domingo, 1 de novembro de 2020

O valor transcendental da dúvida e das paquera

 O valor transcendental da dúvida e das paquera

Nivaldo T. Manzano (01/11/20)

“O sonho da razão produz monstros” (Goya)
Poucas ideias na história da humanidade continuam a inspirar no bestunto tanta estupidez e violência fratricida quanto a de racionalidade, na sua acepção de propriedade distintiva do homo sapiens superior a todas as demais, acima da intuição, dos sentimentos, das emoções, da ética e da estética. Em especial na atualidade, a racionalidade é alçada à condição de condão responsável por separar a civilização da barbárie, um cajado de Moisés a abrir o mar ao meio e conduzir o povo eleito à terra prometida. Como marco da Idade Moderna na Filosofia, esse cajado foi utilizado por René Descartes (1496 – 1650) como único meio legítimo de se chegar ao conhecimento, e por Immanuel Kant (1724 – 1804), como despertador que acordou o ser humano de seu sono dogmático em que se encontrava desde a expulsão do Paraíso, até que o Altíssimo o tivesse feito renascer em Koeningsberg (hoje Kaliningrado), circunstância geografia somente comparável, no diapasão religioso, a Belém, onde nasceu Jesus.
A razão, entronizada como deusa na Catedral de Notre Dame, em Paris, na Revolução Francesa, está na base da ideologia dominante na atualidade, da escolha racional, segundo a qual o indivíduo, calculista de nascimento, age visando a maximizar a realização de seus fins, com vistas a obter a maior satisfação possível de suas ambições e interesses pessoais. Está aí a justificativa da competição social fratricida, que o pensamento liberal, na sua versão atualíssima, consagra como a única regra a regular a “sociedade de mercado”, regra copiada da mesma que regulava a luta entre os gladiadores no Circo Romano, de cuja arena ninguém poderia sair vivo.
Será assim? Em reação às luzes do Iluminismo, que professava, Goya chama à atenção o “sueño de la razón” que “produce monstruos” (leia aqui o belíssimo ensaio “Luz e razão – a sede de Goya” https://www.ifch.unicamp.br/.../PDFTrabs/MI-Osonodarazao.pdf
A propósito desse evangelho utilitarista, de cálculos sobre os custos e benefícios, o filósofo norueguês Jon Elster (1940 - ) arrola mais um desmentido, demolidor como os demais que o precederam, ao advertir para o equívoco de se pretender hierarquizar os valores humanos. Como pano de fundo de sua crítica, Elster investe contra o modelo positivista (funcionalista), que preside à pesquisa científica na Academia contaminando todos os saberes, incluída a ecologia, considerada como um economista em busca do equilíbrio ótimo na alocação dos recursos disponíveis, em sua programação linear, com vistas à maximização dos ganhos e minimização dos custos. Ao destituir esse imediatismo palmar do comportamento humano, Elster propõe em seu lugar a maximização da uma estratégia global, o que implica uma tomada de distância (descolar-se do veredito supostamente implacável dos algoritmos), mediante a contenção do impulso “racional”, para permitir a entrada em ação da criatividade. E apresenta o seu argumento inspirado na sabedoria de Homero, um epítome do pensamento grego na antevéspera do advento da filosofia no Ocidente.
Elster está longe de ser um irracionalista: dedica a sua obra a remover o caráter hierárquico e excludente da primazia da racionalidade, para colocá-la, como o quiseram os gregos com a ideia de logos*, ao pé de igualdade com os demais valores. Para ilustrá-la, recorre ao episódio da Odisseia em que Ulisses ordena a seus marinheiros que o amarrem ao mastro da nau, para não sucumbir à sedução do canto das sereias, na expectativa de retornar à casa, onde o esperava a esposa Penélope (Leia-se “Ulissses e as sereias”, Lisboa, Estampa, 1994). Ao utilizar essa metáfora, Elster destitui, assim, o imediatismo palmar atribuído ao suposto comportamento humano dos meios e dos fins racionais, e propõe em seu lugar a adoção de uma estratégia global, o que implica a inclusão, no processo de decisão, de uma tomada de distância (descolar-se do veredito dos algoritmos), para permitir a entrada em ação da criatividade, que não se dissocia da intuição e dos demais valores.
A consciência da distância (ensaio e erro, hesitação, dúvida, imaginação, fantasia, sonho, simulação, paquera) expressão do caráter não causal, não mecânico e não determinista da ação do cérebro sobre a mente, é de suma atualidade no momento em que o bilionário Elon Musk anuncia o seu projeto de alcance trilionário, confiado à sua empresa Starlink, de vincular DIRETAMENTE um chip colado ao computador, permitindo que o comportamento humano seja acionado à distância pelo dr. Strangelove, sem que intervenha o livre arbítrio, à exceção do controlador que controlaria todos os demais, reduzidos a autômatos.
• A noção de racionalidade, como faculdade humana dissociada dos demais valores distintivos da existência, deriva na história da cultura ocidental de um “erro” não deliberado na sua tradução do grego para o latim, por ausência de termo correspondente. O logos expressa a união inseparável, porém distinta, entre razão, intuição, sentimentos, ética e estética.
IFCH.UNICAMP.BR
www.ifch.unicamp.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário