terça-feira, 16 de julho de 2013

A arte de ignorar os pobres

 Como, ao longo dos tempos, os pensadores buscaram justificar a miséria e rejeitar qualquer política séria para sua erradicação

James Kenneth Galbraith
“O desequilíbrio entre ricos e pobres é a mais antiga e a mais fatal das doenças das repúblicas”
Gostaria de promover neste espaço algumas reflexões sobre uma das práticas humanas mais antigas: o processo pelo qual, ao longo dos anos, e mesmo ao longo dos séculos, nós temos criado mecanismos para nos livrar da consciência pesada sobre o tema dos pobres. Desde sempre, pobres e ricos vivem lado a lado, sempre de modo desconfortável, muitas vezes de modo até tenso e arriscado. Plutarco afirmava que “o desequilíbrio entre ricos e pobres é a mais antiga e a mais fatal das doenças das repúblicas”. Os problemas que resultam dessa convivência, e particularmente a questão da justificação da boa sorte de alguns face à má sorte de outros, são uma preocupação intelectual que atravessa o tempo. E continua sendo atual.

É necessário iniciar esta reflexão pela solução proposta na Bíblia: os pobres sofrem no mundo dos vivos, mas é certo que eles serão magnificamente recompensados no reino dos mortos. Esta solução admirável permite que os ricos gozem de sua riqueza ao mesmo tempo em que invejam os pobres pela boa fortuna que estes terão quando chegarem “ao lado de lá”.

Culpando as vítimas
Na teoria do darwinismo social, a eliminação dos pobres seria o meio usado pela natureza para melhorar a raça
Bem mais tarde, nos 20 ou 30 anos que sucederam a publicação, em 1776, da obra Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações – um prenúncio póstumo da Revolução Industrial na Inglaterra, já que o autor, Adam Smith, morreu em 1759 –, o problema da pobreza e sua solução começaram a tomar sua forma moderna. Um quase contemporâneo de Smith, Jeremy Bentham (1748-1832), inventou uma fórmula que teve influência extraordinária sobre o pensamento britânico e também, em certa medida, sobre o pensamento norte-americano durante cinqüenta anos: o utilitarismo.“Por princípio de utilidade”, escreveu Bentham em 1789, “se deve entender o princípio que aprova ou desaprova qualquer ação realizada em função de sua tendência a aumentar ou diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em jogo”. A virtude é, e deve ser, auto-centrada. O problema social da coexistência de um pequeno número de ricos e um grande número de pobres seria solucionado tão logo se conseguisse distribuir “o maior benefício possível para o maior número possível de pessoas”. A sociedade faria o seu melhor para o máximo de pessoas e seria necessário aceitar que o resultado seria muito indigesto para aqueles, e seriam muitos, para os quais a felicidade não estivesse nesse encontro.

Em 1830, uma nova fórmula, sempre fruto da atualidade de então, foi proposta para eliminar a pobreza da consciência pública. Esta fórmula é associada aos nomes do financista David Ricardo (1722-1823) e do pastor anglicano Thomas Robert Malthus (1766-1834): se os pobres são pobres, é culpa deles – isso se deve à sua fertilidade exagerada. A sua luxúria incontrolada os leva a proliferar até o limite dos recursos disponíveis. De acordo com o maltusianismo, a causa da pobreza estava na cama dos pobres e os ricos não são responsáveis pela sua criação e nem pela sua diminuição.

Na metade do século XIX, uma nova fórmula de negação chegou a ter grande sucesso, particularmente nos Estados Unidos: o “darwinismo social”, associado ao nome de Herbert Spencer (1820-1903). Para ele, tanto na vida econômica como no desenvolvimento biológico, a regra suprema era a sobrevivência dos mais aptos, expressão impropriamente tomada de empréstimo do cientista Charles Darwin (1822-1882). A eliminação dos pobres era o meio usado pela natureza para melhorar a raça. A qualidade da família humana é reforçada pela desaparição dos fracos e dos deserdados.

Os pobres contra a economia
No século XX, surge a idéia de que toda a ajuda pública aos pobres representa obstáculo ao funcionamento eficaz da economia
Um dos mais notáveis porta-vozes americanos do darwinismo social foi John D. Rockefeller, o primeiro membro da dinastia Rockefeller, que tinha um discurso célebre: “A variedade de rosa ‘American Beauty’ não pode ser produzida com o esplendor e o perfume que encantam aqueles que a contemplam sem que sejam sacrificados os primeiros botões que surgem. O mesmo vale para a vida econômica. Não é nada mais do que a aplicação de uma lei da natureza e de uma lei de Deus.”

Ao longo do século XX, o darwinismo social veio a ser considerado um pouco cruel demais – sua popularidade cai e, quando alguma referência é feita a ele, é para condená-lo. O que sucede o darwinismo social é uma negação mais amorfa da pobreza, associada aos presidentes Calvin Coolidge (1923-1929) e Herbert Hoover (1929-1933). Para eles, toda a ajuda pública aos pobres representava um obstáculo ao funcionamento eficaz da economia. Tal ajuda era, inclusive, incompatível com o projeto econômico que havia servido tão bem a maior parte da população. Esta idéia economicamente lamentável de ajudar os pobres continua presente. E ao longo das últimas décadas, a busca da melhor maneira de eliminar toda consciência pesada a respeito da existência de pobres vem se tornando uma preocupação filosófica, literária e retórica de primeira importância. E tem também sido um empreendimento não desprovido de interesse econômico.

Dentre quatro, ou talvez cinco métodos utilizados atualmente para manter a consciência tranqüila a respeito do tema, o primeiro é produto de um fato incontestável: a maior parte das iniciativas a ser viabilizada em favor dos pobres deveria partir, de uma maneira ou de outra, do governo. Cabe, então, concluir, que o governo é, por natureza, incompetente, salvo em matéria de concepção e delegação de mercados públicos de armamentos e de gestão do Pentágono. E uma vez que o governo é decididamente incompetente e ineficaz, seria inútil lhe pedir que venha em socorro dos pobres: afinal, ele não faria nada além de criar uma confusão ainda maior que resultaria no agravamento do quadro.

Condenação conveniente a ação pública
Uma tradição secular teima em dizer que toda forma de ajuda pública aos pobres é um desserviço a eles porque destrói sua moral
Nós vivemos uma época na qual as alegações de incompetência governamental vão de encontro a uma condenação geral dos burocratas, com exceção, nunca é demais dizer, daqueles que trabalham para a defesa nacional. A única forma de discriminação ainda autorizada – e, para ser mais preciso, ainda encorajada – nos Estados Unidos é a discriminação das pessoas que trabalham para o governo federal, em particular nas atividades de proteção social. Temos grandes burocratas nas empresas, aliás, temos notáveis burocratas nas empresas. Mas estas pessoas são boas. Apenas os burocratas do setor público e os funcionários são maus.

Na verdade, os Estados Unidos dispõem de uma função pública de qualidade excepcional, na qual trabalham agentes talentosos e devotados, quase todos honestos e pouco inclinados a permitir o superfaturamento no fornecimento de chave inglesa, lâmpadas elétricas, máquinas de café e assentos de privada de banheiro. Curiosamente, das vezes que esse tipo de turpitudes ocorreu, foi no Pentágono... Nós já quase eliminamos a pobreza dos idosos, já conseguimos democratizar amplamente o acesso à saúde e aos serviços sociais, já garantimos às minorias o exercício de seus direitos cívicos e já até operamos um aumento significativo da igualdade em matéria de educação. Eis o que deveria ser considerado como uma falência particularmente marcante para as pessoas incompetentes e ineficazes. É, portanto, necessário constatar que a atual condenação a todas as ações e administrações governamentais é, na verdade, um dos elementos de um propósito mais amplo: se recusar a assumir qualquer responsabilidade a respeito dos pobres.

O segundo método que se alinha a esta tradição secular consiste em explicar que toda forma de ajuda pública aos pobres é um desserviço a eles porque destrói sua moral; os afasta de um emprego bem remunerado, e desfaz os casais, uma vez que as esposas podem solicitar ajudas sociais para si próprias e seus filhos quando elas se encontram sem marido. Não existe absolutamente nenhuma prova de que essas desvantagens sejam superiores às que existiriam caso fossem suspensas todas as formas de auxílio público aos pobres. Entretanto, o argumento segundo o qual elas prejudicam gravemente os deserdados é constantemente reforçado e, o que é ainda mais grave, tem credibilidade. Este é, sem dúvida, o mais influente de nossos fantasmas.

Robin Hood às avessas
Uma forma de lavar as mãos a respeito dos pobres é afirmar que as formas de auxílio público têm efeito negativo sobre a sua disposição para trabalhar
O terceiro método, ligado ao precedente, serve para que lavemos as mãos a respeito do tema dos pobres: consiste em afirmar que as formas de auxílio público têm um efeito negativo sobre a sua disposição para trabalhar. A ajuda governamental aos pobres opera uma transferência de bens dos cidadãos ativos para os ociosos e outros improdutivos, de forma que desencoraja os esforços dos ativos, que trabalham, e encoraja a ociosidade dos improdutivos. A economia chamada “de oferta” é a manifestação moderna desta tese. De acordo com ela, nos Estados Unidos, os ricos não trabalham porque o retorno que poderiam ter é com isso é muito pouco. Dessa forma, tirando o dinheiro dos pobres e dando esse dinheiro aos ricos, estamos estimulando o esforço e, portanto, a economia. Quem pode acreditar que a grande massa de pobres prefere assistência pública a um bom emprego? Ou que os altos executivos de grandes empresas – figuras emblemáticas hoje em dia – passam seu tempo de braços cruzados porque não são suficientemente remunerados? Eis aqui uma acusação escandalosa contra o dirigente de uma empresa americana que, fato de notoriedade pública, trabalha duro.

O quarto método para se evitar consciência pesada sobre os pobres é evidenciar os presumidos efeitos negativos que um confisco de responsabilidade teria sobre a liberdade dos pobres. A liberdade é o direito de gastar o máximo de dinheiro à sua maneira e de ter o mínimo extorquido e gasto pelo governo. E nesse caso, novamente, com exceção do orçamento da defesa nacional. Para retomar a proposta definitiva do professor Milton Friedman1 , “as pessoas devem ter o direito de escolher”.

Esta é, sem dúvida, a mais transparente de todas as falácias sobre o tema porque não se estabelece nenhuma relação entre a liberdade e a renda dos pobres. (O professor Friedman constitui outra vez uma exceção porque, por meio de impostos sobre a renda negativa, estaria garantida uma renda universal mínima). Cada um há convir que não existe forma de opressão mais mordaz, não há mobilização de pensamento e de esforço mais grandiosa do que aquela feita por quem não tem um tostão no bolso. Ouve-se muito falar dos atentados à liberdade dos mais abastados quando seus rendimentos são abocanhados pelos impostos, mas não ouvimos falar da expansão extraordinária da liberdade dos pobres quando eles têm um pouco de dinheiro para gastar. Entretanto, as limitações impostas pelo fisco à liberdade dos ricos são pouco significativas se comparadas ao crescimento da liberdade concedida aos pobres quando alguém lhes dá algum dinheiro.

Negação psicológica
A compaixão, resultado de um esforço do poder público, é a menos confortável e a menos cômoda das regras de comportamento e de ação
Finalmente, quando todas as teorias propostas se esgotaram, recorremos à negação psicológica. Trata-se de uma tendência psíquica que é comum entre nós, ainda que se expresse de formas variadas. Essa tendência nos conduz a evitar pensar na morte. E conduz também muitas pessoas a evitar pensar na corrida armamentista e, portanto, a afastar do pensamento a realidade de uma extinção da humanidade muito provável. O mesmo mecanismo de negação psicológica é usado para se abster de pensar nos pobres, estejam eles na Etiópia, no Bronx ou em Los Angeles. “Pensem em qualquer coisa agradável” é o conselho que ouvimos com freqüência.

Estes são os métodos modernos para evitar se preocupar com a questão da pobreza. Todos, com exceção talvez do último, demonstram grande inventividade e estão em linha com as teorias de Bentham, Malthus e Spencer. A compaixão, resultado de um esforço do poder público, é a menos confortável e a menos cômoda das regras de comportamento e de ação da nossa época. Mas ela continua sendo a única compatível com uma vida verdadeiramente civilizada. Ela é também, no fim das contas, a regra mais autenticamente conservadora. E não há nenhum paradoxo nessa constatação. O descontentamento social e as conseqüências que ele pode trazer não virão daqueles que estão satisfeitos. Na medida em que possamos tornar o contentamento tão universal quanto for possível, nós preservamos e reforçamos a tranqüilidade social e política. E não é exatamente isso que os conservadores deveriam aspirar acima de tudo?

(Trad.: Silvia Pedrosa)

(Este texto foi publicado pela primeira vez na Harper’s Magazine, edição de novembro de 1985)

1 - Nota do redator: O economista Milton Friedman é, juntamente com Friedrich von Hayek, um dos pilares da Escola de Chicago. A partir dos anos 1960, os "Chicago Boys" difundiram as idéias neoliberais pelo mundo, dos Estados Unidos de Ronald Reagan ao Reino Unido de Margareth Tatcher, passando pelo Chile de Augusto Pinochet. O livro de referência do professor Friedman é Capitalism and Freedom (Capitalismo e Liberdade).

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