O princípio de razão, o utilitarismo e o
antiutilitarismo
Alain CailléSOBRE O AUTOR
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Neste artigo,
procura-se demonstrar que as noções de razão utilizadas nas ciências sociais
são largamente determinadas pela tradição utilitarista e que, por conseguinte,
na prática, o conceito de racionalidade tem limites discutíveis dados pela
subordinação do mesmo à questão do cálculo interessado. Mas a crítica à
racionalidade utilitarista é complexa na medida em que existem diferentes
registros do utilitarismo: o prático, como é o caso do utilitarismo
economicista que prega a satisfação primeira de interesses egoístas materiais;
o teórico, que propõe serem todos os homens egoístas e calculistas por
natureza; e o normativo, que vincula o ideal de justiça à satisfação do maior
número de indivíduos. A crítica às teses utilitaristas leva o autor a lembrar a
contribuição de Marcel Mauss na fundação de um novo paradigma, o da dádiva.
Enfim, este texto é fundamental para se compreender a passagem de uma crítica
antiutilitarista negativa para uma outra, antiutilitarista positiva, que se
apoia na criação do novo paradigma.
Diretor do GEODE
(Grupo de Estudos e Observação sobre Democracia) da Universidade de Nanterre e
editor da Revue du M. A. U. S. S
Em que medida o
destino das ciências sociais está ligado ao do princípio de razão? Em que
medida, por outras palavras, o seu acesso à cientificidade, que elas tanto
dizem procurar, implica que admitam a hipótese de a ação humana e social
obedecer, pelo menos na sua parte mais significativa, a uma causalidade
racional? Se tentar dar a esta pergunta uma resposta puramente empírica,
parecerá desde logo que, na atividade concreta dos investigadores em ciências
humanas e sociais, o princípio de razão se limita a desempenhar um papel menor.
Os historiadores não se pronunciam sobre isso. Com exceção, bastante rara, dos
que se deixaram influenciar pela teoria econômica neoclássica, os etnólogos não
procuram em geral imputar cálculos racionais aos seus primitivos ou aos seus
selvagens prediletos, mesmo que lhes reconheçam a capacidade de enunciar
proposições bem formadas. A maior parte do trabalho sociológico atual tenta
dissimular a ausência de esqueleto teórico determinado da disciplina,
sacrificando ao imperativo descritivo ou entregando-se às delícias da
interrogação intermediável do sentido da ação. Tanto num caso como no outro, a
hipótese de racionalidade não tem aplicação.
Mas este primeiro
ponto de referência é demasiado grosseiro e não capta o essencial. Entenda-se:
se se limita o ideal da cientificidade ao empirismo, se ele renunciou desde
logo a toda a procura das causas, das determinantes ou das razões da ação
social, então, e justificadamente, não há qualquer necessidade de acrescentar a
hipótese de racionalidade. Mas, como já sugerimos, as ciências humanas e
sociais (CHS) não podem contentar-se indefinidamente com descrever ou
"compreender". Devem igualmente explicar, isto é, procurar causas
para efeitos e estabelecer normas, isto é, interrogar-se sobre a desejabilidade
dos efeitos. De modo que o quadro muda de alto a baixo logo que se vira o olhar
para o lado das disciplinas ou das escolas que visam à sistematicidade ou,
simplesmente, à coerência teórica. Aí, a hipótese da racionalidade, quer seja
manejada sob a sua forma fraca ou sob a sua forma forte, parece incontornável.
Forma fraca, a que se limita a afirmar o caráter determinante para a ação das necessidades,
das utilidades, das preferências ou dos interesses. Forma forte, a que postula,
além disso, que estes últimos são mais ou menos objeto de um cálculo consciente
e explicitável, e se ordenam segundo essa transitividade que constitui, aos
olhos dos teóricos, a marca sem equívocos da racionalidade. A ciência econômica
desenvolve-se inteiramente a partir da tomada a sério desta versão forte, de
que ela entende tirar todas as conseqüências e separar todas as implicações.
Mesmo os economistas que se mostram mais críticos face ao simplismo da figura
do Homo ecconomicus, e que são sensíveis à complexidade, para não
dizer à indeterminação do critério de racionalidade, como acontece em França
com os recentes economistas das convenções, torcem o nariz ao rompimento com o
individualismo metodológico, ou seja, em definitivo, com o postulado da
racionalidade dos indivíduos, como se, ao pô-lo em causa, o chão ameaçasse
fugir-lhes debaixo dos pés.1
Referência ao
social a isso obriga, e a Sociologia ficou durante muito tempo acantonada na
esfera do funcionalismo ou do estruturo-funcionalismo, imputando a fonte
primeira da racionalidade a um hipotético sujeito coletivo, a sociedade ou o
sistema.
Depois começou
também a namoriscar com o individualismo metodológico, o mais das vezes, é
verdade, sob uma forma particularmente débil e desprendida. Nos anos 70 e em
França especialmente, no ponto alto da voga estruturalista, acreditava-se que a
Lingüística e, na sua esteira, a Semiótica poderiam oferecer à teoria econômica
uma alternativa isenta de pressupostos racionalistas. A questão de saber o que
subsiste hoje das esperanças teóricas depositadas, durante algum tempo, na
Lingüística, não é clara. E a das relações que ela mantém com a hipótese de
racionalidade ainda menos. O racionalismo cartesiano de Noam Chomsky, mesmo
que prima facie tivesse pouco a ver com o racionalismo dos
economistas, não era menos maciço. E o movimento que fez deslizar o interesse
principal dos lingüistas da fonologia para a gramaticalidade e desta última
para o discurso, para a pragmática, para os atos de linguagem e para as
interações verbais, acabou por trazer ao primeiro plano o princípio de razão.
Se o sentido da
palavra, que explica "o que quer dizer falar", se identifica com os
interesses de poder e com a reivindicação de uma legitimidade social
determinada, se ele depende da "pertinência" que, por sua vez,
depende das "necessidades" dos locutores,2 se, além
disso, é suposto que os atos de palavra valem proporcionalmente à
exigência de validade universal de que seriam portadores, nesse caso é claro
que, forte ou fraca, a hipótese de racionalidade está toda presente no centro
da atividade da Lingüística contemporânea. E, quanto à teoria analítica da
ação, que se desenvolve nos confins da filosofia da linguagem, da filosofia
social e da teoria do direito, na esperança de "ocupar o lugar de uma
metateoria comum às teorias empíricas da ação, à ética e à filosofia social, à
teoria da decisão, etc." (Neuberg, 1991, p. 9), ela põe no centro da sua
atividade a reflexão sobre os paradoxos co-extensivos ao princípio de razão,
dado que "só um ser racional pode ser irracional" (Davidson, 1991, p.
21).
Façamos um resumo
para dar uma primeira resposta à nossa pergunta inicial. Se a maior parte dos
investigadores em CHS continua indiferente ao princípio de razão, em
contrapartida, os que aspiram à teoria parecem ter dificuldade em dispensá-lo.
Em muitos aspectos, este estado de fato não deixa de ser desconcertante. Na sua
versão forte, com efeito, a hipótese de racionalidade não procede de nenhum
fundamento empírico determinado, chegando mesmo a vangloriar-se disso.
Resume-se numa proposta tautológica que enuncia, como o notava já no século XIX
o historiador MaCaulay, que os sujeitos humanos são racionais na medida em que
preferem o que preferem. A teoria econômica é um gigantesco floreado tecido à
volta desta lapalissada. O floreado revela um belo objeto
intelectual, a teoria do equilíbrio geral. Mas, tirando o prazer que oferece à
contemplação, as suas potencialidades explicativas preditivas são, no melhor
dos casos, duvidosas.3 Construída sobre uma coluna empírica ausente, precisaria de mais
que um toque de varinha mágica para reencontrar afinal, o solo empírico que
julgou dispensável à partida.
A versão fraca do princípio
de razão, a que privilegia a força dos interesses, é mais suscetível de
pertinência empírica. Mas convém notar que esta virtude empírica é, na maior
parte das vezes, completamente virtual, e é, em todo o caso, independente do
próprio princípio de razão. O que nos importa, de fato, não é que nos afirmem
que os sujeitos humanos têm interesses ou preferências, coisa de que ninguém
duvida, mas que nos digam em que consistem esses interesses e preferências num
dado período histórico ou numa dada situação social, e como se articulam com a
exigência de desinteresse, enunciada vigorosamente por todas as morais e todas
as religiões. O princípio de razão não tem, como tal, nenhum elemento de
resposta para dar a estas questões, porque a sua circularidade lógica o impede
de amoedar o seu esplendor abstrato em moeda empírica miúda. Comparando a
incrível massa de trabalhos inspirados pela hipótese de racionalidade com os
fracos resultados obtidos e utilizáveis, é difícil deixarmos de concluir que
algo vai mal no reino das CHS. O fracasso deve-se, pensamos, a duas razões
fundamentais interligadas.
Não vamos
ocupar-nos aqui da primeira causa da falência teórica das ciências sociais. Ela
é inerente ao seu próprio projeto de teorizar, de acordo com o modelo em vigor
nas ciências exatas.4 Se o recurso ao princípio de razão parece legitimado pela idéia de
que ele não é mais que uma ciência do previsível, então temos de estar em
condições de prever a ação social e de assumir o direito de o fazer, convindo
ainda postular que a ação resulta das previsões dos sujeitos e neles se esgota
no essencial.
A segunda causa,
mais difícil de confirmar, tem duas opções. Por um lado, pode-se pensar que, se
os teóricos em CHS persistem neste ponto, numa via que só lhes traz sucessos
mitigados e em larga medida imaginários, é porque a atração exercida pelo
princípio de razão tem menos a ver com as suas capacidades explicativas, que
são fracas ou nulas, do que com a sua carga normativa. O princípio não serve
tanto para descrever o mundo histórico e social tal como é, como para o mostrar
tal como deveria ser. Um dos melhores teóricos da ação racional conclui
significativamente: "O ser humano é um animal racional no sentido em que
aceita a racionalidade como norma".5 É a carga ética ligada ao princípio
de razão que explica, pode-se pensar, o seu sucesso junto dos teóricos, e a
inconsciência, largamente espalhada, dessa carga ética que explica o fracasso
das suas teorias. Por outro lado, e este segundo aspecto da hipótese terá ainda
mais dificuldades em convencer o nosso leitor, esta junção de uma ambição
teórica puramente abstrata, fundada no fantasma da previsibilidade da ação, e
de uma mensagem normativa ligada ao mesmo fantasma, tem um nome e ocupa um
lugar eminente na história do pensamento ocidental: é nem mais nem menos que o
utilitarismo.
Utilitarismo e
modernidade
Como esta última
afirmação não deixará de surpreender e parecerá intempestiva ou excessiva, será
útil explicar rapidamente como chegamos à sua formulação. E é tanto mais útil
na medida em que, se o utilitarismo é bem conhecido dos filósofos
anglo-saxônicos, a ponto de por muito tempo lhes parecer que era estreitamente
co-extensivo à filosofia moral, resumindo-a, ele é praticamente desconhecido
dos intelectuais franceses ou, em sentido mais amplo, "continentais".
Devemos, contudo lembrar que nem sempre foi assim. O empirismo moral
anglo-saxônico era objeto, na França, no fim do século XIX, de discussões muito
vivas e perfeitamente informadas, especialmente por parte de Jean-Marie Guyau
(1985) e de Élie Halévy (1903). Bérgson refere-se-lhe também, com precisão,
em Les deux sources de la Morale et de la Religion. E, na Alemanha,
Max Scheler (1971) discute-o em pormenor em Nature et formes de la
sympatie, a ponto de fazer dele o seu adversário teórico principal.
Não esqueçamos, igualmente, que é também o utilitarismo, na sua forma
spenceriana, que Durkheim e Mauss contestam prioritariamente. Mas este passado
teórico está hoje quase totalmente esquecido, e filósofos franceses e
continentais ignoram tudo dos desenvolvimentos trazidos ao utilitarismo
filosófico desde Henry Sidgwick, e fingem acreditar que os problemas que eles
levantam estão há muito resolvidos. Nós próprios não fugíamos a este
esquecimento e a este desconhecimento quando, irritados pela explosão de
racionalismo economista que atingiu as ciências sociais nos anos 70, decidimos,
com alguns economistas, antropólogos e sociólogos, fundar um "Movimento
antiutilitarista nas ciências sociais", agrupado à volta de um Boletim,
mais tarde a Revue du MAUSS (Éditions La Découverte).
Quando escolhemos
este nome, é justo reconhecer que tínhamos uma idéia muito vaga e escolar do
utilitarismo. O nome surgiu como que por acaso, para homenagear Marcel Mauss.
Por utilitarismo entendíamos simplesmente o economismo, cuja crítica
pretendíamos iniciar na esteira de Marcel Mauss e de Karl Polanyi. Ou ainda,
por utilitarismo não designávamos muito mais que aquilo que estigmatiza o senso
comum ou o que Durkheim vituperava na Sociologia e na Economia Política
anglo-saxônicas. Diga-se, em nossa defesa, que os manuais de história do
pensamento filosófico, econômico e político praticamente não atribuíam nenhum
lugar significativo nem a Jeremy Bentham, nem aos seus predecessores, nem aos
seus sucessores. Ao longo dos anos, contudo, fomos tomando cada vez mais a
sério o rótulo antiutilitarista e, portanto, o próprio utilitarismo. A ponto
de, pelo menos no que me diz respeito, reconhecer ao utilitarismo um lugar cada
vez mais preponderante na história do pensamento ocidental. Com efeito,
parece-me agora possível afirmar, ou pelo menos admitir, a hipótese segundo a
qual o utilitarismo constitui o alicerce do pensamento ocidental ou, mais
geralmente, de todo o pensamento "moderno", i. e., de
todo o pensamento que rompeu com o fundamento religioso e tradicionalista. Que
ele é, em suma, o resultado espontâneo e principal do recurso ao princípio de
razão.
Claro que se trata
de uma afirmação que exige numerosos comentários, explicações e esclarecimentos.
Por agora, proponho que se entenda por utilitarismo a conjunção de duas
propostas: uma proposta teórica e uma proposta normativa. A proposta teórica
enuncia que a ação humana e social resulta dos cálculos racionais de sujeitos
interessados, quer sejam individuais ou coletivos, egoístas ou altruístas (a
hipótese dominante é a do egoísmo). A proposta normativa, por sua vez, defende
que são justas ou virtuosas as ações, as normas ou as leis que concorrem para
maximizar a felicidade dos sujeitos assim definidos e, se possível, de todos
esses sujeitos ou, pelo menos, do maior número deles. Para apreender o sentido
desta caracterização da modernidade pela dominância do utilitarismo, deve-se
confrontá-la com outras caracterizações. A tradição sociológica põe em cena
toda uma série de oposições, entre o estatuto e o contrato, entre as sociedades
militares e as sociedades industriais, entre a solidariedade mecânica e a
solidariedade orgânica, entre a Gemeinschaft e a Gesellschaft,
todas resumidas pela oposição operada por Louis Dumont entre holismo e
individualismo. Por seu lado, a tradição filosófica pensa a modernidade sob o
signo da matematização do mundo, da dominância do princípio de razão e do
esquecimento do ser, ou também, com Hegel, sob o signo da subjetividade. As
caracterizações mais satisfatórias, de resto muito próximas, são, a meu ver, as
de Louis Dumont (pelo individualismo) e de Hegel (pelo subjetivismo). Mas
exigem esclarecimentos, sob pena de se confundir tudo e mais alguma coisa. Por um
lado, sociedades igualmente individualistas ou subjetivistas podem revelar-se
muito dissemelhantes, mesmo incomensuráveis. Com efeito, segundo Louis Dumont,
o nazismo ganha raízes no terreno do individualismo. Ora, está claro que não se
pode defender uma identidade entre uma sociedade nazi, fascista, comunista ou
liberal.
Para não misturar
tudo convém pois, no mínimo, distinguir que conforme as sociedades, igualmente
individualistas ou subjetivistas nos seus princípios, se fundamentam
imaginariamente nas paixões dos indivíduos ou nas suas previsões. Aliás, não se
deve hipostasear e dar a entender que toda a modernidade seria unificada na sua
dependência em relação com uma essência única e homogênea de que representaria
a emanação.
Isso leva a
precisar o estatuto da hipótese. Ela não pretende minimamente que todo o
pensamento moderno seria utilitarista, bem pelo contrário, mas que o campo
histórico desse pensamento é o das tentativas, abortadas, de refutar a
banalidade de base utilitarista. O pensamento moderno desdobra-se no campo de
um confronto entre inteligibilidade utilitarista, a mais natural e a mais
espontânea a partir do momento em que rompeu com a religião, e as múltiplas
tentativas de refutação. Se o utilitarismo continua a ser dominante, é porque
nenhuma dessas tentativas de o refutar ou de o ultrapassar conseguiu cristalizar-se
num paradigma alternativo suficientemente claro, explícito, e partilhado pelo
conjunto dos pensadores, para se tornar suscetível de produzir um saber
cumulativo e uma normalidade partilhada. É evidente que, para arriscar uma
formulação, uma hipótese de uma tal generalidade, é impossível contentarmo-nos
com um conceito de utilitarismo tão rudimentar com aquele a partir do qual o
MAUSS se estruturou inicialmente.
Os três registros
do utilitarismo
Parece assim
necessário, por razões de maior clareza e de precisão, distinguir três
registros do utilitarismo: o do utilitarismo prático, o do utilitarismo teórico
(ou cognitivo), e, finalmente, o do utilitarismo normativo (ou filosófico),
apresentando-se cada um destes três registros segundo, pelo menos, duas
modalidades, ou mesmo três, possíveis, a do utilitarismo sofisticado (ou
distinto), vulgar e economicista. Por utilitarismo prático designo
simplesmente o que o sentido corrente entende quando estigmatiza os
calculadores interessados. O utilitarismo prático sofisticado é o que calcula,
com vistas a realizar interesses superiores, por exemplo religiosos ou
altruístas. O utilitarismo vulgar é o que só persegue interesses egoístas. O
utilitarismo economicista é aquele que procura a satisfação de interesses
egoístas materiais.
O utilitarismo
teórico, por seu lado, repousa sobre a hipótese de que os homens são
efetivamente sujeitos egoístas, independentes e calculistas. Esta hipótese
constitui, a meu ver, a hipótese de base das ciências sociais. Chamemos-lhe a
axiomática do interesse. O utilitarismo normativo ou
filosófico, finalmente, defende que é justo ou virtuoso o que contribui para a
maximização da felicidade de todos ou do maior número. Em Critique de
la raison utilitaire (1989),que resumia o trabalho efetuado pelo MAUSS
entre 1981 e 1988, tentei uma especificação e uma crítica dos dois primeiros
utilitarismos, prático e teórico, mas pequei ao não dar um tratamento
específico ao utilitarismo normativo. Aqui, gostaríamos de: 1) resumir
rapidamente o que foi dito em Critique de la raison utilitaire sobre
esses dois primeiros utilitarismos, consagrando depois algum tempo a: 2) expor
a antinomia da razão utilitária normativa para, num terceito tempo, 3) sugerir
que a via para ultrapassar o utilitarismo teórico e normativo passa por uma
continuação da reflexão eboçada por Marcel Mauss, no seu Essai sur le
don.
O utilitarismo
prático e o utilitarismo teórico
1) Sobre o utilitarismo
prático, não é necessário gastar muito tempo. Contentamo-nos em anotar três
idéias:
O utilitarismo
prático, por outras palavras, o cálculo interessado, existe em todas as
sociedades, incluindo as mais arcaicas, mas está geralmente subordinado a uma
exigência antiutilitarista. Numa palavra, existe mas não é legítimo.
A especificidade
das sociedades modernas reside na legitimação do utilitarismo vulgar e, mais
precisamente, na do utilitarismo economicista. O momento decisivo desta
legitimação é, como sugeriu Max Weber, constituído pela Reforma. Mas esse
trabalho da legitimação da procura dos interesses materiais começa muito antes.
Em Florença, já em finais do século XIV e começos do século XV se explica que a
realização do amor de Deus e do próximo passa pelo enriquecimento material.6
O outro grande
momento forte neste processo de legitimação do utilitarismo prático vulgar e
economicista é representado pelas teorias do contrato social, e especialmente
pelas de Hobbes e de Locke, que entendem fundar as sociedades modernas a igual
distância do poder do Papa ou do poder do imperador, unicamente na fruição
pacífica dos bens materiais. Até há bem pouco tempo, em todas as sociedades
modernas, o utilitarismo prático manteve-se de algum modo equilibrado,
contrabalançado por um princípio antiutilitarista, por exemplo, a religião nos
Estados Unidos ou a ética do serviço público na França.
Em contrapartida,
desde a Segunda Guerra Mundial e, mais precisamente, desde os anos 70, o
utilitarismo prático economicista generaliza-se e não é contido por nenhuma
paliçada. Nada lhe resiste. Nesta incapacidade de imaginar um freio ao
utilitarismo vulgar economicista podemos ler, creio, os sinais de uma certa
falência das ciências sociais e da filosofia moral e política.
2) O utilitarismo
teórico (ou, se se preferir, a axiomática do interesse), o que tenta explicar a
ação humana pelos cálculos egoístas dos indivíduos ou dos grupos, está já bem
presente no pensamento antigo, onde, contudo, não é ainda verdadeiramente
dissociado das preocupações normativas e da interrogação do bem. De igual modo,
nas teorias jusnaturalistas ele continua subordinado à procura das normas da
justiça. É só com o nascimento das ciências sociais e, mais precisamente, com o
nascimento da Economia Política digamos em 1776 que ele se emancipa do
discurso filosófico e da preocupação moral, para se apresentar sob aspectos
puramente científicos, se por ciência entendermos a procura de propostas
cognitivas que sejam totalmente independentes das propostas normativas.
Durante dois
séculos, as ciências sociais desenvolvem-se no seio de um campo de pensamento
dominado pelo utilitarismo da Economia Política, mas equilibrado e
contrabalançado pela preocupação antiutilitária trazida pela Sociologia e pela
Antropologia, quando, todavia, elas não se limitam a opor um utilitarismo
coletivista ao utilitarismo individualista dos economistas. A Economia Política
afirma que os sujeitos sociais são egoístas amorais, e que o egoísmo amoral,
por intermédio do mercado, essa máquina para transformar os vícios privados em
virtudes públicas, é a condição da justiça e da felicidade coletivas. Em graus
diversos, a Sociologia e a Antropologia consistem numa crítica dessas
afirmações que caracterizam a figura do Homo ecconomicus.
Em 1960, contudo,
paralelamente à alforria generalizada do utilitarismo no domínio da prática, o
pensamento das ciências sociais balança, por sua vez, num utilitarismo
generalizado. Com Gary Becker, a Economia Política, agora rebatizada de Ciência
Econômica, sai das suas fronteiras e pretende explicar a totalidade da ação
social. Os sociólogos acreditam neste imperialismo da Economia Política e
imitam-na. As sociologias de Pierre Bourdieu ou de Raymond Boudon por exemplo,
na França, apresentam-se como economias políticas generalizadas.7 Também nos
Estados Unidos, sob a denominação de teoria da ação racional, a corrente
dominante em Sociologia é a que se inspira na modelização econômica.8 Certamente
que existem muitas outras correntes de pensamento nas ciências humanas e
sociais que as correntes de inspiração utilitarista; por exemplo, as correntes
empiristas, hermenêuticas, etnometodológicas, comparativistas, etc. Mas nenhuma
dessas correntes consegue verdadeiramente, em nossa opinião, suplantar o
utilitarismo, porque nenhuma consegue ligar propostas teóricas e propostas
normativas.
Não tentaremos demonstrar
aqui as razões porque este utilitarismo (aliás, individualismo metodológico,
teoria da escolha racional, etc.) é insatisfatório. Limitemo-nos a salientar
dois pontos:
Ele defende como
um universal antropológico o que não passa do imaginário próprio da
modernidade.
É maciçamente
tautológico e auto-refutante.
Uma vez que
desenvolvi estas críticas noutro lugar, é tanto menos necessário retomá-las
aqui quanto é certo que se inicia, de forma evidente nos nossos dias, uma
autocrítica deste utilitarismo teórico generalizado. No centro da própria
ciência econômica, especialmente na seqüência dos trabalhos de Herbert Simon, a
noção de racionalidade revela-se cada vez mais obscura, e ninguém, hoje,
acredita verdadeiramente que seja possível deduzir as normas sociais dos
cálculos instrumentais dos indivíduos.9 Ao mesmo tempo, desenvolveu-se
nos Estados Unidos, a partir de 1988, uma poderosa corrente crítica qualificada
de socioeconomicista,10 tendo por base o reconhecimento explícito das insuficiências do
modelo neo-clássico. Salientemos, aliás, que em diferentes esferas do saber
sentem-se os frêmitos que anunciam o nascimento de um esforço interacionista,
preocupado em evitar os escolhos tanto de um holismo como de um individualismo
duros e dogmáticos. Contudo, mantém-se em aberto a questão de saber onde se
poderia operar esta ultrapassagem interacionista. Quanto a mim, penso que ela
pressupõe uma crítica explícita e sensata do utilitarismo, que assuma não só os
seus objetivos teóricos, mas sobretudo, as suas apostas normativas, porque a
força do utilitarismo, em última instância, não reside tanto, como se disse,
nas suas capacidades explicativas, que são fracas, como no seu propósito
normativo e filosófico.
A crítica das
teorias da ação racional
Depois de passar em
revista o conjunto das teorias da ação racional, Paul K. Moser (1990, p. 9), na
introdução a um volume que reúne os textos essenciais na matéria, conclui:
"Traditional decision theory can not plausibly be thougt to give us an
uncontroversial account of rational action". Distingamos dois grandes
blocos de teorias da ação racional.
1. As que
argumentam, a partir da hipótese de que as preferências (as necessidades, as
utilidades ou os interesses, pouco importa) são dadas,
"paramétricas", e que as possibilidades alternativas e o futuro são
conhecidos do sujeito. Ou elas recusam pronunciar-se sobre a natureza das
preferências (etc.), e nesse caso são puramente tautológicas (um sujeito é
racional na medida em que prefere o que prefere); ou tentam pronunciar-se sobre
o conteúdo das preferências (etc.), mas nada de plausível foi alguma vez
enunciado na matéria e continuamos a ignorar se, e em que medida, os sujeitos
humanos agem por interesse (egoísta ou altruísta, econômico, social ou
simbólico), por prazer, por obrigação, espontaneamente, etc. De qualquer
maneira, para julgar das preferências ou dos interesses, seria necessário
dispor dos critérios de segunda linha, julgar em nome de meta-preferências. O
que nos leva ao segundo bloco de teorias da ação racional.
2. É o bloco das
teorias que defende que as preferências não são dadas ne varietur,
paramétricas, mas estratégicas, i. e. dependentes das escolhas
dos outros sujeitos (ver Elster, 1979), que a informação não é perfeita e que a
racionalidade é, por isso, limitada (ver Simon, 1982), que o futuro é incerto,
aberto ao risco. Neste caso, a racionalidade depende de fatores puramente
idiossincrásicos e afetivos, dado que não existem critérios racionais que
permitam decidir se é melhor visar um ganho máximo provável (minimax),
minimizar as perdas possíveis (maximin), ou outras escolhas. E, se as
preferências já não são consideradas como dadas, em nome de que escolher as
preferências que seria preferível ter? Em nome de preferências de segunda
linha, diz-nos, por exemplo, Harry Frankfurt (1971, traduzido emM. Neuberg et
al.,p. 253-269). Mas, em nome de que julgar estas metapreferências? A pouco e
pouco, verifica-se que os critérios de racionalidade dependem do simbolismo
coletivo e das regras de moral, de que a teoria das escolhas racionais entendia
fazer a Economia, ou que ela projetava deduzir escolhas racionais individuais.
Esta aporia é perfeitamente posta a claro por toda a literatura consagrada ao
dilema do prisioneiro, que teve dificuldade em deixar de concluir que seria
mais racional não o ser, ou antes, que é mais racional ser moral que racional
("Morality is an essential part of maximization", conclui David
Gauthier, 1986).
De maneira mais
geral, todos os debates à volta da racionalidade nos parecem marcados por uma
dupla confusão: entre lógica e racionalidade, por um lado, e, por outro, entre
causas e razões (entre o que Albert Schutz chamava os weil
motiven e os um zu motiven, entre o porquê e o para quê).
Sejamos justos,
esta distinção entre causas e razões está no centro da obra de Donald Davidson.
Mas, como não se combinou à primeira, parece-nos que conduz a obscuridades. Em
casos raros, quando todos os dados de um problema são identificados, quando não
há ambigüidade sobre o jogo em que ele é jogado, é admissível que se decida se
uma ação é lógica ou não. De um ponto de vista analítico, a idéia de
racionalidade nada traz à idéia de logicidade. A sua utilização tem, por isso,
finalidades propriamente metafísicas. Permite que se ponha em cena o fantasma
de sujeitos que seriam, de parte a parte e integralmente lógicos, em todas as
suas esferas de atividade, lógicos na articulação das suas lógicas parcelares,
autoprodutores e transparentes por si mesmos no cálculo lógico ou aritmético. A
imagem alucinatória de uma tal homogeneidade lógica, enraizada na certeza
calculante, denega desde logo a divisão dos sujeitos entre pólos irredutíveis
da ação, do interesse, do prazer, da obrigação e da espontaneidade, e a sua
divisão entre o que faz sentido para eles (os um zu motiven, o para
quê) e as suas determinantes objetivas (os weil motiven, o porquê).
Tudo isto é comprovado por toda a literatura sobre os paradoxos da
irracionalidade, que acaba sempre na divisão do sujeito. Em conclusão: é a
própria noção de racionalidade que é insensata, simples metáfora laicizada da
imagem do deus onisciente e onipotente. Não tem sentido que um sujeito queira
ser racional. Em contrapartida, ele pode esforçar-se para ser sensato, mais
isso é outra história.
O utilitarismo
filosófico ou normativo
Suponhamos que
relevam do utilitarismo filosófico ou normativo as doutrinas que enunciam
que são justas, e só elas, as ações, as normas e as leis que contribuem para a
maximização da felicidade do maior número de indivíduos, preocupados em
maximizar a diferença positiva entre os prazeres e os sofrimentos. Ou, ainda,
se se escreve J = Justiça, Ui = Utilidade do indivíduo, nesse caso o
utilitarismo normativo gravita à volta da equação segundo a qual J = Max S Ui.
Notemos, de passagem, que o critério utilitarista da justiça é de ordem
holista. O problema que se levanta a seu propósito é o de saber qual a relação
que existe entre o justo, assim definido no plano do coletivo e a virtude ou a
utilidade dos indivíduos. A virtude será equivalente ao que concorre para a
maximização da utilidade da soma dos indivíduos ou só para a maximização da
utilidade individual, e a própria utilidade individual será função da justiça
ou independente dela? As diversas escolas utilitaristas diferenciam-se em função:
- Da maneira como
articulam J (justiça), V (virtude) e Ui;
- Da resposta que
dão à questão de saber quem calcula, racionalmente, o sujeito individual,
empírico ou transcendental, o legislador racional, o coletivo, ou Deus.
Gostaria de tentar
aqui: 1) Definir o lugar desta formulação utilitarista no conjunto da Filosofia
Moral e Política; 2) Iniciar uma crítica do utilitarismo filosófico, mostrando
que ele tropeça numa antinomia fundamental.
1) O lugar do
utilitarismo normativo na Filosofia Moral e Política
De qualquer modo,
oficialmente designa-se por utilitarismo a doutrina de Jeremy Bentham e dos
seus discípulos, quase todos anglo-saxões, John Stuart Mill, Henry Sidgwick e,
mais perto de nós, R. Hare, A. Hart, J. C. Smart, John Harsanyi. O utilitarismo
assim definido ter-se-ia mantido dominante nos países anglo-saxônicos, e
especialmente nos Estados Unidos até cerca de 1970 e à publicação da Theory
of Justice, de John Rawls. Esta visão oficial das coisas é muito
insuficiente. J. Bentham reconhece as suas dívidas para com Beccaria, Helvetius
e Hume. Este último inscreve-se na linhagem daquilo a que podemos chamar os
moralistas aritméticos, muitas vezes apresentados como os primeiros
utilitaristas, Shaftesbury, Hutcheson, Adam Smith. O que é estranho é que
talvez não haja mais utilitaristas na história do pensamento, em muitos
aspectos, que Shaftesbury e Adam Smith. Pelo menos o Adam Smith da Teoria
dos sentimentos morais. Estes últimos escrevem, de fato, para se demarcarem
de Hobbes e Mandeville, e da afirmação cínica da realidade do egísmo
psicológico. O que levanta o problema, muito complexo, da relação mantida pela
filosofia utilitarista, com a afirmação da universalidade do egoísmo, por
outras palavras, com a questão de saber se os homens se regem pelo self-interest,
pelo self-preference ou pelo self-regarding principle.
A estranheza tem a
ver com o fato de, se chamamos utilitarista às teses que postulam que a justiça
consiste na maximização da felicidade dos indivíduos egoístas, então as teorias
mais utilitaristas são as de Hobbes e de Locke, e, mais geralmente, as do
jusnaturalismo. Mais utilitaristas que a teoria do próprio Bentham. Ora, como
se sabe, Bentham, na esteira de Hume, revela-se um dos mais virulentos críticos
do jusnaturalismo e das fantasmagorias do contrato social. As vias do
utilitarismo parecem pois, a priori, relativamente impenetráveis.
Não decidamos por enquanto e limitemo-nos a apresentar como utilitarista,
no sentido estrito do termo, a versão benthamiana, e como utilitaristas
no sentido lato do termo as diversas doutrinas jusnaturalistas
modernas, cuja ferramenta intelectual central é representada pela teoria do
contrato social.11
Para melhor
compreender as filiações entre escolas aparentemente opostas, mas
freqüentemente complementares, teremos provavelmente de remontar mais longe,
até à filosofia antiga. O fato essencial, de que temos de ter consciência, se
queremos situar corretamente o lugar do utilitarismo na filosofia moral e
política, é que o primeiro grande pensador utilitarista de todos os tempos é
justamente aquele que faz nascer a Filosofia Política, Sócrates, do qual,
recordamos, Hegel já estigmatizava o subjetivismo. O utilitarismo de Sócrates é
uma evidência se atendermos à leitura de um dos seus principais discípulos,
Xenofonte.12 Mas o testemunho deste último é habitualmente recusado. Dá-se a
entender que ele nada teria compreendido das propostas do seu mestre. O testemunho
do seu segundo discípulo, infinitamente mais prestigiado, Platão, parece
contudo bastar para atestar que todo o pensamento de Sócrates se organiza à
volta do sistema de identidades, que ele afirma existir, entre o justo, o
verdadeiro, o belo, o bem e o útil pelo qual entende a maximização da
felicidade de todos. É a evidência deste critério utilitarista, racionalista,
que ele opõe à retórica dos sofistas, e que o incita, tal como os discípulos de
Bentham, a denunciar os sortilégios e os disfarces da música e da poesia.
A República de
Platão, "a maior obra de filosofia política de todos os tempos",
segundo Léo Straus, constitui uma defesa e ilustração das identidades
socráticas. Contém todas as variantes possíveis e imagináveis do utilitarismo,
incluindo a sua refutação. Com efeito, lá encontramos: uma teoria da medida dos
prazeres e dos sofrimentos, aritmética, geométrica ou dialética; uma teoria das
relações da harmonização espontânea dos interesses a que se opera na cidade
dos porcos , e uma teoria da harmonização artificial dos interesses sobre a
qual se funda a cidade perfeita, uma refutação do tradicionalismo, do
positivismo jurídico e do cinismo, uma revelação da antinomia da razão
utilitária normativa, cuja solução suporia a emergência improvável de uma
personagem problemática: o legislador-rei-filósofo, único capaz de fundar uma
sociedade utilitarista perfeita, mas tanto mais improvável quanto só poderia
existir se ele fosse produzido e educado por essa cidade perfeita que ele tem
por função fundar e instituir (Caillé,1990).
Abrir-se-ia um
vasto campo ao estudo do lugar do utilitarismo na filosofia antiga. Seria
necessário mostrar a sua consistência relativa sobre o epicurismo,13 o
eudemonismo, etc. Mais importante é, talvez, notar que o debate do utilitarismo
e do antiutilitarismo se inicia com a crítica de A República de Platão,
por Aristóteles. Aristóteles, eudemonista,14 aceita plenamente a
legitimidade do objetivo da felicidade para os indivíduos, recorre muitas vezes
a raciocínios utilitaristas, mas, de resto, inicia uma crítica do utilitarismo
platônico sobre dois pontos fundamentais, ao afirmar: 1) que a cidade não se
funda na necessidade, mas no prazer do ser-conjunto; 2) procurando, através da
sua teoria da philia um fundamento interacionista e não
utilitarista nem holista, a priori, para a relação social.
Esta observação
permite-nos voltar à questão do lugar do utilitarismo na filosofia política
moderna (a partir dos séculos XVI-XVII). O melhor meio de compreender a
sucessão das escolas é partir da distinção feita por Élie Halevy (1903) entre
três maneiras de pensar a articulação dos interesses dos indivíduos, estando
entendido que o problema é sempre o da relação entre as utilidades dos
indivíduos e a soma dessas utilidades: a teoria da fusão dos interesses,
a teoria da sua harmonização artificial, a teoria da harmonização
espontânea. Do ponto de vista dessas distinções, a verdadeira diferença
entre o jusnaturalismo e as teorias do contrato social, por um lado, e
utilitarismo benthamista, por outro, não incide tanto sobre a axiomática de
base como sobre a representação dos modos da harmonização dos interesses. De
fato, jusnaturalismo e utilitarismo benthamiano põem em cena indivíduos que
procuram maximizar racionalmente os seus interesses. Um e outro participam na
axiomática do interesse. A divergência está na questão de saber como esses
interesses individuais racionais são susceptíveis de se combinarem para a
formação de uma sociedade harmoniosa.
Simplificando:
pode-se dizer que as teorias do contrato social postulam uma harmonização
espontânea dos interesses. A teoria econômica do mercado será a
principal formação científica dessa intuição, que sustenta todas as teorias do
contrato social. Pelo contrário, o utilitarismo stricto sensu, o de
Jeremy Bentham, consiste numa teoria da harmonização artificial dos
interesses. Uma vez que os interesses não são espontaneamente compatíveis, e é
necessário que um legislador racional os combine racionalmente, ou os
aperfeiçoe por meio de um manejamento judicioso dos castigos e das recompensas,
ou mesmo através da mentira (cf. a nobre mentira de Platão). A questão do lugar
ocupado nestas duas correntes de pensamento pelo postulado do egoísmo é
complicada, dada a existência de uma terceira corrente de pensamento, a dos
moralistas empiristas ingleses, representados por Shaftesbury, Hutcheson, Hume
e Adam Smith. Com efeito, esta corrente procura uma terceira via teórica, a que
consiste em pensar uma fusão dos interesses através do emprego
do conceito de simpatia e a postulação do caráter inapto de um sentido moral.
Existiria um prazer específico da virtude análogo ao prazer que o comer ou
beber procuram.
Continuando a
simplificar consideravelmente, digamos que as teorias do contrato social são
individualistas, que o utilitarismo benthamiano consiste num holismo de base
individualista, e que as teorias da simpatia se inscrevem numa perspectiva
interacionista. Se a obra de Bentham, bem como a dos seus sucessores, é tão
difícil de desdobrar teoricamente, é porque ela só remata o postulado de
egoísmo de Hobbes, passando pelo subterfúgio da sua negação crítica empreendida
pelos moralistas ingleses, considerados os "precursores" de Bentham.
Existe um vasto debate no mundo erudito sobre a questão de saber em que medida
Bentham recorre aos postulado do egoísmo.15 A resposta mais provável, já
indicada por É. Halévy (1903), é que Bentham o faz progressivamente, à medida
que se tornava radical e democrata. O que, diga-se de passagem, levanta a
questão das relações entre egoísmo, interesse material e democracia.
Para terminar este
quadro, tão atrevido como caricatural, convém ainda distinguir três períodos do
utilitarismo normativo: o do utilitarismo tradicionalista, que não
distingue claramente o egoísmo do altruísmo, e que defende que a principal
motivação dos indivíduos é, ou deve ser, a procura da estima de si e dos
outros; o do utilitarismo burguês, que consiste no pleno
reconhecimento da legitimidade do egoísmo e do interesse material; o de um
utilitarismo que poderíamos qualificar de pós-moderno, cujo
primeiro representante importante é Derek Parfit (1984), que deixa de acreditar
na existência de um sujeito unificado e homogêneo dos cálculos.
2) A antinomia da
razão utilitária normativa
Que censurar a este
utilitarismo normativo, por outras palavras, que censurar ao objetivo da
procura da felicidade para todos, que parece impor-se com uma força
irresistível? Fundamentalmente, três coisas.16
Em primeiro lugar,
ele é, em muito larga medida indeterminado, pois que, se nos diz que se deve
maximizar a felicidade de todos17 não nos esclarece de que todos
se trata. Dever-se-á maximizar a felicidade de todos os membros de uma família,
de vários, de uma aldeia, de várias aldeias, de uma província, de uma nação, de
um continente, do mundo inteiro? E porque não a dos animais, superiores ou
inferiores, das plantas, finalmente do cosmos, como o preconizam, de resto,
alguns utilitaristas contemporâneos (P. Singer)? A resposta a esta primeira
questão implica uma avaliação normativa, que não pode ser deduzida do
racionalismo utilitarista. Suponhamos, contudo, que o problema é resolvido.
Desembocar-se-ia numa outra dificuldade muito mais difícil de ultrapassar.
Em segundo lugar,
não é possível discutir o postulado segundo o qual a justiça consiste na
maximização da felicidade dos indivíduos, se não nos disserem nem em que
consiste a justiça nem em que consiste a felicidade. Mas o problema central é o
de saber como se deve compreender a soma dos indivíduos. Esta soma será
equivalente ao conjunto dos indivíduos, ou divergirá desse conjunto? Bentham
afirmava claramente que o conjunto não é mais que a soma dos indivíduos. Desse
modo, conferia ao utilitarismo uma tonalidade democrática radical, pois que
"um não vale mais que um". A comunidade, o Estado ou a sociedade,
nesta óptica, são fictitious bodies, sempre decomponíveis, em
princípio, nas suas unidades elementares, os indivíduos. E só sobressaem, no
fim de contas, o ponto de vista, os prazeres e as dores dos indivíduos
empíricos. Mas, se esta posição tem a vantagem do radicalismo e da clareza, ela
conduz a conseqüências temíveis. De fato, que pode o legislador racional
decidir se, e quando, a maioria dos indivíduos deseja unicamente jogar cartas
e, sobretudo,, não quer ler nem Platão nem Shakespeare? Nesse caso, conclui
Bentham logicamente, não se deve editar nem Platão nem Shakespeare. Uma tal
conclusão teria de inquietar os sucessores de Bentham, que procuram remediá-la.
Argumentaram, em resumo, que nada permite pensar que os indivíduos empíricos
estejam verdadeira e plenamente informados dos prazeres que se lhes abrem e
que, por isso, sejam os únicos juizes legítimos do bem, da felicidade ou da
infelicidade coletivos. A outra dificuldade é que é racionalmente impossível
convencê-los de que deveriam ser justos e virtuosos, isto no caso de o não
serem desde a origem. Se, na verdade, a justiça coletiva não consiste em nada
mais que a satisfação dos interesses particulares, então ninguém pode ser
obrigado a privilegiar a felicidade de todos contra a sua felicidade
particular, e cada qual está, a qualquer momento, autorizado a violar a lei, se
o puder fazer impunemente, em função dos seus interesses particulares
imediatos.
É essa a razão pela
qual todas as doutrinas utilitaristas, com exceção da de Bentham, também ela
muito ambígua e incerta, desconfiam profundamente dos sujeitos empíricos, e têm
todas elas de pôr em cena um sujeito plenamente informado e racional, o
filósofo, em John Stuart Mill,18 como já em Platão e
Aristóteles, um sujeito informado de todas as possibilidades (J. C. Harsanyi),19 um sujeito
plenamente autônomo (J. Elster)20 ou um sujeito moral antes que
ser social (J. Rawls). Mas, afirmar que o verdadeiro juiz dos prazeres e dos
sofrimentos não é o sujeito empírico mas o sujeito racional omnisciente é o
mesmo que defender que um não vale um, que alguns são mais iguais que outros e,
portanto, que o conjunto dos indivíduos é diferente da sua soma. Levanta-se
então o problema de saber quem vai decidir sobre a utilidade deste conjunto, que
transcende o lugar dos sujeitos empíricos concretos. Quer se queira quer não, o
utilitarismo volta assim, e necessariamente, a oscilar entre o
"perfeccionismo" e o "intuicionalismo", que era suposto ter
por missão ultrapassar.21
Em terceiro lugar,
todos os utilitarismos, sejam quais forem as diferenças que os separam, devem
pressupor que existe, pelo menos, um sujeito plenamente racional e plenamente
informado. Nem que seja simplesmente virtual: o sujeito empírico, ele próprio,
o sábio, o filósofo, o cidadão esclarecido, o cientista, o juiz ou o
legislador, o rei, ou mesmo Deus (cf. Paley, o principal inspirador de
Bentham). Ora, sendo um tal sujeito teórico e praticamente inconcebível, o
utilitarismo normativo torna-se rapidamente auto-refutante, e tende a oscilar,
mais cedo ou mais tarde, para uma teoria da harmonização espontânea dos
interesses, através da idéia de que o único sujeito empírico omnisciente que é
possível encontrar é representado pelo mercado, dito de outra maneira, pelo
contrato e pelo dinheiro. O utilitarismo não é, nesse caso, outra coisa senão o
liberalismo econômico vulgar.
Em definitivo,
todas as sutilezas, todas as sofisticações e estratégias teóricas que separam
as diversas escolas utilitaristas parecem perfeitamente secundárias em relação
com as três idéias de força simples, para as quais, implícita ou
explicitamente, se é incessantemente reconduzido: 1) a de que a justiça é
idêntica à felicidade; 2) que o máximo de felicidade é igual ao máximo de
produto nacional bruto (forma moderna da "riqueza" dos economistas de
antanho), destinado ao maior número de indivíduos possível; 3) que se deve
maximizar a quantidade de vida sob todas as suas formas (aquilo a que Derek
Parfit chama the repugnant conclusion do utilitarismo).
A conjunção destas
três propostas, semi-explícitas, semi-implícitas, deságua num programa de
"governamentalidade" (M. Foucault) e de controle social, que permite
fazer a economia do debate ético e político, uma vez que o único objetivo
sensatamente atribuível à humanidade é o da acumulação indefinida do poder
econômico, estatal, técnico e científico. Será possível ultrapassar estas
aporias do utilitarismo normativo e procurar, para a justiça e para a questão
dos fins do homem e da sociedade, outros fundamentos normativos?
Um outro paradigma
possível: a dádiva
Digamos as coisas
de maneira ligeiramente diferente.
O
utilitarismo lato ou stricto sensu, jusnaturalista
ou benthamista, tenta pensar os fundamentos da "sociedade dos
indivíduos", mas hesita no ponto de saber se se deve pensar do ponto de
vista dos próprios indivíduos ou do ponto de vista da totalidade que eles
formam, o da sociedade. Perante esta questão, o utilitarismo está dividido,
teórica e normativamente, entre um momento individualista e um momento holista,
que parecem antitéticos e inconciliáveis. Parece que, para ir mais longe, ele
deveria seguir uma terceira via, uma via intermédia, que evite apresentar os
indivíduos como simples produtos, diretos e mecânicos, da totalidade, ou, ao
invés, a totalidade como produto simples, direto ou indireto, dos cálculos
individuais. Esta terceira via designei-a, ao longo deste capítulo, mais ou
menos implicitamente, de interacionismo. Mostrei os seus frêmitos, já antigos
nas ciências sociais. Alinhei sob este rótulo Aristóteles e os empiristas
morais ingleses, especialmente o Adam Smith da Teoria dos sentimentos
morais. Mas os conceitos de philia, de sentido moral e de
simpatia, não cristalizaram, não conseguiram trazer à luz do dia um paradigma
alternativo ao utilitarismo, porque se mantiveram demasiado vagos, largamente
especulativos e desmunidos de um fundamento empírico claro. Ora, parece-me que
existe na literatura das ciências sociais uma obra que é susceptível de dar uma
clarificação retrospectiva e prospectiva decisiva a estas interrogações:
trata-se do Essai sur le don, de Marcel Mauss. Sabe-se que este
último estabeleceu a universalidade, no seio do mundo arcaico, da obrigação de
dar, receber e restituir. Esta obrigação está, ao mesmo tempo, do lado do
interesse e do desinteresse, é utilitarista e antiutilitarista, individualista
e holista. Por outras palavras, ela não está nem num lado nem no outro, mas é
interacionista.
Digamo-lo ainda de
outra maneira. A dádiva arcaica, cujas linhas de força principais Mauss faz ressaltar,
rege-se por uma dupla oposição paradoxal. Primeiro paradoxo: só é dádiva desde
que espontânea, mas esta espontaneidade está sujeita à obrigação. Dizer que a
dádiva releva da espontaneidade é dizer que é feita "para nada", por
prazer. Ao mesmo tempo, segundo paradoxo, o interesse, demonstra-o Mauss, está
sempre presente, mas de uma maneira tal que a sua satisfação passa pelo
subterfúgio da sua negação. O erro do racionalismo utilitarista é pretender
limitar a dádiva, como todo o tipo de ação, unicamente ao momento do interesse,
quando os três outros pólos, o do prazer por um lado, os da obrigação e da
espontaneidade por outro, são igualmente reais. A dádiva funda a aliança, é o
alicerce das comunidades, mas, dádiva agonística, só o faz na proporção da
ameaça que ela encarna, testemunhando o desinteresse material e portanto a
liberdade do doador, de poder a todo o momento recair na hostilidade e na
guerra. Um retorno, uma contradádiva, é possível, mas num lapso de tempo
dificilmente previsível e segundo um montante que nunca é seguro, pois que o
que devolve não pode contentar-se com restituir um equivalente, e lhe incumbe
dar, por sua vez, provas da sua liberdade e do seu poder, colocando-se ele
próprio na posição de doador.
Fundadora de novas
relações, iniciadora de algo que não existia antes dela, símbolo da capacidade
de dar a vida como de dar a morte, a dádiva introduziu uma desapropriação
sistemática e, como tal, procurada entre os efeitos e as causas, testemunhada
pelo estado de endividamento generalizado de cada um para com os outros, que
faz com que as contas nunca estejam saldadas e ninguém se possa considerar
desobrigado. Neste sentido, ela representa um desafio permanente ao princípio
de razão, desafio material, se for caso disso, à necessidade, desafio à
submissão, desafio ao encadeamento mecânico das causas e dos efeitos. Não que
os ignore, mas entende mantê-los a um nível subordinado, o das coisas que não
fazem sentido por si mesmas, tal como mantém a troca por troca, o gimwali,
num lugar subordinado e desprezível face à troca cerimonial. Por esta razão, o
princípio de razão é incapaz de dar conta da essência da dádiva, dado que esta
é justamente a procura de algo que está além do princípio de razão suficiente,
procura de razões em excesso. Heidegger nota que o princípio de razão, segundo
o qual nada é sem razão, nihil sine ratione, esse princípio que
Leibniz qualificava de principium magnum et grande et nobilissimum,
não é outro que o principium reddendae rationis, o princípio
segundo o qual é preciso explicar a razão. Por que e a quem
deve ela ser explicitada? pergunta Heidegger (1962, p. 249).
É, pode-se pensar,
no vocabulário e na sintaxe da tripla obrigação de dar, receber e restituir,
explorada empiricamente por Mauss, e não de maneira especulativa e a
priori, que se devem tentar reformular as grandes alternativas à razão
utilitária exploradas pela tradição filosófica, e que nunca chegaram a
encontrar o seu denominador comum. Repensar a philia aristotélica,
a amicitia ciceroniana ou senequiana; a simpatia dos
empiristas ingleses, essa reciprocidade espontânea; o dever moral de Kant, na
medida em que ele encarna uma força da obrigação que, por ser obrigação da
razão, não deixa de ser irredutível à homogeneidade das causas e dos efeitos.
Repensar, finalmente, o estatuto da vida, essa alternativa maior
oposta ao utilitarismo por todos os grandes pensadores do final do século XIX e
começo do XX, Nietzsche, Guyau, Bérgson, Simmel ou Scheler. Porque a obrigação
de dar, na sociedade selvagem, é, antes de mais, obrigação de dar mulheres que
dão filhos, obrigação pois de dar a vida, essa centelha de realidade que excede
as suas causas.
Tomar
verdadeiramente a sério o Essai sur le don, tirá-lo do seu gueto
etnológico, para reconhecer nele uma das obras maiores da ciência social,
permitiria ultrapassar alguns dos seus becos sem saída, tanto cognitivos como
normativos desde que se vença a timidez de Marcel Mauss , e mostrar que a dádiva
não diz somente respeito aos selvagens, mas é ainda constitutivo daquilo a que
poderíamos chamar a sociedade primária moderna.
No plano cognitivo:
para compreender o que está em jogo, devemos lembrar que as ciências pretendem
tudo explicar em termos de interesses, seja pelos interesses econômicos, seja
pelos interesses de poder, ou mesmo pelos interesses sexuais. Dito de outra
forma, elas pretendem explicar o todo da ação social de acordo com a lógica do
mercado ou com a lógica do Estado. Mas, mercado e Estado não representam, de
uma certa maneira, mais que superestruturas. Por mais importantes e dominantes
que sejam nos nossos dias, elas são da ordem da socialidade secundária.
Ora, ainda hoje, sob a socialidade secundária, e por vezes até no seu centro,
subsiste uma importante socialidade primária, aquela que estrutura
a aliança e o parentesco, a camaradagem e a amizade, a vida associativa.
Defendo a hipótese de esta socialidade primária ser o lugar das relações de
pessoa a pessoa e de estas funcionarem ainda de acordo com a obrigação de dar,
receber e restituir.22
No plano normativo:
desta constatação empírico-teórica decorrem talvez implicações normativas
importantes. Para as medir, basta refletir-se sobre a experiência das comissões
de ética francesas. Elas opõem-se massivamente tanto ao utilitarismo prático
como ao utilitarismo normativo anglo-saxônico. Concretamente, recusam toda a
venda ou aluguel de esperma, de sangue, de ventres ou de órgãos diversos, só
aceitando a sua dádiva. Mas para esta recusa do contrato, do intermediarismo
monetário, tal como para esse privilégio normativo atribuído à dádiva, elas não
conseguem encontrar outras razões que não sejam religiosas ou humanistas vagas.23 Parece-me que
se se pudesse mostrar que o sentido da relação social primária está ligado à
tripla obrigação de dar, receber e restituir, que é através destes três
movimentos que se tecem as comunidades, especialmente a família, e que se
formam as identidades pessoais, então haveria matéria para encontrar um
fundamento, simultaneamente racional e empírico, para a recusa da venda daquilo
que toca à pessoa humana e para o privilégio reconhecido à dádiva.
É verdade que a
relação social que forma a grande sociedade não se reduz à sociedade primária
nem às relações de pessoa a pessoa, e que a regra que vale para a sociedade
primária não pode valer, tal e qual, nem para o mercado nem para o Estado.
Subsiste assim o problema de saber em que fundar a justiça na grande sociedade,
dado que ela é irredutível às pequenas sociedades que tecem as relações de
dádiva (distinção particularmente bem vista por Hume e Bergson). O problema é
vasto, e não conheço nenhuma resposta a priori para ele. A
única coisa que parece clara é que o funcionamento da ordem democrática supõe
um mínimo de virtude nos cidadãos, e amizade, philia, entre eles, e
que está excluído que a virtude possa nascer unicamente dos cálculos
utilitários, mesmo que moralistas e altruístas, dos cidadãos ou dos seus
dirigentes. Resta-nos assim pensar numa philia e numa
obrigação de dar, receber e restituir em escala de grandes números. Um tal
pensamento implica que se procure para a ordem democrática um outro fundamento,
imaginar que não seja propriamente político? Nesta primeira parte, verificamos
como o modo de conceitualização dominante nas ciências sociais as conduzia ao
esquecimento da essência política das sociedades. O que agora temos de fazer é
tentar a reconquista de uma interrogação do político.
Notas
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·
1
Dupuy, F. Eymard-Duvernay, O. Favereau, A. Orlean, R. Salais e L.
Ihévenoi, os autores do número especial da
Revue Économique (v. 40, n. 2, mar.1989), que apresenta as
teses da nova escola, concordam com a idéia de que "a admissão de uma
convenção comum não deve conduzir à renúncia dos preceitos do individualismo
metodológico" (p. 143).
·
2
Cf. Sperber e Wilson, 1989.
·
3
A melhor crítica da teoria econômica neoclássica, a que mais luz sobre a
impotência que nela resulta da sua recusa arrogante do empirismo, parece-nos
ser a de Mark Blaug na sua
Méthodologie économique (1987). Pode ler-se uma
excelente crítica das versões recentes da teoria do equilíbrio geral em Bernard
Guerrien,"La théorie néoclassique Bilan et perspectives du modèlé
d'équilibre general",
Econômica 89; cf. igualmente B. Guerrien. "Mythes et réalitês de la
théorie économique",
Revue du MAUSS, Paris, n. 9, p. 123-147, 3º trim. 1990, e também
La théorie néoclássique (Paris, La Découverte, 1989), da
coleção "Repéres". O caráter tautológico e circular da teoria do
equilíbrio geral tinha sido perfeitamente revelado, já em 1947, por Bertrand
Nogaro, num livro injustamente desconhecido e esquecido:
Le valeur logique des téories économiques (1947). Foi
nesta mesma circularidade que nós mesmo insistimos, em "La rationalité
économique n'existe pas",
Bulletin du MAUSS, Paris, n. 13, p. 106-144, mar. 1985, e retomada
em
Splendeurs et misères des sciences sociales (Genebra :
Droz, 1986).
·
4
Renunciar ao princípio de racionalidade não implica nem desesperar a
razão nem renunciar à procura do rigor. É reconhecer que as ciências humanas e
sociais não são susceptíveis de caber no molde das ciências da natureza. Elas
são o lugar daquilo a que Claude Lefort chama as "obras de
pensamentos", que ele distingue das obras de arte e das obras de ciência
(Les formes de l'histoire. Paris : Gallimard, 1978. p.
141). O mérito do livro recente de Jean-Claude Passeron,
Le raisonnement sociologique (Paris : Nathan, 1991), é
assumir plenamente esta diferença irredutível sem por isso deixar ir o trigo
com o joio, e mantendo uma distância igual da ilusão experimentalista (e
racionalista, acrescentamos por nossa conta) e da ilusão hermenêutica.
·
5
Dagtinn E.; H. Esdal.
Le salut des présupposés de rationalité dans l'interprétation et dans
l'explication de l'action. In:Neuberg
et al., op. cit.
, p. 175. Jon Elster um dos que foram mais longe na tentativa de mostrar
como certos comportamentos, aparentemente irracionais, a fé ou a generosidade,
por exemplo, eram susceptíveis de ser explicados como resultados de escolhas
racionais iniciais, sendo portanto, de fato, racionais, conclui ele próprio:
"A teoria da escolha racional é, primeiro e antes de tudo, uma teoria
normativa. Só de maneira muito secundária é explicativa" (
Solomonic judgements: studies in the limitations of rationality, op.
cit. p
. 1).
·
6
Em 1428, no seu
Oratio, Bruni escreve que o lucro bem compreendido é benéfico ao conjunto da
República. No mesmo ano, Poggio defende que "o dinheiro representa o nervo
vital de uma República e que os homens que gostam de dinheiro são os seus
alicerces" (
apud Skinner, 1978, p. 74). Em França, tivemos de esperar quase dois
séculos para encontrar eco dessas propostas ousadas na pena de Antoine Hotman
que, em
Les deux paradoxes de l'amitié et de l'avarice (1598, retomado em
1616 em
Opuscules françaises des Hotmans), escreve que "o bom prescreve
que um homem seja tão rico quanto possível", e que "quem rejeitar as
riquezas que nos dão as comodidades da vida é desnaturado e não sabe o que é
viver" (
apud Rothkrug, 1989, p.104).
·
7
Sobre este ponto, ver Caillé,
La sociologie de l'intérêt est-elle interessante?. Para uma crítica
detalhada do economicismo denegado de P. Bourdieu, ver Caillé (1992)
·
8
Sobre a conquista dos departamentos de sociologia americanos pela Rat,
ver a excelente informação reunida por Calhoun e Wac-Quant em "La Rational
Action Theory aux États Unis"
.
·
9
É a conclusão a que chega Jon Elster (1989).
·
10
A Society for the Advancement of Socio-Economics (SASE) agrupa em torno
de personalidades prestigiadas, como Amitai Etzioni, Amartya Sen, Kenneth
Boulding ou Albert Hirschmann, centenas de universitários de uns trinta países.
Em francês, sobre socioeconomia, ver
Revue du MAUSS, n. 9, 3º trim. 1990.
·
11
O caso da
Teoria da Justiça, de John Rawls, é particularmente interessante.
Ela pretende-se antiutilitarista. No entanto, na sua formulação inicial,
apóia-se num conceito de racionalidade que, diz-nos J. Rawls (trad. francesa,
Paris: Seuil, 1987. p. 40), "deve ser interpretado, na medida do possível,
no sentido restrito corrente na teoria econômica". A teoria da justiça
funda-se, pois, na axiomática do interesse, ou seja, no utilitarismo teórico
para refutar o utilitarismo filosófico. Como todas as teorias do contrato
social, ela é utilitarista
lato sensu. O "segundo" Rawls, em contrapartida, mais realmente kantiano
(?), reclama-se do sensato, "isto é, da capacidade das pessoas para terem
um sentido da justiça" (Rawls, J. Les libertés de base et leur priorité.
Critique, p. 439, jul. 1989), com o risco de recair no
"intuicionalismo", que ele pretendia antes de tudo ultrapassar. Rompe
assim com o utilitarismo teórico, mas sem que isso impeça alguns utilitaristas
filosóficos, desejosos, também eles, de responsabilidade kantiana, de o
reconhecer como um dos seus. Pomos aqui o dedo na ferida das dificuldades
inerentes à articulação entre utilitarismo teórico e utilitarismo normativo. O
utilitarismo é uma doutrina com duas faces. Aquilo a que chamamos utilitarismo
teórico (a axiomática do interesse), Bernard Williams e Amartya Sen (na sua
introdução a
Utilitarism and Beyond, 1982) chamam
welfarism, e denominam
consequentialism àquilo a que chamamos utilitarismo normativo
ou filosófico. O utilitarismo, salientam (p. 3), "situa-se na intersecção
de dois tipos de teorias diferentes". É pois, escrevem, um
welfarist consequentialism (p. 5). Que estes dois tipos de
teoria não se harmonizam facilmente, ou que podem entrar em contradição, é o
que ressalta do propósito de Philippe Van Parijs, que já citamos, segundo o
qual "muito longe de implicar a sua verdade, o utilitarismo como teoria
política normativa pressupõe a falsidade do utilitarismo como teoria
explicativa do comportamento individual" (
Qu'est ce qu'une société juste? Paris, p. 33). Curiosa doutrina
que só pode ser verdadeira se for falsa.
·
12
De Xenofonte, sobre este ponto ver
La Cyropédie e Les Mémorables.
·
13
Jean-Marie Guyau (1985)
, imputa uma problemática utilitarista não a Sócrates ou ao Platão de
Protágoras ou de
A República, mas à escola epicuriana, tendendo a mostrar que o cálculo do prazer e
do sofrimento que esta desenvolve é idêntico ao dos empiristas morais ingleses
de Bentham.
·
14
Convém distinguir eudemonismo, procura da felicidade, hedonismo, procura
do prazer e utilitarismo. A diferença essencial reside no postulado de
mensurabilidade dos prazeres e dos sofrimentos que caracteriza o utilitarismo.
Qualifiquemos pois de utilitarista toda a doutrina que, identificando a justiça
e o bem com a felicidade dos indivíduos, considerados coletivamente, defende
que a felicidade se decompõe em elementos mensuráveis o útil e o agradável,
por exemplo, os prazeres e os sofrimentos , para deduzir deste duplo postulado
de redutibilidade e de mensurabilidade que a justiça e a felicidade são assunto
de ciências e de medida, e, que, reciprocamente, o vício e a infelicidade
resultam da ignorância e de um mau cálculo (cf. Caillé,
op. cit., p. 71
et seq.).
·
15
De fato, a primeira fonte da inspiração de Bentham é, sem dúvida, mais
francesa que inglesa. Lá, onde os moralistas ingleses do século XVIII consagram
todos os seus esforços a contornarem o postulado do interesse egoísta, o
conjunto das Luzes francesas desenvolve, sem hesitar, todo o debate moral na
base da aceitação da evidência da força do interesse; a única dificuldade tem a
ver com a questão de saber o que se deve entender pelo interesse, bem
compreendido ou classificado (ver, sobre este ponto, o muito esclarecedor livro
de Jacques Domenech,
L'éthique des Lumières (1989). Toda a retórica dos
revolucionários franceses é profundamente utilitarista (cf. Bouche, 1990). Não
esqueçamos que Bentham foi feito cidadão francês honorário pela Revolução.
·
16
Limitando-nos ao que nos parece fundamental, não entramos no debate
técnico ligado ao utilitarismo filosófico antigo, irrigado por um número muito
considerável de livros e de artigos, e por isso extremamente denso e complexo.
Não cuidamos aqui, por exemplo, das diferenças entre "
act" e "
rule"
utilitarism, nem da questão de saber se, de um ponto de vista
utilitarista, mais vale maximizar a utilidade média ou total. Sobre o
utilitarismo normativo, a melhor exposição em francês é a Philippe Van Parijs (
op. cit.,capítulo 2). Não entramos também na discussão sobre a dimensão
sacrificial do utilitarismo (será preciso lançar cristãos aos leões para
aumentar a soma dos prazeres do proletariado romano?). Em
Le sacrifice et l'envie, Jean-Pierre Dupuy (1992) critica a
doutrina de Rawls, por nada ter a dizer sobre as situações sacrificiais e por
não conseguir ultrapassar o utilitarismo por essa razão precisa. O maior erro
do utilitarismo residirá na sua incapacidade de coordenar a lógica sacrificial,
ou na sua dificuldade em fugir à axiomática do interesse que o fez nascer? Este
segundo ponto parece-me mais importante. De resto, nas críticas que dirige não
já a Rawls mas a Hayek, a Nozick ou aos anarco-capitalistas, é esta última
dimensão do utilitarismo que Dupuy privilegia.
·
17
Para simplificar, tomamos aqui "todos" como aproximação do
"maior número" benthamiano.
·
18
O filósofo, segundo John Stuart Mill (1968), goza de prazeres
qualitativamente superiores aos do indivíduo normal. Por isso, ele é juiz único
da utilidade verdadeira, que Stuart Mill distingue do "expediente".
·
19
J. C. Harsanyi toma como critério de decisão não as preferências
empíricas dos indivíduos mas as suas "verdadeiras" preferências,
pelas quais ele entende as preferências que eles teriam (itálico de J. C.
Harsanyi) se dispusessem de toda a informação pertinente, raciocinassem sempre
com o maior cuidado, e estivessem um num estado de espírito particularmente
propício à escolha racional (J. Harsanyi, "Morality and the Theory of
Rational Behavior", 1982).
·
20
Jon Elster, por sua vez (em "Sour Grapes", artigo traduzido no
Bulletin du MAUSS, 1982), propõe que se retenha na
função de escolha social coletiva unicamente as necessidades que procedem da
autonomia do sujeito e que vão no sentido do seu reforço.
·
21
No perfeccionismo ele defende que existem valores eminentes, a priori
(por exemplo o prazer do filósofo, a autonomia, etc.), que primam sobre todos
os outros, e ao cumprimento dos quais os outros devem ser sacrificados. No
intuicionismo ele pressupõe que um sentido moral pré-existe às escolhas
racionais e nelas se mistura inextrincavelmente. Mas, em ambos os casos o
utilitarismo torna-se inútil e redundante, pois que o seu objetivo inicial era
justamente, deduzir os valores e a moralidade desejáveis em vez de os pressupor
(estes conceitos de perfeccionismo e de intuicionismo devem-se a J. Rawls).
·
22
Estas hipóteses são desenvolvidas em
L'ésprit du don, de Jacques Godbout (em colaboração com Alain
Caillé), 1992.
·
23
E a dádiva a que elas evocam é, de fato, largamente atravessada por
preocupações mercantis e estáticas. A dádiva gratuita do sangue alimenta os
grandes laboratórios industriais que, esses, procuram a rendibilidade no
mercado internacional. Viu-se recentemente até que ponto a preocupação estática
de preservar a rentabilidade mercantil vinha interferir com o sistema da doação
de sangue. Um bom tema para os utilitaristas estudarem: a preocupação de
preservar as hipóteses de concorrência da investigação francesa justificará o
risco de algumas centenas ou de alguns milhares de mortos? Aliás, a lei
Caillavet (1976), ao considerar, salvo prova ou testemunho em contrário,
qualquer pessoa acabada de morrer como doadora dos seus órgãos, tende a fazer
da doação de órgãos, mais que uma dádiva verdadeira, uma forma de imposto
disfarçado ou virtual. Sobre as ambigüidades da doação de órgãos ver "Bioéthique,
ville, citoyenneté", artigo publicado nos
Cahiers du LASA, n. 15-16, 1992, segunda parte.
·
*
Publicado anteriormente como o capítulo 4 do livro
A Demissão dos Intelectuais: a Crise das Ciências Sociais e o
Esquecimento do Factor Político (Lisboa : Instituto Piaget),
este texto retoma, completando-a, uma comunicação apresentada em 24 de
novembro de 1990 durante o Colóquio Bentham, em Genebra. Mantivemos a sua forma
oral, mas introduzimos-lhe notas muito substanciais que o leitor mais apressado
poderá saltar.
Datas de Publicação