domingo, 7 de abril de 2019

Zizec contra Jordan Peterson






Provocador e eclético, Zizek dobra a aposta contra o capitalismo

Filósofo marxista trava embate com o psicólogo direitista Jordan Peterson


Rodnei Nascimento
Qual o melhor caminho para a felicidade: o capitalismo ou o marxismo? A dúvida que atormentou o século 20 parecia superada após a derrocada do comunismo, mas voltará ao foco no mais aguardado duelo intelectual dos últimos tempos.
No dia 19 de abril, o canadense Jordan Peterson e o esloveno Slavoj Zizek têm um encontro marcado no teatro Sony Centre, em Toronto, onde discutirão qual dos dois rumos pode garantir mais prosperidade ao mundo. Os 3.191 ingressos colocados à venda estão esgotados. O site www.jordanvsslavojdebate.com fará a transmissão online ao vivo, ao custo de US$ 14,95 (cerca de R$ 60) por usuário, a partir das 20h30 (horário de Brasília). 
Psicólogo e professor da Universidade de Toronto, Peterson se define como um liberal clássico conservador e ganhou fama com vídeos no YouTube ao se opor a um projeto de lei canadense que regulamenta o uso de pronomes neutros para transgêneros. É autor do best-seller “12 Regras para a Vida” (Alta Books). 
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No oposto do espectro político, Zizek é um dos mais renomados e profícuos pensadores marxistas da atualidade. Professor da Universidade de Liubliana e diretor internacional do Instituto de Humanidades do Birkbeck College (Universidade de Londres), aponta que a esquerda erra ao privilegiar políticas identitárias em vez de concentrar esforços na luta contra o capitalismo.
[RESUMO]  Há 30 anos presença constante no debate intelectual por sua abordagem rigorosa e provocativa de assuntos variados, filósofo esloveno concilia Hegel, Marx e Lacan em intervenções que apontam o capitalismo como a batalha principal da esquerda.
Desde a publicação do seu primeiro livro em inglês, "O Sublime Objeto da Ideologia", em 1989, o filósofo esloveno Slavoj Zizek tem sido uma presença constante no debate filosófico, político e cultural mundo afora. Sua obra, volumosa 30 anos depois, versa sobre ampla gama de temas, do conceito de absoluto em Hegel à globalização econômica, da noção lacaniana de real ao cinema de Hollywood, da crítica da ideologia em Marx à teologia cristã, da ópera de Wagner ao feminismo.
O destaque conquistado como intelectual público se deve, em boa medida, a sua capacidade de oferecer sempre um ponto de vista inesperado e, sobretudo, provocativo a respeito desses assuntos, além de seu talento didático de explicar as teorias filosóficas mais abstratas a partir de exemplos da cultura popular e do mundo cotidiano.

zizek
O filósofo esloveno Slavoj Zizek em imagem de 2012 - Ulf Andersen/Aurimages/AFP
A performance, contudo, não consiste apenas em pular de um assunto ao outro ao sabor das circunstâncias e das modas intelectuais. O filósofo pretende que suas intervenções estejam armadas rigorosamente por uma inusitada junção de matrizes teóricas aparentemente tão distantes como a psicanálise lacaniana, a filosofia hegeliana e a crítica marxista da ideologia.
Deve-se antes de tudo evitar ver nisso uma intenção eclética de combinar um pouco de cada uma dessas correntes teóricas. Por paradoxal que possa parecer, para Zizek, Lacan é essencialmente hegeliano, da mesma maneira que Marx, com a noção de ideologia, foi o verdadeiro inventor da noção psicanalítica de sintoma, como declarou certa vez o próprio Lacan. Todas essas diferentes linhagens intelectuais devem ser tomadas, na verdade, como um tríptico composto de Hegel com Lacan e Marx.
Para sustentar sua coerência, essa nova compreensão tem que afastar, evidentemente, as leituras convencionais tanto de Hegel como de Lacan. Assim, Hegel deixa de ser o filósofo do espírito absoluto, aquele que explica a constituição da história e do sujeito como um processo lógico que encontra seu acabamento na unidade da razão. Do mesmo modo, abandona-se em Lacan o processo psicanalítico entendido como resgate da verdade do sujeito pela lógica do reconhecimento intersubjetivo ou do desejo de reconhecimento.
Dessa perspectiva de leitura, o que sobressai em Hegel é o papel central da negatividade na formação da subjetividade humana, um processo ininterrupto que nunca alcança seu fim. Lacan, na fase final da sua obra, mostra-se um hegeliano ao privilegiar a lógica da incompletude radical do sujeito, da falta essencial no outro, em detrimento de uma verdade do sujeito.
O traço comum que se destaca em ambos é a ideia de uma subjetividade humana vazia, que Lacan denotou, algo ironicamente, pelo nome de real: a lacuna ou a falha constitutiva do sujeito, que jamais é preenchida ou superada, mas que, não obstante, estrutura a vida humana como uma experiência traumática.
A busca quase sempre frustrada pelo real é a grande paixão que move a todos, tanto no plano individual quanto no político. A releitura dessa noção e a centralidade conferida a ela permitirão a Zizek interpretar os grandes acontecimentos históricos das últimas décadas e se posicionar criticamente diante dos movimentos sociais de contestação do capitalismo.
Não se trata de aplicar os conceitos psicanalíticos a um domínio que lhes é exterior, mas de reconhecer-lhes uma dignidade filosófica muito além dos processos psicológicos. Ou seja, lidos filosoficamente, esses conceitos são capazes de expressar a estrutura íntima da nossa realidade ou pelo menos ajudar a compreender como é possível a esta se organizar em torno de uma fissura elementar.

peterson e zizek
Ilustração de capa da Ilustríssima - Carcarah
No plano social, as tentativas fantasiosas de preenchimento do real ou de torná-lo possível resultarão nas diversas formas de ideologia. O mecanismo da ideologia consiste em criar a ilusão de possibilidade de superar a cisão que atravessa a realidade social, transferindo para um objeto externo os obstáculos à realização dos seus objetivos.
Um exemplo claro do funcionamento desse mecanismo ideológico foi, sem dúvida, o nazismo. Na Alemanha nazista, a fantasia ariana imputava aos judeus a responsabilidade pelo bloqueio à criação de uma raça pura e de uma sociedade homogênea.
Vejam que o truque não consiste apenas em criar uma fantasia verossímil, mas em adiar indefinidamente a realização dos seus anseios, visto que o encontro com o seu real significaria o reconhecimento de sua própria impossibilidade de existência. Nesse sentido, o "judeu" não é apenas um obstáculo, mas um obstáculo funcional, na medida em que, sem ele, o nazismo perde todo o seu sentido.
O caráter renitente da ideologia remete a um outro elemento, ainda mais surpreendente, de sua natureza —sua dimensão objetiva. Para lembrarmos os termos de Marx na crítica da economia política, a ideologia não é uma simples aparência que oculta uma verdade mais essencial, uma "falsa consciência", mas sim uma "ilusão necessária" ao funcionamento da engrenagem social.
No capitalismo, a ilusão consiste na crença de uma troca de equivalentes no momento de compra e venda da força de trabalho, isto é, na igualdade entre trabalhadores e capitalistas. No âmbito da circulação das mercadorias, há certa verdade nisso, visto que a força de trabalho é remunerada pelo seu valor, como qualquer mercadoria, e os agentes contratam livremente entre si.
Essa igualdade e liberdade se vão mostrar fictícias somente no instante da produção das mercadorias, quando a força de trabalho produz mais valor do aquele pelo qual foi paga e quando, sobretudo, o trabalhador se reproduz separado dos meios de produção, na medida em que não se apropria dos resultados de sua atividade.
Desprovido de toda propriedade, a não ser a da sua força de trabalho, o trabalhador se vê obrigado a vendê-la novamente no mercado, onde se depara mais uma vez com a "ilusão" da igualdade e da liberdade, prosseguindo assim a acumulação infinita do capital.
Estaria, então, todo enfrentamento com o real —ou, na afirmação de Zizek, com seu homólogo estrutural, o capital— destinado a cair nas artimanhas da ideologia? A história recente parece confirmar essa conclusão.
Recordemos o 11 de Setembro de 2001, analisado pelo filósofo esloveno em "Bem-Vindo ao Deserto Real!" (2002). Uma verdadeira "paixão pelo real" animou o ataque suicida que lançou os aviões contra os edifícios simbólicos do capitalismo mundial. Um ato de violência deveria ser capaz de denunciar ao mundo a verdadeira natureza opressora do imperialismo americano.
No entanto, o que se viu é que mesmo um ato de radicalidade política se transformou num mero espetáculo de destruição, revelando a fragilidade do seu poder de negação. O desejo de ruptura se deparou com o vazio de sua própria ação.
Nada mais distante de Zizek do que endossar o discurso pós-moderno segundo o qual tudo é imagem ou simulacro. Um ataque terrorista não é, por certo, mera virtualidade. Ele põe abaixo, de fato, edifícios inteiros, causa mortes e destruição. No entanto, sua intenção transformadora torna-se inócua quando guiada pelo desejo de atingir o real. O que parecia ser a transgressão máxima se viu assimilado sob a forma de imagens televisivas.
Mas, se é assim, se mesmo os projetos políticos mais radicais parecem condenados ao fracasso, como enfrentar esse poder fetichista do real que inverte no seu contrário o sentido da ação humana? Para Zizek, certamente não se trata de propor uma aliança cínica e resignada com a realidade existente, mas tampouco de repetir as estratégias da "paixão pelo real".
O equívoco não estaria no desejo de quebrar as falsas significações, as formas de vida artificiais, alienadas ou repressoras, mas na ilusão de que sua ação possa se completar numa ordem de realidade em que os indivíduos se realizem plenamente.
Para retomar nos termos iniciais, o encontro com o real não é impossível no sentido de algo que nunca acontece, mas no sentido de que é um encontro traumático que nem sempre somos capazes de enfrentar. E uma das estratégias usadas para evitar enfrentá-lo é situá-lo como um ideal indefinido, eternamente adiado.
Em "O Sujeito Incômodo" (1999), Zizek designa o capital como o real da era moderna, um real simbólico que molda toda a nossa vida a partir da dimensão econômica. E, tal como o real lacaniano, permanece como uma estrutura neutra e sem sentido, que subjaz como um resto a todas as formas de simbolização possíveis. Nesse sentido, a esfera econômica não é uma esfera social entre outras, mas sim aquilo que o filósofo marxista György Lukács chamava de protoforma de todas as relações sociais.
Ora, considerando ainda que é através do simbólico que podemos intervir no real e transformar a maneira como ele condiciona as diversas camadas de realidade, a primeira providência de toda política de esquerda seria reconhecer a prioridade da luta anticapitalista diante das demandas de gênero, raça e das minorias. Sem negar a importância dessas últimas, o combate fundamental de uma política de esquerda deve ser contra o capitalismo.
Não é essa disposição, no entanto, que Zizek percebe nos movimentos de esquerda atuais. O que há de comum em todos eles, a seu ver, é o esquecimento da economia como ponto primordial da batalha. 
Desde as lutas identitárias do multiculturalismo pós-moderno —como ele denomina os movimentos por direitos dos gays, as demandas das minorias étnicas e as políticas de tolerância— até a versão atual e diluída da social-democracia europeia conhecida como terceira via, passando ainda pela aspiração a uma política emancipatória pura —tal como formulada, entre outros, por Alain Badiou, Jacques Rancière e mesmo Ernesto Laclau e Chantal Mouffe— o que se nota é a mesma ausência de reconhecimento do capitalismo como problema central da vida social moderna.
Nesse diagnóstico, diga-se de passagem, Zizek não deixa de se vincular à tradição clássica e um tanto convencional do marxismo, como ele mesmo admite.
O que lhe parece problemático nas demandas incondicionais de uma política pura, como a de um Badiou e sua exigência por mais igualdade e liberdade, ou por uma democracia radical e uma hegemonia antineoliberal, como a de Laclau e Mouffe, é o seu caráter abstrato e, portanto, pouco efetivo do ponto de vista da luta prática.
Zizek não duvida do caráter anticapitalista desses autores, todavia lamenta neles a ausência de uma crítica da economia política.
O mesmo não se pode dizer a respeito dos ideólogos da terceira via, que simplesmente assumem o capitalismo globalizado como horizonte último da nossa sociedade e querem saber apenas como se inserir de maneira vantajosa nesse sistema —se possível, preservando um nível mínimo de igualdade e bem-estar. Essa perspectiva parece, no entanto, ter se inviabilizado praticamente desde a ascensão da extrema direita nacionalista com uma pauta antiglobalização.
Com relação aos identitários, o que Zizek lhes reprova é o fato de se limitarem a reivindicar o direito a uma narrativa sobre si mesmos e ao reconhecimento de suas identidades particulares no interior do capitalismo, sem questionar a relação da sua condição de marginalização com a dinâmica mais ampla da sociedade. Com isso, abrem mão não só do conhecimento do todo no qual estão inseridos mas também da própria verdade sobre si mesmos.
Contra os particularismos de gênero, raça e nacionalidade, Zizek defende um universalismo situado socialmente, um pouco à maneira como o Marx da juventude concebia o papel revolucionário do proletariado. Por ser uma classe cujos "sofrimentos são universais", sua reparação não pode ser particular, mas o resgate da humanidade como tal.
Nesse sentido, o proletariado é uma classe universal que não pode emancipar a si mesma se não emancipar a humanidade inteira.
Zizek reconhece que nos dias atuais a classe operária perdeu a centralidade que possuía no passado, por conta das reconfigurações técnicas do processo de trabalho, porém não deixa de afirmar a persistência no capitalismo contemporâneo de uma posição abjeta representada pelos desempregados, pelas populações periféricas e pelos imigrantes, cuja simples existência desnuda a verdade do sistema, seu caráter excludente e o segredo da sua própria condição social.
Por sua posição extrema, somente as demandas políticas desses grupos —e não um limite ético, normativo ou ecológico— colocam em xeque o funcionamento de uma falsa totalidade e oferecem hoje a única perspectiva de uma transformação efetiva do capitalismo.
Pode ser que estejamos diante de apenas mais uma armadilha do real, mas todo ato transformador comporta um risco, sem garantias quanto ao resultado final.
Aceitar esse risco torna-se incontornável quando os referenciais disponíveis para a ação não são mais capazes de ensejar uma mudança verdadeira. Nesse momento, é preciso apostar que o ato cria as condições do seu próprio êxito. 

Rodnei Nascimento é professor de filosofia política do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

O que são as milícias

Na semana passada, a operação “Os Intocáveis” prendeu integrantes da milícia que opera em Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Um dos alvos da operação foi o ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, acusado de chefiar a milícia de Rio das Pedras e integrar o grupo de extermínio Escritório do Crime – atualmente investigado pela morte de Marielle Franco. Sua mãe e sua esposa já trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Flávio também havia homenageado Adriano com a Medalha Tiradentes, a maior honraria concedida pela Alerj.
Mas a notícia não surpreendeu o autor do livro Dos Barões ao extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense, José Cláudio Souza Alves. Sociólogo e pró-reitor de Extensão da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio estuda as milícias há 26 anos. Em entrevista à Pública, ele resume, com veemência: “A milícia é o Estado.”
“São formadas pelos próprios agentes do Estado. É um matador, é um miliciano que é deputado, que é vereador. É um miliciano que é Secretário de Meio Ambiente. Sem essa conexão direta com a estrutura do Estado não haveria milícia na atuação que ela tem hoje,” acrescenta.
Segundo José Cláudio, é comum familiares de milicianos serem empregados em gabinetes de deputados e vereadores. “Isso é muito comum. Esse vínculo lhe dá poder naquela comunidade. Ele vai ser chamado agora na comunidade: ‘Olha é o cara que tem um poder junto lá ao Deputado, qualquer coisa a gente resolve, fala com ele, que ele fala com a mãe e com a esposa e elas falam diretamente com o Flávio e isso é resolvido’”.
Nessa entrevista, ele explica a origem desses grupos e suas ligações com a política: “Cinco décadas de grupo de extermínio resultaram em 70% de votação em Bolsonaro na Baixada”.
Leia os principais trechos.
Como nasceram as milícias do Rio de Janeiro?
Isso estourou na época da ditadura militar com muita força. Em 1967 surge a Polícia Militar nos moldes atuais de força ostensiva e auxiliar aos militares naquela época. E a partir daí há o surgimento dos esquadrões da morte. No final dos anos 1960, as milícias surgiram como grupos de extermínio compostos por Policiais Militares e outros agentes de segurança que atuavam como matadores de aluguel.
Esses esquadrões da morte vão estar funcionando a pleno vapor nos anos 1970. Depois começa a surgir a atuação de civis como lideranças de grupos de extermínio, mas sempre em uma relação com os agentes do Estado. Isso ao longo dos anos 1980. Com a democracia, esses mesmos matadores dos anos 1980 começam a se eleger nos anos 1990. Se elegem prefeitos, vereadores, deputados.
De 1995 até 2000, você tem o protótipo do que seriam as milícias na Baixada, Zona Oeste e no Rio de Janeiro. Elas estão associadas a ocupações urbanas de terras. São lideranças que estão emergindo dessas ocupações e estão ligadas diretamente à questão das terras na Baixada Fluminense. A partir dos anos 2000, esses milicianos já estão se constituindo como são hoje. São Policiais Militares, Policiais Civis, bombeiros, agentes de segurança, e atuam em áreas onde antes tinha a presença do tráfico, em uma relação de confronto com o tráfico. Mas ao mesmo tempo estabelecem uma estrutura de poder calcado na cobrança de taxas, na venda de serviços e bens urbanos como água, aterro, terrenos.
Há apoio da população às milícias?
A milícia surge com o discurso que veio para se contrapor ao tráfico. E esse discurso ainda cola. Só que com o tempo a população vai vendo que quem se contrapõe a eles, eles matam. E eles passam a controlar os vários comércios. Então a população já começa a ficar assustada e já não apoia tanto. É sempre assim a história das milícias.
Qual a história de Rio das Pedras?
Rio das Pedras é uma comunidade em expansão onde vivem nordestinos muito pobres. Existem terrenos lá que você não pode construir porque são inadequados, são muito movediços. Então só tem uma faixa específica de terra onde você pode construir. São terras irregulares, devolutas da União, ou terras de particulares que não conseguiram se manter naquele espaço. Então a milícia passa a controlar, toma e legaliza – às vezes até via Prefeitura mesmo, pagando IPTU desses imóveis. Como o sistema fundiário não é regulado, facilmente os milicianos têm acesso a informações e vão tomar essas áreas. E passam a vendê-las.
Rio das Pedras foi a primeira milícia do Rio?
Não é bem assim. Ao meu ver a milícia surgiu em diferentes lugares ao mesmo tempo, simultaneamente. Então tem Rio das Pedras, mas tem Zona Oeste do Rio e tem, por exemplo, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
Eu percebo dos anos 1995 a 2000, grosso modo, um período de emergência dessas ocupações urbanas de terras, ainda não no protótipo de milícias, mas com lideranças comunitárias próximas ao que seria um controle pela violência, um controle político mais autoritário.
Só que Rio das Pedras ela emerge mais rapidamente. Então ali começa esse vínculo da cobrança de taxa, que nas outras ainda não tinha. E são os comerciantes que pagam a eles.
É uma comunidade miserável, empobrecida, que está se constituindo a partir de uma rede migratória de nordestinos. E ela fica diante de um grupo de milicianos que estão sendo chamados para dar proteção, impedir que o tráfico entre. Mas na verdade é para proteger os interesses comerciais desses lojistas que estão se instalado lá em Rio das Pedras e estão financiando esses caras.
Hoje são quantas as milícias do Rio de Janeiro?
Eu tenho noção que são muitas. Por exemplo, são várias que atuam em São Bento e no Pilar, que é o segundo maior distrito de Duque de Caxias. Tem em Nova Iguaçu, tem em Queimada. Praticamente cada município da Baixada Fluminense você tem a presença de milícias. Seropédica, por exemplo, hoje é uma cidade dominada por milicianos. Eles controlam taxas de segurança que cobram do comércio. Aqui tem os areais, de onde se extrai muita areia – e muitos são clandestinos. Então eles também cobram dali. Moto-táxi tem que pagar 80 reais por semana para funcionar. Pipoqueiro paga 50 reais por semana. É uma loucura.
Dizem que é para a segurança, proteção, eles estão supostamente protegendo esse comércio. Mas depois controlam a distribuição de água, de gás, de cigarro, de bebida. E há histórias de assassinato de gente que não aceitou, por exemplo.
Além disso, eles são pagos para fazer execuções sumárias. Então há um mercado que movimenta milhões já há algum tempo.
Eles também lidam com tráfico de drogas, com algumas facções especificas. O Terceiro Comando Puro funciona aqui em algumas cidades da baixada a partir de acordos com milicianos. Eles fazem acordo com o tráfico e vão ganhar dinheiro também disso. Cobram aluguel de áreas. É a mesma relação que a polícia tem com o tráfico: só funciona ali se você pagar suborno.
Na cobertura feita pelos jornais sobre a operação “Os Intocáveis”, eles citam o Escritório da Morte, um grupo de extermínio que é contratado para matar. Isso é comum?
Sim. Nunca ouvi falar de milícia que não tivesse a prática de execução sumária. Normalmente a milícia tem uma equipe ou um grupo responsável por execuções sumárias. O comerciante que não quiser pagar, o morador que não se sujeitar a pagamento do imóvel que ele comprou, qualquer negócio e discordância com os interesses da milícia, esse braço armado é acionado e vai matar.
A novidade da milícia é o leque de serviços que eles abrem além da execução sumária e da segurança. Aí é tudo: água, bujão de gás, “gatonet”, transporte clandestino de pessoas, terra, terrenos, imóveis. A milícia não fica agora fixa em grandes comerciantes ou grandes empresários. Ela pulveriza isso. Eles vão sofisticando também na administração do gerenciamento.
Em que outros negócios ilegais os milicianos atuam?
Lá em Duque de Caxias eles roubam petróleo dos oleodutos da Petrobras e fazem mini destilarias nas casas das pessoas. Tudo ilegal, com um risco imenso. Aí vendem combustível adulterado. Eles fazem aterros clandestinos no meio daquela região com dragas e tratores e vão enterrando o lixo de quem pagar. É mil reais por caminhão. Não importa a origem. Pode ser lixo contaminante, lixo industrial, lixo hospitalar. Eles fazem aterros clandestinos nesta região.
A milícia tem controle também sobre bens públicos, como aterros, e eles se apropriam desses espaços para fazer atividades ilegais…
A base de uma milícia é o controle militarizado de áreas geográficas. Então o espaço urbano, em si se transforma em uma fonte de ganho. Se você controla militarmente, com armas por meio da violência esse espaço urbano, você vai então ganhar dinheiro com esse espaço urbano. De que maneira? Você vende imóveis. Por exemplo, você tem um programa do governo federal chamado Minha Casa Minha Vida. Você constrói habitações. Aí a milícia vai e controla militarmente aquela área e vai determinar quem é que vai ocupar a casa. E inclusive vai cobrar taxa desses moradores.
Em outra área eles estão vendendo imóveis e estão ganhando dinheiro com essa terra, que é terra da União ou terra de particulares. Então esse controle militarizado desses espaços, é a base da milícia. Aí como eles sabem dessas informações? Eles sabem dentro da estrutura do Estado.
Você pode ter um respaldo político para fazer isso. Vou dar um exemplo para você. Em Duque de Caxias, um número razoável de escolas públicas não é abastecido pelo sistema de água da CEDAE. A água não chega lá. Como que essas escolas funcionam? Elas compram caminhões pipa de água. Quem é o vendedor? Quem é que ganhou a licitação para distribuição de água em um preço absurdo por meio desses caminhões pipa? Gente ligado aos milicianos. Então aí você tem um vínculo com os serviços públicos – e é uma grana pesada – a que passa pelo interesse político daquele grupo dentro daquela prefeitura que vai se beneficiar de uma informação e vai ganhar dinheiro com isso.
A Baixada e o Rio de Janeiro são grandes laboratórios de ilicitudes e de ilegalidades que se associam para fortalecer uma estrutura de poder político, econômico, cultural, geograficamente estabelecido e calcado na violência, no controle armado.
A milícia surgiu no Rio de Janeiro pela ausência do Estado?
Há uma continuidade do Estado. O matador se elege, o miliciano se elege. Ele tem relações diretas com o Estado. Ele é o agente do Estado. Ele é o Estado. Então não me venha falar que existe uma ausência de Estado. É o Estado que determina quem vai operar o controle militarizado e a segurança daquela área. Porque são os próprios agentes do Estado. É um matador, é um miliciano que é deputado, que é vereador, é um miliciano que é Secretário de Meio Ambiente.
Eu sempre digo: não use isso porque não é poder paralelo. É o poder do próprio Estado.
Eu estou falando de um Estado que avança em operações ilegais e se torna mais poderoso do que ele é na esfera legal. Porque ele vai agora determinar sobre a sua vida de uma forma totalitária. E você não consegue se contrapor a ela.
Mas, por outro lado, quem elege os políticos milicianos é a população….
Não venha dizer que o morador é conivente, é cúmplice do crime. Esse pessoal elegeu o Flávio Bolsonaro, que agora se descobriu que ele tem possivelmente vínculos com esses grupos? Elegeu. Mas que condições que essas pessoas vivem para chegar nisso? Essas populações são submetidas a condições de miséria, de pobreza e de violência que se impõem sobre elas.
Cinco décadas de grupo de extermínio resultaram em 70% de votação em Bolsonaro na Baixada.
Três gestões do PT no governo federal, 14 anos no poder, não arranharam essa estrutura. Deram Bolsa Família, vários grupos políticos se vincularam ao PT e se beneficiaram, mas o PT não alterou em nada essa estrutura. O PT fez aliança eleitoral, buscou apoio desses grupos.
Como você mencionou a história do Flávio Bolsonaro: o que liga o gabinete de um político a um miliciano, como foi no caso dele com a mãe e a esposa do Adriano Magalhães da Nóbrega?
O discurso da família Bolsonaro, a começar pelo pai já há algum tempo, e posteriormente o pai projetando nos filhos politicamente. Eles são os herdeiros do discurso de um delegado Sivuca [José Guilherme Godinho Sivuca Ferreira, eleito deputado federal pelo PFL em 1990], que é o cara que que cunhou a expressão “Bandido bom é bandido morto”, de um Emir Larangeira [eleito deputado estadual em 1990], do pessoal da velha guarda, do braço político dos grupos de extermínio.
Esse discurso se perpetuou e se consolidou. É claro que os milicianos vão respaldar esse discurso e vão se fortalecer a partir dele. É o plano de segurança pública defendida na campanha eleitoral do Bolsonaro. Ele diz o seguinte: Policiais Militares são os heróis da nação. Policial Militar tem que ser apoiado, respaldado, vai ganhar placa de herói.
E será respaldado pela lei, através do excludente de ilicitude. Está lá no programa do Bolsonaro. Então você tem setores que desde a ditadura militar sempre operaram na ilegalidade, na execução sumária, vão escutar esse discurso. É música para o ouvido deles.
Não é à toa que o Flávio Bolsonaro fez menções na Assembleia legislativa, deu honrarias para dois desses milicianos presos.
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sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Eugênio Aragão: A estratégia de intervenção na Venezuela e no Brasil

POR EUGÊNIO ARAGÃO
As aparências enganam. Quem vê a crise venezuelana como resultado de supostos desmandos autoritários de Nicolás Maduro erra tanto quanto aquele que aponta para a corrupção como causa do desastre político brasileiro. Não que Maduro não tenha cometido erros de avaliação e, quanto à corrupção no Brasil, também não é negável que é endêmica nas relações entre o público e o privado, desde tempos idos. Mas nem os eventuais equívocos do presidente venezuelano e nem desvios de conduta de agentes governamentais foram causas suficientes para o descalabro que ora se presencia em ambos os países.
Há algo em comum nos acontecimentos aqui e acolá, uma dinâmica social de polarização e radicalização que carrega a mesma caligrafia. Os padrões são muito parecidos nas manifestações proto-coxinhas de 2013-2016 e nas ruas de Caracas nestes dias. A indisfarçada e descarada imiscuição direta norte-americana na crise venezuelana talvez compõe o único diferencial. Aqui, Tio Sam foi mais discreto, mas nem por isso menos efetivo. Como explicar isso?
Crises políticas podem ser fabricadas para produzirem determinados resultados estratégicos. Desde a crise dos Sudetos, na Checoslováquia de 1938, passando pela crise do corredor polonês de 1939; pelos levantes de Gdansk de 1982, que redundaram na ditadura do general Wojciech Jaruzelski; pelo levante da praça do Maidan, em Kiev,
Ucrânia, em 2013; até a chamada “Primavera Árabe” de 2011, só para citar aleatoriamente alguns exemplos, percebe-se a interesseira mão invisível de alguma potência estrangeira em dinâmicas sociais domésticas.
Mas fiquemos só no primeiro exemplo, pois todos os cenários mencionados têm um Konrad Henlein que a eles melhor se adequa. Para os que não sabem, Henlein, na crise dos Sudetos, foi o homem de Adolf Hitler, uma liderança alemã na Checoslováquia. A mando deste, promoveu a radicalização política local de um modo tal, que fez parecer que o governo de Praga, liderado por Edvard Beneš, estaria a perseguir os alemães no país, mesmo com todo o esforço oficial de incluí-los, na sociedade checoslovaca, como grupo autônomo e com direitos culturais e políticos próprios. Ao final, a Alemanha nazista invadiu a Checoslováquia como beneplácito da França e da Inglaterra, para incorporar os Sudetos ao território do Reich.
Voltando a nuestra América, o Brasil não teve um só Henlein para desestruturar sua jovem e incipiente democracia. Teve logo vários, agindo em diversos campos. A mão invisível por detrás tinha interesses claros nas reservas petrolíferas do pré-sal, no desmonte da Petrobrás e da construção civil brasileira, bem como no papel de liderança subcontinental que o país exerce, para o bem ou para o mal. Tudo lhe foi dado de mãos beijadas, a partir do momento em que se instalou o governo golpista de Michel Temer, um de nossos Henlein. Mas a localização geográfica dessa mão é incontroversa, pois foi de lá que se subsidiou o vaidoso e corporativo ministério público federal, sob o comando de outro Henlein brasileiro, Rodrigo Janot, com informações de inteligência sobre práticas pouco kosher na petrolífera brasileira: a terra de Tio Sam.
Não eram, porém, as práticas ilícitas de diretores da estatal e de empresários dirigentes de fornecedoras de serviços que preocupavam os norte-americanos. A Petrobrás era conhecida como galinha de ovos de ouro de muita gente desonesta desde sempre, sem causar comichão a ninguém. O que chamava a atenção dos ianques era, muito mais, a eficiência da empresa e sua capacidade tecnológica para prospectar em grandes profundidades marítimas, aliada ao fato de que era privilegiada na distribuição do petróleo achado.
As más práticas da Petrobrás logo viraram o estopim de um escândalo armado em pleno ano de campanha eleitoral para a sucessão presidencial, com inestimável ajuda de um judiciário muito acostumado a práticas cinematográficas. A aliança entre a mídia e o estamento burocrático da judicatura foi o combustível necessário para alavancar a candidatura de mais um Henlein tupiniquim, Aécio Neves. Manifestações sem pauta específica logo conseguiram se transmudar num movimento de massa reacionário e moralista, exigindo a remoção do governo da vez. A campanha eleitoral de 2014 foi extremamente polarizada, com o discurso de ódio tomando conta da propaganda antipetista.
Mas os Henlein perderam nesse primeiro momento. A bronca disseminada pela campanha midiática-judicial-rueira- oposicionista não foi suficiente para quebrar a hegemonia das forças progressistas na política brasileira. É verdade que a vitória situacionista foi por pequena margem e que emergiria das eleições um governo
enfraquecido, sem maioria parlamentar capaz de enfrentar o desafio do clientelismo corrupto do novo presidente da Câmara, Eduardo Henlein Cunha, que passou a impor sistemáticas derrotas à Presidenta legítima, Dilma Rousseff.
No meio do vendaval, os inimigos da democracia e traidores do interesse nacional se juntaram a boa parte de políticos corruptos para depor a chefe de estado honesta, tudo sob os olhares impávidos do chefe do ministério público e da cúpula do judiciário. Aliás, os atores judiciais estimulavam, com sua cúpida leniência, a atuação
destrambelhada de um juizinho narcisista de província que tornava públicas conversas ilegalmente interceptadas entre a Presidenta e seu antecessor. Essas conversas não continham nada de mais, mas tiveram seu significado midiaticamente deturpado para atribuir ao governo conspiração contra as escandalosas investigações em curso contra a Petrobrás.
Veio o que era esperado: a destituição da presidenta por fato fútil é irrelevante, as supostas “pedaladas” na execução orçamentária. O ministério público e o judiciário mantiveram-se inertes e coonestaram o golpe parlamentar, para passar o poder ao grupelho de políticos ímprobos que se aproveitaram da desmedida ganância e ambição de Eduardo Henlein Cunha. As medidas governamentais agora anunciadas agradavam aos verdadeiros patronos da crise: a abertura do pré-sal e o desmanche do parque tecnológico nacional. Nada veio por acaso.
O governo golpista foi um pesadelo para a sociedade brasileira, com retrocessos em políticas públicas e a ascensão do discurso fascista e fundamentalista como algo aceitável nos salões do poder, desde que servisse para destruir a hegemonia política das forças progressistas. Nada se fez para frear quem atacasse mulheres como “não
merecedoras de serem estupradas”, ativistas LGBT, indígenas ou sem-terra. O ódio passou a fazer parte do discurso corrente, com um risinho no canto da boca dos protagonistas do golpe.
E veio 2018 com nova campanha presidencial. O importante, para as forças da reação, era manter o PT afastado do poder a qualquer custo. A candidatura de Lula, a toda evidência para ser vitoriosa, tinha que ser barrada. A condenação pífia por conta de um apartamento que nunca lhe pertenceu foi, mesmo sem qualquer prova que
corroborasse a extravagante suposição do juiz de piso, confirmada por uma trinca de desembargadores combinados entre si, numa velocidade que faria morrer de inveja o judiciário finlandês, talvez o mais eficiente do mundo.
Quis-se, com isso, impor a Lula as restrições da lei da ficha limpa. Mas, mesmo que coubessem recursos com boa chance de serem providos se julgados com isenção, não se lhe reconheceu o direito de manter-se em campanha até o trânsito em julgado do processo de registro da candidatura. O TSE fulminou a participação, no processo
eleitoral, daquele que tinha mais chance de vencer, frustrando parte significativa do eleitorado.
Ocorre que os principais protagonistas do golpe contra a democracia não tinham fôlego para ganhar e se dividiram em vários grupelhos ambiciosos. Sobrou, para disputar seriamente o pleito, somente a extrema direita em torno do capitão da reserva Jair Bolsonaro, aproveitando-se da onda de ódio disseminada contra o PT – e Fernando
Haddad, o candidato que veio a suceder Lula, apoiado por forças progressistas.
A campanha fascista soube se aproveitar de um suposto atentado a faca contra seu candidato, que, hospitalizado, ficou fora de circulação por todo o período de campanha e, além de tratado como vítima aos olhos da opinião pública, se poupou do confronto de ideias, em que fatalmente exibiria seu lado mais tosco. Para manter a chama do ódio contra o PT acesa, a candidatura de direita inundou as redes sociais com notícias mentirosas, numa escala de impulsionamento nunca dantes vista numa eleição no Brasil. A receita deu certo e Jair Bolsonaro, o insensato militar que se gaba de ser favorável à tortura como método de repressão de seus inimigos ideológicos, virou
presidente da República, sem qualquer projeto para o país e para a sociedade, além de demonstrar ostensivamente, claro, sua atitude subserviente para com o governo e os interesses norte-americanos. Definitivamente, Tio Sam fincou seus pés no Brasil, sem brandir um fuzil, sem gastar uma bala.
E a Venezuela? Não é surpresa que o governo fascista do Brasil, que logrou ser eleito e investido graças às maquinações ianques contra o legítimo governo de Dilma Rousseff, hoje se posiciona como braço interventivo dos Estados Unidos da América do Norte liderados pela ira desaforada de Trump.
Diferentemente do Brasil, as forças progressistas venezuelanas nunca se iludiram com qualquer tipo de tentativa de acordo com suas elites endinheiradas. Sob o governo de Hugo Chávez, desde muito cedo, se sabia da hostilidade latente, às vezes até escancarada, do establishment venezuelano face à orientação socialista do
bolivarianismo. Por isso mesmo, as instituições foram objeto de profunda reengenharia, em ampla refundação constitucional. Não se deixou pedra sobre pedra do estado plutocrático e as forças que tentaram desestabilizar a nova ordem foram enfrentadas de forma a serem neutralizadas de modo permanente.
É claro que, na Venezuela, a reação elitista se deu de forma proporcionalmente mais feroz que no Brasil, sem qualquer diálogo possível entre a situação e a oposição golpista. Esta se recusou a participar das últimas eleições que, talvez até por isso mesmo, deram a Nicolás Maduro um novo mandato e, sempre na tentativa de deslegitimar o governo eleito, não lhe deram “reconhecimento”, tendo o presidente do Parlamento desempoderado pela Assembleia Constituinte, se autoproclamado presidente interino do país, a atender sugestão de um celerado Donald Trump.
O seduzente presidente interino, um jovem de trinta e cinco anos com ódio no discurso e na prática, Juan Guaidó, o Henlein caribenho, se mostrou articulado com as forças da direita da região reunidas no “Grupo de Lima” e tendo à frente o uruguaio Luís Almagro, secretário-geral da OEA, que resolveram reconhecê-lo o “legítimo
representante” do povo venezuelano, a despeito de não contar com nenhum mandato constitucional para tanto. Prevaleceu a subserviência ao presidente norte-americano que voltou a dar as cartas no tabuleiro político do hemisfério. O presidente Maduro, face à desavergonhada intromissão americana nos assuntos internos do país, rompeu relações com os Estados Unidos da América do Norte e determinou a retirada de seus diplomatas no prazo de setenta e duas horas.
Mas, para agravar a crise bilateral, o secretário de estado norte-americano se recusou a retirar os diplomatas, dizendo que não reconhecia o ato do governo venezuelano por não reconhecer Maduro como seu chefe. A esta altura não restam mais dúvidas sobre o real intento ianque: provocar uma intervenção de larga escala para
destituir o governo constitucional da Venezuela e impor seus interesses sobre a economia do país. Na Venezuela, a elite não foi tão eficiente como a brasileira e deixou o serviço sujo para ser feito, sem intermediários, por seus patrões do Norte. As estratégias foram distintas, dadas as peculiaridades políticas de cada país, mas, ao final, Brasil e Venezuela estão no mesmo barco, com a destruição sistemática de seus projetos nacionais de desenvolvimento econômico e de justiça social. Prevalece o poder hegemônico norte-americano, mui bem servido por nossos Henleins da vida, que podem se chamar Temer, Janot, Moro, Cunha, Aécio ou Guaidó. E ainda há quem
acredite que o problema de nossos países é a corrupção da esquerda ou sua hostilidade autoritária à democracia.
Eugênio Aragão foi Ministro da Justiça em 2016, no governo Dilma Rousseff. É professor titular de direito internacional da Universidade de Brasília, pela qual é graduado em direito.
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