publicado em 6 de agosto de 2013 às 21:16
Planalto garantiu “preservação” dos paulistas contra invasão, pensava Paulo Prado
Da ficção historiográfica ao paulista como ‘raça superior’
por Carlos Orsi, no Jornal da Unicamp, sugerido por Ana Cláudia Romano Ribeiro, no Facebook
A Semana de Arte Moderna de 1922 foi, no plano ideológico, a iniciativa de uma “oligarquia racista, reacionária e ao mesmo tempo modernista”, para servir aos interesses de classe da elite cafeicultora e a um projeto de hegemonia paulista, que via o Brasil como uma colônia a ser explorada pela metrópole de Piratininga.
Mesmo autores como Mário de Andrade foram próximos a esse projeto, cuja justificativa é construída no livro Retrato do Brasil, de Paulo Prado, cafeicultor, historiador e grande mecenas da Semana de 22. Isso é o que afirma o professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp Carlos Berriel, autor deTietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado, livro sobre a trajetória e a obra de Prado.
Publicado originalmente em 2000, o livro, nascido de uma tese de doutorado defendida em 1994, foi relançado neste ano, em edição revista e ampliada, pela Editora Unicamp.
Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Berriel falou não apenas sobre a trajetória intelectual de Paulo Prado e a influência de seu pensamento, mas também sobre a necessidade de se rever o lugar do modernismo paulista no cânone da literatura brasileira.
A festa de lançamento do livro, em Campinas, acontece no próximo dia 15, no Empório do Nono, em Barão Geraldo, a partir de 18 horas.
Abaixo, os principais trechos da entrevista, na qual o autor defende também a ideia de que o modernismo paulista sofreu influências inclusive da visão colonialista desenvolvida por intelectuais portugueses no fim do século 19.
Jornal da Unicamp – O senso comum sobre a Semana de Arte Moderna de 22 diz que os artistas de vanguarda engabelaram a elite do café, fazendo os barões pagarem por um espetáculo que eles não entendiam e que, no fundo, os afrontava. Seu livro indica que não foi bem isso… No fim, quem estava usando quem? Os artistas usaram os cafeicultores, ou vice-versa?
Carlos Berriel – Acho que o enfoque correto não é esse. O modernismo paulista é a estética da elite do café, é praticamente a sua visão de mundo. Não se trata de dois partidos que, com consciência limitada, andaram juntos durante um tempo. Isso não é verdade. A tese que defendo, nesse livro, é muito mais ampla: o meu trabalho avalia o modernismo do ponto de vista da sua gênese enquanto consciência de classe social, enquanto projeto político. É um estudo de consciência de classe. A classe de origem do modernismo paulista é a do baronato cafeicultor.
JU – Mas tem a questão do Oswald de Andrade, que depois virou comunista…
Berriel – Oswald de Andrade se separa do núcleo duro do modernismo, do grupo do café, de 28 para 29. Aliás, ele não se separou, ele foi expulso desse grupo porque, como editor da Revista de Antropofagia, permitiu que fosse publicado um artigo tratando, de forma muito desrespeitosa, o Retrato do Brasil, o livro de Paulo Prado que tinha acabado de sair. E Oswald tem uma origem de classe um pouco diferente.
Embora o lado materno seja sim, da aristocracia do café, o pai era um empresário moderno, que foi quem instalou o sistema de bonde em São Paulo e quem urbanizou o que hoje são os Jardins. Mas mesmo sendo membro do Partido Comunista, Oswald manteve sua teoria da Antropofagia, que é modernista.
Mas nós não podemos falar do modernismo como uma coisa unívoca – cada caso é um caso, cada obra existe em si mesma e tem sua razão própria. No fundo, cada autor e dada obra possuem um percurso diferente. E também é importante considerar que existe o modernismo paulista, e existem as letras modernas, que não são a mesma coisa. O modernismo é moderno, mas nem todos os modernos são modernistas.
Há a tendência, de uma historiografia marcada pelo próprio modernismo, de trazer para as águas do modernismo autores e obras que não têm nada a ver com esse movimento, como por exemplo Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo e outros. Então, existem as letras modernas em Minas, no Rio de Janeiro, no Nordeste, etc., e existe o modernismo paulista, que são coisas diferentes. Essa distinção é essencial, e sua ausência é muito danosa para a compreensão da época.
JU – Em uma das notas de seu livro aparece José Lins do Rêgo, reclamando dos modernistas paulistas.
Berriel – Ele dizia: nós do Nordeste não temos nada a ver com isso. E ele é super hostil ao movimento. Graciliano Ramos não chega a escrever sobre isso, mas pelo depoimento de pessoas que foram muito próximas a ele sabemos que a sua opinião de que o modernismo paulista era a pior possível.
Acho que é fundamental tomar autor por autor e ler o que cada um escreveu, e não o que nós achamos que eles disseram. Meu livro busca manter a disciplina de ler exatamente o que o autor disse, exatamente o que ele está dizendo.
Procurei evitar – e espero ter conseguido – acrescentar qualquer coisa minha, a favor ou contra. Procurei manter uma disciplina de objetividade diante do que o texto efetivamente diz. Quis apenas colocar o discurso em pé: ele disse isso. Quais os pressupostos? São esses aqui, conforme está na obra. Foi uma coisa muito difícil, mas não se pode fugir dessa prática.
JU – Algo que chama muito a atenção na obra de Paulo Prado é a questão do racismo, ou racialismo, que em certos pontos me fez lembrar das polêmicas recentes em torno da obra de Monteiro Lobato. Essa questão de raça era uma coisa muito forte na cultura paulista daquela época?
Berriel – As teorias raciais eram uma coisa muito forte da época, e não apenas no Brasil. O final do Império, a libertação dos escravos, ainda era uma coisa recente…
No Brasil temos a tradição de que classe social é raça, que vem do problema da escravidão. E é algo de que não se livra do dia para a noite. E já que estamos falando da elite rural, eles eram ex-escravocratas, e o fato de alguns serem abolicionistas não implicava necessariamente que não fossem racistas. Isso é uma coisa muito presente na cultura brasileira, e aquele foi um período no qual o Brasil ia buscar as suas teorias, os seus arcabouços teóricos, no exterior. Foi comum, nessa época, ir buscar as teorias raciais e trazê-las para cá – teorias que depois deram no que deram.
Para sermos justos com esses autores, precisamos lembrar que nem Paulo Prado, nem Monteiro Lobato ou qualquer outra pessoa, sabia que daí viriam os campos de concentração, por exemplo. Eles não sabiam nem tinham como saber. Então, não podem ser responsabilizados por uma coisa que ainda viria a ocorrer. Porém, eles beberam da mesma fonte teórica do racismo “científico”, e isso precisa ser levado em consideração.
JU – Qual o propósito de se trazer essas ideias ao Brasil?
Berriel – Há um sentido muito prático: o que é que está em jogo no Brasil? Aqui se constituiu, desde a proclamação da República – principalmente na chamada República Velha –, a hegemonia de um setor econômico sobre o conjunto do país. Ou seja, a oligarquia do café, que monopolizava o Estado através da política do café-com-leite, transformou o Brasil em um sistema caudatário de São Paulo, através do chamado Convênio de Taubaté, de 1906, que instituiu no país um sistema semicolonial, em que São Paulo age como metrópole e o resto do Brasil submete-se como colônia.
O sistema funcionava da seguinte forma: São Paulo poderia produzir quanto café quisesse, pois o Estado brasileiro compraria, através de um empréstimo internacional a ser pago com as finanças de toda a nação.
Na prática significa que todos os Estados compravam o café paulista – e não o recebiam – cotado em libras esterlinas. Mais tarde ele poderia ser exportado ou não. Poderia ser queimado ou jogado no mar, tanto fazia.
Na lógica econômica, trata-se de um sistema colonial interno, com um sangramento da economia de todos os Estados brasileiros, que repassam seus recursos para a oligarquia do café – que em decorrência enriqueceu extraordinariamente, e se imaginou uma locomotiva puxando 20 vagões vazios.
Esse sistema durou um terço de século, e quando acabou por decreto de Vargas, em 1932, São Paulo promoveu uma guerra civil pelo retorno de seus privilégios.
O modernismo, a Semana de 22, é a manifestação, no plano artístico, da mentalidade do Convênio de Taubaté – e mesmo Oswald denunciou isso. A política do café e o movimento modernista veem São Paulo como uma entidade capaz de sintetizar o país como um todo, de dar ao Brasil uma lógica histórica que lhe falta e um projeto realista.
JU – Mas parece que, em vez de ser uma síntese, São Paulo se define em oposição ao país como um todo.
Berriel – É o que está na obra de Paulo Prado. Toda essa absurda ficção historiográfica, que não tem pé nem cabeça, que instala os bandeirantes como construtores do Brasil, por exemplo, faz parte de um discurso que preside o ano de 1922. Isso está na lógica fundante do Museu do Ipiranga, também de 1922.
Paulo Prado é o maior produtor e exportador de café do mundo, e ao mesmo tempo a consciência mais lúcida e ousada da oligarquia. E ele é o grande organizador da Semana de Arte Moderna, e sabemos disso pelo depoimento do Oswald, do Mário, de Menotti del Picchia, da Tarsila do Amaral: ele é o cara.
JU – E qual a teoria dele sobre São Paulo e o Brasil?
Berriel – É uma teoria de que existiriam no Brasil duas mestiçagens distintas. Ele elimina a ideia de raça pura, o que não existe mesmo, ele não cai nessa. Então, no Brasil existiriam duas mestiçagens, ligadas à história de Portugal. Aliás, quando se diz que o modernismo foi uma ruptura com a herança portuguesa, na verdade é o oposto: acho que nada, na cultura brasileira, foi mais ligado a Portugal do que o modernismo.
JU – Qual é essa influência portuguesa?
Berriel – Há uma teoria, que vem da chamada Geração de 70 – o grupo do historiador Oliveira Martins, de Eça de Queirós, de Ramalho Ortigão – de que Portugal contou com uma raça heroica que promoveu as navegações, os descobrimentos, e essa raça heroica vai até 1580, que é quando Portugal cai sob o domínio espanhol. Queda da qual não se recuperará jamais, e a partir dela a raça portuguesa entra em decomposição, em decadência.
Então é uma teoria também de base racial, segundo a qual há uma raça portuguesa que degenera, de modo que o português depois de 1580 é um decadente, degenerado e inútil. Paulo Prado absorve essa teoria, que vem de Antero de Quental, que vem de Oliveira Martins – este aliás é a grande referência dele, sob vários aspectos.
Ao mesmo tempo em que Paulo Prado descobre Oliveira Martins, com quem ele convive em Paris na casa do tio, Eduardo Prado, acontece o chamado Ultimatum inglês, em 1889. Na época, Angola e Moçambique formavam um território contínuo de possessão portuguesa. Quando é descoberto ouro no Transvaal, no meio do caminho entre Angola e Moçambique, a Inglaterra ordena que Portugal se retire, e é obedecida: Portugal entrega o território.
Aquilo foi uma crise tremenda em Portugal, e foi, por coincidência, o momento em que Paulo Prado chegava a Paris para morar com o tio na casa frequentada por Oliveira Martins, pelo Eça de Queirós e muitos outros. No mesmo mês, acontecem várias coisas: a queda do império no Brasil, o rei de Portugal morre, vem o Ultimatum, Paulo Prado está chegando a Paris e há a coroação do novo rei de Portugal, que assume um país desmoralizado.
O novo rei, íntimo da Geração de 70, chama Oliveira Martins para reorganizar as colônias, a política colonial. E é esse historiador e essa preocupação que captam o interesse de Paulo Prado: uma teoria sobre colônias. O modernismo paulista começa a nascer a partir de uma teoria do reordenamento das colônias de Portugal.
JU – E a ideia da raça heroica portuguesa, com as duas mestiçagens no Brasil?
Berriel – Paulo Prado observa que São Paulo é o único local que não foi fundado no litoral, mas no planalto, “protegido” do contato exterior pela Serra do Mar. E quem funda São Paulo são os portugueses de antes de 1580, a dita raça heroica. Daí por diante São Paulo fica inacessível aos portugueses da decadência pós 1580.
Ao resto do Brasil, sem a barreira da Serra do Mar, os portugueses apodrecidos chegaram também. E acabam sendo maioria. Então, no Brasil forma-se um amálgama racial com o elemento apodrecido do português pós-1580, com a depravação do escravo negro e a lascívia do índio. Isso então gera o brasileiro, que não serve para nada. É um horror. E é o que explica, na teoria dele, por que o Brasil é a calamidade que é.
São Paulo, ao contrário, vai ser o resultado de outra mescla racial, em que não comparece o negro. E o índio, em São Paulo, inexplicavelmente não é lascivo. O índio que se mistura ao português heroico, gerando o paulista, é alguém que tem o perfeito domínio da natureza e do território. Possibilitando, portanto, o surgimento do bandeirante, que é o português que mantém o espírito das navegações (agora terrestres ou fluviais), e que ao mesmo tempo tem o domínio do ambiente natural, trazido pelo índio.
Essa construção, bastante – digamos – poética e livre de Paulo Prado, serve como diagnóstico que é lido com respeito por muita gente, lido como verdade.
Paulo Prado chega a dizer que o paulista já é uma raça. Então, temos no Brasil uma raça superior e uma raça inferior. E o Estado brasileiro deveria seguir essa lógica. Esse paulista é o único capaz de produzir uma arte autêntica – a modernista –, enquanto o brasileiro rasteja no romantismo, no parnasianismo, etc.
JU – Essa ideia de excepcionalismo paulista é algo que se vê ainda hoje, não? É uma ideia que nasce com Paulo Prado, ou ele foi apenas um vetor?
Berriel – Essa ilusão, essa ideologia, vinha sendo constituída em simultaneidade com o crescimento da importância do café na economia brasileira. Paulo Prado transforma essas ideias num movimento artístico, com a Semana de 22. Quando o café se torna importante, o Brasil já é um sistema político organizado na Corte, no Rio de Janeiro. São Paulo tem uma luta contínua – política, econômica e cultural – para romper com a síntese cultural e política consubstanciada no Rio de Janeiro.
O modernismo é, digamos assim, um sistema cultural em formação que se dispõe contra o sistema cultural dominante até então. Consubstanciado no Rio de Janeiro, na Academia Brasileira de Letras, na Corte, na capital do Império e da República.
O modernismo, quando desautoriza esse sistema, joga no ridículo toda a literatura anterior. Na verdade o que temos é uma disputa de hegemonias. O modernismo luta pela transferência da hegemonia política, cultural e econômica do Rio para São Paulo. É um movimento indissociável da política, portanto, e a desautorização das formas estéticas e literárias dominantes é a outra face da desautorização do sistema político brasileiro, em que todas as províncias possuíam direitos equivalentes.
Dizer que a poesia de Olavo Bilac ou de Coelho Neto não tem qualidade é uma estupidez, como Mário reconhecerá mais tarde. Eliminar, ridicularizar o simbolismo, ou o parnasianismo, como eles fizeram, na verdade é um momento da disputa pela hegemonia política.
A ação iconoclasta dos modernistas buscava cortar os vínculos nacionais com a sua própria tradição, já acumulada. O Brasil não deveria mais se reconhecer pela tradição cultural já constituída, mas seria necessário refundar o país a partir da experiência exclusivamente paulista. Este é o sentido mais profundo da Semana.
JU – Retrato do Brasil faz um diagnóstico dos problemas brasileiros que parece muito atual: corrupção, incompetência, ineficiência… Paulo Prado acertou o problema, mas errou a causa?
Berriel – Parece que esse livro, de repente, ficou muito atual. Esse rol de queixas, muito justas aliás, você vai encontrar em todos os lugares e em todas as épocas, e não só no Brasil. A questão é: se o projeto político modernista tivesse sido vitorioso, os problemas seriam resolvidos? Esse projeto, segundo o que sugere o Retrato do Brasil, passaria pelo fim da igualdade jurídica entre os Estados, e mesmo entre os cidadãos. Um Estado baseado no privilégio racial é eficiente e competente? Seria a solução para os problemas elencados?
Aventou-se o controle da movimentação dos indivíduos, sendo cogitado inclusive o uso de passaportes internos. Os nordestinos não poderiam vir para São Paulo livremente, por exemplo. Isso, no fundo, é o apartheid como o que se implantou na África do Sul. E no fundo, isso não é o sonho inconfessado da direita brasileira? Mas o apartheid resolveu algum problema de corrupção no mundo? O Convênio de Taubaté não seria a mãe de todas as corrupções brasileiras?
JU – Essas questões parecem fazer parte de uma pauta conservadora…
Berriel – Toda vez que a direita paulista se sente um pouco acuada, bate sempre na mesma tecla: a revolução de 32. O que foi a revolução de 32? Havia o Convênio de Taubaté. O país faliu por causa do crack da bolsa de Nova York em 29. São Paulo continua a cobrar este Convênio, sendo que o Brasil produzia café que não tinha mais consumidor.
Mesmo com o sistema internacional falido, a oligarquia cafeicultora quer que o Estado brasileiro mantenha a compra do café, com ou sem comprador internacional. Getúlio anuncia que em 32 não vai mais manter o acordo e dissolve o Convênio de Taubaté.
E aí a oligarquia de São Paulo se levanta pelo respeito “à Constituição”. Que Constituição? Agora, tem todo o discurso ideológico: São Paulo se levanta contra a ditadura de Vargas. Mário de Andrade, Paulo Prado e Alcântara Machado fundam a Revista Nova, que incita à luta armada contra Vargas. Por quê?
Porque de repente “os paulistas”, isto é, os barões do café, se tomaram de amores pela Constituição? Não. Foi pelo Convênio de Taubaté. Estava esfacelado o projeto de São Paulo metrópole de um Brasil colônia. O país estava se desmantelando por causa de uma oligarquia racista, reacionária e – não há como negar — modernista.
JU – Mesmo levando em conta as particularidades de cada autor, pode-se dizer que, de modo geral, o modernismo paulista abraça essa visão de São Paulo grande, bandeirante, condutora da nação?
Berriel – Sim. Mário de Andrade mesmo escreve uma carta a Manuel Bandeira em 1932 onde diz: “eu não sou mais brasileiro, sou paulista”. Mas, em 1942, Mário fez uma grande autocrítica e denuncia os salões da aristocracia como corruptora do movimento. Muito corajoso e lúcido.
JU – Mas isso é curioso, porque a esquerda brasileira abraçou os modernistas. Ou não?
Berriel – Em grande parte, sim. Isso mostra que a esquerda precisa construir sua própria interpretação do Brasil, e não aceitar uma interpretação do país que vem do núcleo da reação. Esse é um dos problemas da esquerda brasileira: ela precisa interpretar o Brasil não só no plano econômico, ou através da história dos partidos políticos, mas precisa entrar na representação simbólica da identidade nacional.
A esquerda brasileira raramente considera relevante a vida literária e artística, e acaba, por decorrência, endossando concepções da direita que nasceram na literatura e nas artes. O importante não é tanto ler os comentadores – como eu mesmo –, mas ler os próprios autores.
Foi o que procurei fazer aqui: estudei o modernismo sem considerar os intérpretes do modernismo, mesmo tendo-os lido. Para que pudesse chegar ao texto. Porque senão eu seria atravancado por essa coisa que o modernismo virou no beabá das escolas, aquelas frases, como “a Semana de Arte Moderna ocorre no ano em que se fundou o Partido Comunista no Brasil”. É verdade.
E não tem nada a ver uma coisa com a outra. Eu poderia dizer, da mesma forma, que a Semana de Arte Moderna ocorreu no mesmo mês em que Mussolini tomou o poder na Itália. É verdade? É. Você tira o que quiser daí, inclusive significados vazios. E perde o país.
JU – E as consequências reais do modernismo paulista para a literatura brasileira: foi tudo isso mesmo que se vende? Ou o pessoal que estava começando a escrever no Nordeste teria feito a mesma coisa sem a Semana?
Berriel – Não teria feito a menor diferença. Para os escritores do Nordeste não faria a menor diferença ter ou não ter existido a Semana. Por outro lado, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade: mineiro, vem de outra tradição, ele foi sim influenciado pelo Mário de Andrade. Manuel Bandeira, não, Manuel Bandeira já estava pronto.
Na Semana de Arte Moderna ele já era um poeta consagrado, toda a herança dele vem do simbolismo, de outros autores. Mas há alguma influência, sim, principalmente do Mário de Andrade, que é um grande escritor, um dos maiores do Brasil.
Quando a gente vai direto aos autores, aos textos, não a interpretações prévias, mas deixa o autor falar, podemos chegar a coisas surpreendentes.
Acho que esse é um programa extremamente interessante, que pode reabrir o cânone literário brasileiro. Reabrir, estudar de novo essas coisas, porque não está funcionando mais a ideia da centralidade da Semana de 22. Há muito tempo não está funcionando mais.
JU – A ideia de que a literatura brasileira estava engessada em beletrismo vazio e aí os modernistas chegaram chutando a porta é um mito?
Berriel – Isso é um mito. E Lima Barreto, e Euclides da Cunha? É muito fácil ridicularizar um escritor, assim como é fácil improvisar um poeta futurista: junta-se um pouco de aeroplano, um torpedo, acrescenta-se uma xícara de onomatopeia de máquina, vruum, zazzz… e você tem um poeta futurista, quentinho.
Mas esse é um procedimento ilegítimo, pois desse modo não se quer compreender um problema literário, mas descartá-lo, simplesmente.
Agora, tome a poesia de verdade, a literatura que existia na época: não é de se jogar fora, não. Por causa, inclusive, desse domínio do modernismo, muita obra interessante, escritores interessantes, caíram no esquecimento. Eu cito, por exemplo, o Visconde de Taunay, um escritor lidíssimo no Brasil, com uma obra muito interessante, que publicou quase 30 livros, dos quais hoje só são conhecidos dois ou três. E os livros dele não são republicados desde 22.
Ele tem um romance que foi um grande best-seller – o que não diz muita coisa, mas diz alguma coisa – chamado Ouro Sobre Azul, que foi o livro mais vendido no fim do século 19. E é um livro de qualidade. E o último romance dele, No Declínio, é um romance de inspiração simbolista extremamente interessante. O modernismo criou uma espécie de buraco negro que escondeu boa parte da literatura brasileira, e que precisa ser redescoberta.
JU – Ligando um pouco o livro com sua área de pesquisa atual, a questão das utopias. Paulo Prado tinha a visão de uma utopia paulista?
Berriel – O Paulo Prado é muito pouco “poético”, ele é muito duro. O livro dele é um ensaio sobre a tristeza brasileira. Você tem ali uma visão racista, uma visão de degradação radical do brasileiro. Ele se utiliza, para construir a sua ideia do Brasil, dos inquéritos da inquisição. Confissões extraídas na tortura, esse é o material que ele usa para dizer o que é o Brasil. Pode ser, talvez, uma distopia. É um mundo muito feio, o que ele monta.
JU – Mas as ideias dele ainda são influentes.
Berriel – Sim, e volta e meia ressurgem. Em 1964 foi assim. Você tem agora essas manifestações na Avenida Paulista, aqueles grupos mais de direita tiram do baú algumas bandeiras que foram do modernismo, impregnadas de naftalina, e as usam para combater um governo, como o da Dilma, que se assemelha muito ao de Vargas: nacionalismo econômico, ampliação do mercado interno através da distribuição de renda, empresas estatais, Estado forte. E aí você tem manifestações que tiram do baú da oligarquia as ditas velhas tradições paulistas. Mas é preciso distinguir a ideologia da oligarquia do café dos reais interesses do homem comum de São Paulo.
JU – Isso é o modernismo?
Berriel – Isso é o modernismo paulista de Paulo Prado. Cada autor deverá ser estudado em si mesmo, e as similitudes e diferenças com o pensamento de Paulo Prado naturalmente aparecerão. Só temos a ganhar com isso.
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