na Alemanha, na Inglaterra, na Áustria e na Suécia, o voto constituiu, durante décadas, o meio de expressão de uma identidade de classe. Para a maioria dos eleitores socialistas ou social-democratas, o voto não era uma questão de escolha, mas de identidade social e destino. Os eleitores confiavam nos candidatos apresentados pelo "partido", porque os reconheciam como membros da comunidade a que pertenciam. A sociedade parecia estar dividida em torno de diferenças econômicas e culturais fundamentais, em um pequeno número de campos, geralmente dois: o campo conservador, unificado pela religião e por valores tradicionais, e o campo socialista, definido pela posição socioeconômica de seus integrantes. (20) 0 eleitor reconhecia seus interesses e crenças nas posições de um campo ou de outro; cada campo se tornava para ele uma comunidade, unificada de alto a baixo por fortes laços de identidade. 
É por isso que, na democracia de partido, a representação se torna, fundamentalmente, um reflexo da estrutura social. De início, predomina apenas um elemento constitutivo da representação, a diversidade social. Contudo, os setores sociais que se manifestam através das eleições estão em conflito entre si. Como no governo de tipo parlamentar, a eleição reflete uma realidade social anterior à política. Mas, enquanto as comunidades locais ou os "grandes interesses" que se afirmavam no parlamentarismo não estavam necessariamente em conflito, este passa a tomar uma importância crucial na democracia de partido. Embora os artífices da representação política considerassem a natureza pluralista das instâncias representativas como uma de suas principais virtudes, eles jamais imaginaram que esse mesmo pluralismo pudesse vir a refletir um conflito social básico e duradouro. Essa transformação da representação foi uma conseqüência da industrialização e do conflito de classes por ela engendrado. 
Nesse modelo de governo representativo, o sentimento de pertencimento e identidade social determina muito mais as atitudes eleitorais do que a adesão ao programa político de um partido. Naturalmente, os partidos de massa constituídos no final do século XIX formularam plataformas políticas detalhadas, que utilizaram em suas campanhas eleitorais. Quanto a isso, revelaram-se muito diferentes dos partidos existentes no modelo parlamentar. Mas os eleitores não sabiam muita coisa a respeito do conteúdo preciso dessas plataformas. Mais freqüentemente do que se pensava, a grande maioria dos eleitores desconhecia os planos específicos propostos pelos partidos. Mesmo quando os eleitores tinham conhecimento da existência de programas, eles só guardavam na memória algumas fórmulas muito vagas e as palavras de ordem mais marcantes repetidas durante as campanhas. As plataformas políticas serviam para dar aos ativistas um certo senso de direção, que mobilizava suas energias e unificava o conjunto do partido. Ainda que por razões distintas, os eleitores dos partidos de massa não conheciam muito mais a natureza exata das metas defendidas pelos candidatos do partido em que votavam do que ocorria com o eleitorado no modelo parlamentar, ao escolher uma pessoa de confiança. Os eleitores dos partidos de massa votavam num partido porque se identificavam com ele, independentemente dos planos de ação constantes da plataforma do partido. Nesse sentido, a democracia de partido, assim como o tipo parlamentar de governo representativo, baseia-se na confiança. A diferença está no objeto dessa confiança: não mais uma pessoa, mas uma organização, o partido. 
2) A independência parcial dos representantes
Na democracia de partido, os representantes não são mais indivíduos livres para votar segundo sua consciência e julgamento: eles estão presos à disciplina partidária e dependem do partido que os elegeu. "O deputado social-democrata", escreveu Kautsky, "não é um homem livre, por mais escabroso que isto possa aparecer; ele é um simples delegado do partido.."2 O membro da classe operária que tem assento no Parlamento é apenas um porta-voz do partido. Esse principio se traduz em práticas efetivas que podem ser observadas em todos os países social-democráticos: estrita disciplina de voto no Parlamento e controle dos deputados pela máquina do partido. Hans Kelsen, cujos escritos políticos formulam, de maneira exemplar, os princípios da democracia de partido, propôs diversas medidas destinadas a garantir ao partido um controle eficiente dos seus deputados: os representantes deveriam ser obrigados a renunciar ao mandato se abandonassem o partido e os partidos deveriam ter o direito de destituir o deputado. (22)
Nesse modelo de governo representativo, o Parlamento se transforma em um instrumento de avaliação e registro da força relativa dos interesses sociais em luta. Chama a atenção que, com exceção da Inglaterra, todos os países onde a social-democracia é forte tenham um sistema de representação proporcional, quer dizer, o sistema eleitoral visa refletir, da maneira mais exata possível, a situação das relações de força dentro do eleitorado. Kelsen (1981, p. 61) alegava que a representação proporcional era necessária "para que a verdadeira estrutura de interesses se refletisse na composição do Parlamento". Entretanto, numa sociedade em que o principal organismo político reflete, com distorções mínimas, a luta pelo poder de interesses contraditórios e solidamente unificados, sempre se corre o risco de um confronto violento. Como as pessoas se vinculam a um campo ou outro em virtude de seus interesses e crenças, se um desses campos vencer e tentar impor sua vontade, as que estão no campo contrário sofrerão uma derrota total, que afetará todos os setores de suas vidas, e isso poderá induzi-Ias a recorrer à violência. A estabilidade eleitoral aumenta esses riscos. A minoria não conserva muitas esperanças de reverter a situação num futuro próximo. A democracia de partido maximiza o risco de confronto aberto. Mas os altos custos do confronto motivam os atores a evitá-lo. De modo geral, quanto menos conscientes os atores estiverem das resistências que terão de enfrentar, mais propensos se mostrarão a assumir riscos. Na democracia de partido os vários campos não podem estar equivocados quanto à força dos adversários, pois a composição do Parlamento reflete essa força com muita precisão. 
Para evitar o risco do confronto violento, o campo majoritário tem apenas uma solução: estabelecer um acordo com a minoria. A democracia de partido só se torna uma forma viável de governo quando os interesses opostos aceitam o princípio da conciliação política, uma vez que nada vem atenuar seu conflito na esfera social. Kelsen, aliás, vê no conceito de conciliação a pedra angular da democracia, ainda que não tenha explicado claramente a razão pela qual os protagonistas teriam motivos para transigir (Kelsen, 1981, pp. 53-68). Ao longo da história, os partidos social-democratas só chegaram ao poder, e nele se mantiveram, quando aceitaram o princípio da conciliação. Essa aceitação foi marcada de maneira simbólica pela escolha de uma estratégia de coalizão quando dominaram o governo pela primeira vez. Ao formar uma coalizão, o partido se coloca deliberadamente numa situação de não poder realizar todos seus projetos. Ele escolhe aceitar uma vontade que não é a sua. (23)Por outro lado, a representação proporcional raras vezes produz uma maioria absoluta no Parlamento; constitui, portanto, um estímulo à adoção de uma estratégia de coalizão.
Mas, se a democracia de partido repousa no princípio da conciliação, os partidos não podem realizar a totalidade dos seus projetos, quando ascendem ao poder. É importante ressaltar que, para estabelecer uma solução de compromisso ou formar uma coalizão, a direção do partido precisa ter uma margem de manobra após as eleições. O partido não pode ficar atrelado exclusivamente ao seu programa político. Essa liberdade de ação é facilitada pelo fato de que, ao votar, os eleitores manifestam sua confiança em um partido. Evidentemente a organização partidária está, até certo ponto, vinculada às promessas que fez, pois assumiu compromissos públicos com determinadas linhas de ação. Além disso, os militantes se mobilizaram em torno de uma plataforma que ajudaram a construir. Dessa maneira, a liderança do partido deve agir de acordo com a orientação geral traçada na plataforma política. Apesar disso, se o partido quiser entrar em acordo com a oposição ou com seus aliados, os dirigentes devem se posicionar como os únicos juízes do grau em que o programa será cumprido. Ao contrário do que se costuma afirmar, a democracia de partido não suprime a relativa independência dos representantes, inerente ao modelo parlamentar. O que difere é a identidade do sujeito dessa independência parcial: em vez de ser o representante individual, passa a ser o grupo formado pelo partido e por seus líderes.(24) A independência dos representantes não é tão ampla quanto foi no parlamentarismo: eles não podem mais decidir segundo seu próprio julgamento, têm de exercer esse juízo dentro dos limites de uma orientação geral. 
Um bom exemplo dessa independência parcial se encontra em uma resolução adotada pelo Partido Trabalhista Inglês, em 1907, que dizia respeito às relações entre o congresso anual do partido, que definia seu programa político, e o grupo parlamentar. A moção estipulava que as instruções encaminhadas pelo congresso do partido aos parlamentares deveriam ser obrigatoriamente cumpridas, mas o momento e a maneira de colocá-las em prática ficariam a critério dos deputados, ouvida a direção do partido. Como observou um dos líderes, essa resolução significava atribuir à direção o poder de definir as prioridades na execução do programa (Beer, 1982). Como o partido não permaneceria no poder para sempre, essa autoridade para definir prioridades conferia à direção uma autonomia nada desprezível. 
3) A liberdade da opinião pública
Nesse tipo de governo representativo, os partidos organizam tanto a disputa eleitoral quanto os modos de expressão da opinião pública (manifestações de rua, petições, campanhas pelos jornais). Todas essas formas de expressão são estruturadas ao longo das clivagens partidárias. As várias associações e os órgãos de imprensa mantêm laços com um dos partidos. A existência de uma imprensa de opinião tem uma importância especial: os cidadãos mais bem-informados, os mais interessados em política e os formadores de opinião, obtêm informações por intermédio da leitura de uma imprensa politicamente orientada. Desse modo, os cidadãos são muito pouco expostos à recepção de pontos de vista contrários, o que contribui para reforçar a estabilidade das opiniões políticas. Uma vez que os partidos dominam tanto o cenário eleitoral quanto a articulação de opiniões políticas fora dos períodos de eleição, as clivagens da opinião pública coincidem com as clivagens eleitorais. Ostrogorski definiu os partidos de massa como "associações integradoras": quando uma pessoa ingressa num partido, "ela se dá a ele por inteiro" (Ostrogorski, op. cit., vol. 11, p. 621). Analisando a República de Weimar, Schmitt (1931, pp. 83-4) descreve as conseqüências dessa tendência para a integralidade, afirmando: 
(...) a extensão [da política] a todos os setores da vida humana (...) essa tendência "totalizadora" se realiza por intermédio de uma rede de organizações sociais para um certo segmento dos cidadãos. Certamente não estamos diante de um Estado total, mas temos instituições sociais ligadas a partidos, com tendência à totalidade, e que organizam seu rebanho desde a mais tenra idade, oferecendo, cada uma delas, uma programação cultural completa.
Como os meios de expressão disponíveis para cada um dos campos em que se divide a opinião pública são direta ou indiretamente controlados por organizações partidárias, os cidadãos comuns não podem falar por si mesmos. Eles não têm outro canal de expressão senão os partidos e suas organizações filiadas. Essa situação aparentemente representa uma violação do princípio de que, no governo representativo, a opinião pública pode se manifestar com independência diante do controle do governo. 
As análises de Schmitt ajudam a entender por que não é esse o caso. Não há dúvida de que cada um dos campos se expressa de maneira unívoca: as manifestações eleitorais ou não-eleitorais de sua vontade coincidem exatamente, mas há mais de um campo de opinião e nem todos participam do governo. Por outro lado, a instância que governa não é mais o Parlamento inteiro, como no sistema parlamentarista; é o partido majoritário, ou uma coligação de partidos. A democracia de partido é a era do governo de partido. Isso quer dizer que existe algo não controlável pelo partido no poder: a oposição e seus canais de expressão. Na democracia de partido, a liberdade da opinião pública significa liberdade de oposição. Sempre é possível manifestar livremente uma opinião diferente da defendida pelo partido no poder, mesmo . que, no interior de cada um dos campos, os cidadãos não possam exprimir opiniões independentes do controle dos líderes. Contrastando com o que se passa no governo representativo de tipo parlamentar, a liberdade da opinião pública sofre um deslocamento. Recorrendo novamente à metáfora espacial, é como se um corte vertical entre o partido majoritário e a oposição tomasse o lugar do corte horizontal entre os que estão do lado de dentro do Parlamento e os que estão do lado de fora. 
Talvez se possa alegar que a República de Weimar não constitui exatamente um modelo de governo representativo viável. Mas o regime foi derrotado porque os partidos que apoiavam a Constituição não conseguiram estabelecer entre si uma solução de compromisso. Quando a conciliação é possível, uma ordem política fundada em campos solidamente unificados se torna viável. A Áustria posterior à Segunda Guerra Mundial é um exemplo perfeito de um governo representativo desse tipo. 
4) Decisões políticas tomadas após debates
Na democracia de partido, as sessões plenárias do Parlamento não são mais um fórum de debates deliberativos. Uma rígida disciplina comanda o voto no interior de cada campo de forças. Além disso, uma vez determinada a posição do partido, os deputados não podem mudar de opinião em função dos debates. Por último, as posições de cada campo, no interior do Parlamento, são quase sempre as mesmas, qualquer que seja o assunto posto em votação. O partido da maioria sistematicamente apóia as iniciativas do governo, enquanto a minoria lhe faz oposição. Isso sugere que os deputados não avaliam as propostas em função do seu mérito, mas assentam suas decisões em considerações extrínsecas. O Parlamento não é mais um lugar onde se chega a um acordo de maioria sobre políticas específicas a partir de posições inicialmente divergentes. A posição da maioria já está fixada antes de começarem os debates. As sessões do Parlamento e as votações apenas conferem um selo de validade legal a decisões tomadas em outros lugares.
Essa ruptura com os padrões do parlamentarismo foi objeto de numerosas análises no início do século XX. De modo geral, ela foi interpretada como urna indicação de que a época do debate público havia chegado ao fim. Na realidade, o debate deslocava-se para outros fóruns. É verdade que, na democracia de partido, uma vez fixada a posição do partido os deputados não podem mudar de opinião. Também é verdade que as decisões partidárias são tomadas antes dos debates parlamentares. Contudo, nas discussões realizadas dentro dos partidos, antes dos debates no Parlamento, os participantes efetivamente podem deliberar. A direção do partido e os integrantes do grupo parlamentar discutem entre si sobre a posição coletiva a ser adotada. É claro que esse tipo de debate exclui as posições dos outros partidos, mas esse modelo de governo representativo incentiva a discussão entre os líderes dos diversos partidos. Já observamos antes que esse sistema de representação se fundamenta no princípio da transigência política, tanto entre maioria e minoria quanto entre os membros de uma coalizão. As eleições não determinam as políticas específicas que devem ser praticadas; elas determinam a força relativa dos vários partidos, cada um com sua plataforma própria. A relação de forças entre partidos não indica as questões em que se poderia tentar um acordo, nem define com precisão de que maneira se poderia chegar a um meio-termo. O conteúdo exato da solução de compromisso é, portanto, uma questão de negociação entre os partidos e seus líderes. Por outro lado, as organizações social-democratas institucionalizaram um processo de consultas e negociação entre grupos de interesse, como sindicatos e associações empresariais. Esse fenômeno, conhecido como "neocorporativismo", tem sido objeto de grande atenção por parte da ciência política recente.(25) As instituições neocorporativistas, cujo objetivo é facilitar a conciliação entre interesses sociais opostos, incentivam a discussão. Os termos do acordo não são fixados antes do cotejo das posições; são, antes, seu resultado. O princípio da conciliação, tanto na política quanto nas esferas sociais, supõe a negociação e a discussão. É comum subestimar à importância do debate na democracia de partido, porque o caráter essencial da solução conciliatória nessa forma de governo não foi adequadamente reconhecido. Pensava-se que os representantes dos diferentes campos estivessem rigorosamente comprometidos com os detalhes de suas plataformas políticas - caso em que, de fato, não seria possível nenhuma mudança de posição e nenhum debate. Mas, na realidade, quando a democracia de partido é uma forma estável de governo, ela não funciona por meio da rígida imposição de programas preestabelecidos. 
A democracia do público
1) Os representantes são eleitos pelos governados
Tem-se observado, nos últimos anos, uma nítida modificação nas interpretações dos resultados eleitorais. Antes dos anos 70, a maioria dos estudos concluía que as preferências políticas podiam ser explicadas pelas características sociais, econômicas e culturais dos eleitores. Várias pesquisas sobre o tema mostram que a situação mudou. Os resultados eleitorais tendem a variar significativamente de uma eleição para a outra, ainda que se mantenham inalteradas as condições socioeconômicas e culturais dos eleitores. (26)
A personalização da escolha eleitoral
A personalidade dos candidatos parece ser um dos fatores essenciais na explicação dessas variações: as pessoas votam de modo diferente, de uma eleição para a outra, dependendo da personalidade dos candidatos. Cada vez mais os eleitores tendem a votar em uma pessoa, e não em um partido. Esse fenômeno assinala um afastamento do que se considerava como comportamento normal dos eleitores em uma democracia representativa, sugerindo uma crise de representação política. Na realidade, a predominância das legendas partidárias na determinação do voto é característica apenas de um tipo específico de representação: a democracia de partido. Um outro aspecto que também aproxima a situação atual à do modelo parlamentar é o caráter pessoal da relação de representação. Tem sido observado ainda o aumento da importância dos fatores pessoais no relacionamento entre o representante e seu eleitorado (Cain et al., 1987). Esse aspecto aparece de modo nítido na relação que se estabelece entre o poder executivo e os eleitores no plano nacional. Há muito tempo os analistas vêm constatando uma tendência à personalização do poder nos países democráticos. Nos países em que o chefe do poder executivo é eleito diretamente por sufrágio universal, a escolha do presidente da República tende a ser a eleição mais importante. Nos regimes parlamentaristas, onde o chefe do poder executivo também é o líder da maioria parlamentar, as campanhas e as eleições legislativas se concentram em torno da pessoa desse líder. Os partidos continuam a exercer um papel essencial, mas tendem a se tornar instrumentos a serviço de um líder. Ao contrário do que acontece na representação parlamentarista, é o chefe do governo, e não o membro do Parlamento, que se considera como o representantepor excelência. Contudo, da mesma maneira que acontece no parlamentarismo, a relação de representação tem um caráter essencialmente pessoal. 
Essa nova situação tem duas causas. Em primeiro lugar, os canais de comunicação política afetam a natureza da relação de representação: os candidatos se comunicam diretamente com seus eleitores através do rádio e da televisão, dispensando a mediação de uma rede de relações partidárias. A era dos ativistas, burocratas de partido ou "chefes políticos" já acabou. Por outro lado, a televisão realça e confere uma intensidade especial à personalidade dos candidatos. De certa maneira, ela faz recordar a natureza face a face da relação de representação que caracterizou a primeira forma de governo representativo. Os meios de comunicação de massa, no entanto, privilegiam determinadas qualidades pessoais: os candidatos vitoriosos não são os de maior prestígio local, mas os "comunicadores", pessoas que dominam as técnicas da mídia. O que estamos assistindo hoje em dia não é a um abandono dos princípios do governo representativo, mas a uma mudança do tipo de elite selecionada: uma nova elite está tomando o lugar dos ativistas e líderes de partido. A democracia do público é o reinado do "comunicador". 
O segundo fator determinante da situação atual são as novas condições em que os eleitos exercem o poder. Reagindo a essas mudanças, os candidatos e os partidos dão ênfase à individualidade dos políticos em detrimento das plataformas políticas. Como o âmbito das atividades do governo aumentou consideravelmente nas últimas décadas, tornou-se mais difícil para os políticos fazer promessas muito detalhadas; os programas ficariam muito extensos e seriam praticamente ilegíveis. Um outro fator ainda mais importante é o aumento da complexidade das circunstâncias políticas com que os governos têm se defrontado desde a Segunda Guerra Mundial. A crescente interdependência econômica das nações impõe a cada governo a necessidade de enfrentar decisões tomadas por um número cada vez maior de atores. Isso significa, por sua vez, que também os problemas a ser enfrentados pelos políticos no poder são cada vez menos previsíveis. As circunstâncias dentro das quais se desenvolve a ação do governo demandam um poder discricionário, cuja estrutura formal pode ser comparada à antiga noção de prerrogativa. Locke definiu o conceito de prerrogativa como a autoridade para tomar decisões na ausência de legislação prévia. A necessidade desse poder é justificada no Segundo Tratado pela eventualidade de o governo ter de enfrentar situações imprevistas, ao passo que as leis são constituídas por regras fixas previamente sancionadas. (27)De modo análogo, é possível pensar que os governos contemporâneos necessitam de um poder discricionário relativamente aos programas políticos, já que é cada vez mais difícil prever os acontecimentos que terão de ser enfrentados. Se as circunstâncias atuais exigem uma determinada forma de poder arbitrário, é de bom senso que os candidatos realcem suas qualidades e aptidões pessoais para tomar decisões adequadas, em vez de ficarem com as mãos atadas por promessas muito detalhadas. Os eleitores também estão cientes de que o governo terá de enfrentar imprevistos. Na opinião dos eleitores, portanto, a confiança pessoal que o candidato inspira é um critério de escolha mais adequado do que o exame dos projetos para o futuro. Mais uma vez, a confiança, tão importante nas origens do governo representativo, assume uma importância decisiva. 
Por conseguinte, os eleitores contemporâneos devem conceder aos seus representantes uma certa margem de liberdade relativamente às plataformas eleitorais. A bem dizer, isso sempre aconteceu no governo representativo, desde que os mandatos imperativos foram proibidos. A situação atual apenas torna mais visível um aspecto permanente da representação política. Mas o poder discricionário não é o mesmo que um poder irresponsável. Os eleitores mantêm o poder fundamental, que sempre tiveram no governo representativo, de destituir os representantes quando seus mandatos terminam. Hoje é especialmente difícil avaliar os políticos levando em conta suas plataformas, mas é perfeitamente viável julgá-los mediante a análise de sua folha de serviços. Também nesse sentido o conceito de poder discricionário mostra semelhanças com o conceito de poder de prerrogativa para Locke. Segundo a definição de Locke, o poder de prerrogativa não era ilimitado, mas apenas uma capacidade de agir "conforme exijam o interesse e o bem público". Nas atuais circunstâncias, os eleitores é que determinam a posteriori, reelegendo ou destituindo o representante, se as iniciativas por ele tomadas promoveram ou não o bem público. 
Os termos gerais da escolha eleitoral
Além da personalidade dos candidatos, os estudos contemporâneos revelam que o comportamento dos eleitores varia de acordo com os termos da escolha eleitoral. Por exemplo, os cidadãos votam em diferentes partidos em eleições presidenciais, legislativas e municipais, sugerindo que as decisões de voto levam em conta a percepção do que está em jogo numa eleição específica, e não são decorrentes das características socioeconômicas e culturais dos eleitores. Assim também, as decisões do eleitorado parecem ser suscetíveis às questões levantadas durante as campanhas políticas. Os resultados da votação variam significativamente, até mesmo em períodos curtos de tempo, conforme a ênfase atribuída às questões no transcorrer das campanhas.(28) Os eleitores parecem responder (aos termos específicos que os políticos propõem em cada eleição), mais do que expressar (suas identidades sociais ou culturais). Desse ponto de vista, a situação atual representa um afastamento do processo de formação das preferências políticas na democracia de partido. Hoje em dia, predomina a dimensão reativa do voto. 
Toda eleição implica um fator de divisão e diferenciação entre os eleitores. De um lado, toda eleição visa necessariamente distinguir os que apóiam um candidato dos que são contrários a ele. Por outro lado, as pessoas se mobilizam e se unem mais efetivamente quando têm adversários e percebem existir diferenças entre elas e os demais. Os candidatos precisam, então, não só identificar a si próprios, como também definir quem são seus adversários. Eles não só se identificam, como assinalam uma diferença. Em todas as formas de governo representativo, os políticos necessitam de diferenças que lhes sirvam de base para mobilizar seus adeptos. As clivagens sociais, que fora dos períodos eleitorais dividem a massa dos cidadãos, constituem um recurso essencial. 
Nas sociedades em que existe uma divisão, ao mesmo tempo duradoura e especialmente notória, os políticos sabem, antes da eleição, que clivagens devem explorar, e isso lhes permite demarcar o divisor de águas que irão propor durante a campanha. Nessas circunstâncias, portanto, os termos da escolha oferecidos pelos políticos representam uma transposição para a esfera eleitoral de uma clivagem preexistente. É isso que acontece na democracia de partido. Mas em algumas sociedades ocidentais a situação atual é diferente. Nenhuma linha divisória socioeconômica ou cultural é mais evidente do que as outras. É óbvio que os cidadãos não constituem uma massa homogênea que possa ser dividida de qualquer maneira pelas escolhas que lhe são propostas, mas as linhas de demarcação social e cultural são muito numerosas, se entrecruzam, mudam com muita rapidez. Um eleitorado desse tipo é suscetível a várias possibilidades de corte. Os políticos devem decidir, entre esses possiveis cortes, quais serão os mais eficientes e mais favoráveis a seus propósitos. Uma linha ou outra de divisão sempre pode ser provocada. Portanto, os articuladores dos termos da escolha conservam uma relativa autonomia na seleção das clivagens que desejam explorar. Nessas condições, a iniciativa dos termos da escolha eleitoral cabe ao político e não ao eleitorado, e isso explica por que razão as decisões hoje em dia aparentam ser primordialmente reativas. 
Rigorosamente falando, em todas as formas de governo representativo o voto constitui, em parte, uma reação do eleitorado aos termos que lhe são oferecidos. Mas, quando esses termos espelham uma realidade social, independentemente da ação dos políticos, tem-se a impressão que o eleitorado é a fonte dos termos aos quais, na verdade, ele apenas responde com seu voto. O caráter reativo do .voto é obscurecido por sua dimensão expressiva. Quando, inversamente, os termos da escolha decorrem principalmente de ações relativamente independentes dos políticos, o voto ainda é uma expressão do eleitorado, mas sua dimensão reativa se torna mais importante e mais visível. Isso explica por que o eleitorado se apresenta, antes de tudo, como um público que reage aos termos propostos no palco da política. Por essa razão, denominamos essa forma de governo representativo de "democracia do público". 
Os políticos, no entanto, têm uma autonomia apenas parcial ou relativa na seleção dos assuntos que dividem o eleitorado; eles não podem inventar, com total liberdade, os princípios da clivagem que irão propor. Nem toda divisão é possível, porque o eleitorado já se encontra dividido por fatores sociais, econômicos e culturais anteriores às decisões dos candidatos. Ademais, os políticos não podem nem ao menos escolher entre as decisões como melhor lhes aprouver. Eles sabem que a utilidade das possíveis divisões não é a mesma em todos os casos: se um candidato fomenta uma linha de clivagem que não mobiliza eficazmente os eleitores, ou uma outra que funciona contra ele, acaba perdendo a eleição. Os políticos podem formular uma determinada opinião que, a seu ver, divide o eleitorado em vez de uma outra qualquer, mas é a eleição que, em último caso, irá sancionar ou não sua iniciativa. Os candidatos não sabem de antemão onde está o divisor de águas mais eficiente, mas têm todo interesse em fazer essa descoberta. Em comparação com a autonomia que os políticos usufruíam na democracia de partido, a iniciativa deles aumenta nesse novo sistema, mas, em compensação, eles precisam estar permanentemente empenhados em identificar as questões que melhor dividem o eleitorado para explorá-las politicamente. Mas, se ás clivagens mais eficazes são aquelas que correspondem às preocupações dos eleitores, o processo tende a criar uma convergência entre os termos da escolha eleitoral e as divisões do público. Na democracia de partido, ao contrário, pode haver uma correspondência imediata entre esses dois aspectos, porque os políticos sabem de antemão, e com razoável margem de segurança, quais são as clivagens fundamentais do eleitorado. Na democracia do público, a convergência sé estabelece com o tempo através de um processo de ensaio e erro: o candidato toma a iniciativa de propor uma linha divisória durante a campanha, ou, com menos riscos, a partir das pesquisas de opinião. O público, a seguir, responde à divisão proposta e, por fim, o político corrige ou mantém a proposta inicial, dependendo da reação do público. 
Observa-se, além disso, que a escolha final oferecida aos eleitores não é resultante de um plano consciente ou deliberado. Cada candidato propõe a questão ou o termo que lhe parece mais eficaz e vantajoso. Mas a escolha finalmente apresentada e a clivagem que ela provoca decorrem da combinação dos termos oferecidos pelo conjunto dos candidatos. A configuração final da escolha é produto da pluralidade de ações descoordenadas. 
Nas democracias, a política é freqüentemente analisada por meio de uma analogia com o funcionamento do mercado. A metáfora teatral do público e do palco parece, no entanto, mais apropriada do que a da oferta e demanda na descrição do processo eleitoral contemporâneo. A metáfora teatral expressa a diferença entre aqueles que tomam a iniciativa dos termos da escolha e aqueles que fazem as escolhas, e realça a independência parcial dos primeiros. A metáfora do mercado, ao contrário, contém muitas dificuldades que se tornam visíveis ao desdobrá-la em todas as suas implicações. Há razões, sem dúvida, para descrever os políticos como empresários que competem para ganhar votos e maximizar seus benefícios - as recompensas materiais e simbólicas do poder. Mas caracterizar os eleitores como consumidores é bem menos apropriado. Um consumidor que entra num mercado econômico sabe o que quer: suas preferências independem dos produtos que lhe são ofertados. A teoria econômica supõe que as preferências dos consumidores são exógenas. Na política, entretanto, esse suposto não é realista e contraria a experiência. Na maior parte das vezes, quando um cidadão entra no que se poderia chamar de mercado político, suas preferências não estão ainda formadas. Ao contrário, elas se firmam à medida que ele vai tomando conhecimento dos debates públicos. Na política a demanda não é exógena; de modo geral, as preferências não preexistem à ação dos políticos.(29)
Ainda não foi suficientemente valorizado o fato de que o próprio Schumpeter, considerado como o fundador das teorias econômicas da democracia, admitia que, em política, não existe propriamente uma demanda. Schumpeter insistia que na esfera dos "assuntos nacionais e internacionais", não se justificava a hipótese de que os indivíduos têm volições claramente definidas e independentes das propostas dos políticos. Essas volições existem, mas somente quando se relacionam com assuntos de importância imediata para as pessoas è das quais elas têm conhecimento direto, "as coisas que lhes dizem respeito diretamente, sua família, sua cidade ou seu bairro, sua classe, sua paróquia, seu sindicato ou qualquer outro grupo do qual participem ativamente" (Schumpeter, 1975, p. 258). Dentro desse "campo limitado", a experiência direta da realidade permite a formação de preferências bem definidas e independentes. Quando, ao contrário, "nos afastamos das preocupações privadas de ordem familiar ou profissional para penetrar no domínio dos assuntos nacionais e internacionais, que não se ligam direta e inequivocamente àquelas preocupações particulares", o senso de realidade enfraquece (Schumpeter, op. cit.). Assim escreve Schumpeter: 
Esse empobrecimento do senso de realidade explica não só um empobrecimento do senso de responsabilidade, como também uma falta de efetiva volição. As pessoas têm, naturalmente, suas fórmulas prontas, suas aspirações, suas fantasias e suas reclamações; elas têm sobretudo suas simpatias e antipatias. Mas habitualmente isso não se compara ao que chamamos de vontade - a contrapartida psíquica de uma ação responsável que visa objetivos precisos" (Idem, ibidem, p. 261; a ênfase é minha).
O que chama a atenção nesse trecho é o fato de Schumpeter negar não só a natureza racional ou responsável da vontade do indivíduo, além do limitado círculo de suas preocupações de ordem particular, quanto a própria existência da volição. Em trecho posterior, ele observa que os eleitores não têm uma vontade política independente da influência das políticos. "A vontade que observamos ao analisar os processos políticos", escreve Schumpeter, "é, em grande parte, fabricada, e não espontânea (Idem, ibidem, p. 263). 
Se não existe, em política, uma demanda exógena, a analogia entre a escolha eleitoral e o mercado cai por terra. O único elemento válido na metáfora do mercado é a idéia de que a iniciativa da proposta das alternativas de escolha pertence a atores distintos e relativamente independentes daqueles que, afinal de contas, fazem as escolhas. Sendo assim, a metáfora do palco e do público é mais adequada, embora ainda imperfeita, para descrever essa realidade. 
No democracia do público os representantes políticos são atores que tomam a iniciativa de propor um princípio de divisão no interior do eleitorado. Eles buscam identificar essas clivagens e trazê-las ao palco. Mas é o público que, afinal, dá o veredicto. 
2) A independência parcial dos representantes
Os estudos eleitorais reconhecem que a eleição dos representantes vem sendo atualmente muito influenciada por uma "imagem", quer seja a imagem da pessoa do candidato, quer seja a da organização ou partido a que ele pertence. A palavra "imagem" pode, no entanto, se prestar a confusão. No vocabulário jornalístico, ela é freqüentemente empregada, em oposição à de "substância", no sentido de percepções vagas e superficiais destituídas de conteúdo político. Na verdade, as pesquisas de opinião revelam que as imagens elaboradas pelos eleitores não deixam de ter um conteúdo político. Para citar apenas um exemplo, sabe-se que nas eleições francesas de 1981, que deram a vitória aos socialistas, o eleitorado não tinha idéias e preferências claras acerca da política econômica formulada pelos socialistas (nacionalizações, estímulo à demanda interna). Entretanto, ficou provado que a vitória socialista resultou em grande parte de uma percepção, embora vaga, que incluía um conteúdo: a idéia de que a crise era conseqüência das medidas postas em prática pelo governo anterior e que era possível retomar o crescimento da economia e do emprego (Cohen, 1986, pp. 78-80). Uma campanha eleitoral é um processo de construção de antagonismos: ela joga várias imagens umas contra as outras. Considerada isoladamente, cada imagem, na verdade, pode significar quase tudo. O erro está exatamente em examinar cada uma delas em separado. Os eleitores recebem uma variedade de imagens que competem entre si. Embora sejam vagas, as imagens não são totalmente indeterminadas ou ilimitadas, pois a campanha eleitoral cria um sistema de diferenças. Uma coisa pelo menos a imagem dos candidatos não pode designar: a imagem de seus adversários. Uma campanha eleitoral pode ser comparada a uma linguagem, como definiu o fundador da lingüística contemporânea, Ferdinand de Saussure: o significado de cada termo é o resultado da coexistência de vários termos que se distinguem uns dos outros. 
É bem verdade que essas imagens são representações políticas muito simplificadas e esquematizadas. Evidentemente, a importância dessas representações esquemáticas decorre do fato de que muitos eleitores não estão suficientemente capacitados para compreender os detalhes técnicos das medidas propostas e as razões que as justificam. Mas a utilização de representações simplificadas também é um meio de resolver o problema dos custos da informação política. Já se observou que um dos maiores problemas enfrentado pelo cidadão nas grandes democracias é a desproporção dos custos necessários para conseguir a informação necessária e a influência que ele espera exercer sobre o resultado das eleições. Esse problema não ocorre na democracia de partido, porque a decisão dos eleitores se define por um sentimento de identidade de classe. Igualmente poderia se dizer que a identificação partidária é uma solução para o problema dos custos da informação na democracia de partido. Seja como for, quando a identidade social e a identificação partidária perdem importância na determinação do voto, surge a necessidade de encontrar caminhos alternativos para obter informação política. 
Já que os representantes são escolhidos a partir dessas imagens esquemáticas, sobra-lhes um espaço de liberdade, após eleitos, para agir. A causa de sua eleição foi um compromisso relativamente vago que naturalmente se presta a diversas interpretações. Fica assegurada, portanto, a independência parcial dos representantes, que sempre caracterizou o governo representativo. 
3) A liberdade da opinião pública
Os canais de comunicação com a opinião pública são politicamente neutros, isto é, não têm uma base partidária. Razões econômicas e tecnológicas causaram o declínio da imprensa de opinião. Atualmente, os partidos políticos não costumam ser proprietários de jornais de grande circulação. Por outro lado, o rádio e a televisão não têm oficialmente uma orientação partidária. O resultado dessa neutralização da mídia em relação às clivagens partidárias é que as pessoas recebem as mesmas informações sobre um dado assunto, a despeito de suas preferências políticas. Isso não significa que os assuntos ou os fatos - diferentemente dos julgamentos - sejam percebidos de maneira "objetiva", sem distorções, mas simplesmente que eles são percebidos de maneira relativamente uniforme através do amplo espectro das preferências políticas. Ao contrário, quando grande parte da imprensa se encontra sob controle dos partidos (como acontece na democracia de partido), as pessoas escolhem sua fonte de informação de acordo com suas inclinações partidárias; os fatos ou os assuntos são percebidos pela ótica do partido em que votam. 
Uma comparação entre o escândalo de Watergate e o caso Dreyfus, duas situações nas quais a opinião pública teve um papel fundamental, pode exemplificar o argumento. Descobriu-se que, durante a crise de Watergate, os americanos tinham, de modo geral, a mesma compreensão dos fatos, independentemente de sua preferência partidária e do julgamento que faziam. No caso Dreyfus, ao contrário, parece que até mesmo a percepção dos fatos foi diferente entre os vários setores da opinião pública: cada segmento do público francês percebia os fatos através da ótica dos órgãos de imprensa que refletiam suas inclinações partidárias (Lang & Lang, 1983, pp. 289-291). 
Nesse mesmo sentido, descobriu-se que um dos aspectos mais evidentes das últimas eleições francesas foi a homogeneização da imagem dos partidos no interior do eleitorado. Ao que se sabe, durante as eleições parlamentares de 1986, os eleitores tinham aproximadamente a mesma percepção das posições dos vários partidos. E claro que havia divergências no modo de avaliar os partidos, e o voto expressou essas diferenças, mas os assuntos tratados eram percebidos pelo eleitorado de modo quase idêntico, a despeito do partido em que votaram (Grunberg et al., 1986, pp. 125-127). 
Pode-se sugerir, portanto, que a percepção dos temas e dos problemas públicos (diferentemente do julgamento dessas questões) tende hoje em dia a ser homogênea e independente das preferências políticas expressas nas eleições. Mas as pessoas podem assumir posições divergentes á respeito de um assunto específico. A opinião pública, então, se divide em relação ao tema em questão; mas a divisão resultante não reproduz as clivagens eleitorais, ou coincide com elas: o público pode estar dividido em certas linhas de opinião durante as eleições e em tendências diferentes quanto a questões específicas. Assim, volta à cena uma possibilidade que desaparecera na democracia de partido: as manifestações eleitorais e nãoeleitorais do povo podem não ser coincidentes. 



Essa não-coincidência decorre principalmente da neutralização dos canais de comunicação através dos quais a opinião púbica é formada, mas também tem origem no caráter nãopartidarista das novas instituições que exercem um papel crucial na expressão da opinião pública: os institutos de pesquisa. 
Cabe notar que as pesquisas realizadas por esses institutos funcionam de acordo com a mesma estrutura formal que caracteriza a democracia do público: o palco e o público. Os técnicos responsáveis pela elaboração dos questionários não sabem de antemão que perguntas poderão estimular respostas mais significativas e trazer à tona as clivagens mais importantes do público. Assim, eles tomam decisões de maneira relativamente autônoma. Desse ponto* de vista, as pesquisas de opinião certamente não são uma expressão espontânea da vontade popular - um efeito da ideologia da democracia direta que, apesar disso, ronda os pesquisadores. A rigor, as pesquisas são constructos. Mas interessa aos institutos de pesquisa oferecer aos clientes resultados de algum valor preditivo e que revelem clivagens significativas. Assim como os políticos, os pesquisadores trabalham por ensaio e erro. 
O aspecto mais importante dessas organizações de pesquisa é que, assim como os meios de comunicação de massa, elas são independentes de partidos políticos (o que não significa que não introduzam distorções). Elas podem revelar, sem inconvenientes, linhas divisórias inexploradas pelos candidatos. Desse modo, as pesquisas de opinião contribuem para desfazer a associação entre as expressões eleitorais e não-eleitorais da vontade popular. 
Em certo sentido, reencontramos na democracia do público uma configuração semelhante à do parlamentarismo, exceto pelo fato de que as pesquisas acabam por conferir um caráter bastante peculiar à manifestação não-eleitoral da vontade popular. De um lado, as pesquisas reduzem os custos da expressão política individual. Participar de uma manifestação pública implica um gasto de tempo e energia; assinar uma petição pode, às vezes, envolver riscos. Em contrapartida, responder anonimamente a um questionário impõe apenas um custo mínimo. Ao contrário do que se verifica no tipo parlamentar de governo representativo, em que os altos custos das manifestações de rua e das petições reservam para as pessoas mais intensamente motivadas a capacidade de expressão política não-eleitoral, as pesquisas de opinião dão voz aos cidadãos "apáticos" e não-engajados. Por outro lado, por serem pacíficas, as pesquisas facilitam a expressão de opiniões políticas, ao passo que as manifestações públicas sempre comportam um risco de violência, sobretudo quando as opiniões estão muito polarizadas. Por conseguinte, a presença do povo "nas portas do Parlamento" é mais freqüente do que se verifica no modelo parlamentar: o povo não se faz presente apenas em ocasiões excepcionais.
4) As decisões políticas são tomadas após debates
Com a notável exceção do Congresso dos Estados Unidos, o Parlamento não é o fórum do debate público. Cada partido se reúne em torno de seu líder e vota disciplinadamente com. ele.(30) Assim, na democracia do público o Parlamento tem tão pouca importância como fórum de discussão quanto na democracia de partido, embora por razões diferentes. Mas as discussões dentro dos partidos e as consultas entre o governo e os grupos de interesse ou associações são de fato relevantes. 
A grande novidade introduzida pelo terceiro tipo de representação se encontra em outro aspecto. Durante as últimas décadas, os estudos eleitorais têm acentuado a importância da instabilidade eleitoral. Vem aumentando o número dos eleitores flutuantes que não depositam seu voto a partir de uma identificação partidária estável. Um segmento crescente do eleitorado tende a votar de acordo com os problemas e as questões postas em jogo em cada eleição. Na verdade, sempre houve um eleitorado instável, mas, no passado, ele secompunha de cidadãos pouco informados, pouco interessados em política e com um nível baixo de escolaridade. A novidade introduzida pelo eleitorado flutuante de hoje é que ele é bem-informado, interessado em política e razoavelmente instruído. Boa parte desse fenômeno se deve à neutralização da mídia informativa e de opinião: os eleitores interessados em política, e que buscam se informar, são expostos a opiniões conflitantes, enquanto na democracia de partido as opiniões do mais ativo e interessado dos cidadãos eram reforçadas pelas fontes de informação a que ele recorria. A existência de um eleitorado bem-informado e interessado, que pode ser empurrado de um lado para o outro, estimula os políticos a expor suas idéias diretamente ao público. Pode-se conquistar o apoio de uma maioria a uma determinada orientação política falando diretamente ao eleitorado. O debate de temas específicos não fica mais restrito aos muros do Parlamento (como no parlamentarismo), nem às comissões consultivas entre partidos (como na democracia de partido); o debate se processa no meio do próprio povo. Em conseqüência, o formato de governo representativo que hoje está nascendo se caracteriza pela presença de um novo protagonista, o eleitor flutuante, e pela existência de um novo fórum, os meios de comunicação de massa.
Boa parte da insistência na idéia de que existe uma crise de representação se deve à percepção de que o governo representativo vem se afastando da fórmula do governo do povo pelo povo. A situação corrente, no entanto, toma outros contornos quando se compreende que a representação nunca foi uma forma indireta ou mediada de autogoverno do povo. O governo representativo não foi concebido como um tipo particular de democracia, mas como um sistema político original baseado em princípios distintos daqueles que organizam a democracia. Além disso, no momento em que os partidos de massa. e as plataformas políticas passaram a desempenhar um papel essencial na representação, se consolidou a crença de que o governo representativo caminhava em direção à democracia. Um exame mais minucioso da democracia de partido revela, porém, que os princípios elaborados no final do século XVIII mantiveram sua força após a emergência dos partidos de massa; apenas foram postos em prática de uma nova maneira em virtude da mudança das circunstâncias externas. Quando se reconhece a existência de uma diferença fundamental entre governo representativo e autogoverno do povo, o fenômeno atual deixa de ser visto como sinalizador de uma crise de representação e passa a ser interpretado como um deslocamento e um rearranjo da mesma combinação de elementos que sempre esteve presente desde o final do século XVIII. 
NOTAS
* As idéias expostas neste ensaio fazem parte de meu próximo livro The Principles of Representative Government, no prelo. Desejo agradecer a Paul Bullen e Sunil Khilnani pela assistência na preparação da versão em inglês do original escrito em francês. 
1. Às vezes se diz que, se os ingleses e americanos sempre foram mais favoráveis à idéia de partidos políticos, a hostilidade para com as "facções" era uma característica da cultura política francesa no final do século XV111. Esse modo de pensar não é correto. Na verdade, praticamente todos os pensadores políticos de origem anglo-americana desse mesmo período se opunham ao sistema de partidos (cf. Hofstadter, 1969, principalmente capítulo 1). A exaltação dos partidos que se encontra em Burke é uma exceção; ainda assim, Burke não tinha em mente partidos análogos aos que vieram a dominar o cenário político a partir da segunda metade do século XIX. 
2. Tanto o Caucus de Birmingham quanto a National Liberal Federation, considerados como as primeiras organizações políticas de massa, foram fundados em 1870. 
3. Para citar apenas dois exemplos entre os mais significativos e influentes, ver Schmitt, 1988, e Leibholz, 1966. 
4. No original deste artigo, escrito em francês, o autor fala em "democratie du public", mas na versão para o inglês foi usada a expressão "tribunal of the public" para denominar essa terceira forma de representação. Embora esta tradução tenha-se baseado na versão em inglês, preferimos seguir, neste caso, a forma usada em francês, dada a peculiaridade do termo "tribunal" em português e também para manter a coerência do critério de construção dos tipos-ideais. (N. T.) 
5. A análise das causas e conseqüências da preferência pela eleição, em lugar do sorteio, foge ao escopo deste ensaio, mas é tratada em meu prüximo livro The Principles of Representative Government.
6. Literalmente, "chamar de volta", "ordenar o regresso" de algum lugar, no mesmo sentido em que, por exemplo, um governo "chama de volta" ou "ordena o regresso" de seu pessoal diplomático em virtude de uma crise política internacional. (N. T.) 
7. Debate na Câmara dos Representantes (15 de agosto de 1789), in Kurland & Lerner, 1987, vol. 1, pp. 413-8. 
8. O sistema proposto é integralmente representativo por duas razões de grande importância, na argumentação de Madison. Por um lado, ele destaca que todas as instâncias (as duas casas do Congresso, o Presidente, os juízes) são designadas pelo povo, direta ou indiretamente. Para que um governo seja "republicano" (isto é, representativo), diz ele, "basta que as pessoas que o administram sejam designadas direta ou indiretamente pelo povo" (1787; p. 241, grifo de Madison). Portanto, a representação depende exclusivamente da eleição. Por outro lado, a Constituição é integralmente representativa, porque o povo reunido não desempenha papel algum. A representação, acrescenta Madison, não era inteiramente desconhecida nas repúblicas da Antigüidade: alguns magistrados eram eleitos e, além disso, a assembléia do povo constituía um órgão de governo. A verdadeira novidade da república americana não está na representação, mas na "total exclusão do povo, como corpo coletivo, do sistema de governo" (op. cit., p. 387, grifos de Madison). 
9. O caráter absoluto da representação em Hobbes é analisado em Pitkin, 1967, pp. 15-27.
l0. Schmitt refere-se basicamente aos textos de Guizot reunidos em Histoire des origines du gouvérnement représentatif(1851); ver Schmitt, 1988, pp. 34-5. Sobre o papel do debate e a "soberania da razão" em Guizot, ver Rosanvallon, pp. 55-63 e 87-94. Schmitt também faz referências a Burke, Bentham e James Bryce. 
11. "Se por razões práticas e técnicas os representantes do povo podem decidirem lugar do povo, não há dúvida então que uma só pessoa de confiança poderia muito bem decidir em nome desse mesmo povo e a argumentação, sem deixar de ser democrática, poderia justificar um cesarismo antiparlamentar." (Schmitt, 1988, p. 41). 
12. Schmitt, 1988, pp. 35-43. Essa idéia é longamente analisada por Habermas, 1989. Schmitt estabeleceu um paralelo entre o valor atribuído ao debate pelos partidários do parlamentarismo e as virtudes do mercado exaltadas pelos liberais: "Dá exatamente no mesmo que a verdade possa ser alcançada por um embate irrestrito de opiniões e que a concorrência produza a harmonia." (p. 35). A idéia de que a verdade nasce da discussão é bastante usual; a tradição da filosofia ocidental, desde Platão, tem fornecido numerosas versões dessa concepção. Não há razão alguma para considera-la uma crença específica do pensamento liberal em seu sentido estreito. 
13. O texto mais importante de Burke sobre o tema do debate é seu famoso "Discurso aos eleitores de Bristol" (1774, p. 115): "Se o govcrno fosse uma questão de preferência por um dos lados, o seu, sem sombra de dúvida, seria o melhor. Mas o governo é uma questão de razão e julgamento, não de preferência; que tipo de razão é essa em que a decisão precede a discussão, em que um grupo de pessoas discute e outro decide, e onde os que tiram conclusões estão a centenas de milhas daqueles que ouvem os argumentos? (...) O Parlamento não é uma associação de embaixadores que têm opiniões divergentes e hostis, cujos interesses cada um deve preservar como agente e defensor contra os interesses de outros agentes e defensores; o Parlamento é a assembléia deliberativa de uma nação, que tem um interesse, o de seu todo - nem os objetivos locais, nem os preconceitos locais, deveriam fornecer a orientação, mas o bem de todos, resultante da consideração do conjunto da nação." 
14. A importância dessas frases (a ênfase é minha) nunca poderá ser superestimada. Elas demonstram que Siéyès não pensa o debate parlamentar como uma atividade desinteressada, guiada apenas pela busca da verdade, e que, para ele, o interesse geral, ao contrário da vontade geral em Rousseau, não transcende os interesses particulares e não tem uma natureza diferentes destes últimos.
15. A afirmação de que, ao final dos debates, as opiniões "finalmente chegam a uma única opinião", poderia induzir a pensar que Siéyès faz da unanimidade o princípio do processo decisório. Isso não é verdade, como revela outro trecho da mesma obra: "(...) mas, no futuro, exigir que a vontade comum sempre seja o somatório exato de todas as vontades equivaleria a renunciar à possibilidade de constituir uma vontade comum, significaria dissolver a união social. É, portanto, absolutamente necessário optar pela admissão de todos os aspectos da vontade comum em uma pluralidade reconhecida (isto é, a maioria)" (1789a, p. 18). Mas, em suas considerações sobre o debate, a intenção de Siéyès é outra; ele não se dá ao trabalho de repetir um argumento já apresentado. 
16. Locke, 1988, cap. VIII, §96, pp. 331-2. Os argumentos de Locke e Siéyès são muito parecidos, mas o primeiro é mais incisivo; por isso o citamos aqui. 
17. A Anti Corn Law League financiou a criação da revista The Economist. Cf. Beer, 1982, pp. 43-8.
18. Esse traço do parlamentarismo clássico subsiste ainda hoje no Congresso americano. 
19. Para citar apenas algumas obras mais significativas e influentes nessa área, ver: Siegtried, 1913; Berelson et al., 1954; Campbell et al., 1964. 
20. Na Áustria, aliás, utilizava-se a expressão "mentalidade de campo" (Lagermentalitãt) para descrever a cultura política do país no entreguerras. 
21. Kautsky, 1900, p. 157. Kautsky foi um dos principais líderes do partido social-democrata alemão na virada do século. 
22. Kelsen (1981, pp. 42-3) afirma que apenas por intermédio dos partidos as pessoas podem exercer uma influência política: "A democracia é, necessária e inevitavelmente, uma democracia de partido" (pp. 20-1). Kelsen foi considerado próximo ao partido socialista austríaco. Ele teve um importante papel na redação da Constituição da primeira república de seu país, na qual propôs a criação de uma corte constitucional. Seu pensamento jurídico e político teve grande influência sobre os líderes socialdemocratas, tanto na Áustria quanto na Alemanha. Kautsky freqüentemente se referia a ele em seus trabalhos. 
23. Sobre a social-democracia e o princípio da conciliação ver Rustow, 1955, e também Bergounioux & Manin, 1989, pp. 37-55. 
24. Apesar de sua ênfase no conceito de conciliação, Kelsen não diz que os partidos políticos que apresentam diferentes plataformas precisam preservar uma liberdade de ação para que seja possível encontrar uma solução de compromisso entre a maioria e a oposição, ou entre os membros de uma coalizão. 
25. O conceito de "neocorporativismo" pode ser mal compreendido se não se percebe que ele se baseia no reconhecimento de um conflito fundamental entre os interesses, enquanto o corporativismo tradicional presumia uma complementaridade funcional - e, portanto, uma harmonia - entre as forças sociais. Não se trata de uma diferença abstrata ou ideológica: nos arranjos neocorporativistas, um dos principais instrumentos do conflito social, o direito de greve, permanece intocado, enquanto no corporativismo tradicional a greve é proibida. Ver Bergounioux & Manin, 1989, pp. 51-5. 
26. Um dos primeiros teóricos a comentar que as preferências políticas são em grande parte uma resposta à escolha eleitoral oferecida aos eleitores, independentemente das características socioeconômicas e culturais destes, foi V O. Key; ver especialmente Key, 1963a e 1963b. Na década de 70, essa idéia foi aproveitada e desenvolvida em vários outros estudos. Ver, por exemplo: Pomper, 1975; e Nie et al., 1976. Pesquisas recentes realizadas na França também chamam a atenção para o papel determinante dos termos da escolha oferecidos ao eleitorado. Ver, especialmente: Lancelot, 1985; e Gaxie, 1985. 
27. "Há muitas coisas que a lei não pode prever de modo algum, e estas devem ser necessariamente deixadas a critério daquele que controla o poder executivo, para ser por ele determinadas, conforme requeiram o interesse e o bem público." (Locke, 1988, cap. XIV, § 159). 
28. Ver, por exemplo, Nie et al., 1976, pp. 319, 349. "Um tema simples mas importante atravessa quase todo este livro: o público responde aos estímulos políticos que lhe são oferecidos. O comportamento político do eleitorado não é determinado unicamente por fatores sociais e psicológicos, mas também pelas questões do momento e pela maneira como os candidatos as apresentam." (p. 319; a ênfase é minha).
29. Manin, 1987, pp. 338-68 contém um aprofundamento desse ponto. 
30. Veja o tópico "Personalização da escolha eleitoral", na página 25.

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Tradução de Vera Pereira