sexta-feira, 28 de maio de 2021

Ciências cognitivas e neuroética

 

Ciências cognitivas e neuroética

https://www.scielo.br/j/bioet/a/rBrNwn6L7TpjYgRgSSsqGpc/?lang=pt  

O artigo parte da discussão entre a visão representacional computacional da cognição contraposta ao enfoque enativo da ciência cognitiva, que defende que o conhecimento é fruto da afetação do corpo pelo ambiente. Discute as consequências dessa visão enativa para a compreensão da neuroética, entendida não como conjunto de parâmetros éticos para as experiências científicas nas neurociências, mas como compreensão neuronal científica do agir moral. A explicação neuronal da ética parte de neuroimagens como expressões de emoção, mas reduzir a moralidade às emoções é discutível, pois juízos emocionais, baseados na proximidade afetiva, destoam de normas éticas de base universal. Outro ponto crítico dessa visão é o artificialismo de suas experimentações, devido ao esquecimento do mundo cotidiano de afetações do corpo, enfoque trazido pelo enativismo da ciência cognitiva.

domingo, 23 de maio de 2021

O que o Iluminismo Kant

 O que é o Iluminismo - Kant - em arquivo marxista na internet


https://www.marxists.org/portugues/kant/1784/mes/resposta.pdf 

A técnica em Heidegger - Franklin Leopoldo e Silva


Martin Heidegger e a técnica (Scielo)

 https://www.scielo.br/pdf/ss/v5n3/a04v5n3.pdf

Kant e a geografia

 tese  USP bb

https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8135/tde-17112015-122106/publico/2015_RodrigoDaCunhaPacheco_VCorr.pdf

Sistemas

Sistemas 

https://onedrive.live.com/?authkey=%21AMNOx4KM%2D3WsSYg&cid=0F9E22D21157E8E4&id=F9E22D21157E8E4%211310&parId=F9E22D21157E8E4%21193&o=OneUp 

domingo, 9 de maio de 2021

Os modelos na ciência: traços da evolução histórico-epistemológica bb

 Os modelos na ciência: traços da evolução histórico-epistemológica

Models in science: traces of historical-epistemological evolution

Fernando Siqueira da Silva1  * 
http://orcid.org/0000-0003-2634-2247

Francisco Catelli2 
http://orcid.org/0000-0002-2484-7711

1Universidade Federal do Pampa, São Borja, RS, Brasil

2Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, RS, Brasil


RESUMO

O que é um modelo? Neste artigo apresentamos alguns aspectos históricos e epistemológicos da noção de modelo desde sua inserção na ciência até a sua concepção mais contemporânea. O cenário é limitado às ciências formais e factuais. Analisando algumas discussões entre filósofos da ciência e cientistas, a respeito das diferentes noções de modelo, partimos do final do século XIX onde aparecem os modelos mecânicos e as analogias em física (1860), passamos pelos modelos em lógica matemática (1920), depois pelos modelos matemáticos, objetos-modelos e seus modelos teóricos (1950) e chegamos à metade final do século XX onde aparecem os modelos computacionais (1980). Percebe-se então que a resposta à pergunta “o que é um modelo?” não pode ser dada de modo universal. Um desenho, um diagrama, um esboço, uma ilustração, um objeto concreto (maquete), uma estrutura matemática (modelo simbólico), um software de computador, uma cópia de alguma coisa (modelo icônico), tudo isso pode ser considerado modelo de algo. Tomados no sentido epistemológico todos podem ser considerados como estruturas concretas ou abstratas que visam de alguma forma representar diferentes aspectos de uma determinada realidade, coisa, fato ou fenômeno.

Palavras-chave: Modelos; epistemologia; filosofia da ciência; história da ciência

ABSTRACT

What is a model? In this article we present some historical and epistemological aspects of the notion of model from its insertion in science to its more contemporary conception. The scenario is limited to formal and factual sciences. Analyzing some discussions between philosophers of science and scientists, regarding the different notions of model, we start from the end of the 19th century when mechanical models and analogies in physics appear (1860), we go through the models in mathematical logic (1920), then by mathematical models, object-models and their theoretical models (1950) and we arrive at the end half of the 20th century when the computational models appear (1980). It is then realized that the answer to the question "what is a model?" cannot be given universally. A drawing, a diagram, a sketch, an illustration, a concrete object (mockup), a mathematical structure (symbolic model), a computer software, a copy of something (iconic model), all this can be considered a model of something. Taken in the epistemological sense, all can be considered as concrete or abstract structures that aim in some way to represent different aspects of a certain reality, thing, fact or phenomenon.

Keywords: Models; epistemology; philosophy of science; history of science

1. INTRODUÇÃO

Ao escutarmos a palavra “modelo” inevitavelmente logo pensamos na multiplicidade de sentidos em que ela pode ser empregada. A palavra ou termo modelo pode ser utilizada no sentido metafísico, estético, ético, epistemológico adquirindo assim diferentes significados [1].

Neste artigo interessa-nos o sentido epistemológico do conceito de modelo, o qual possui uma evolução histórica que nos parece girar em torno de dois sentidos mais usuais: o modelo como uma representação de algo pré-existente de um lado e de um modelo como representação simplificada, abstrata e idealizada da realidade, de outro lado.

Inicialmente, apresentamos alguns aspectos históricos e epistemológicos da noção de modelo na ciência, desde o seu primeiro aparecimento, e por fim algumas considerações entre filósofos da ciência e cientistas quanto aos seus usos e limitações na investigação científica. O espaço temporal escolhido está limitado ao intervalo que vai do final do século XIX ao final do século XX, onde alguns traços da noção de modelo, no corpo das ciências formais (matemática e lógica) e das ciências factuais (física, química, biologia), podem ser percebidos.

Acreditamos que as contribuições sobre a noção de modelo e suas utilizações na ciência seja um assunto central a ser trabalhado entre alunos e professores no ensino de ciências, uma vez que os modelos embora estejam presentes nos materiais de ensino, em formas de objetos tridimensionais, didaticamente transpostos, eles podem fornecer distorções sobre a realidade dos fenômenos que tentam representar. Representações estas que auxiliam a nossa compreensão e razão, mas não devem ser confundidas com a realidade dos objetos em si, da qual muitas vezes são meras simplificações e aproximações. Assim, compete ao professor e aos seus alunos terem presente a noção de modelo como uma representação idealizada da realidade, onde as explicações e previsões geradas são no máximo aproximativas e em certos casos, apenas especulativas. Discussões sobre o processo de transposição didática que se inicia na concepção e construção dos modelos científicos, representações idealizadas ou analógicas da realidade, no crivo da ciência, antes de se tornarem modelos didáticos, tem sido o trabalho de alguns professores que se utilizam da modelização em suas atividades1.

2. A inserção da noção de modelo na ciência: o modelo mecânico e as analogias em física

A origem etimológica da palavra modelo vem inicialmente do latim modulus que significava “a medida arbitrária utilizada para determinar relatórios de proporção entre as partes de uma obra de arquitetura”. Aparece depois, na idade média, no francês como moule (molde), no inglês como mould e no alemão como mold. Encontra-se também, durante o período Renascentista Italiano, entre os séculos XIV e XVI, modello, que em francês tornava-se modèle, em inglês model e em alemão modell[5]. Essas transformações da noção de modelo, que antes era utilizada por artesãos, pedreiros e arquitetos aos poucos foram sendo incorporadas à área científica, com uma consequente adaptação de seus significados, como será visto a seguir.

Há indícios de que apenas em meados do século XIX a noção de modelo surge no debate científico. Embora seu uso seja um pouco anterior, remontando ao século XVIII, quando era utilizado pelos astrônomos como sinônimo de sistema [6] [7]. Entretanto, sua entrada enquanto elemento epistemológico deu-se um pouco mais tarde. Falar sobre modelos em física antes de 1860, em matemática antes de 1900 e em ciências sociais antes de 1920 seria cometer uma espécie de anacronismo de vocabulário, já que “nem Pascal, nem Descartes, nem Newton, nem Laplace falam de modelização para descrever o que eles fazem” [5, p.93].

É com Suzanne Bachellard (1983) que se deu o resgate do que pode ser a origem da noção de modelo no debate científico, ao mencionar um artigo publicado pelo físico austríaco Ludwig Edward Boltzmann (1844 – 1906) em 1902, na décima segunda edição da enciclopédia britânica, intitulado “Model” [5] [6] [8]. Partindo inicialmente das áreas artísticas e técnicas, a noção de modelo emerge na investigação científica e no corpo das ciências físicas, mecânicas e matemáticas como “representação tangível [...] de um objeto que tem uma existência real ou é uma construção factual ou mental” [5, p.94]:

“Há muito tempo os filósofos perceberam a essência do nosso processo de pensamento no fato de que nós ligamos aos objetos reais em torno de nós atributos físicos particulares - nossos conceitos - e por meio desses tentamos sinalizar esses objetos ao nosso espírito. Tais opiniões foram no passado consideradas por matemáticos e físicos, como nada mais do que especulações inférteis, mas elas foram recentemente intimamente associadas por Maxwell, Helmholtz, Mach, Hertz, e muitos outros ao corpo inteiro da teoria matemática e física. De acordo com estes pontos de vista, nossos pensamentos estão para as coisas na mesma relação que os modelos estão para os objetos que eles representam. A essência do processo é a fixação de um conceito com um conteúdo definido para cada coisa, mas sem implicar numa completa semelhança entre coisa e pensamento; pois naturalmente não sabemos quase nada sobre a semelhança entre nossas ideias e as coisas às quais nós as ligamos. O que é essa semelhança repousa principalmente sobre a natureza da ligação, a correlação sendo análoga aquela que obtemos entre pensamento e linguagem, entre linguagem e escrita, entre sons musicais e notas sobre a pauta, etc.” (Boltzmann, 1902, grifo nosso).

De fato, esta parecia ser a noção predominante na investigação científica entre a metade final do século XIX e o início do século XX; é o denominado “modelo mecânico”, entendido como representações de objetos reais (concretos) ou mentais (abstratos) para a compreensão dos fenômenos naturais ou físicos [5] [6]. Comenta-se que essa acepção de modelo estava presente em muitos dos trabalhos de Boltzmann, nos quais as propriedades macroscópicas da matéria eram compreendidas através de suas propriedades microscópicas com auxílio de conceitos da mecânica: “esta sua predileção por modelos mecânicos, que inclusive o aproximou de Maxwell, foi a espinha dorsal do seu modus operandi e colocou-o posteriormente em rota de colisão com grandes cientistas da sua época”[9] 2.

O desenvolvimento desse tipo de modelo no ambiente experimental dos laboratórios, relacionando objetos reais (maquetes de madeira, metal ou papelão) e objetos mentais (equações matemáticas) para o estudo do movimento dos gases, dos elétrons, entre outros, ocorria geralmente através do emprego das analogias. Boltzmann valia-se ao mesmo tempo de um “transporte analógico e de um suporte matemático que permite identificar a analogia estrutural [ou substancial] e de automatizar este transporte. Temos ai uma condição forte da noção de modelo, conceito que a distingue de uma simples matematização” [5, p.95].

Ao contrário de alguns cientistas de sua época que apresentavam uma preocupação lógica quase que obsessiva na constituição de seus modelos, Boltzmann via uma “continuidade entre os modelos materiais e os modelos matemáticos” [5, p.95], embora sua atenção estivesse realmente dirigida ao nível conceitual dessas formas de representação.

Essa relação de transporte analógico entre modelos materiais (maquetes) e modelos matemáticos (equações) como auxiliares na construção de algumas teorias físicas era também empregada de modo semelhante pelo físico e matemático James Clerk Maxwell (1831-1879)3 o qual fazia o uso de dois tipos gerais de analogias. Trata-se das analogias substanciais e das analogias formais.

“Nas analogias do primeiro tipo [ou substanciais], supõe-se que um sistema de elementos que possui certas propriedades já conhecidas, que se supõe estarem relacionadas das maneiras conhecidas como enunciadas em um conjunto de leis do sistema, é um modelo para a construção de uma teoria em relação a um segundo sistema. No segundo ou no tipo formal de analogia, o sistema que serve de modelo para construir uma teoria é alguma estrutura conhecida de relações abstratas, em vez de ser, como nas analogias substantivas, um conjunto de elementos mais ou menos visualizáveis que se correlacionam mutuamente em relações conhecidas” [11].

Um exemplo de analogias substanciais pode ser encontrado na teoria cinética dos gases, onde as moléculas seriam representadas por pequenas esferas rígidas em permanente movimento caótico. Para as analogias formais a nova noção de massa que emerge da teoria da relatividade é um exemplo de como o formalismo matemático da mecânica clássica foi usado como modelo para a ereção de uma nova teoria.

As analogias substanciais teriam na ciência, segundo Hempel [11, p.212] um valor heurístico ou didático, permitindo a busca de uma similaridade entre coisas, elementos, objetos distintos ao nível do material (do concreto, do tangível) enquanto as analogias formais, segundo Dutra [11, p.212] estariam mais bem relacionadas a uma similaridade ao nível do conceitual (do abstrato, do intangível).

Segundo o econometrista Michel Armatte [5, p. 96-7] por algum tempo viu-se o domínio das analogias no desenvolvimento dos modelos mecânicos (científicos) para a constituição das teorias em física, em especial nas primeiras duas décadas do século XX, onde elas tomaram uma “posição central e irreversível [...]”, em especial as analogias do tipo formal (essencialmente matemáticas) que, a partir de 1920, passariam a caracterizar os modelos da lógica matemática4.

3. A noção de modelo em lógica matemática: abordagem semântica

Uma nova noção de modelo científico começa a se desenvolver em meados de 1920 e se estenderá até por volta de 1970; essa noção renovada nutre-se predominantemente da abordagem semântica, no interior da lógica matemática [13].

Em um breve resgate histórico, os econometristas aludem aos vários acontecimentos que se sucederam até o seu primeiro desenvolvimento. Seus traços são oriundos da tentativa de matemáticos, lógicos e filósofos em criar uma base unitária, segura e precisa, inicialmente, para as matemáticas: geometria, álgebra, análise, aritmética que estariam entre o primeiro quarto do século XIX e início do século XX com problemas internos em seus fundamentos. E, posteriormente, essa base seria estendida para toda a ciência em desenvolvimento5.

Segundo o filósofo da ciência Luiz Henrique de Araújo Dutra [11] [15] alguns cientistas e filósofos da ciência que defendem a abordagem semântica (entre eles, Frederick Suppe, 1977 e Bas van Frassen, 1980) sustentam que as teorias científicas devem ser interpretadas como “coleções ou famílias de modelos”. Para Van Frassen, essas coleções ou famílias de modelos são basicamente representações de objetos matemáticos também denominados por ele de “semânticos” ou “metamatemáticos”, usualmente “[...] utilizados pelos lógicos na interpretação, por exemplo, de linguagens de primeira ordem” [...], o que se costuma denominar de modelo matemático” [11, p.205]. O modelo matemático na abordagem semântica é utilizado pelos lógicos para julgar se os teoremas que emergem de uma determinada teoria são verdadeiros ou falsos, aponta. Estes cientístas e filósofos da ciência, de modo geral (exceto Van Frassem) fazem uso de uma estrutura formal oriunda da teoria dos conjuntos:

“Trata-se, neste caso, de uma estrutura composta do par ordenado <U, I > , sendo que U é uma coleção de indivíduos dos quais falamos, e I é uma função interpretação, que dá nomes aos indivíduos de U, e especifica a extensão dos predicados e relações pertencentes à linguagem de primeira ordem na qual a teoria é formulada, tal como o tema é explicado nos livros de lógica elementar” [11, p. 215].

Essa noção de modelo semântico, formalizada e logicisada, assume uma posição central na lógica matemática, permitindo importantes avanços na própria matemática e em outros campos do conhecimento (especialmente nas engenharias) estendendo-se até meados de 1970, ocasião em que, a partir da cada vez extensa utilização dos computadores e da informática, essa forma de modelagem (ou modelização) passa a perder seu espaço para a simulação [13].

4. Os modelos no pós-guerra: modelo matemático, objetos-modelo e modelo teórico

O emprego da linguagem matemática em várias áreas do conhecimento adquiriu sua hegemonia numa época em que os homens gostariam de não mais recordar. Foi com o advento da Segunda Guerra mundial que, de acordo com o filósofo da ciência Mário Bunge, o desenvolvimento de pesquisas em inúmeras áreas do conhecimento não-físico (psicologia, sociologia, medicina, economia, entre outras) passou a se dar através da construção de metodologias e teorias por meio da utilização dos modelos matemáticos [12]. Isso levou o autor afirmar que:

“[a] ciência contemporânea não é apenas experiência planificada, executada e entendida a luz de teorias. Tais teorias apresentam-se muitas vezes envoltas em linguagem matemática: toda teoria especifica é, na verdade, um modelo matemático de um pedaço da realidade” [12, p.10].

Foi neste período tenso da história da humanidade que muitos matemáticos de países sob a tutela da Alemanha foram expatriados; muitos deles acabaram aportando na América, em especial nos Estados Unidos [16] onde se encontraram com outros matemáticos, físicos, biólogos, engenheiros, psicólogos, e outros profissionais, originando-se daí um grande número de grupos de pesquisa universitária com tendência interdisciplinar, muitos deles a serviço das indústrias e do desenvolvimento militar norte Americano [12] [5].

A partir desse momento se deu um grande avanço no desenvolvimento de novas áreas da matemática, principalmente no setor da matemática aplicada, entre elas, “A álgebra dos grupos, a teoria dos jogos, teoria das preferências, a programação linear, a programação dinâmica, a teoria dos grafos, os testes sequenciais [...]” [5, p.112], o que permitiu de igual modo, o nascimento de outras disciplinas e muitas outras teorias, entre elas: “a teoria geral dos sistemas, a cibernética, a teoria da informação, [...] a sociologia matemática [...] a lingüística matemática [...] a biologia matemática e a psicologia matemática” [12, p.12].

As matemáticas aplicadas se caracterizam então pela aplicação dos objetos matemáticos ao estudo e desenvolvimento de outras áreas do conhecimento, sejam elas de ciência básica, tecnológicas ou industriais. Elas geralmente fazem uso de um processo chamado de modelagem matemática que “transforma uma situação/questão escrita na linguagem corrente e/ou proposta pela realidade, em linguagem simbólica da matemática [...]”[17]. Essa linguagem simbólica e todas as suas relações possíveis constituem-se nos modelos matemáticos [18] utilizados para descrever e explicar essa situação ou questão. No entanto, é preciso ter claro que nem todo modelo matemático deve ser entendido como modelo no sentido semântico da lógica matemática, isto é, nem todo o modelo matemático está atrelado a um sistema formal conjuntista - tal como apresentado anteriormente.

O emprego dos modelos matemáticos para a resolução dos problemas científicos e para a construção das teorias científicas surgiu como uma forma de trazer mais precisão e clareza para muitas teorias de outras áreas que faziam uso quase que exclusivo da estatística nesse empreendimento, procurando mais a acumulação de dados ou fatos do que realmente buscando a sua compreensão [12].

Essa “revolução científica” ocorrida a partir de 1950, não implicou numa “[...] substituição de uma teoria científica por outra [é muito mais] o esforço de teorização em campos até então não-teóricos” [12, p.13]. Tratou-se do uso de uma nova metodologia que há muito tempo fora monopolizada pela física e que passa agora a ser aplicada a outros ramos da ciência. Nessa nova abordagem predomina o método hipotético-dedutivo6, e suas características mais marcantes são os “objetos-modelo” e os “modelos teóricos” (esses últimos também denominados por Bunge de “teorias específicas”).

4.1. Os objetos-modelo e seus modelos teóricos: os intermediários entre as teorias gerais e os dados empíricos

Para Bunge [12] o desenvolvimento conceitual para a compreensão da realidade inicia-se por meio de idealizações e categorizações das coisas ou fatos. Estas idealizações e categorizações somente são possíveis por meio da construção de objetos- modelo ou modelos conceituais dessas coisas ou fatos. “A formação de cada modelo começa por simplificações, mas a sucessão histórica dos modelos é um progresso de complexidade” [12, p.14]. Ainda segundo o filósofo da ciência, os modelos são construções da observação, da intuição e da razão que, quando submetidos à experiência, podem apresentar tanto suas qualidades quanto seus limites. Seu papel está na tentativa de apreensão da realidade:

“[...] para apreender o real começa-se por afastar-se da informação. Depois, se lhe adicionam elementos imaginários (ou entes hipotéticos), mas com uma intenção realista. Constitui-se assim um objeto-modelo mais ou menos esquemático e que para frutificar deverá ser enxertado sobre uma teoria suscetível de ser confrontada com os fatos” [12, p.16].

Nessa mesma perspectiva, um objeto-modelo (OM) somente pode ser confiável para determinar algo a respeito de uma determinada realidade (coisa ou fato) se, e somente se, for construída uma teoria específica ou modelo teórico que especifique o comportamento do objeto modelado pelo OM. Desse modo, uma teoria que seja inserida no OM apenas pode ser considerada como modelo teórico de alguma coisa ou fato se, e somente se, especificar as suas peculiaridades. Nesse sentido “[...] um modelo teórico é um sistema hipotético-dedutivo que concerne a um objeto-modelo, que é, por sua vez, uma representação conceitual esquemática de uma coisa ou de uma situação real ou suposta como tal [...]” [12, p.16]. Dito de outra maneira é através do seu modelo-teórico que o objeto-modelo pode, enfim, gerar explicações e previsões da realidade. “Um objeto modelo, portanto, é uma representação de um objeto: ora perceptível, ora imperceptível, sempre esquemático e, ao menos em parte, convencional” [12, p.22].

O autor sustenta que os modelos em geral, ou melhor, os OM, possuem uma relação com as coisas ou fatos, na verdade eles têm a capacidade de representá-los. E essa relação não é biunívoca e sim “multivoca”, no sentido em que as relações entre o modelo e a coisa ou entre o modelo e os fatos podem ser inúmeras e vão depender sempre dos meios disponíveis e dos objetivos que se tem. “Um objeto-modelo, mesmo engenhoso, servirá para pouca coisa, a menos que seja encaixado em um corpo de ideias no seio do qual se possam estabelecer relações dedutivas” [12, p. 23]. No geral, este corpo de ideias se transforma em um modelo teórico (quando apresentar coerência em relação aos fatos), e quando se refere a um objeto real ou suposto real se transforma em uma teoria específica deste objeto. Porém, um modelo teórico poderá apresentar coerência ou não somente se estiver ancorado por um ou mais aspectos de uma teoria geral.

A epistemologia Bungeana dos modelos tem sido utilizada por alguns renomados pesquisadores [20] [21] que consideram os modelos como os responsáveis por identificar as relações entre as “teorias” e os “dados empíricos”. Encontrando-se “como intermediários entre as duas instâncias limítrofes do fazer científico: conceitos e medidas” [20, p.15]. Na interpretação do físico e epistemólogo Maurício Pietrocola, Bunge percebe essa necessidade de modelização na ciência como mediadora entre as teorias gerais e os dados empíricos, uma vez que, as primeiras por serem “abstrações produzidas por nossa razão e intuição não se aplicariam a priori às coisas reais”. Da mesma forma, “os dados empíricos apesar de mais próximos da realidade, não podem ser inseridos em sistemas lógicos e gerar conhecimento” [20, p.15]. Essa mediação somente é possível por meio da construção de objetos-modelo.

Um apanhado de situações em física que são dessa forma “modelizadas pela ciência” já nos foi exemplificado: [20, p.16]

Ao observarmos o Quadro 1, percebemos melhor o que o filósofo da ciência denominou de “objeto-modelo”, que pode ser caracterizado como “qualquer representação esquemática de um objeto” [12, p. 32], podendo assim, ter a forma de um desenho (pictórico ou figurativo), de um material concreto (por ex: sólido esférico) ou de uma estrutura conceitual (por ex: onda eletromagnética), embora, segundo o autor, aqueles que realmente interessam para a ciência enquanto construtores e validadores de teorias são os do tipo conceitual:

Quadro 1 Objetos-modelo: diferentes tipos de representações esquemáticas e suas origens 

SISTEMAObjeto ModeloModelo TeóricoTeoria Geral
LUASólido esférico girando em torno do seu eixoTeoria LunarMecânica clássica e teoria gravidade
LUAROnda eletromagnética polarizada planaEquações de Maxwell para o vácuoEletromagnetismo clássico
GELOCadeia linear causal de contasMecânica estatística de cadeias causaisMecânica estatística

Fonte: adaptado de Pietrocola (1999)

“[...] as teorias específicas ou modelos teóricos encerram objetos-modelo do tipo conceitual mais do que representações visuais ou figurativas. Sem dúvida, é possível sempre descrever o modelo com o auxílio de um diagrama e mesmo, às vezes, com a ajuda de um modelo material – tais como os modelos esféricos de moléculas: este auxilia a compreender as idéias difíceis e algumas vezes a inventá-las. Não obstante, nem diagramas nem análogos materiais podem representar o objeto de uma maneira tão precisa e completa como o faz um conjunto de enunciados” [12, p. 25-26].

O fato é que a representação por meio de um objeto-modelo é sempre parcial, ou dito de outra forma, nem todos os elementos pertencentes à realidade são por ele capturados; e é sempre convencional, isto é, a construção de um objeto-modelo dependerá sempre dos objetivos do modelizador. “A fim de conseguir um modelo teórico, o objeto-modelo tem de ser expandido e engastado em uma moldura teórica. Ao ser absorvido por uma teoria, o objeto-modelo herda as peculiaridades desta e, em particular, suas leis” [12, p. 34]. De modo semelhante, “Todo modelo teórico é parcial e aproximativo: não apreende senão uma parcela das particularidades do objeto representado” [12, p. 30]. Deste modo, pode não sobreviver por muito tempo. Os modelos teóricos, quando não dão mais conta de apreender certos aspectos do objeto representado podem dar origem a novos objetos-modelo e a novas teorias gerais7.

Contudo, Bunge percebe que o emprego dos objetos-modelo e dos seus modelos teóricos “não se mantém nas áreas das ciências em desenvolvimento, onde a construção atua centrifugamente, fora dos objetos-modelo, na maior parte do tempo” [12, p. 36]. Este parece ser o caso de algumas áreas das engenharias e da pesquisa operacional conforme passaremos a discutir.

5. Os modelos a partir de 1980: os computadores nas simulações de sistemas complexos

Conforme vimos, a partir dos primeiros trabalhos em lógica matemática, desde 1920 a 1970, todas as noções de modelo na ciência estavam bastante ligadas à “concepção de um modelo que ‘representa’ um real capturado ao mesmo tempo por uma teoria e por uma observação quantificada” [13, p.244]. De um modelo que servia como instrumento de validação empírica de uma teoria. No entanto, essa concepção a partir de 1980 em algumas áreas da ciência como nas engenharias e na pesquisa operacional não se faz mais de forma predominante8.

Devido à complexidade dos objetos estudados por essas áreas, e as inúmeras variáveis envolvidas, como por exemplo, os problemas da climatologia na previsão do tempo, os novos desafios em medicina, problemas em economia, problemas em logística, em meio ambiente, entre outros, vê-se a ausência de uma teoria completa que dê sustentação para a apreensão da realidade; surge deste modo a necessidade do desenvolvimento de novas teorias e de novos instrumentos. É nesse sentido que se identifica uma nova abordagem de modelo na ciência, ligada ao uso dos computadores nas simulações [5]:

“O modelo torna-se um mecanismo de integração de dados produzidos por um sistema de informação. O modelo, conjuntos de equações, conversões, de dados que se transformaram em um software, constitui um sistema de substituição ao sistema real, do qual não se tem teoria completa, e que permite fazer experiências fictícias, para compreender o jogo complexo das suas interações. E estas experiências fictícias constituem efetivamente uma metodologia de substituição, em relação ao método hipotético-dedutivo assim como em relação ao método experimental, no caso dos sistemas complexos” [5, p.113].

A partir da segunda guerra mundial o computador deixa de ser uma simples máquina de calcular e passa a desempenhar o papel de uma máquina de reunir uma grande densidade de dados e teorias, tratando de um vasto número de informações que até então eram intratáveis de outra maneira [5]; de forma semelhante, ele nem sempre exerce o papel de intermediário entre teoria e dados empíricos, deixando também de se basear apenas em um sistema formal (aquele empregado em lógica matemática) em busca da delimitação de um sistema físico ou social: “[...] o modelo não é mais apenas uma estrutura matemática que representa uma teoria, ele torna-se uma dupla representação parcial e orientada (pelo objetivo que se tem e pelo estado do sistema de observação e de medida) [...]” [5, p.112-113].

Busca-se a partir de então, através da simulação por software, antecipar o comportamento dos fenômenos para poder inferir sobre eles. Trata-se de uma técnica bastante empregada na pesquisa operacional que reside no “uso do computador para imitar (simular) a operação de um processo ou sistema por inteiro” antes mesmo de testar a sua validade no mundo real [23]. As simulações, imitações ou experiências fictícias são formas de perceber ou inventar uma realidade (ou as supostas realidades) difícil de ser interpretada e conhecida; as técnicas para isso vão desde a “análise de risco em processos financeiros” até ao desenvolvimento de simuladores de vôo para “imitar o desempenho de um avião de verdade em um ambiente controlado” [23, p.1]. Nestes novos métodos de modelagem ou modelização um sistema parece deixar de ser considerado como conjunto de elementos em interação para passar a ser visto como um conjunto complexo de elementos em interação, um “sistema complexo”.

Nesse breve cenário histórico e epistemológico tentamos apresentar alguns pontos de vista de filósofos da ciência, cientistas e pesquisadores a respeito da noção de modelo científico nas ciências formais e factuais. Embora seja um cenário preliminar e incipiente, o qual não nos permite retirar todas as consequências históricas e filosóficas possíveis, vamos nos ater a algumas conclusões mais gerais sobre o conceito de modelo e sobre as possíveis relações entre os modelos e as teorias.

6. O que é modelo, afinal?

  1. Atualmente, não se pode mais definir de modo “universal” o que é um modelo, como bem lembrou o epistemólogo e desenvolvedor da Teoria dos Sistemas, Jean-Louis Le Moigne [6]. O que é um modelo? Um desenho, um diagrama, um esboço, uma ilustração, um objeto concreto (maquete), uma estrutura matemática (modelo simbólico), um software de computador, uma cópia de alguma coisa (modelo icônico), tudo isso pode ser considerado modelo de algo. Tomados no sentido epistemológico todos podem ser considerados como estruturas concretas ou abstratas que visam de alguma forma representar alguns aspectos de uma determinada realidade - fato ou coisa [12] ou fenômeno [6].

  2. Sejam modelos concretos ou abstratos, tangíveis ou intangíveis, visualizáveis ou inteligíveis, icônicos ou simbólicos o que os define como bons ou maus modelos é a estrutura teórica que carregam, ou o seu modelo teórico. Pode-se dizer então que um modelo não tem tanto valor em si mesmo, se não naquilo que ele faz e para aquilo que ele serve [13, p. 294]. Parece que mais importante do que encontrar uma única e precisa definição para a polissêmica palavra “modelo” é procurar por sua funcionalidade. Contribuições da epistemologia Bungeana nos permitiram entender que os modelos (objetos-modelo) funcionam como “pontes” de ligação entre as teorias e a realidade, operando algumas vezes como instrumentos de validação empírica de uma teoria, e em outras vezes dando origem a novos objetos-modelo e a novas teorias [12].

  3. Os modelos científicos são entendidos como idealizações da realidade e não a própria realidade. No máximo alguns de seus aspectos, alguns de seus referentes são por ele representados. Sendo assim, sempre existirão elementos da realidade que escapam ao modelo e a sua teoria subjacente.

  4. Os modelos científicos apresentam limites de representatividade e, sejam eles concretos ou abstratos, o que os define como bons ou maus modelos são os seus modelos teóricos ou as teorias específicas que carregam [12]. Não se pretende aqui esgotar as (muitas) acepções do que seria uma “teoria científica”. De todo modo, é possível produzir um pequeno inventário dessas acepções, sempre mantendo o foco no objeto desse trabalho, os modelos.

Inicialmente, pode-se dizer que teorias, necessariamente, produzem afirmações, passíveis de confirmação ou falseamento. Duhem, já em 1914 [24], asseverava que as teorias poderiam ser caracterizadas por quatro operações sucessivas: 1- a determinação quantitativa das grandezas pertinentes, 2- a escolha judiciosa das hipóteses, 3- o desenvolvimento lógico – dedutivo dessas hipóteses e 4- confrontações das previsões da teoria com a experiência. Numa acepção um tanto mais moderna, pode-se estipular que teorias científicas contém axiomas, teoremas, demonstrações e definições. Mas é importante pontuar que o conteúdo dessas teorias é necessariamente conexo, uma teoria merece justamente esse nome por configurar um todo estruturado e articulado, e na consecução de tal fim é feito o uso de uma linguagem que não encontra necessariamente contrapartida na observação direta. Nesse sentido, Rosenberg [25] postula que “[uma] teoria é um conjunto de hipóteses que alegam que conjuntos particulares de coisas no mundo são satisfeitos em diversos graus por um conjunto de modelos que refletem alguma similaridade ou unidade.”

Retomando então a posição anterior, (modelos são bons ou maus dependendo das teorias específicas que carregam) é possível olharmos para outra direção, conforme já haviam sugerido os precursores da inteligência artificial, Simon e Newell [26] e considerar que as teorias científicas também cometem os mesmos pecados. Isto é, uma teoria científica, entendida como um “conjunto de afirmações ou sentenças declarativas” sejam elas matemáticas ou verbais que visam expressar através do seu conteúdo lógico a verdade sobre os fenômenos, pecam por erros de “omissão” e de “comissão”. Nos erros do primeiro tipo as teorias não falam toda a verdade sobre a realidade dos fenômenos, elas sempre omitem alguma coisa; nas do segundo tipo, da mesma forma, elas dizem coisas que não encontram contrapartida nessa realidade, elas pecam por excesso:

“A mais conspícua inadequação das teorias é que elas não contam toda a verdade; elas possuem um conteúdo muito menor que o dos fenômenos. Emprestando um termo da estatística, podemos chamar esses erros de omissão de “erros do tipo I”. Mas penso que pode ser mostrado que praticamente todas as teorias erram também na outra direção – elas dizem coisas que não são, como também falham em dizer coisas que são. Podemos chamar esses erros de comissão de “erros do tipo II”. Na medida em que as teorias cometem erros do tipo II - afirmando algumas coisas além da verdade – elas possuem, por certo, um conteúdo total maior que o dos fenômenos” [26, p.68].

Os cientistas [26] entendem que as teorias científicas são compostas por um “conteúdo lógico” e um “conteúdo psicológico”. Por conteúdo lógico eles se referem “aos fatos que podem ser extraídos dela [da teoria] através da aplicação das leis da lógica”. E por conteúdo psicológico, “as proposições empíricas que o cientista é de fato capaz de derivar dela” [26, p. 68-9]. Ambos os conteúdos são de grande valor para o cientista, porém o conteúdo psicológico é o que pode lhe dar acesso às afirmações da teoria em relação aos fatos9. E, percebendo que as teorias científicas não dizem toda a verdade sobre os fenômenos, os autores completam exortando os cientistas a sempre procurar detectar e evitar erros de omissão e comissão.

Para finalizar, a pergunta que nos cabe fazer então: por que os cientistas não abrem mão dos modelos em suas atividades?

Uma resposta surpreendentemente pertinente pode ser a seguinte: simplesmente por que os modelos, de modo geral, permitem um acesso ao conteúdo psicológico da teoria! Outra resposta cabível: os modelos enquanto idealizações da realidade podem ser entendidos como potentes formas de representação do conhecimento. Ainda nessa mesma perspectiva, e concordando com Suzanne Bachelard (1983) [6, p.3] diríamos ainda: “O modelo é um intermediário a quem delegamos a função de conhecimento”, ou seja, ele é um instrumento que nos permite conhecer algo da realidade. Ou ainda, “[...] muitas vezes são construídos modelos porque a teoria completa [ou geral] seria algo muito complexo com o que trabalhar; assim, são introduzidas idealizações que permitem ao cientista produzir resultados significativos com recursos limitados”[27]. Nesse sentido, são os modelos que permitem inferir diretamente sobre os fenômenos e assim testar a plausibilidade, a veracidade da teoria geral em relação à realidade.

Os modelos científicos, enquanto simplificações e idealizações da realidade, são verdadeiras criações do pensamento, e como tal são necessariamente instrumentos falhos numa certa medida, são recursivos, são de fato meios para o conhecimento e embora não seja possível ficar sem eles, também não é desejável a eles se submeter de forma irrestrita [5].

Parece-nos, por fim, interessante fazer a seguinte reflexão: na educação básica o conceito de modelo tem sido objeto de estudo? A relação entre os modelos científicos e os modelos didáticos bem como as suas relações com as teorias é conhecida pelos alunos? Os paradigmas nos quais os modelos estão servidos, a realidade que se procura conhecer são apenas alguns exemplos de questões importantes que poderiam estar no foco das investigações em sala de aula.

Acreditamos que as contribuições sobre a noção de modelo aqui expostas e suas utilizações na ciência são de fundamental importância e poderiam ser mais bem explorados na escola. Algumas experiências práticas de modelização [2] [3] [4] vem tentando demonstrar essa transposição dos modelos científicos (mais complexos pelo seu conteúdo lógico) para os modelos didáticos, que por sua vez aparecem como representações com um menor nível de abstração, com uma linguagem mais comum, mais próxima da linguagem dos alunos. O modelo didático surge então como resultado da transposição didática dos modelos científicos os quais tentam representar uma parcela lógica da realidade em estudo. Resumidamente o modelo didático se coloca a representar de forma psicológica a parte lógica dos modelos científicos. Seu papel vai além de representar alguns aspectos dos fatos ou fenômenos em estudo, ele também visa oportunizar um aproximado conhecimento da realidade.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem aos revisores da RBEF pelas valiosas sugestões oferecidas.

1Para saber mais sobre as especificidades dos modelos científicos e dos modelos didáticos [2]; e algumas atividades de epistemologia prática da modelização em Educação em Astronomia [3] [4].

2Alguns físicos dessa época, como Wilhelm Ostwald (1853-1932), Georg Helm (1851-1923) e Ernst Mach (1838-1916) questionavam a falta de significado nas analogias empregadas por Boltzmann [9, p.21].

3

Maxwell e Boltzmann foram contemporâneos e contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da termodinâmica.

Um estudo mais específico sobre as noções de modelo e analogia, empregadas pelos físicos acima mencionados, merece destaque [10].

4Uma forma interessante de entendermos esses dois tipos de analogias para a constituição dos modelos e suas possíveis utilizações na busca por uma similaridade entre objetos distintos, pode ser encontrada no livro “Teoria e Realidade” do filósofo da ciência Mário Bunge (1974, p. 185-189) [12].

5Retomar todo esse contexto de crise nas matemáticas bem como buscar todas as suas causas seria um projeto extenso e complexo, que evitamos aqui; concentrar-nos-emos na noção do modelo ela mesma. Um estudo interessante sobre esse momento tenso na filosofia da matemática pode ser encontrado em [14].

6O método hipotético-dedutivo é apenas um dos muitos caminhos empregados pela ciência para a resolução dos problemas científicos, o qual pode ser compreendido como aquele em que “[...] o cientista, através de uma combinação de observação cuidadosa, hábeis antecipações e intuição científica, alcança um conjunto de postulados que governam os fenômenos pelos quais está interessado, daí deduz ele, as conseqüências por meio da experimentação e, dessa maneira, refuta os postulados, substituindo-os, quando necessário por outros e assim prossegue”[19].

7Porém, os modelos teóricos não devem ser confundidos com os modelos no sentido semântico. Os modelos nesse último sentido devem tornar verdadeiras todas as teorias que se colocam a interpretar. Nos modelos teóricos no melhor das hipóteses “algumas de suas conseqüências comprováveis se mostram aproximadamente verdadeiras” [12, p.28-29].

8Pesquisa operacional é um termo de origem militar, surgido pela primeira vez na segunda guerra mundial. Inicialmente, uma disciplina desenvolvida para tomada de decisão em estratégias militares. Atualmente é considerada como uma ciência aplicada a várias áreas do conhecimento. De cunho interdisciplinar, vale-se de inúmeras metodologias para a resolução de problemas científicos. [22]

9“O conteúdo lógico de uma teoria é utilizável [...] apenas na medida que [se] possa tornar esse conteúdo explícito por meio de manipulações da teoria, tal como colocada. Toda a matemática (e a lógica verbal, na medida em que é rigorosa) é uma grande tautologia. A surpresa que é ocasionada pelo teorema de Pitágoras deriva das propriedades psicológicas da matemática – da nova informação obtida ao processar as afirmações explícitas da teoria matemática – não de sua lógica” [26, p. 69].

REFERÊNCIAS

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[2] A. Adüriz-Bravo e L. Morales, Caderno Catarinense de Ensino de Física 19, 76 (2002). [ Links ]

[3] F.S. Silva, O. Giovannini e F. Catelli, Caderno Catarinense de Ensino de Física 27, 7 (2010). [ Links ]

[4] F. Catelli, O. Giovannini e F.S. Silva, Caderno Catarinense de Ensino de Física 30, 131 (2013). [ Links ]

[5] M. Armatte, Mathématiques et Sciences Humaines 43, 91 (2005). [ Links ]

[6] http://archive.mcxapc.org/docs/ateliers/lemoign2.pdf. [ Links ]

[7] M. Louâpre, Avant-propos 138, 5 (2007). [ Links ]

[8] J.L. Le Moigne, A Teoria do sistema geral: teoria da modelização (Instituto Piaget, Lisboa, 1977), p.23. [ Links ]

[9] S.R. Dahmen, Revista Gazeta da Física 30, 22 (2007). [ Links ]

[10] T. Roque e A.A.P. Videira, Scientiae Studia 11, 281 (2013). [ Links ]

[11] L.H.A. Dutra, Scientiae Studia 3, 210 (2005). [ Links ]

[12] M. Bunge, Teoria e Realidade (Editora Perspectiva, São Paulo, 1974). [ Links ]

[13] M. Armatte e A.D. Dalmedico, Revue d'histoire des sciences 57, 244 (2004). [ Links ]

[14] J.F. Carvalho, Ciência e Cultura 64, 52 (2012). [ Links ]

[15] L.H.A. Dutra, Philósophos: revista de filosofia 11, 252 (2006). [ Links ]

[16] C.B. Boyer, História da Matemática (Edgard Blücher, São Paulo, 1996), p. 435. [ Links ]

[17] M.I.A. Chaves e A.O. Espírito Santo, Um modelo de modelagem matemática para o Ensino Médio, In: Anais do VII Congresso Norte/Nordeste de Educação em Ciências e Matemática, Belém, 8 a 11de dez. 2004. [ Links ]

[18] M.S. Biembengut, Modelagem matemática & implicações no ensino e aprendizagem de matemática (Furb, Blumenau, 1999), p.20. [ Links ]

[19] A. Kaplan, A conduta na pesquisa: metodologia para as ciências do comportamento (Herder, São Paulo, 1972), p. 12. [ Links ]

[20] M. Pietrocola, Investigações em ensino de ciências 4, 15 (1999). [ Links ]

[21] J.F. Custódio e M. Pietrocola, Ciência & Educação 10, 3 (2004). [ Links ]

[22] A. Ellenrieder, Pesquisa operacional (Almeida Neves-Editores, Rio de Janeiro, 1971). [ Links ]

[23] F.S. Hillier e G.J. Lieberman, Introdução à Pesquisa Operacional (Artmed, São Paulo, 2006) p. 1. [ Links ]

[24] P. Duhem, The aim and structure of physical theory (Atheneum, New York, 1962). [ Links ]

[25] A. Rosenberg, Introdução à Filosofia da Ciência (Loyola, Rio de Janeiro, 2005) p. 133. [ Links ]

[26] H.A. Simon e A. Newell, Models: their uses and limitations, disponível em http://digitalcollections.library.cmu.edu/awweb/awarchive?type=file&item=356856. [ Links ]

[27] S. French, Ciência: conceitos-chave em filosofia (Artmed, Porto Alegre, 2009) p. 44. [ Links ]

Recebido: 07 de Fevereiro de 2019; Revisado: 28 de Março de 2019; Aceito: 06 de Maio de 2019

*Endereço de correspondência: fernandosiqueiradasilva@gmail.com.

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sábado, 8 de maio de 2021

Papel - Raoul Vaneiguem

 Papéis*

Raoul Vaneigem

  

Os estereótipos são as imagens dominantes de uma época; as imagens do espetáculo dominante. O estereótipo é o modelo do papel; o papel é um comportamento modelo. A repetição de uma atitude cria um papel; a repetição de um papel cria um estereótipo. O estereótipo é uma forma objetiva à qual cabe ao papel moldar-se. A habilidade de lidar com os papéis determina o lugar a ocupar no espetáculo hierárquico. A decomposição espetacular multiplica os estereótipos e os papéis; ao fazê-lo, condena os papéis ao ridículo, levando-os a alinhar-se junto à sua negação, que é o gesto espontâneo. A identificação é o modo de apresentação formal do papel. A necessidade de se identificar importa mais para a tranqüilidade do poder que as escolhas dos modelos de identificação.

A identificação é um estado doentio, mas somente os acidentes de identificação caem sob a rubrica oficial chamada “doença mental”. O papel tem por função vampirizar a vontade de viver. O papel pretende repre­sentar o vivido, ao converter-se em coisa; é utilizado para consolar a vida, que ele empobrece. Torna-se um prazer vicário e neurótico.

É preciso livrar-se dos papéis e confiná-los ao lúdico. A vitória do papel assegura a promoção do espetáculo, a passagem da categoria a uma categoria superior; é a inflação, que se concretiza especialmente no culto do nome e da imagem. Os especialistas são os mestres iniciados da iniciação. A soma de suas inconseqüências define a conseqüência do poder que destrói se destruindo. A decomposição do espetáculo torna os papéis permutáveis. A multiplicação das falsas mudanças cria as condições de uma mudança real, de uma mudança radical. O peso do inautêntico suscita uma reação violenta e quase biológica do querer-viver.

Nossos esforços, nossas atribulações, nossas frustrações, o absurdo de nossos atos provêm, na maior parte do tempo, da imperiosa necessidade em que nos encontramos de desempenhar personagens híbridos, hostis a nossos verdadeiros desejos sob o pretexto de satisfazê-los. “Queremos ­viver”, diz Pascal, “na idéia dos outros, numa vida imaginária, e nos esforçamos para nos darmos essa impressão. Trabalhamos para embelezar e conservar esse ser imaginário, e nos esquecemos do verdadeiro”. Original no século XVII, num tempo em que o parecer apresenta-se bem comportado, em que a crise da aparência organizada aflora somente à consciência dos mais lúcidos, a observação de Pascal ganha relevo atualmente, no ­momento em que os valores se decompõem, no momento da banalidade, evidente para todos. Por qual mágica atribuímos a formas sem vida a vivacidade das paixões humanas? Como sucumbimos à sedução de atitudes emprestadas? O que é o papel?

Será que o que estimula o ser humano a buscar o poder é a fraqueza a que o poder o reduz? O tirano irrita-se diante dos deveres a que a própria submissão de seu povo o submete. A consagração divina de sua autoridade sobre os homens ele a paga com um perpétuo sacrifício mítico, com uma humilhação permanente diante de Deus. Ao deixar o serviço de Deus, ele deixa ao mesmo tempo o serviço de um povo que se dispensa de servi-lo. A vox populi, vox Dei deve ser interpretada da seguinte forma: “O que Deus quer o povo quer”. O escravo irrita-se num gesto de submissão que não tenha contrapartida num naco de autoridade. De fato, toda submissão dá direito a qualquer poder e não há poder senão ao preço de uma submissão. Essa é a razão por que muitos aceitam facilmente ser governados. O poder exerce-se por toda parte parcelarmente, em todos os níveis da escada hierárquica. Está aí a sua ubiqüidade contestável.

O papel é um consumo de poder. Ele instala-se na representação hierárquica, no espetáculo, portanto. No alto, em baixo, no meio, nunca aquém nem além. Como tal, o papel intromete-se no mecanismo cultural: é a sua iniciação. O papel é também a moeda de troca do sacrifício individual. Como tal, exerce uma função compensatória. Resíduo da separação, ele esforça-se por criar uma unidade comportamental, apela para a identificação.

A expressão “desempenhar um papel na sociedade” mostra pelo seu uso restritivo que o papel é uma distinção reservada a um certo número de eleitos. O escravo romano, o servo na Idade Média, o camponês diarista, o operário embrutecido por treze horas de trabalho quotidiano não tinham nenhum papel a desempenhar. Ou, então, desempenhavam-no a um grau tão rudimentar que a polícia os enxergava mais como animais do que como seres humanos.

 Existe, de fato, uma condição miserável de ser, aquém da miséria do espetáculo. Desde o século XIX, a noção de bom e mau trabalhador vulgarizou-se como a noção de senhor-escravo se havia expandido no mito, com Cristo. Ela vulgariza-se à custa de menos meios e com menos importância, embora Marx tenha acreditado oportuno protestar. Assim, o papel, como o sacrifício mítico, democratiza-se: o inautêntico ao alcance de todos ou o triunfo do socialismo.

(...)

Existe uma vida e uma morte dos estereótipos. Tal imagem seduz, serve de modelo a milhares de papéis individuais, depois se esboroa e se desfaz, segundo a lei do consumo, que atualiza seu caráter perecível. De onde a sociedade do espetáculo retira os seus novos estereótipos? Da parte de criatividade que impede certos papéis de se conformar ao estereótipo em decadência (da mesma forma que a linguagem se renova em contato com as formas populares), na parte do jogo que transforma os papéis.

À medida que o papel se conforma a um estereótipo, ele tende a se congelar, a assumir o caráter estático de seu modelo. Ele não tem nem presente, nem passado, nem futuro, porque ele é um tempo de pose e, por ­assim dizer, uma pausa do tempo, do tempo comprimido no espaço-tempo ­dis­sociado, que é o espaço-tempo do poder (sempre de acordo com a lógica de que a força do poder reside na sua capacidade conjugada de separar de verdade e de unir de mentira). É-se tentado a compará-lo à imagem do cinema ou, melhor ainda, a um de seus elementos, a um de seus fotogramas que, reproduzidos rapidamente e um grande número de vezes com suas variações mínimas, compõem um plano.

A reprodução aqui está assegurada pelos ritmos da publicidade e da informação, pela faculdade de fazer o papel falar e, por conseguinte, pela sua possibilidade de se erigir um dia em estereótipo. Basta que as ­opi­niões dominantes ganhem algum peso na sua balança, e o papel terá por função especialmente adaptar-se às normas da organização social, de se integrar ao mundo funcional das coisas. É por isso que se vêem as câmeras de televisão enfiar-se por toda parte em busca de se apropriar de existências banalizadas, de fazer de uma bobagem uma questão transcendental (...). À medida que se decompõe, a organização do espetáculo estende seus tentáculos sobre as populações menos favorecidas, ela se nutre dos dejetos que produz (...).

Sobram os irrecuperáveis, aqueles que recusam os papéis, aqueles que elaboram ao mesmo tempo a teoria e a prática dessa recusa. Com certeza, é de sua inadaptação à sociedade do espetáculo que surgirá uma nova poesia da existência, uma reinvenção da vida. Viver intensamente não é desviar o curso do tempo, perdido na aparência? E a vida, em seus momentos mais felizes, não é um presente dilatado que rejeita o tempo acelerado do poder, esse tempo que se esvai em rios de anos vazios, o tempo da decadência?

A identificação — (...). A doença mental não existe. É uma categoria cômoda para manter à parte os acidentes da identificação. Aos que o poder não pode governar nem matar chama-os loucos. Nessa categoria encontram-se os extremistas e os monomaníacos do papel. Encontram-se também os que ridicularizam os papéis ou os rejeitam. Seu isolamento é o critério que os condena (...).

O papel é a caricatura de si mesmo que se leva para toda parte, levando consigo a responsabilidade de nelas fazer valer a sua ausência. Nem por isso a ausência deixa de cuidar de si, de engalanar-se. Paranóicos, esquizofrênicos, criminosos sádicos, cujo papel não é reconhecido como de utilidade pública (não traz o crachá como traz o policial, o chefe, o militar), encontram sua utilidade em lugares específicos, asilos, penitenciárias, ­espécie de museu do qual o governo retira um duplo proveito, ao eliminar concorrentes perigosos e ao enriquecer o espetáculo de estereótipos negativos. Os maus exemplos e sua punição exemplar dão sabor picante ao ­espetáculo e o mantém em funcionamento. Basta encorajar a identificação, acentuando o seu isolamento, para destruir a falsa distinção entre a alienação mental e a alienação social.

No outro pólo da identificação absoluta, existe uma maneira de estabelecer uma distância entre o papel e si mesmo, uma zona lúdica que é um verdadeiro ninho de atitudes rebeldes à ordenação do espetáculo. Ninguém se perde inteiramente num papel. Mesmo negada, a vontade de viver ­mantém um potencial de violência sempre pronta a retificar os caminhos que lhe são traçados. O sabujo fiel que se identifica com o seu senhor pode também cortar-lhe o pescoço na hora oportuna. Chega um momento em que seu privilégio de morder como um cão excita nele o desejo de se bater como um homem. Diderot mostrou-o bem em sua novela “O sobrinho de Rameau” e as irmãs Papin melhor ainda.

É que a identificação, como toda desumanidade, tem também suas raízes no humano. A vida autêntica alimenta-se de desejos autênticos ressentidos. A identificação mediante o papel age duplamente: reabsorve o jogo das metamorfoses, o prazer de se mascarar e de se apresentar sob todas as formas. Ela faz sua a velha paixão labiríntica de se perder para melhor se encontrar, o jogo das escamoteações e das metamorfoses. Ela recupera também o reflexo de identidade, a vontade de encontrar nos outros a parte mais rica e mais autêntica de si. O jogo cessa então de ser um jogo, petri­fica-se, impedindo de se entregar ao jogo de criar novas regras. A busca da identidade converte-se em identificação.

Mas, invertamos a perspectiva. Um psiquiatra escreveu: “A busca do reconhecimento pela sociedade leva o indivíduo a descarregar as suas ­pulsões sexuais num fim cultural, que é a melhor maneira de se defender contra elas”. Trocado em miúdos, isso significa que se atribui ao papel a missão de absorver a energia vital, de reduzir a força erótica em seu proveito por uma sublimação permanente. Por isso, quanto menos realidade erótica se manifesta, mais o espetáculo promove as formas sexualizadas. O papel — Reich diria a “carapaça” — garante a impotência de gozar.

Contraditoriamente, o prazer, a alegria de viver, o gozo de arrebentar a carapaça destroi o papel. Se alguém quisesse considerar o mundo não na perspectiva do poder, mas numa perspectiva em que ele seja o ponto de partida, deveria abrir caminho para os atos que o liberam realmente, os momentos mais autenticamente vividos, que são como clarabóias de luz na penumbra dos papéis. A análise dos papéis à luz da vida autêntica, a sua radiografia permitiria reaproveitar a energia que neles foi investida, retirar a verdade da mentira. Trata-se de um desafio individual e coletivo. Embora sejam igualmente alienantes, os papéis não oferecem a mesma resistência. É mais fácil livrar-se do papel de sedutor que de policial, de governante, de pastor. Compete a cada um estudar a questão.

A compensação — Por que os homens atribuem ao papel um preço às vezes superior ao preço que dão à própria vida? Na verdade, porque a sua vida não tem preço; a expressão significativa aqui, na sua ambigüidade, é que a vida está além de qualquer avaliação pública, de qualquer medida oficial, e também que uma tal riqueza, à luz dos critérios da sociedade do espetáculo, é de uma pobreza lamentável. Para a sociedade de consumo, a pobreza é o que foge da esfera do consumo. Nela, reduzir o ser humano ao consumo corresponde a uma promoção social, do ponto de vista do espetá­culo. Quanto mais coisas se têm e mais papéis a desempenhar, mais se é. É o que dispõe a organização das aparências. Mas, do ponto de vista da realidade vivida, o que se ganha em graus de poder se perde na mesma medida em realização autêntica. O que se ganha em parecer se perde em ser e dever-ser.

Assim, o vivido está sempre disponível como matéria-prima do ­contrato social. É ele quem paga a entrada. É ele que se sacrifica, enquanto a compensação está nos arranjos lustrosos da aparência. E quanto mais pobre a vida quotidiana mais se exacerba a atração do inautêntico. Quanto mais a ilusão convence mais a vida quotidiana se empobrece. Desalojada do essencial à força de proibições, de coações e de mentiras, a realidade vivida parece tão pouco digna de interesse que as soluções da aparência encar­regam-se de todos os cuidados.

Vive-se, então, o papel melhor do que se vive a vida. A compensação oferece, no estado de coisa, o privilégio de pesar mais. O papel preenche uma falta: tanto de insuficiência de vida, tanto de insuficiência na forma de papel (...) A compensação, como o álcool, fornece o doping necessário à realização do poder-ser inautêntico. Existe uma embriaguez da  identificação.

A sobrevivência e suas ilusões protetoras formam um todo ­indissociável. Os papéis, evidentemente, desaparecem quando desaparece a ­sobrevivência, se bem que certas mortes podem vincular seu nome a um ­estereótipo. A sobrevivência sem os papéis é uma morte civil. Da mesma forma como somos condenados à sobrevivência, somos condenados a manter uma boa aparência no inautêntico. A armadura impede a liberdade dos gestos e amortece os choques. Sob a carapaça tudo é vulnerável. Resta, então, a solução lúdica de fazer de conta, ser astuto com os papéis (...)

Em fim de contas, é o mundo que deve estar de acordo comigo para que eu esteja de acordo com ele. Rejeitar os papéis como uma trouxa de roupa suja seria negar a separação e cair no misticismo e no solipsismo. Eu estou na casa do inimigo e o inimigo está na minha casa. Não é necessário que ele me mate, mas é por isso que me protejo sob a carapaça dos papéis. Trabalho, consumo, apresento-me como gente bem comportada, não ofendo os bons costumes.

Mas, como é necessário ao mesmo tempo destruir esse mundo fictício, as pessoas mais espertas passam a jogar entre si com os papéis. Passar por um irresponsável, eis a melhor maneira de ser responsável perante si ­mesmo. Todas as tarefas são sujas, façamo-las de maneira suja; todos os papéis são mentirosos, deixemos que eles se desmintam a si mesmos (...). Basta-me ser verdadeiro com os que me são mais próximos, com os que defendem uma vida autêntica.

Quanto mais alguém se livra do papel, tanto mais pode manipular o papel contra o adversário. Quanto mais se previne contra o peso das coisas, tanto mais liberdade de movimento ganha. Os amigos não se escondem atrás das formas, eles polemizam a descoberto, sabendo que não se machucam. Onde a comunicação é real, o mal-entendido não é um crime (...).

 

*

 

A iniciação  Para proteger a miséria da sobrevivência e para ­protestar contra ela, o movimento de compensação distribui a cada um certo número de possibilidades formais de participar do espetáculo, espécie de salvo ­conduto que autoriza a representação cênica de um ou vários momentos da vida, pública ou privada, pouco importa. Assim como Deus confere a graça a todos os seres humanos, deixando a cada um a liberdade da salvação ou da condenação, também a organização social dá a cada um o direito de ganhar ou perder nos círculos do mundo.

Mas, enquanto Deus alienava a subjetividade totalmente, a burguesia a esmigalha em um conjunto de alienações parcelares. Num sentido, a subjetividade, que não era nada, torna-se alguma coisa; passa a ter a sua verdade, o seu mistério, as suas paixões, a sua razão, os seus direitos. Seu reconhecimento oficial passa por sua divisão em fragmentos escalonados e homologados segundo as normas do poder. O subjetivo entra nas formas ­objetivas, que são os estereótipos, por meio da identificação. Entra como migalhas, como fragmentos absolutizados, decomposto de maneira ­ridícula.

Ser é possuir representações do poder. Para ser alguém, o sujeito deve, como se diz, fazer parte das coisas, desempenhar seus papéis, poli-los, atualizá-los, avançar até merecer a promoção espetacular. A fábrica de alunos, a publicidade, os condicionamentos de todo tipo ajudam solicitamente a criança, o adolescente e o adulto a conquistarem seu lugar na grande família dos consumidores. Esta fragmenta-os, convertendo-os em gente sem importância. A quantificação da subjetividade cria categorias espetaculares para os gestos mais prosaicos ou para as disposições mais comuns: um jeito de sorrir, uma empinação do peito, um tipo de penteado. Há cada vez menos grandes papéis; cada vez mais, figurações. Mesmo os Ubu-Stalin, Hitler, Mussolini não deixaram senão pálidos descendentes. A maior parte das pessoas conhecem o desconforto de aderir a um grupo, de entrar em contato com seus membros: é o medo do comediante de se sair mal no papel. Para remover o medo, é preciso atingir aquele estágio em que se fragmentam as atitudes e em que as poses oficiais caem sob controle. A origem do medo não está no mal desempenho do papel mas na perda de si no espetáculo, na ordem das coisas (...).

 

*

 

 (...). Há muito tempo as mesmas novidades sucedem-se no mercado de bugigangas e de idéias, mudando-se apenas a sua aparência. A mesma ­coisa ocorre no mercado dos papéis. Como dispor de papéis com a qualidade de um papel medieval? Como consegui-lo, sabendo que o critério da quantidade é em si uma barreira e que a mentira se esconde atrás da novidade?

Não somente a multiplicação dos papéis tende a torná-los equivalentes, mas existem ainda os degraus de iniciação. Nem todos os grupos socialmente reconhecidos dispõem da mesma dose de poder, e essa dose eles não a repartem igualmente entre seus membros. Entre o presidente e seus ­acólitos, o cantor e seus fãs, o deputado e seus eleitores estendem-se os caminhos da promoção. Certos grupos são solidamente estruturados, outros são frouxos. Entretanto, todos constroem-se graças ao sentimento ilusório de participação de que estão imbuídos os seus membros, sentimentos que são estimulados por reuniões, insígnias, pequenos afazeres, responsabilidades... Coerência mentirosa e muito frágil. Nesse escotismo estafante encontram-se estereótipos (...).

Será que a socialização dos papéis substitui o velho poder decaído das grandes ideologias? Não se pode esquecer de que o poder está ligado à sua organização da aparência. A recaída do mito em fragmentos ideológicos manifesta-se hoje em uma poeira de papéis. Isso significa que a miséria do poder, para se dissimular, não conta mais senão com a miséria de sua mentira estilhaçada. O prestígio de uma vedete, de um pai de família ou de um chefe de Estado não valem um traque. Nada escapa à decomposição nihilista, senão a sua superação (...).

 O especialista prefigura esta era fantasma, esta engrenagem, esta coisa mecânica estabelecida na racionalidade de uma organização social, de uma ordem abstrata. Ela pode ser vista em toda parte, na política ou nos assaltos a mão armada. Em certo sentido, a especialização é a ciência do papel. Ela faz brilhar com brilho de bijuteria o que antes era jóia autêntica, as tiradas “inteligentes”, o luxo e a conta bancária. Mas o especialista faz mais. Ele converte-se em papel para converter os outros em papel.

É o elo na cadeia entre a técnica de produção e de consumo e a técnica da representação espetacular. Mas é um elo isolado, uma mônada, de certa forma. Sabendo tudo de um pedaço, ele leva os outros a produzir e a consumir nos limites desse pedaço, de tal maneira que recolhe uma mais-valia de poder, aumentando assim o seu pedaço de representação na hierarquia. Por necessidade, ele é levado a renunciar à multiplicidade de papéis para conservar um deles, condensando seu poder em vez de juntá-lo, reduzindo sua vida à linearidade. Torna-se, então, um manager.

A desgraça faz com que o círculo no qual a sua autoridade se exerce seja sempre muito estreito, muito parcelar. Encontra-se na situação do ­gastro-en­terólogo que cura as enfermidades de sua área e envenena o resto do corpo. Certamente, a importância do grupo que ele oprime pode dar-lhe a ilusão de seu poder, mas ao mesmo tempo acaba por revelar-lhe a sua impotência. Assim como dois chefes de Estado de potências inimigas neutralizam mutuamente a força de seu arsenal, assim os especialistas constróem e acionam uma gigantesca máquina — o poder, a organização social — que os domina e os esmaga, com mais ou menos habilidade, de acordo com seu lugar na engrenagem. Eles a acionam cegamente, pois ela é o conjunto de suas interferências.

Por isso, pode-se supor da maior parte dos especialistas que a repentina consciência de uma passividade tão desastrosa, à qual se entregam tão obstinadamente, os desperte para a vontade de uma vida autêntica. É também previsível que um certo número dentre eles, expostos durante um tempo mais longo à radiação da passividade autoritária, deve, como na história de Kafka, morrer com a máquina, torturados pelos seus próprios ­sobressaltos.

 

*

 

A deterioração do papel caminha historicamente passo a passo com a insignificância do nome. Para o aristocrata, o nome contém em resumo o mistério de seu nascimento e de sua estirpe. Na sociedade de consumo, a ostentação publicitária do nome de Bernard Buffet transforma em pintor célebre um dinossauro medíocre. A manipulação do nome serve para ­fabricar dirigentes da mesma forma que se vende loção capilar. Isso significa também que um nome célebre já não pertence àquele que o carrega. Sob a etiqueta Buffet, não se encontra senão uma coisa. Um pedaço de poder.

 

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Ao mudar a perspectiva, tomo consciência de que nome algum é capaz de esgotar ou cobrir o que sou. Meu prazer não tem nome. Nos raros ­momentos em que me construo, nada fica do lado de fora, como uma alça que pudesse ser manipulada do exterior. Somente a alienação de si é que se petrifica no nome das coisas, que nos esmagam.

 

*

 

Um filósofo chinês dizia: “A confluência é a proximidade do nada. Na confluência total, a presença se inquieta”. A alienação estende-se a todas as atividades do ser humano, dissociando-as ao extremo; mas, ao fazê-lo, ela se torna mais vulnerável. Na desagregação do espetáculo, as coisas se passam como  “a vida que toma consciência de si, que destroi o que estava destruído, rejeita o que havia sido rejeitado”(Marx). Sob a dissociação, encontra-se a unidade; sob a usura, a concentração de energia; sob o estilhaçamento, a subjetividade radical, a qualidade (...).

 

*

 

O estado de degradação do espetáculo, as experiências individuais, as manifestações coletivas de contestação devem expressar nos fatos o assédio tático à liberdade do papel de se movimentar. Coletivamente, é possível eliminar os papéis. A criatividade espontânea e o sentido da festa, que se manifestam nos momentos revolucionários, oferecem muitos exemplos. Quando a alegria de viver toma conta do coração do povo, não há chefe nem espetáculo capaz de contê-lo. É somente roubando a alegria do povo que alguém se torna senhor das massas revolucionárias; impedindo-as de ir além e de estender as suas conquistas. No imediato, um grupo de ação teórica e prática é capaz de entrar nesse espetáculo político-cultural
para subvertê-lo.

Apêndice II

A tríade unitária: realização, comunicação, participação*

 

Raoul Vaneigem

 

A unidade repressiva do poder em sua tríplice função de coação, de sedução e de mediação não é senão a forma, inversa e pervertida pelas técnicas de dissociação, de um tríplice projeto unitário. A nova sociedade, tal como ela se engendra confusamente na clandestinidade, tende a se definir praticamente como uma transparência de relações humanas que favorecem a participação real de todos na realização de cada um. A paixão de criar, a paixão do amor e a paixão do jogo estão para a vida assim como a necessidade de se alimentar e a necessidade de se abrigar estão para a sobrevivência. A paixão de criar funda um projeto de realização; a paixão de amar funda um projeto de comunicação; a paixão de jogar funda um projeto de participação. Dissociados, esses três projetos reforçam a unidade repressiva do poder. A subjetividade radical é a presença —- ainda presente na maior parte das pessoas — de uma mesma vontade de fazer de sua vida uma vida apaixonada. O erótico é a coerência espontânea que oferece a sua unidade prática à coerência do vivido.

A reconstrução da vida quotidiana realiza no mais alto grau a unidade do racional e do passional. O mistério que se mantém sobre a vida serve ao obscurantismo no qual se dissimula a trivialidade da sobrevivência. Na verdade, a vontade de viver é inseparável de uma certa vontade de organização. A atração que exerce sobre cada pessoa a promessa de uma vida rica e múltipla passa à frente de um projeto submetido no todo ou em parte ao poder social encarregado de refreá-lo. Assim como o governo dos homens recorre essencialmente a um triplo modo de expressão — a coação, a mediação alienante e a sedução mágica —, assim também a vontade de viver retira sua força e sua coerência da unidade de três projetos indissociáveis: a realização, a comunicação e a participação.

Numa história dos seres humanos que não se reduzisse à sua sobrevivência, sem no entanto se dissociar dela, a dialética desse projeto tríplice, vinculado à dialética das forças produtivas, contemplaria a maior parte dos comportamentos. Não há sublevação ou revolução que não expresse a ­busca apaixonada de uma vida exuberante, de uma transparência nas relações humanas e de um modo conjunto de transformação do mundo. Embora aquém da evolução histórica, podem-se divisar três paixões fundamentais, que são para a vida o que a necessidade de se nutrir e abrigar é para a sobrevivência. Bem entendido, esses elementos não ganham importância senão no quadro histórico, mas é precisamente a história de sua dissociação que aqui é questionada, em nome de sua totalidade sempre reclamada.

O Estado do bem-estar tende a envolver a questão da sobrevivência numa problemática da vida. Nesse quadro histórico em que a economia da vida absorve a economia da sobrevivência, a dissociação dos três projetos, e das paixões que os subentendem, aparece distintamente como um prolongamento da distinção aberrante entre vida e sobrevivência. Entre a ­separação, que é o fiel do poder, e a unidade, que é o domínio da revolução, a existência somente consegue exprimir-se, na maior parte do tempo, na ambigüidade. Falarei separada e unitariamente sobre cada projeto.

 O projeto de realização nasce da paixão de criar, no momento em que a subjetividade se entumece e quer reinar. O projeto de comunicação nasce da paixão do amor, cada vez que os seres humanos descobrem em si ­mesmos uma vontade idêntica de conquista. O projeto de participação nasce da paixão do jogo, quando o grupo apoia a realização de cada um.

Isoladas, as três paixões se pervertem. Dissociados, os três projetos tornam-se falsos. A vontade de realização torna-se vontade de poder; sacrifício em favor do prestígio e do papel, ela reina em um universo de coações e de ilusões. A vontade de comunicação converte-se em mentira objetiva; fundada sobre relações entre objetos, ela distribui aos semió­logos os sinais, que eles revestem de uma aparência humana. A vontade de participação organiza o isolamento na multidão, ela cria a tirania da ilusão comunitária.

Separadas umas das outras, cada paixão se integra numa visão metafísica que a absolutiza e a torna, como tal, inacessível. Não falta humor aos homens de pensamento: eles desconectam os elementos do circuito, e ­depois anunciam que a corrente não passa. Podem, então, afirmar sem receio que a realização total é um engodo, a transparência uma quimera, a harmonia social uma falácia. Onde reina a separação, cada um está ­preso, de fato, à impossibilidade. A mania cartesiana de fragmentar e avançar por etapas garante sempre a inconclusão. Os exércitos da Ordem não recrutam senão mutilados.

(...)

Expulso da organização social hierárquica, a paixão do jogo funda, ao destrui-la, uma sociedade de novo tipo, de participação real. Sem pretender adivinhar o que será uma organização das relações sociais aberta sem reservas à paixão do jogo, pode-se assentir em que ela apresenta as características seguintes:

— rejeição do chefe e de toda a hierarquia;

— rejeição do sacrifício;

— rejeição do papel;

— liberdade de realização autêntica;

— transparência das relações sociais.

O jogo não se concebe sem regras nem sem o jogo de criar regras. É observar o que fazem as crianças quando brincam. Trapaceiam, sim, mas em busca de um novo jogo. Às vezes, dá certo. Sem descontinuar, elas reavivam a consciência lúdica.

A partir do momento em que se instala uma autoridade, o jogo cessa. É verdade que a leveza do jogo não dispensa o espírito de organização, no que isso implica disciplina. Mas, mesmo se é preciso um coordenador ­investido do poder de decidir, esse poder nunca está dissociado do poder de que dispõe cada jogador de maneira autônoma; ele é o ponto de con­centração de todas as vontades individuais, o dual coletivo de cada exigência particular.

O projeto de participação implica pois uma coerência tal que as decisões de cada um sejam as decisões de todos. São, é certo, os grupos numericamente mais fracos, as microsociedades que apresentam as melhores garantias de desempenho. Nelas, o jogo regula de maneira soberana os mecanismos da vida comum, harmoniza os caprichos, os desejos, as ­paixões. Tanto mais que o jogo assemelha-se ao jogo insurrecional pelo grupo e torna-se necessário pela vontade de viver fora das normas oficiais.

A paixão do jogo exclui o recurso ao sacrifício. Pode-se perder, pagar, submeter-se à lei, atravessar um mau momento: é a lógica do jogo, não a lógica de uma Causa, não a lógica do sacrifício. Quando aparece a exi­gência do sacrifício, o jogo se sacraliza, suas regras tornam-se ritos. No jogo, as regras são estabelecidas de maneira que possam ser mudadas, para se brincar também com elas. No sagrado, ao contrário, o ritual não deixa ­jogar; seria preciso quebrá-lo, desafiar o interdito (mas profanar uma ­hóstia é ainda uma maneira de render preito à Igreja). Somente o jogo dessacra­liza, somente ele se abre para uma liberdade sem limites. Ele é o princípio do desvio, a liberdade de mudar de sentido de tudo o que serve ao poder; a liberdade, por exemplo, de transformar a catedral de Chartres em lupanar, em labirinto, em campo de tiro ou em cenário onírico...

Em um grupo organizado em torno da paixão do jogo, as corveias e as obrigações estafantes encontram um meio de serem partilhadas por ocasião de uma falha ou de um erro lúdico. Ou, mais simplesmente, elas preenchem o tempo ocioso, o repouso passional assumindo, por contraste, um valor de excitação, que torna mais instigantes os momentos por vir. As ­situações a construir vão fundar-se necessariamente na dialética da ­presença e da ausência, da riqueza e da pobreza, do prazer e do desprazer, a intensidade de um espicaçando a intensidade do outro.

Além disso, as técnicas empregadas numa atmosfera de sacrifício e de coação perdem a sua eficácia. O valor instrumental redobra-se em efeito de uma função repressiva; a criatividade oprimida reduz o rendimento das máquinas opressivas. Somente a atração lúdica garante um trabalho não alienante, um trabalho produtivo.

O papel no jogo somente se concebe como um jogo de papéis. O papel espetacular exige uma adesão; o papel lúdico, ao contrário, postula uma distância, um recuo a partir de onde se toma consciência de que se é livre, à maneira como os comediantes tarimbados que, entre duas tiradas dramáticas, trocam gracejos. A organização espetacular não resiste a esse tipo de comportamento. Os irmãos Marx mostraram em que se converte um papel quando o lúdico o assume, e observe-se que isso não passa de um exemplo pervertido pelo cinema. O que seria um jogo entre papéis no epicentro da vida real?

Se alguém entra no jogo com um papel fixo, um papel sério, ou ele está perdido ou corrompe o jogo. É o caso do provocador. O provocador é um especialista do jogo coletivo. Deste ele conhece a técnica, mas não a dialética. Pode ser que ele seja capaz de traduzir as aspirações do grupo em matéria ofensiva — o provocador sempre açula ao ataque, — mas é incapaz de representar o interesse defensivo do grupo. Essa incoerência entre o ofensivo e o defensivo denuncia cedo ou tarde o provocador, é a causa de seu triste fim. Quem é o melhor provocador? Aquele que de manifes­tante ou coordenador torna-se chefe.

Somente a paixão do jogo é capaz de fundar uma comunidade cujos interesses identificam-se com os do indivíduo.

(...).