Quatro décadas atrás, Margaret Thatcher iniciava a campanha que não somente a conduziria ao posto de primeira-ministra do Reino Unido, mas também lançaria um modelo que acabou por conquistar o mundo. Os princípios do thatcherismo viraram as certezas globais de ponta-cabeça. E, bem no centro do projeto, havia uma mentira enorme.
Havia uma frase que, lá em 1978, ela repetia e repetia: "Não podemos continuar gastando mais do que estamos ganhando". Mas ela criou uma economia baseada em quase todo mundo fazendo exatamente isso.
Quando ela assumiu o poder, em 1979, o nível de dívida privada (de pessoas e empresas) estava por volta de 60% do PIB britânico. Essa medida começou a ser calculada em 1880. Durante um século, nunca ultrapassou 72%, e ficava na média em 57%.
A partir da chegada de Thatcher, esse índice explodiu, e continuou explodindo posteriormente, no governo de Tony Blair, que em vários sentidos foi o seu herdeiro intelectual. Em 2010, beirou um alucinante 200%.
Esse desenvolvimento representa o triunfo do capital financeiro. Foi uma revolução dos bancos. Thatcher iniciou o processo de desregulamentação do setor. Os bancos passaram a poder fazer tudo que quisessem. E o que fizeram, é claro, foi semear dívida. O sonho do setor financeiro é transformar todos em escravos da dívida. A dívida do cidadão é o patrimônio do banco. E o maior potencial para isso estava no mercado imobiliário.
Thatcher promoveu como nunca antes o sonho da casa própria. E enquanto os preços subiam que nem balões, parecia - pelo menos no curto prazo - uma boa ideia. Mas o que estava por trás do aumento incrível do preço dos imóveis?
A resposta clássica seria que uma casa vale o que o comprador está disposto a pagar. Mas, nesse caso, não vale. Porque ninguém estava comprando, era tudo financiado. Nesse caso, a casa valia o que o banco estava disposto a emprestar - um montante crescente, daí o aumento dos preços. Então, uma casa que antigamente valia um salário médio de três anos de repente passou a valer um de 40 anos.
Mas o aumento do mercado imobiliário consiste somente em parte da revolução de Thatcher. Houve também o enfrentamento à mão de obra organizada.
Depois da Segunda Guerra Mundial, governos no Ocidente promoveram políticas econômicas de emprego pleno. Com sindicatos fortes, a mão de obra ganhava cada vez mais. Depois de três décadas, isso obviamente passou a produzir inflação: uma vez que os trabalhadores recebiam aumentos, a maneira mais fácil para as empresas manterem o lucro era elevando os preços, causando um círculo vicioso.
Thatcher e seus aliados chegaram à conclusão de que era impossível ter uma economia moderna com sindicatos fortes. Leis e tecnologias novas foram usadas para quebrar o poder dos sindicatos, e fábricas foram deslocadas para o terceiro mundo, onde dava para pagar muito menos.
No auge do boom, Alan Greenspan, durante muitos anos presidente do Banco Central dos Estados Unidos (Fed), comentou sobre um paradoxo aparente: a produtividade do empregado subia, mas os salários, não. Atribuiu isso ao "trabalhador apavorado", a essa altura, preocupado demais em perder o emprego (e consequentemente a casa) para reivindicar um aumento.
Greenspan falou num tom de triunfo. Mas eis aí a bomba-relógio do projeto Thatcher, Reagan e etc.: como manter o consumo numa época assim? Com a expansão do crédito. Mas como conciliar isso com o aumento tão significativo do preço da moradia? Uma bolha no preço dos imóveis de um lado, salários estagnados e menos segurança de emprego do outro. Desequilíbrio total vira uma questão de tempo.
Chega um momento em que as pessoas não conseguem mais pagar as suas dívidas. Surge o perigo de um calote em massa. O sistema acaba balançando em cima de uma cabeça de pino. Desmoronou em 2008, e parece que até agora ninguém achou uma saída.
Existe um velho ditado no setor bancário: nunca empreste para quem precisa. Na revolução de Thatcher, os bancos deixaram isso de lado. Quando se empresta para quem precisa, o lucro é mais alto. Mas vem com riscos. E os bancos foram semeando dívidas, até quebrarem sobre o peso dos empréstimos tóxicos. Aí entra a velha história: enquanto deu certo, os lucros astronômicos foram distribuídos entre agentes privados. Quando o sistema quebrou, foi a sociedade que pagou o pato, sofrendo com o corte de gastos sociais, numa tentativa fútil de equilibrar as contas.
As consequências disso são terríveis no primeiro mundo - cada vez mais pessoas dormindo nas ruas, por exemplo. No Brasil atual, é simplesmente apavorante. O desequilíbrio entre o preço da moradia e a situação de emprego, a desigualdade histórica, o culto do consumo, a violência urbana…
As portas da barbárie estão abertas. Quatro décadas depois do crescimento do thatcherismo, precisamos com urgência de um novo modelo.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.
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