Radicalização democrática: A Bolívia retoma o governo de todos para todos
Nivaldo T. Manzano (24/10/20)
Para entender a vitória esmagadora de Luís Arce, do MAS (Movimento para o Socialismo), é preciso enxergá-la na perspectiva de transição da democracia representativa para um novo tipo de representação popular, que busca converter em realidade o que até hoje não passou de mera formalidade, vazia de substância. O desconforto generalizado em que se vive na democracia representativa, frente à sua ineficácia na resposta aos anseios da sociedade, vem da ausência de participação efetiva, ausência de que se vale a elite do dinheiro para se apossar do poder, mediante corrupção, para exercê-lo em proveito próprio contra o interesse popular. A vitória do MAS expressa a rejeição real e programática ao alijamento do “nós todos” do espaço da política, para a sua reinserção nesse espaço.
A tradição milenar dos povos ameríndios no modo como mobilizam o sentimento de comunidade e de autogoverno na solução de seus problemas, associada à prática coletiva do sindicalismo, síntese viva encarnada na figura do líder Evo Moralez, um aymará sindicalista, contribui para explicar o que se passa na Bolívia. Sem medo de errar, pressinto que é na Bolívia que se consolida o que a proposta da representação democrática contém de radical – o governo de todos para todos.Ideologicamente, o MAS, partido de Arce, criado por Evo Moralez, representa a convergência harmônica do sindicalismo com a tradição comunitarista e de autogoverno dos povos ameríndios. Essa simbiose constitui uma inovação do pensamento de esquerda na América Latina, oposta ao marxismo da Terceira Internacional Comunista (1919), cuja orientação ideológica levou à expulsão do peruano José Carlos Mariátegui (1894 – 1930), militante e intelectual considerado o "pai" do marxismo latino-americano. A vitória de Arce é um tributo ao pensamento de Mariátegui, que equiparava em valor axiológico a dimensão econômica à dimensão cultural. Veja aqui https://pt.wikipedia.org/.../Jos%C3%A9_Carlos_Mari%C3...). Historicamente, constitui também uma reafirmação da volta de 180 graus na maneira sobranceira e paternalista com que a hierarquia católica olhava para a condição social e política dos povos ameríndios, então correspondentes a três quartos da população da Bolívia, quando se consideram originários e mestiços.
Desde os tempos coloniais, a população indígena se viu alijada da esfera política boliviana, uma situação que não se alterou com a proclamação da independência, quando a elite criolla (descendentes de europeus nascidos na América) se estabeleceu no poder, reproduzindo as instituições políticas e os instrumentos jurídicos já vigentes e controlando as grandes propriedades agrícolas, nas quais os indígenas trabalhavam em situações de escravidão. O processo de democratização iniciado a partir da Revolução Agrária de 1952 transformou, em parte, o regime de exclusão étnica que imperava até então e contribuiu para que a questão indígena atingisse uma posição de relevo no cenário político boliviano. Essa relativa proeminência foi resultado, em linhas gerais, da adoção do sufrágio universal na Bolívia, que ampliou o direito de cidadania a milhões de indígenas anteriormente marginalizados de qualquer consulta sobre os assuntos políticos do governo, tornando-os, assim, visíveis aos olhos dos políticos devido ao considerável contingente de votos que representavam. Data desta época, também, a formação de agências de desenvolvimento e de institutos indígenas, que contribuiu para a distribuição de terras e créditos agrícolas e propiciou o fornecimento de subsídios à produção, configurando, contudo, por outro lado, uma nova rede de compensações clientelistas que possibilitou o controle das comunidades indígenas por parte do Estado boliviano. Ao mesmo tempo, a educação formal e gratuita expandiu-se para as áreas rurais e permitiu que os indígenas tivessem um maior acesso a possibilidades de ascensão social. No entanto, percebe-se que a educação foi utilizada, na verdade, como ferramenta de dominação e cooptação dos povos indígenas, uma vez que as matérias eram ministradas unicamente na língua espanhola e buscavam disseminar a religião cristã e os valores intelectuais e morais da cultura europeia, em detrimento dos tradicionais costumes indígenas.
De fato, até as décadas de 1950 e 1960, duas importantes correntes ideológicas problematizavam a questão indígena e suas implicações para o desenvolvimento dos países: o liberalismo e o marxismo. Segundo estas duas ideologias, a questão indígena representava um obstáculo para o desenvolvimento da América Latina. Para os liberais, a questão indígena relacionava-se diretamente à pobreza e ao subdesenvolvimento nacional, devendo ser superada mediante a educação, a assimilação e o progresso tecnológico. Os marxistas, por sua vez, consideravam os indígenas como uma classe economicamente oprimida, que deveria lutar, assim, em solidariedade com outras classes desfavorecidas. Ou seja, as duas correntes de ideias compartilhavam a mesma indiferença em relação aos problemas étnicos e culturais, considerando a questão indígena na América Latina como um problema puramente econômico.
Foi somente a partir da década de 1970 que essa postura ideológica começou a se alterar, quando, sob a influência do pensamento gramsciniano e sua crítica ao reducionismo econômico, reconheceu-se a equivalência entre as dimensões materiais – políticas e econômicas – e os elementos culturais, dentro de uma visão integrada da sociedade. A cultura é reconhecida como uma importante dimensão das várias instituições – econômicas, políticas e sociais -, e a esfera política passou a ser vista como o campo que envolve uma disputa em torno de um conjunto de significações culturais. Vale ressaltar, também, o surgimento, nesse período, da teologia da libertação na América Latina, que em muito favoreceu a assistência da Igreja Católica aos mais pobres. As missas celebradas nas igrejas católicas nessa época falavam das grandes desigualdades sociais e econômicas que caracterizavam a região.
O que segue é o resumo do trabalho de Bruno Siqueira e Abe Saber Miguel, intitulado “A INSERÇÃO DOS MOVIMENTOS INDÍGENAS NA ARENA POLÍTICA BOLIVIANA: NOVOS E VELHOS DILEMAS’. A conclusão do estudo foi superada no tempo, mas a leitura ainda é aproveitável. Aqui
https://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/3121/2857
Nenhum comentário:
Postar um comentário