O pavor da liberdade, a manipulação
ideológica das “ciências cognitivas e a “esquerda populista”
Nivaldo T. Manzano (16/10/20)
O pavor frente à incerteza e ao risco do destino humano induz ao desejo
recorrente de se livrar da liberdade ao longo da história da reflexão no
Ocidente. Na sua forma elaborada, apresenta-se pela primeira vez na República
de Platão, no momento de máxima incerteza política sobre o destino da
Democracia de Atenas. Ateniense e aristocrata, de família tradicional cultivada
no mando, Platão advoga que a Cidade deva ser conduzida por filósofos,
profissionais que sabem das ideias eternas, como a verdade, de caráter
transcendente. O destino da Cidade não poderia estar sujeito às vicissitudes e
ao devaneio inculto da opinião pública, ou seja, à vulgaridade oportunista da negociação
política entre as partes conflitantes, negociação proposta pelos sofistas, seus
contemporâneos, como Protágoras, conhecido por fazer baixar do Olimpo platônico
ao mundo dos homens o múnus da política, ao dizer que “o homem é a medida de
todas as coisas”.
O medo da liberdade é reconstruído no
período do Romantismo ao longo da obra literária de Dostoiévski e atinge o seu
máximo de intensidade na Lenda do Grão Inquisidor, em “Os irmãos Karamazov”.
Dostoiévski recorre à lenda em resposta ao materialismo por ele considerado
como grosseiro de Julien Offray de La Mettrie (1701 – 1741), médico e
filósofo francês da vertente mecanicista do Iluminismo, que fincara as suas
raízes no pensamento de Descartes, do homem-máquina. Essa corrente teve grande
acolhida nos séculos XVII e XVIII e no século XIX com o físico austríaco Ernest
Mach (1838 – 1916), por exemplo, que inspirou o materialista Vladimir Lenin em
seu livro “Materialismo e empiriocriticismo”, livro que exerceu forte
influência sobre marxistas, como Friedrich Engels, por exemplo. São de Engels
as metáforas incendiárias do energetismo, trabalhadas como sistema pelo letão
Wilhem Ostvald (1853 – 1932), e de seu mecanicismo da infraestrutura e da
superestrutura. Compreende-se: Como observam o Prêmio Nobel em fisiologia
François Jacob “A lógica da vida”, e Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química
(“A nova aliança”), entre outros, a reflexão de cientistas nos três séculos
seguintes a Descartes presta tributo ao modelo da Física como único modelo
aceitável pela ciência.
Espinosa (1632 – 1677), que inaugura a vertente
do Iluminismo Radical, na expressão do historiador Jonathan Israel, assume a liberdade
como problema maior da filosofia e a formula sob o modo condicionado: a
liberdade consiste no assentimento, na “opção” entre tendências opostas (paixões
tristes x paixões alegres), dentro de uma concepção monista, que não separa
corpo e mente. E a sua liberdade é exercida, não de modo absoluto mas sob a
contingência necessária das circunstâncias, do mesmo modo como ocorre em Freud,
Nietzsche, Hegel e Marx, dentre os grandes pensadores, que assumem em comum a
inerência da dimensão histórica na existência humana.
No século XX, o
mecanicismo retorna com a popularidade do Projeto Genoma Humano, que está “intimamente vinculado ao uso político e retórico
de um determinismo genético crescentemente irreconciliável com
os resultados empíricos da pesquisa genômica atual (Leiam-se as demonstrações
empíricas laboratoriais de François Jacob). “A complexidade verificada no
genoma humano e em suas interações com o meio desautoriza a manutenção de uma
noção simples, unidirecional de causalidade, contrariamente ao pressuposto na
ideia de gene como único portador de informação, esteio da doutrina
do determinismo genético. Porém, um complexo de metáforas informacionais e/ou linguísticas
continua vivo nos textos publicados por biólogos moleculares e outros
pesquisadores na literatura científica. Tais metáforas inspiram um tipo de
discurso ambíguo que modula nuances variadas de retórica determinista, conforme
se dirija aos próprios pares ou ao público leigo. A crítica da tecnociência
deve desafiar o campo da genômica a reformular drasticamente as metáforas que
dão suporte a seu programa hegemônico de pesquisa” (De Marcelo Leite, em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662006000300005 ).
A partir de então, quando
um biólogo molecular fala em código genético ou trecho codificante na
sequência de DNA, ele remete à imagem de um programa de computador. Assim
ocorre ao entomólogo Edward Osborne Wilson, especialista em
formigas, que propõe, com a sua Sociobiologia, um vínculo de dependência
mecânica e unívoca do comportamento humano para com o comportamento animal, de
base genética nos termos contestados empiricamente pela pesquisa genômica na
atualidade por François Jacob e Jacques Monod, entre outros. Ou seja, Wilson
ignora a função mediadora da Cultura, uma característica distintiva da espécie
humana. Inspirado no mesmo filão da sociobiologia, reaparece com frequência em
capas da revista Time o receituário para a erradicação científica do sofrimento
humano, como o da perda de um ente querido, mediante medicação química, na
presunção demiúrgica de que seria possível, graças a unguentos – agora –
neurocientíficos, eliminar, como resquícios bárbaros da mentalidade primitiva,
culturalmente equivocadas, ou defuntas as tragédias gregas de Eurípides ou de
Sófocles, ou de Shakespeare.
O mundo das formigas humanas reaparece, em versão
envergonhada e mitigada do determinismo que embebe os trabalhos do
norte-americano George Lakoff, pesquisador dos fundamentos materiais de
linguagem, vinculado ao universo científico das ciências cognitivas e da neurociência,
coqueluche atual na Academia. Uma coincidência rebarbativa é a ocorrência do
Big Brother, que emerge do potencial oferecido pelo Big Data, de controle das
mentes por quem as controlaria, supostamente à exceção de seu controlador. Uma
proposta capturada no mesmo filão ressurge na novíssima novidade tecnológica
apresentada por Elon Musk, dois meses atrás, quando à frente da plateia mostrou
o seu projeto de acoplar o cérebro humano a um chip, em desenvolvimento por sua
empresa Starlink, e assim acionar o cérebro para o comando do comportamento
humano à distância, sem a mediação do controle voluntário da mente. Isso
tangencia a ficção científica do Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, e “A ilha
do dr. Moreau”, de H.G. Wells, e evoca a lenda do Grão Inquisidor, de
Dostoiévski.
De acordo com Lakoff, “a maneira como experiências habituais produzem vínculos e trilhas neuronais em nossos cérebros, modifica-nos, nesse sentido, fisicamente, e influencia de modo DETERMINANTE a maneira como pensamos e reagimos diante de um acontecimento, de uma imagem, de uma cena, de uma palavra, de um discurso, de um rosto etc.” (leia-se aqui https://medium.com/@ababeladomundo/n%C3%A3o-d%C3%A1-para-manipular-a-massa-sem-sujar-as-m%C3%A3os-ddcc04404142 ).
“Determinante”
é o nó da questão, objeto da controvérsia entre a liberdade de ação do ser
humano, ainda que condicionada pelas circunstâncias (ou contexto) e a sua
negação, mediante a presunção teórica (dogmática) de que a ordem dos fatos
cognoscível, na qual cada elemento depende de outros numa cadeia causal, possa
ser prevista, assim como ocorre no estudo das enfermidades. Transpõe-se
diretamente dessa maneira o plano biológico para o plano cultural, na
pressuposição de que exista uma continuidade linear entre um plano e outro.
De
fato, como aduz Merleau-Ponty, ao longo de seus livros sobre a fenomenologia do
comportamento, existe uma continuidade biológica entre o comportamento humano e
o comportamento animal, de modo que se poderia falar metaforicamente de corpo
mental ou mente corporal, pois não é possível pensar ou agir de modo
estritamente mental nem de modo estritamente corporal. Porém, adverte ele, embora
o vínculo entre ambas as dimensões seja indissociável, não se pode atribuir
dependência recíproca de caráter mecânico ou causal entre uma dimensão e outra,
sob o risco de se mutilar o todo de que se constitui o fenômeno, o seu caráter
unitário. Ele o demonstra mediante dezenas de analogias, exemplos e evidências.
Ou seja, existiria um “espaço” virtual, responsável pela emersão da diversidade dos comportamentos, ou da cultura, representado pela capacidade da consciência de tomar distância de si mesma, da autorrecorrência, ou auto-organização. É dizer que o sujeito do conhecimento não apreende o objeto ao modo de um papel carbono, espaço no qual o ser humano exerce, na modulação dos modos de perceber o mesmo mundo, a sua criatividade, modulação que brota da imaginação e da fantasia, faculdades associadas obviamente a estímulos de ordem corporal (cerebral), indissociáveis da ordem cultural, embora sejam distintas, não, porém separadas. A subjetividade encontra-se necessariamente presente no mesmo espaço em que ocorre a apreensão do objeto.
Pense-se,
por exemplo, no conteúdo e significado referencial de um mesmo aroma, aspirado,
diferentemente, por uma mesma narina biológica, associada à aspiração da
cultura medieval e associada à da cultura contemporânea. Essa diferença
CULTURAL, espantosa, é tema da obra clássica “As palavras e as coisas”, de
Michel Foucault e pode ser observada também no livro ou no filme intitulados “O
perfume”. A percepção dessa diferença torna-se possível em razão da existência desse
espaço, dessa frouxidão subjetiva-objetiva constitutiva do laço entre cérebro e
mente, sem a qual seríamos logicamente obrigados a admitir a ideia de progresso
moral na espécie humana, que seria resultante do aprendizado na evolução social
e na evolução das ciências. Assim como mediante o avanço na metalurgia das
ligas de aço, obtém-se uma faca de fio mais cortante – também o fio mais
cortante produziria um aumento ou uma redução dos assassinatos por arma branca.
Essa
é justamente a ideia central do tema de Dostoievéski, em “O Crime e Castigo”,
em resposta à ideologia do progresso moral, que justificaria o socialismo
determinista como ele o enxerga nos ideólogos do século XIX.
Da
mesma forma, Lakoff assume, por sua própria conta, a crítica contra a “esquerda
populista”, que se expressaria indiferentemente na exaltação do socialismo real
ou utópico, na pressuposição de que a União Soviética e agora a China, sejam a
sua encarnação. Ignora, assim, que os termos socialismo e comunismo prestam-se
à manipulação de uma específica retórica ideológica e propagandística, com
vistas a dissimular o seu caráter de Capitalismo de Estado. Leia-se a propósito
o entusiasmo de Lenin pelo taylorismo-fordismo, em Robert Linhardt (“Lenine, os camponeses
e Taylor”) e aqui
(https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-75901986000100012 ).
À luz do pensamento de Karl Marx, expresso em “O Capital”, obra da maturidade, não há ali nada além da alusão a uma utopia comunista, à margem contingente do leito de sua argumentação, utopia que não decorre nem emerge LOGICAMENTE das análises que faz em o Capital, como conceito e categoria histórica, com base em estrita evidência histórica, empírica e documental. O Capital encerra-se no seu terceiro volume sem remissão a qualquer teleologia, ou profecia, a nenhum tipo de finalismo, milenarismo, mecanicismo, messianismo ou determinismo, ao contrário do que ocorre eventualmente em escritos de Engels. A obra de Marx não pode ser lida como a realização do plano arquitetônico de uma catedral, que se desenha antes de se dar início à construção. Ela transcorre na azáfama entre detenção policial, fugas, precariedade na provisão material da família, enfermidade e envolvimentos políticos e escritos jornalísticos, paralelamente aos quarenta anos de suas sucessivas retomadas de elaboração científica.
Todos os equívocos aqui assinalados decorrem da rejeição da presença do sujeito no espaço do objeto da ciência, na suposição de que a sua objetividade exija a ausência de pegada humana, a sua referência. Isaac Newton imaginou que, ao criar a sua Física, enunciava as leis com que Deus criara o mundo, e assim também pensou Galileu. Ora, é essa presença que faz da empreitada científica uma obra humana, dando-lhe sentido e referência.
A “esquerda populista” de Lakoff é um cliché utilizado por quem identifica a obra de Marx com o marxismo vulgar ou por quem nunca foi além da leitura da orelha de um livro sobre a sua obra.
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