Acontecimento e história: pensamento de Deleuze e problemas
epistemológicos das ciências humanas
"Événement"
(happening) and history: Deleuze's thought and human sciences' epistemological
problems
Hélio Rebello
Cardoso JrSOBRE O AUTOR
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Resumos
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O conceito de
"acontecimento" foi desenvolvido para o domínio epistemológico da
história por P. Veyne, no intuito de ativar determinados problemas
foucaultianos que indicavam a estrita ligação entre o trabalho historiográfico
e o trabalho filosófico. A definição deste conceito poderia ser aprofundada se
fosse extraído do domínio epistemológico para o qual fora elaborado e levado a
uma dimensão mais abrangente. Vislumbra-se tal possibilidade a partir da
articulação do referido conceito a determinadas injunções do pensamento de
Deleuze, particularmente tendo em vista o conceito deleuzeano de
"acontecimento", em suas implicações ontológicas e éticas.
Acontecimento;
Epistemologia das Ciências Humanas; Deleuze; Foucault; Veyne
P. Veyne has
developed "événement" (happening) as a concept for the
epistemological domain of history. In fact, he came to enlarge its meaning by
mixing this concept with the foucaultian notion of "pratique"
(practice). We see that this conceptual link would be more clearly bounded if
drawn up from the epistemological domain it has been early defined and if
argued by Deleuze's own concept of "événement" (happening), along
with its ontological and ethical ressonances.
Happening; Human
Sciences Epistemology; Deleuze; oucault; Veyne
Acontecimento e história: pensamento de Deleuze e problemas
epistemológicos das ciências humanas1
"Événement"
(happening) and history : Deleuze's thought
and human sciences' epistemological problems
Hélio Rebello
Cardoso Jr2
RESUMO
O conceito de
"acontecimento" foi desenvolvido para o domínio epistemológico da
história por P. Veyne, no intuito de ativar determinados problemas foucaultianos
que indicavam a estrita ligação entre o trabalho historiográfico e o trabalho
filosófico. A definição deste conceito poderia ser aprofundada se fosse
extraído do domínio epistemológico para o qual fora elaborado e levado a uma
dimensão mais abrangente. Vislumbra-se tal possibilidade a partir da
articulação do referido conceito a determinadas injunções do pensamento de
Deleuze, particularmente tendo em vista o conceito deleuzeano de
"acontecimento", em suas implicações ontológicas e éticas.
Palavras-chave: Acontecimento;
Epistemologia das Ciências Humanas; Deleuze; Foucault; Veyne.
ABSTRACT
P. Veyne has
developed "événement" (happening) as a concept for the
epistemological domain of history. In fact, he came to enlarge its meaning by
mixing this concept with the foucaultian notion of "pratique"
(practice). We see that this conceptual link would be more clearly bounded if
drawn up from the epistemological domain it has been early defined and if
argued by Deleuze's own concept of "événement" (happening), along
with its ontological and ethical ressonances.
Keywords: Happening(Événement);
Human Sciences Epistemology; Deleuze; oucault; Veyne.
P. Veyne:
"Acontecimento" como objeto da história/ "Prática" como
operador conceitua
Observando-se a
trajetória de P. Veyne, em seus estudos voltados para a epistemologia das
ciências humanas, pode-se destacar a conexão que ele procura estabelecer entre
o esforço narrativo do historiador e o esforço teórico-conceitual a que este
último muitas vezes é obrigado a se dedicar. Por força desse problema, a
trajetória de Paul Veyne se caracteriza, primeiramente, por uma crítica da
Filosofia da História, crítica esta feita através do tratamento epistemológico
da história como disciplina. Em seguida, ao mesmo tempo em que desenvolve seus
trabalhos eminentemente historiográficos, Paul Veyne troca seu interesse
estritamente epistemológico por uma abertura teórica em relação à filosofia,
chegando a ver em escritos de Foucault um método capaz de revolucionar o modo
de contar a história. Paul Veyne toma esse caminho sem recair numa subordinação
a esta ou aquela Filosofia da História e sem transformar-se num mero
foucaultiano. De fato, na obra teórica de Veyne esboça-se um traço de
articulação entre filosofia e história, que, difuso a princípio, passa a se
afirmar cada vez mais. Nesse traço se concentram as implicações mais significativas
das complexas relações entre o trabalho do filósofo e o trabalho do
historiador, pois tratava-se de acolher e explicitar a autonomia de ambos em
suas relações de convivência. Como foi isso possível?
É que, além de
levar a cabo um uso autônomo de conceitos ditos filosóficos, Paul Veyne capta
em Foucault o esforço pela determinação das condições históricas de
possibilidade dos "acontecimentos". É essa estratégia que os
aproxima; a que leva um filósofo a confundir-se com um historiador e a que leva
o historiador a cuidar mais atentamente dos conceitos. Por quê? Porque os
conceitos, além de propiciar um tratamento mais rigoroso que se pode chamar de
constantes históricas, reanimam o questionário do historiador e fazem com que
ele pense aquilo que o factual escamoteia (VEYNE, 1983, pp. 19-20, 47). Essa
estratégia permite a Paul Veyne um interessante desenvolvimento do problema de
conexão entre a tarefa narrativa e a tarefa teórica no conhecimento histórico.
Comecemos, portanto, com o estatuto que Veyne confere à noção de
"acontecimento" (VEYNE, 1971, pp. 146-147).
O que interessa à
história, para Veyne, são os acontecimentos, aqueles fatos que não se
repetirão. Só há história dessas "variações" (VEYNE, 1971, p. 15).
Não há história do
"homem", mas apenas eventos que o singularizam com o passar do tempo;
não há história da "guerra" entendida como fenômeno submetido a uma
lei, a história contará esta ou aquela guerra. Os diversos acontecimentos sejam
eles relativos ao homem ou à guerra, não podem ser tomados como efeitos
periféricos de algo que permaneceria como um "fundo uniforme". A
história, para Veyne, não se preocupa com esta unidade intangível: o homem, a
guerra, a não ser que tais noções genéricas sejam substituídas por elaborações
conceituais mais complexas (VEYNE, 1974, p. 69-70).
Sendo assim, a
história, por um lado, não pode conhecer a priori por não ser
um conhecimento de essência. Ela não pretende alcançar primeiras verdades. Por
outro lado, não é sua tarefa fazer um inventário exaustivo de tudo o que
encontrar. Alguns eventos são para ela desprezíveis; por exemplo, a história
não se interessa pelo fato de que o homem se alimenta, mas pelo fato de ele se
alimentar de formas diferentes. Como veremos, na variabilidade se instala uma
qualidade do acontecimento, pois "é acontecimento tudo que não é
evidente" (VEYNE, 1971, p. 18).
Logo, o objeto da
história o acontecimento faz com que o conhecimento histórico se situe no
território definido entre o que está aquém do acontecimento as primeiras
verdades e o que está como que disperso em sua exterioridade, vale dizer, as
facticidades evidentes.
No interior deste
território, porém, é preciso saber o que individualiza o acontecimento para
torná-lo digno da história. Ora, certamente não é a "matéria" que os
distingue entre si. Materialmente um acontecimento pode se repetir exatamente
como um outro; por exemplo, D. Pedro I passou várias vezes pelas proximidades
do Ipiranga.
A fim de definir o
acontecimento, P. Veyne começa por rejeitar alguns critérios que a teoria da
história consagrou como definidores do objeto da história. Demonstraremos que
nenhum desses critérios é suficiente para a definição do acontecimento.
O critério material
é insuficiente para distinguir o acontecimento. Ele indica somente que existe
um nível tal de generalidade e repetição entre os acontecimentos que eles se
assemelham mais a fenômenos, para os quais se procura uma lei ou uma
regularidade, do que a individualidades, nas quais se procura a singularidade e
a unicidade. Assim, a matéria não associa diretamente o acontecimento com uma
característica que o singulariza. Enfim, por esta via não obteríamos um bom
parâmetro para demarcar as fronteiras que separam uma abordagem de fenômenos de
uma abordagem de acontecimentos singulares.
O critério material
ainda não é satisfatório em um segundo sentido. A radicalização de sua
aplicação, em face da deficiência anteriormente apontada, pode forçar um
critério de segunda ordem para distinguir a "matéria" que está na
base dos fatos. Assim, a história não se preocuparia com os fenômenos, mas
também não se preocuparia com todos os acontecimentos. Os acontecimentos que
contam são os que têm para nós um valor, não intrínseco ou essencial, mas
atribuído, e somente estes seriam de fato individualidades.
O criticável nessa
caracterização do fato histórico é que a sua individualidade fica dependente de
uma redução subjetivista e mesmo esteticista do acontecimento. Tenta-se
atribuir a determinados acontecimentos um significado que os elevaria acima da
massa indistinta de todos os demais.
Se o critério
material serve apenas para tratar o acontecimento como fenômeno ou associá-lo a
significados humanos, então não se presta a uma definição da ótica própria do
conhecimento que se preocupa com singularidades. No primeiro caso, não o faria
porque a história, desta maneira, se identificaria às ciências que procuram
legalidades históricas. No segundo caso, não o faria porque, desta feita, a
história ficaria obrigada a definir-se, como conhecimento, pela assimilação de
seu objeto a uma provável constituição da subjetividade humana. Diante da
insuficiência do critério material, faz-se necessário um outro critério para
definir o acontecimento, de modo que sua caracterização não leve o conhecimento
histórico a se deparar com certas concepções do objeto histórico que se deseja
evitar.
Para Veyne, o que
definitivamente individualiza um acontecimento é o fato de que ele acontece em
um determinado momento. Isto significa que, mesmo considerando dois
acontecimentos idênticos do ponto de vista material, eles permanecem
irredutíveis do ponto de vista temporal: dois acontecimentos que se repetem
identicamente são, ainda, diferentes. Segundo as palavras de Veyne, não nos
interessamos por "um acontecimento por ele mesmo, fora do tempo, como uma
espécie de bibelô..." (VEYNE, 1971, p. 19). Essa caracterização do
acontecimento se dá pelo destaque da diferença temporal.
Porque a história
não se repete, o fato de ela se ocupar exatamente com as variações ligadas à
temporalidade é o que faz dela "uma narrativa de acontecimentos"
(VEYNE, 1971, p. 15). O que equivale a afirmar que, neste aspecto, a história
não se diferencia muito do romance ou das explicações de que nos valemos
quotidianamente.
A questão então é a
elaboração de conceitos que forneçam à história a sistematização do
conhecimento, mas que não reneguem a sua tarefa narrativa.
Além disso, a
individualização do acontecimento pela dimensão temporal mostra que não existe
um corte entre a história humana e a história natural. Tanto em um caso como em
outro, o objeto pode ser definido como estando instalado no seio da diferença
temporalmente marcada. Se é assim, torna-se necessário averiguar quais os
critérios de seleção exigidos por esta definição do objeto da história; afinal,
como pode o historiador orientar-se em um campo "acontecimental"
marcado pela diferença temporal?
Esta questão pode
ser respondida com o auxílio de uma outra noção privilegiada por P. Veyne, a
saber, a noção foucaultiana de "prática".
Esta noção, tal
como Veyne entende lê-la em Foucault, pode ser definida como aquilo que imanta
todo um conjunto de acontecimentos, aquilo que permite, no plano discursivo,
costurar a dobra narrativo-teórica, isto é, entre a diferença temporal de um
acontecimento e uma operação conceitual que lhe seja afeita.
"Prática" é aquilo que os homens efetivamente fazem, não aquilo que
eles pensam a respeito do que fazem. Mais ainda: prática é o fazer que se
reitera em toda uma série de acontecimentos, disto derivando sua maneira de ser
oculta, disto derivando sua raridade (VEYNE, 1978, p. 354, 358, 361, 384).
A definição de
prática, breve e aparentemente banal, comporta pelo menos duas
consequências-chave para a história. Em primeiro lugar, são as práticas que
definem os acontecimentos históricos (diferenças) que geralmente aparecem
reificados, como o Estado ou a Ideologia. Em segundo lugar, as práticas são
configurações históricas determinadas, ou seja, não são uma instância à parte
que seja explicada de maneira diversa da de suas objetivações.
A pergunta pela
prática é sempre um território livre onde o historiador aguça sua capacidade de
visão. Pois, onde o historiador deve cessar a enunciação das práticas que se
engavetam umas nas outras? Cada um poderá desvendar um contorno mais original
que identifique uma prática "mais subterrânea" que explique de forma
mais abrangente um objeto tomado como natural. A pergunta pela prática encerra
um esforço de conceituação ancorado na própria historicidade do objeto. O
historiador pretende superar a visão espontânea que vê na história o fio
cronológico dos acontecimentos ou um sentido a ser revelado. A prática é também
o lugar onde a estranheza do mundo se reinstala, instigando a interrogação e,
com ela, o senso filosófico.
Pois bem, o
problema que fica como que no horizonte das considerações que acabamos de fazer
é o do aprofundamento de certas ressonâncias das noções que são empregadas na
teoria veyneana da história. A noção de prática foi
devidamente tratada em seu veio foucaultiano e dela traçamos aqui as linhas
gerais. Quanto à noção de acontecimento, sua caracterização, apesar
de marcante na obra de Veyne, aparece aí em um estatuto de certo modo
secundário em relação à prática. É que os acontecimentos são vistos
como extensões espaço-temporais específicas em relação às quais a prática ocupa
uma função abstrato-conceitual. A partir de agora, no entanto, passaremos a
observar que a teoria deleuzeana das multiplicidades desenvolve uma noção
de acontecimento que poderia fornecer uma abordagem nova e
eficiente do trabalho do historiador, indicando inclusive uma maneira
deleuzeana de ativar a teoria foucaultiana das práticas. Contudo, para
chegarmos a tratar desse aspecto, em particular, fez-se necessário justamente
um sobrevôo pelo pensamento de Deleuze.
Vejamos, por
conseguinte, a partir daí, os pontos que fazem problema e preparam a
continuidade de nossas reflexões.
G. Deleuze:
"Acontecimento" e "Multiplicidades"
Do pensamento de
Deleuze destacaremos a noção de "acontecimento" em dois de seus
aspectos, os quais serão importantes para seus desdobramentos subseqüentes. Em
primeiro lugar, veremos como o acontecimento exige uma certa expressão da
temporalidade. Em segundo lugar, trataremos do que Deleuze denomina de
"estrutura dupla do acontecimento".
Segundo o sistema
estóico, nos informa Deleuze, há dois tipos de tempo. Em primeiro lugar,
o Cronos que diz respeito à mistura de corpos ou estados de
coisa, e por isto preside a ordem das causas; é caracterizado pela sucessão de
instantes, ou seja, sua gênese deve-se à "forma cíclica do infinito"
em que um eterno presente, que contrai todos os instantes, se descontrai em
presentes pontuais que são passados ou futuros uns em relação aos outros. Em
segundo lugar há o Aion, que diz respeito aos incorporais e por
isto é caracterizado pela fuga incessante do presente, seja no sentido do
passado seja no sentido do futuro, ou melhor, sua gênese deve-se à "forma
da linha reta ilimitada".
A partir dessas
configurações relativas à temporalidade, o problema deleuzeano será o de
acoplar o tempo cíclico infinito ao tempo retilíneo ilimitado, por este motivo
o acontecimento será nomeado como a instância que participa de ambos os
registros temporais, de modo que haja encarnação dos acontecimentos nos corpos
e estados de coisa, bem como acontecimento puro, caracterizado nas palavras de
Deleuze como "sempre qualquer coisa que acabou de passar ou que vai se
passar, simultaneamente, jamais qualquer coisa que se passa" (DELEUZE,
1969, p. 79). Expliquemos...
Para cada
acontecimento tomado em sua efetuação como indivíduo ou pessoa, é preciso
atingir um instante pré-individual ou impessoal. A "estrutura dupla de
todo acontecimento", explica Deleuze, permite que a partir das
multiplicidades concretas se encontre o Acontecimento, isto é, elas são o lugar
da contra-efetuação (DELEUZE, 1969, pp. 176-177). O importante
a este respeito é que ao mesmo tempo em que se efetua um acontecimento se saiba
operar nele uma contra-efetuação. Não existe, de fato, uma sucessão entre ambos
os sentidos; numa multiplicidade histórica qualquer é preciso que haja
simultaneidade, pois, não contra-efetuar um acontecimento no momento mesmo em
que ele acontece é perder o que de mais profícuo pode haver na efetuação.
Trata-se de
surpreender no acontecimento efetuado, naquilo que acontece, a parte do
acontecimento que permanece irredutivelmente pura, pois projeta-se no Aion.
A contra-efetuação é uma vontade de que somos portadores desde
que se reverta nossa posição em relação à ordem causal da mistura dos corpos ou
estados de coisa. Quer dizer, se no momento de efetuação o incorpóreo ou
acontecimento puro é um efeito com relação ao acontecimento efetuado; na
contra-efetuação, uma vontade torna o acontecimento puro quasi-causa daquilo
que nos acontece.
Se até este ponto
tratamos, por assim dizer, de aspectos éticos e ontológicos da noção deleuzeana
de acontecimento, aprofundemos esta via, destacando os problemas da
"temporalidade" e do "devir", em confronto com outras
concepções do conhecimento histórico.
A noção de acontecimento,
como vimos, apresenta uma determinada relação com sua efetuação
espaço-temporal. Essa relação, todavia, não é do tipo que interliga o ideal e o
real. Se, por um lado, o acontecimento não se reduz à sua efetuação, por outro
lado, não é concebido como um sistema espaço-tempo de recepção de uma instância
ideal ou transcendental. Por isso a noção de acontecimento choca-se com toda
filosofia da história de extração hegeliana, esclarece Deleuze (DELEUZE, 1977,
p.180). Com efeito, o pensamento de Deleuze ignora os grandes acontecimentos,
aqueles que reconciliam o infinito e o finito, o abstrato e o concreto, em que
o tempo é entendido como a superação de uma contradição. O tempo das
multiplicidades, pelo contrário, é compreendido como singularidade, como um
acontecimento onde o que se observa é a amplitude e a qualidade das forças que
se apoderam de uma coisa. Não há aí contradição que prepare a reconciliação, há
pluralidade, naturalmente mais pródiga que qualquer oposição. Vejamos,
portanto, alguns momentos que ilustram a maneira pela qual Deleuze abordou esta
questão em vários de seus livros.
Segundo Deleuze,
neste aspecto seguindo Nietzsche, a "atividade genérica" descrita
pela filosofia da história, na verdade, não pode ser separada de um movimento
que desnatura a cultura (DELEUZE, 1977, p.158). A história se
identifica com este movimento de desnaturação. As instituições políticas que
suportariam a atividade genérica e que corresponderiam, no plano da
consciência, ao indivíduo pleno como produto da cultura, na realidade
testemunham um desvio das forças ativas em favor das forças reativas que,
revertendo a potência da cultura, acabam por criar o homem histórico,
"doméstico" e dócil à moral das instituições reativas. Por isso
afirma Deleuze: "a história aparece, então, como o ato pelo qual as forças
reativas se apoderam da cultura ou dela se aproveitam" (DELEUZE, 1977,
p.159). O sentido da história universal tem como motor o niilismo,
pois ele é descrito pelo triunfo crescente das forças reativas.
Contudo, se a
atividade genérica da cultura foi deformada, se o produto da história é falho
em princípio, um devir afirmativo universal permanece como
o acontecimento que persiste na história, cuja efetuação
fulgura aqui e ali, mesmo que ofuscada e efêmera, marcada pelo devir reativo
geral que envolve o destino particular dos homens.
Aliás, se uma
teoria das forças históricas serve à noção de acontecimento, que passaria a
refratar toda filosofia da história no sentido hegeliano, o que dizer da teoria
da história no sentido positivista?
Pois bem, se o
acontecimento não se presta à dualidade ideal-real ou universal-particular,
também deve beneficiar-se de um fator que seja esquivo ao seu congelamento
relativo a parâmetros epistemológicos ou à sua formalização lógica. O
acontecimento não é um fato em que a concorrência das forças seria um dado
passível de receber um tratamento cartesiano ou, sendo um fato humano, não
poderia ser reduzido a uma suposta lógica da ação humana.
Em ambos os casos
acima, portanto, o acontecimento receberia um tratamento científico que lhe
daria extensão em um sistema espaço-temporal (sujeito como referência ou
intencionalidade e objeto como estado de coisas).
Para Deleuze, tais
procedimentos seriam uma maneira de tratar as forças abstratamente,
positivamente, sem que se interrogue a origem e qualidade das forças postas em
jogo. A bem dizer, a enunciação da neutralidade do observador, mesmo ela seja
concebida sistemicamente, é sempre uma fraqueza ou ilusão do pensamento que
caracteriza uma ciência reativa. O sujeito de enunciação exterior é uma das
artimanhas das forças reativas, visto que estão constantemente a espreitar e a
se beneficiar de uma atividade que elas mesmas não poderiam gerar. Mas o
acontecimento quer aparecer nas figurações do sujeito e dos objetos armadas
pelos sistemas lógicos.
Tanto no tratamento
da filosofia hegeliana da história quanto no da teoria positivista da história,
podemos concluir com Deleuze, ocorre um traço de falseamento em comum: a
atividade das forças se apoderando das coisas confunde-se com o benefício de um
terceiro, seja ele o espírito objetivo ou a humanidade como beneficiária da
ciência. Ora, o que observa ou recolhe para si a atividade é sempre uma força
reativa. As ciências humanas, justamente, elevam este caráter da história ao
rol das disciplinas científicas. Entretanto, como o acontecimento não participa
do devir reativo universal, ele deve ser capaz de indicar um novo caráter para
as ciências humanas.
Ora, a teoria
nietzscheana das forças, com sua topologia e sua avaliação, como se pode
constatar, é um elemento importante para o tratamento da história exatamente
porque ela intensifica, no sentido ontológico e ético, a noção de
acontecimento. Segundo Deleuze, a teoria das forças é uma das frentes do pensamento
pluralista exigido pelas multiplicidades, pois "a história de uma coisa,
em geral, é a sucessão de forças que dela se apoderam" (DELEUZE, 1977, p.
4). Há sempre, na história, uma pluralidade de sentidos que precisa ser pensada
como complexo de sucessões e de coexistência de forças.
Este traço que une
a noção de acontecimento à análise histórica é destacado por Deleuze como sendo
a novidade da teoria foucaultiana das práticas (DELEUZE, 1986, p. 90)3. Portanto,
atingimos a noção foucaultiana de 'prática' a partir de um ponto de vista
diverso do veyneano, exatamente porque o "acontecimento", na acepção
Deleuze, define uma temporalidade que não é meramente marcada pela diferença
temporal.
Devemos averiguar
agora se a busca do "acontecimento" pode envolver questões
epistemológicas relacionadas à cientificidade do conhecimento histórico.
A respeito das
incursões ao pensamento epistemológico feitas por Deleuze, poderíamos observar
dois aspectos. Por um lado, apesar de criticar os procedimentos científicos quando
eles exprimem uma cosmologia ou um entendimento do humano incompatível com sua
filosofia, Deleuze jamais negou a cientificidade como um mal do pensamento
moderno. Por outro lado, o não contentamento com o caráter da ciência, fê-lo
propor uma alteração da metodologia científica. Assim em seus vários livros que
abordam o assunto podemos encontrar, por exemplo, a "interpretação"
de forças (livros dedicados a Nietzsche), a "experimentação" de
estados não-extensivos (livro dedicado a Hume e Mille Plateaux), e o "cálculo
de problemas"(Diferença e Repetição e Lógica do
sentido). Todos esses aspectos são tratados não somente de maneira
rigorosamente filosófica, como contam com exemplos que exploram as mais
variadas disciplinas a partir de seus problemas internos. Em que pese essa
abrangência de sua reflexão epistemológica, podemos afirmar que Deleuze somente
chegou a fornecer dela uma síntese em Mille Plateaux, quando aponta
dois tipos de cientificidade: a ciência maior e a ciência
menor.
Antes de qualquer
coisa, os dois tipos de cientificidade possuem modelos metodológicos diferenciados:
ao invés de uma "teoria dos sólidos" de que se vale a ciência maior;
a ciência menor dispõe de uma "teoria dos fluidos", que exige
procedimentos científicos renovados. Em segundo lugar, os dois tipos de ciência
supõem de maneira diversa a temporalidade: a ciência maior envolve uma noção de
tempo associada à estabilidade espacial dos corpos, sendo a sua instabilidade
considerada como um caso especial, um estado efêmero, uma situação que será
superada, ao se restabelecer o equilíbrio originário; na ciência menor, o devir
e a heterogeneidade são tomados como referência, trata-se de observar os
estados intensivos, incorporais da matéria, que ao mesmo tempo afetam a
"corporeidade" da matéria submetendo-a a uma "variação
contínua" que tem por base a temporalidade do acontecimento. Por fim,
sendo o modelo temporal discriminado do modelo espacial, altera-se a própria
noção de espaço: a ciência maior propõe um espaço fechado onde as coisas
lineares e sólidas são distribuídas por uma lei exterior ou transcendente ao
sistema; já na ciência menor, o espaço é aberto, ele se confunde com a
distribuição dos fluxos que o percorrem (DELEUZE, 1980, pp. 446-447).
Todas as
características da ciência menor indicam que seu objeto é o acontecimento.
De fato, o que importa para o conhecimento, segundo o acontecimento, não é
somente a realidade espaço-temporal (atualidade da matéria), mas igualmente a
sua virtualidade, isto é, um estado intensivo. O acontecimento exprime as
transmutações que fazem do corpo uma matéria fluida.
A correlação entre
ambos os tipos de cientificidade é possível, assevera Deleuze, desde que
intervenha uma teoria das multiplicidades capaz de fazer
comunicar as "intuições" da ciência menor à estrutura teoremática da
ciência maior (DELEUZE, 1980, pp. 604-605). A matéria oscila entre dois regimes
de multiplicidade: a multiplicidade não-métrica, qualitativa e de
fusão, e a multiplicidade métrica, numérica e homogênea. Vejamos sucintamente o
modo de coexistência entre esses regimes de multiplicidade, sob a ótica da
interação entre ciência maior e ciência menor.
Deleuze enfatiza
reiteradamente que não se trata da alternativa entre dois regimes de
multiplicidade. Eles são coextensivos e imanentes, relativos à materialidade
das coisas. Assim, se a multiplicidade métrica observa as formas discretas dos
corpos (extensões) e tende a classificá-las segundo suas semelhanças (de
gênero, de espécie, de estado, de natureza, de sistema), a multiplicidade
não-métrica procura surpreender na matéria os intervalos que tendem a desfazer
as formas e que, por isso, reúnem as diferenças dos corpos em um elemento
comum: o acontecimento. Sendo assim, a cooperação entre ambas as
ciências torna-se clara: a ciência maior passa a ser um sistema de tradução,
não das atualizações da matéria entre si, mas das transmutações a que os
acontecimentos submetem essas atualizações ou daquilo que as efetuações
espaço-temporais acolhem nos acontecimentos (contra-efetuações).
Sem dúvida, o
estudo dos regimes de multiplicidade tem importância fundamental na
determinação das questões epistemológicas levantadas. No entanto, precisamos
ainda indicar de que modo esta problemática afetaria particularmente o
conhecimento histórico.
De acordo com
Deleuze, a tarefa do historiador, por exemplo, seria a de assinalar "o
período de coexistência ou de simultaneidade de dois movimentos" (DELEUZE,
1980, p. 269). Essa coexistência não poderia ser avaliada pela distinção
escalar das durações (tempo curto, médio ou longo), mas envolve sistemas de
referência irredutíveis um em relação ao outro. De fato, um "período"
é composto por dois aspectos que corresponderiam à expressão dos regimes de
multiplicidade acima referidos, a saber, o aspecto molar (multiplicidade
métrica) e o aspecto molecular (multiplicidade não-métrica). O
primeiro deles apresenta um movimento composto por "classes ou
segmentos" ("macro-história"); o segundo movimento é composto
por "fluxos ou massas" ("micro-história"). O importante,
daí, é levar em conta a simultaneidade dos dois movimentos, pois o sistema
molar não se superpõe ao sistema molecular, entre eles ocorre uma constante
interpenetração, pois, nas palavras de Deleuze:
(...) o fluxo
continua sob a linha de segmentos, perpetuamente mutante, enquanto a linha
totaliza. Massa e classe não têm o mesmo contorno nem a mesma dinâmica, de modo
que o mesmo grupo é afetado por dois signos. A Burguesia como massa e como
classe... Uma massa não tem com as outras massas as mesmas relações que a
classe «correspondente» com as outras classes. Certamente, há relações de força
e de violência tanto de um lado quanto de outro. Mas, precisamente, a mesma
luta toma dois aspectos muito diferentes, onde as vitórias e as derrotas não
são as mesmas. (DELEUZE, 1980, p. 270)
Considere-se, para
concluir, que os três objetivos que preparam nossa reflexão são percorridos por
uma preocupação constante que flui do pensamento de Deleuze para a consideração
dos aspectos epistemológicos da história. Trata-se, em linhas gerais, de uma
tentativa de complexificar os pontos de vista científico e
analítico-interpretativo, seja através da compreensão da estrutura dupla do
acontecimento, da coexistência de forças e sentidos numa mesma coisa, ou da
simultaneidade de sistemas de multiplicidade num mesmo "período".
Esses três pontos, certamente, indicam a originalidade e a pertinência da
pensamento de Deleuze para se pensar a problemática da história.
·
DELEUZE, Gilles. Logique du Sens Paris: Minuit, 1969.
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________. O Inventário das Diferenças. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
Artigo recebido em 06/2005; aprovado para publicação em 08/2005.
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Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Unesp; Av. Dom Antônio 2100 -
Assis - SP, CEP 19806-900;
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ORLANDI, Luiz B.L. "Do Enunciado em Foucault à Teoria da
Multiplicidade em Deleuze",. Ítalo TRONCA (org.),
Foucault Vivo. Campinas: Pontes, 1987, p. 11-42, aponta, com maior riqueza de
detalhes, a importância dessa passagem como elo de ligação entre os pensamentos
de Foucault e Deleuze.
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