RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE
DIREITOS PLURAIS E COMUNITÁRIOS LATINO-AMERICANOS
REDEFINITION OF THE CONCEPT OF DEMOCRACYFROM THE
PLURAL AND COMMUNITARIAN RIGHTS LATIN AMERICAN
Antonio Carlos Wolkmer
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
Professor Titular de História das Instituições Jurídicas, dos cursos de graduação e pósgraduação em Direito da UFSC. Doutor em Direito e membro do Instituto dos Advogados
Brasileiros (RJ). É pesquisador nível 1-A do CNPq. Professor visitante de cursos de pósgraduação em várias universidades do Brasil e do exterior (Argentina, Peru, Colômbia,
Chile, Venezuela, Costa Rica, Puerto Rico, México, Espanha e Itália). Autor de diversos
livros, dentre os quais: Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3.
ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001; Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina
(Org.) Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004; Sintesis de uma história das ideias jurídicas: da
Antiguidade clássica à Modernidade. 2. ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008;
Introdução ao pensamento jurídico crítico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012; História do
Direito no Brasil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013; Constitucionalismo Latinoamericano. Tendências Contemporâneas (Orgs.) Curitiba: Juruá, 2013
Resumo
A democracia no Ocidente desenvolveu-se historicamente como um
sistema de legitimação dos interesses dominantes em cada época,
realidade agravada com o advento da economia capitalista de
mercado, que conduziu a democracia a uma profunda crise. Como
resposta à crise das instituições políticas tradicionais, tem surgido uma
série de revoluções e lutas de resistência popular no continente latinoamericano, com especial força nos países andinos, cuja experiência
mais notável, a boliviana com seu pluralismo jurídico e sua democracia
comunitária, será analisada neste artigo. A experiência boliviana
diminui a histórica distância entre os âmbitos formal e material da
democracia, assimetria esta que a consolidou,desde sua origem, como um instrumento ideológico de conformação social. Ou seja, a
democracia pode ser reinventada a partir dos direitos plurais e
comunitários advindos do novo constitucionalismo dos Andes
Débora Ferrazzo
Graduada em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) em
2011. Mestranda no curso de pós-graduação em Direito na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Integrante do núcleo de estudos e práticas emancipatórias (NEPE).
Bolsista de mestrado da CAPES.
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 201
INTRODUÇÃO
As experiências democráticas desenvolvidas no Ocidente têm seu marco inicial
na democracia direta ateniense dos séculos VI a IV a.C. Tratou-se de uma bem
sucedida experiência de democracia, com inúmeras assembleias e deliberações
públicas, todavia com espaços reservados para as elites da época, afinal, Atenas era
então uma sociedade elitista e escravista, o que significa dizer que sua democracia,
embora significativa, não era plena, pois era definida pelos acordos de interesses
dominantes.
Nos séculos seguintes, o aspecto mais promissor da democracia ateniense,
qual seja, a participação direta dos cidadãos, foi sendo gradualmente substituído pela
forma representativa até culminar na contemporaneidade, em que a democracia
representativa se transformasse no grande instrumento de exercício do poder político
dos Estados Ocidentais.
Junto com este intenso desenvolvimento, adveio também a crise das
mediações democráticas, que confrontadas com a ineficácia e crescente descrédito
das políticas públicas, dos partidos políticos e instituições públicas em geral, dá espaço
para práticas políticas insurgentes e criativas, potencialmente capazes de revolucionar
desde uma perspectiva popular e francamente democrática, grandes paradigmas
políticos eurocêntricos, como Estado, monismo jurídico e a própria democracia. Tal
caso pode ser vislumbrado na experiência boliviana, que adiante será analisada.
Investigar e buscar compreender os eventos e transformações políticas que
Abstract
Democracy has been historically developed as a central element of a
system seeking legitimacy of dominant interests within several periods
of Western history. The advent of the capitalist market economy
aggravated this state of inequality and led democracy to a much deeper
crisis. In response to the crisis of traditional political institutions various
popular revolutions and resistance struggles have emerged across the
Latin American continent, especially in the so called “Andeans
Countries”. One of the most notable experiences is the case of Bolivia,
where an innovative legal system based on legal pluralism and
communitarian democracy has been instituted. This article will examine
the Bolivian experience and its attempt to diminish the historical
distance between the formal and the material spheres of democracy.
This distance not only created but contributed to consolidate social
asymmetry as an ideological device to preserve an unjust social order.
Bolivia's unique constitutional experience demonstrates that
democracy can be reinvented from the perspective of legal pluralism
and communitarian democracy, which set up the core of the new
Andean Constitutionalism.
Keywords: democracy; communitarian democracy; legal pluralism.
um instrumento ideológico de conformação social. Ou seja, a
democracia pode ser reinventada a partir dos direitos plurais e
comunitários advindos do novo constitucionalismo dos Andes.
Palavras-chave: democracia; democracia comunitária; pluralismo
jurídico.
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
202 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
1. ORIGEM DA DEMOCRACIA OCIDENTAL: PARA UMA REVISÃO CRÍTICA
DA EXPERIÊNCIA ATENIENSE
As experiências democráticas ocidentais têm sua inspiração na democracia
grega, inaugurada séculos antes de Cristo e, desde então, difundida no tempo e
espaço, inclusive pelo legado teórico de filósofos como Aristóteles. Claude Mossé
(2008, p.29-33) informa que no século IV a.C., Sólon era tido como o pai da democracia
dos ancestrais, cujo modelo de sistema político, junto às leis estabelecidas por
Clístenes, deveriam ser a orientação para a Constituição de Atenas, na ocasião de sua
revisão. Para Mossé, o conhecimento do sistema político anterior a Sólon é impreciso,
dada a ausência de documentos contemporâneos aos fatos, sendo o sistema
conhecido somente pelas reconstituições posteriores e dados arqueológicos, os quais
ensejam interpretações muitas vezes contraditórias.
O que informa a obra aristotélica é que, ao tempo de Sólon, havia uma
atmosfera de conflito entre ricos e pobres. Aposse da terra era exclusiva dos ricos e os
pobres somente poderiam cultivar a terra, devendo para tanto, entregar cinco sextos
dos frutos do cultivo ao proprietário. Na obra A Constituição dos Atenienses surge,
vêm se desenvolvendo nos Estados latino-americanos, tal como ocorre na Bolívia
assume especial relevância no debate contemporâneo sobre a democracia, uma
instituição tão importante para a ciência política e também para a teoria do direito, mas
que enfrenta severa crise nas suas formas tradicionais – democracia participativa e
democracia representativa. Este processo que vem se desenvolvendo a partir das
experiências dos países andinos permite relacionar diversas concepções teóricas aos
fenômenos concretos destes países. Ademais, trata-se de um processo inacabado. É a
história acontecendo.
Buscar-se-á, portanto, demonstrar como a experiência política boliviana
significa um importante avanço na democratização de fato do país, uma
democratização mais abrangente e concreta que as outras experiências já ocorridas na
história do Ocidente.
É assim que a primeira parte da análise fará uma revisão crítica sobre a
experiência ateniense, buscando demostrar que, embora tenha sido uma democracia
direta, era um sistema profundamente excludente e fruto de pensamentos dominantes
numa sociedade elitista. A segunda parte discutirá o impacto do capitalismo liberal na
democracia, deslocando os espaços de participação para o cenário de representação,
consolidando, na democracia eurocêntrica, o caráter burguês individualista
conveniente à industrialização e à expansão dos mercados, e contribuindo, na
dissimulação das injustiças sociais para mergulhar a democracia em profunda crise. A
terceira parte discute a insurgência popular, em especial indígena, a partir do caso
boliviano nas suas lutas constituinte pela satisfação das necessidades fundamentais do
povo, que engendraram um quadro de empoderamento popular que vem
revolucionando “desde baixo” os pressupostos políticos vigentes no continente,
inclusive com a inserção de uma terceira - e inédita - forma de democracia: a
democracia comunitária. Finalmente, a quarta parte discutirá o papel do pluralismo
jurídico, constitucionalmente previsto naquele ordenamento, enquanto elemento de
coesão e harmonização jurídica da inusitada democratização que o país vem
consolidando.
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
203
Como em toda parte, as classes populares entraram em luta com uma
oligarquia opressora. Camponeses condenados por suas dívidas à
escravidão, comerciantes indignados a quem a própria riqueza não
permitiu esperar a obtenção de direitos políticos, todos se
concentraram para exigir a publicação das leis que só eram conhecidas
dos Eupátridas (GLOTZ, 1980, p. 100. Grifo no original).
então, o termo hectêmoros, cuja tradução é controversa, mas, razoavelmente aceita
como “homens da sexta parte”(ARISTÓTELES, 2003, p. 22). Com tributos tão pesados,
o endividamento crescia e junto com ele a ameaça de escravidão por dívidas. Diante
desta atmosfera conflituosa que se estabeleceu no campo político, Sólon pressentiu a
rebelião camponesa que o impeliria à tirania, papel que se recusava a assumir
(MOSSÉ, 1979, p. 20-21) e cujo risco o motivou a promover a série de reformas que o
inseriu na História.
Para conter a rebelião, a medida sabidamente eficaz seria a distribuição das
terras (MOSSÉ, 1985, p.18-19), medida que certamente provocaria fortes reações
dentre a classe proprietária ateniense. Diante disto, a solução intermediária foi que “[...]
embora ele tenha recusado a partilha igualitária das terras que teria criado uma
sociedade igualitária, Sólon concedia a igualdade jurídica, uma vez que as leis por ele
promulgadas seriam iguais para todos” (MOSSÉ, 2008 p. 33-34).
Neste contexto conflituoso, cerca de seis séculos antes de Cristo, surge o
instituto da igualdade formal, que dissimula conjunturas de profunda desigualdade e
injustiça, porém, mostra-se hábil para conter as forças insurgentes de oposição à
exploração. E é nesta medida de instituição da igualdade formal que se situam as bases
da democracia ocidental.
Outra medida de Sólon foi a divisão dos atenienses em quatro classes sociais,
considerando a renda de cada pessoa (os pentacosiomedimnos, hipeus, zeugitas e
tetes respectivamente), das quais, somente as três primeiras poderiam ascender às
magistraturas. A última classe poderia somente participar das assembleias e tribunais
como jurados. O conjunto das reformas de Sólon se tornam injustas ao fim, pois embora
todos passem a dever igual obediência à lei, os privilégios de classes e a rigidez da
estrutura social que transmitia tais privilégios pelo nascimento se mantiveram (MOSSÉ,
2008 p. 34-36).
Assim, é Clístenes quem, mais tarde, divide os atenienses em dez tribos,
instituindo diversas “demos” que substituíram o patronímico (nome do pai) pelo
demótico (nome do demos), ou seja, alterava a estrutura que perpetuava o legado
familiar dos privilégios por uma na qual não se pudesse identificar os atenienses por sua
ascendência e esta mudança tornaria a Constituiçao de Atenas bem mais favorável ao
povo, aproximando-a da democracia (MOSSÉ, 2008, p.36-39).
A partir destas experiências, de Sólon e Clístenes, Péricles viria a apresentar a
sua proposta de regime político, a qual se fundou em três princípios: a soberania do
demos, princípio do qual deriva a palavra democracia (que se compõe de duas
palavras: demos - povo - ekratein - exercício da soberania); a igualdade dos cidadãos e
a pertença à comunidade cívica (MOSSÉ, 2008, p. 69-85). Apesar de tais princípios,
ainda subsistiram a distinção entre livres e não livres (os escravos ainda existiam em
suas diversas classes e atribuições), cidadãos e não cidadãos (onde os cidadãos
pobres confundiam-se com os não cidadãos), ricos e pobres, bem como a
marginalização social e política das mulheres, que para além das funções de procriação
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
204
[...] reconhece-se que a “questão democrática” tenha encontrado
considerável amplitude na Atenas da época de Péricles. Todavia, seria
um equivoco poupá-la de questionamentos. A existência, de um lado,
de seres humanos escravizados e, de outro, de cidadãos livres, indica
que, embora se tivessem verificado avanços políticos importantes
(sobretudo no que se refere à condenação de atividades voltadas ao
enriquecimento privado), é pouco recomendado falar de igualdade,
justiça e democracia sem rigorosas contextualizações – talvez uma das
grandes lições que aquela época tenha nos legado (THEIS, 2006, p.
152).
e cuidado do lar, assumem, com as leis de Péricles classes de estrangeira, cidadã,
escrava etc. (MOSSÉ, 2008, p.129-143). De qualquer forma, é à época de Péricles que
Claude Mossé (1985, p. 38)atribui o apogeu da democracia ateniense.
Neste quadro situa-se a origem da democracia que fez da experiência
ateniense seu grande paradigma, uma fonte de referência viva até os dias atuais,
exaltado por diversos teóricos e estadistas. Todavia, caberia aqui uma revisão um
pouco mais crítica do que pode ter sido esta experiência democrática, porque
O autor problematiza já no início do trabalho a impossibilidade de afirmar que a
experiência grega, mesmo no tempo de Péricles, tenha sido uma experiência de
democracia plena. São contradições como as que ensejam este tipo de perspectiva que
serão analisadas a seguir.
1.1 ESTRUTURA SOCIOPOLÍTICA ATENIENSE
Muito do que se sabe sobre a Atenas, especialmente dos séculos IV a.C. e
seguintes, foi apreendido das obras de Aristóteles que, ao sistematizar descritivamente
a cultura vigente e consolidar seu método analítico, recorreu, como era de costume
entre os teóricos da época, às experiências antepassadas, legando assim, diversos
registros históricos acerca do que ocorreu na vida social e política de seu tempo.
A formação social Atenas caracterizava-se pela divisão da população em três
classes: a dos cidadãos, que gozavam de todos os direitos sociais e políticos (tal
condição era transmitida pelo nascimento; raramente concedida a outros); a dos
estrangeiros domiciliados ou metecos,que não tinham direitos sociais ou políticos, pois
embora bem acolhidos, não faziam parte da cidade e tinham de viver sob a
responsabilidade de um cidadão, sob pena de enfrentar o risco de serem processados e
escravizados, e a dos escravos, que em Atenas eram muito numerosos, mais inclusive
que os cidadãos. Quando libertos, os escravos passavam a integrar a classe dos
metecos e seu antigo amo se tornava seu patrono (AUGUSTE, 1977, p.169-170).
A classe dos escravos era bastante diversificada com formas diferentes de
escravidão não somente quanto à origem desta, como também quanto às funções,
condições e subjetividade dos escravos. Disto decorre que diversas palavras diferentes
designavam os escravos.
As distinções variam quanto à espécie: por exemplo, escravo comprado
ou nascido na casa (argyronetos-oikogenes), escravo marcado a ferro
RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
205
No pensamento aristotélico, constata-se que o filósofo aceita, embora não
considere realidade absoluta, a escravidão decorrente das diferentes aptidões dos
homens. Por exemplo, há homens cuja natureza seja obedecer e outros cuja natureza
seja mandar. Entre estes, a escravidão dos primeiros é aceitável. Não o é, entretanto,
quando decorre da conquista em guerra (CHEVALLIER, 1982, p. 96).
em brasa (stigmatias), ou peculiaridades regionais, como quando Pólux
diz que os atenienses chamam seus escravos de paides (meninos)
mesmo quando são mais velhos (FINLEY, 1989, p.143. Grifo no
original).
Aristóteles considera o escravo como um instrumento animado. É
porque aos olhos do grego, a humanidade do homem não é separada
de seu caráter social; e o homem é social enquanto ser político, como
cidadão. Porque fora da cidade, o escravo está fora da sociedade, fora
do humano. Não tem outra existência senão a de instrumento produtivo
(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1989, p. 83-84).
Quanto à origem, a escravidão era transmitida também pelo nascimento, bem
como poderia decorrer de dívida ou da conquista de povos em guerra. Neste último
caso, Chevallier (1982, p. 95) identifica na obra aristotélica, refutação à escravidão de
povos vizinhos. Se para a cultura política era natural tal escravização enquanto uma
das finalidades da cidade, para Aristóteles, a tarefa do legislador não se aproximaria
destes objetivos, mas sim, da busca por uma boa vida e pela efetivação da felicidade
aos agrupamentos humanos que constituem a cidade, da mesma forma que deve
buscar a otimização das aptidões dos homens que integram as comunidades vizinhas.
Se a natureza do escravo é servir, não é a mesma a do cidadão livre vencido em guerra
e da mesma forma que não há bem maior que cumprir sua natureza, não existe mal
maior que contrariá-la.
Acerca da escravidão por dívida, pode-se dizer que “Salvo em casos
excepcionais, era somente entre classes, entre rico e pobre, para colocar em termos
simples e amplos, que a dívida levava à escravidão na prática” (FINLEY, 1989, p. 166).
O autor demonstra a importância do empréstimo, da dívida, para originar e manter
relações de escravidão e servidão. Não que todos os empréstimos se prestassem a
este fim, mas muitas vezes, o empréstimo tinha de fato este escopo, o de dispor da mão
de obra e, junto com ela, da própria pessoa (FINLEY, 1989, p. 166-168).
Para Aristóteles, o escravo é parte do todo “senhor”. Assim, a autoridade e a
obediência, seriam coisas não só úteis, como também necessárias, em razão da
natureza de cada ser. A distinção entre as naturezas humanas mostra-se uma
diferenciação necessária, pois a igualdade no direito de governar seria maléfica.
Destacando que, para o escravo, obedecer é o que há de mais simples e a força física é
o que de melhor ele pode oferecer, posto que não possui razão plena. Por outro lado, há
indivíduos sem aptidão à força física, mas com aptidão à vida civil (ARISTÓTELES,
2002, p. 17-19).
Assim o escravo fica excluído do espaço democrático, sendo esta exclusão
bastante significativa, embora naturalizada pelo pensamento dominante à época. A
função do escravo é o trabalho produtivo, suprir as necessidades de sobrevivência e tal
função é inferior à atividade intelectual, especialmente filosófica, que não se
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
206
Aristóteles, em seu próprio testamento, ordenou a libertação imediata
de alguns de seus próprios escravos, prevendo para a adolescência a
dos filhos destes últimos, se na época fizerem jus à liberdade [...] se
Aristóteles é o defensor da escravidão, não deixa de ser também o seu
reformador (CHEVALLIER, 1982, p. 96).
contaminava pelas necessidades práticas. Em Sánchez Vázquez (2007, p. 40-42)
pode-se perceber que tal teorização foi útil à ideologia dominante, uma vez que o
trabalho tinha somente valor de uso, e não valor de troca, como assumiu com o
capitalismo. Isto não quer dizer que não havia divergências quanto ao tema, uma vez
que “[...] na própria antiguidade grega ouvem-se vozes que discordam dessa atitude
depreciativa em relação ao trabalho produtivo [...] Opiniões do gênero encontram-se,
sobretudo, entre os sofistas que se pronunciam contra a escravidão” (SÁNCHEZ
VÁZQUEZ, 2007, p. 42).
Além disto, Platão ao reproduzir os diálogos de Sócrates, dá indícios de
perspectivas diferentes acerca da natureza dos homens, senhores ou escravos, como
ocorre no diálogo Fédon, no qual, ao relatar os últimos momentos da vida de Sócrates,
trata da teoria das reminiscências, ou seja, das lembranças de vidas passadas que são
despertas pelas experiências práticas, transformando-se em saberes. Segundo tal
teoria, assinala o interlocutor Cebes “interroga-se um homem. Se as perguntas são
bem conduzidas, por si mesmo ele dirá, de modo exato, como as coisas realmente são”
(PLATÃO, 1991, p. 131). Isto quer dizer que não importa quem seja o interlocutor, pode
chegar, desde que conduzido corretamente, às mesmas conclusões. De fato, os
diálogos de Platão trazem a mostra disto no método socrático que, conduzindo todos os
interlocutores somente através dos questionamentos adequados, converte o
pensamento mesmo dos mais relutantes.
Finalmente, quanto à escravidão, destaca-se que não somente as posições dos
filósofos e sofistas, quanto a própria postura de Aristóteles foi contraditória, como se
depreende do fato de que
Outra exclusão significativa dos espaços democráticos se encontra na figura da
mulher. Assim como a escravidão, também naturalizada pelo pensamento dominante
de seu tempo. As mulheres de Atenas não participavam do exercício da cidadania. Não
detinham o direito de se manifestar na Assembleia. Na democrática pólis, “[...] as
mulheres atenienses tinham menos direitos à herança que as mulheres de Esparta ou
Creta; em compensação, os cidadãos atenienses tinham menos liberdade para dispor
de suas propriedades que suas mulheres, filhas e parentes do sexo feminino” (FINLEY,
1989, p.92).
Amulher sempre vivia sob a autoridade de um homem: do pai, depois do marido
e na falta deste, do filho ou de um tutor designado em testamento do marido.
Permanecia sempre em casa, aparecendo em público somente em dias festivos e
recebendo visitas somente de mulheres ou parentes próximos (AUGUSTE, 1977, p.
204). Ante o pensamento dominante ateniense, se o filho (homem) era um ser
incompleto, a mulher era um ser perpetuamente incapaz, tal como se depreende da
obra aristotélica:
O homem livre manda no escravo de modo diverso daquele do marido
na mulher, do pai no filho. Os elementos da alma estão em cada um
desses seres, porém em graus diversos. O escravo é inteiramente
RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
207
Assim, para investigar os limites e sucessos da democracia grega, serão
adotados dois critérios: um subjetivo, onde serão considerados os atores habilitados a
participar dos espaços democráticos e outro objetivo, onde serão considerados os
espaços em si e suas competências decisórias.
No âmbito subjetivo, já foram constatadas duas significativas exclusões: aos
escravos e mulheres o óbice à participação dos espaços democráticos era
intransponível. De fato, tal situação era naturalizada pela cultura vigente à época,
todavia, não se pode olvidar que tal cultura era produto não de um consenso, mas sim,
de um pensamento dominante que encontrava divergências, como já visto.
Ademocracia, portanto, refletia também interesses dominantes. É que “[...] para
os marxistas, o mundo antigo constitui uma sociedade de classes que pode ser definida
em sua forma típica como modo de produção escravista” (VERNANT; VIDAL-NAQUET,
1989, p. 66-67). Analisando a perspectiva, o autor defende que nem todas as
sociedades clássicas antigas podem ser consideradas escravagistas – e para
Chevallier (1982, p.97) de fato nem toda a Atenas o era, uma vez que a massa pobre,
enquanto maioria como em quase todas as democracias, como sublinha o autor, não
tinha, condições de comprar e sustentar escravos. O autor destaca formas distintas de
escravidão, em âmbitos diferentes da cidade e recorda que o próprio Marx frisou o papel
da escravidão no início e fim das formas de propriedade. Aliás, recorrendo às lições do
próprio Marx, Finley destaca que a luta de classe se marcava por outros tipos de
contradições. No caso de Atenas, reinava a política e era neste contexto, o da vida
política, que a luta de classe se desenvolveu, na medida em que
destituído da faculdade de querer; a mulher possui-a, porém fraca; a do
filho não é completa (ARISTÓTELES, 2002, p. 33).
Ocorre que, não somente quanto à condição do escravo como também quanto à
condição da mulher na sociedade, a exclusão da vida política e social, bem como a
subordinação de ambos aos cidadãos (homens livres) não era um consenso absoluto.
Também em Platão, precursor de Aristóteles, depreende-se uma perspectiva
diferenciada acerca da “incapacidade” das mulheres, e de forma ainda mais explícita
que no caso da escravidão. Sobre as mulheres, para o filósofo
Estas não devem apenas ser mulheres no seu Estado, mas contribuir
também para a função de “guardiões” que os homens têm. Platão
acredita na capacidade da mulher para cooperar criadoramente na vida
da comunidade, mas não é onde parece que devia buscá-la, na família,
que ele procura esta cooperação. Não partilha da opinião dominante
no seu país, segundo a qual a mulher é destinada pela natureza
exclusivamente a conceber e a criar filhos e a governar a casa. É certo
que reconhece que a mulher é mais fraca que o homem, mas não crê
que isto seja obstáculo para ela participar nas funções e nos deveres de
“guardiões”. E se participa da profissão do homem, é indubitável que
precisa da mesma alimentação e da mesma cultura que ele. Por
conseguinte, a mulher da classe dominante deverá ser educada na
música e na ginástica, tal como o homem, e como ele, se deverá formar
para a guerra (JAEGER, 1995, p. 814-815. Sem grifo no original).
a contradição principal opõe a princípio, na origem da cidade, uma
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
208
Sobre o quórum das assembleias, Auguste (1977, p. 171) destaca em sua obra
que “um grande número de cidadãos abstinha-se de comparecer”, apesar de serem
oferecidas compensações pela participação, tais como o pagamento de uma
indenização a quem participasse das assembleias. Finley também descreve a crise de
representatividade, questionando o “quorum” das assembleias, especialmente
considerando, por exemplo, que os habitantes de campo dificilmente se deslocariam
para os eventos. Questiona ainda a oscilação nas decisões, apresentando alguns
exemplos onde deliberações opostas foram tomadas em curtos espaços de tempo,
como, de um dia para o outro. As decisões de cada membro da assembleia, claro, não
eram corporativistas como as atuais, pois estes membros não eram passíveis de
punição ou recompensa por seus votos. Entretanto, eram marcadas por suas
experiências pessoais, seus afetos e desafetos (FINLEY, 1988, p. 67-72).
Com tantas contradições, o autor conclui que “[...] tanto antigamente como
agora, a política era um modo de vida para muito poucos membros da comunidade.”
(FINLEY, 1989, p.87). O autor ainda assinala que se a história do pensamento político
destaca a incompatibilidade entre liberdade e igualdade, na Atenas clássica, muitos
Quanto à massa pobre, os camponeses recordados por Chevallier, que não
eram escravos, porém, não possuíam seus próprios escravos, estes camponeses
igualmente não participavam dos espaços de deliberação política. Contudo, a
participação nas funções públicas em geral é o elemento que define a cidadania, já que
é na condição de membro da assembleia do povo que consiste a autoridade suprema
numa democracia (CHEVALLIER, 1982, p. 106).
Quanto ao âmbito objetivo da democracia ateniense, pode ser definida através
das lições deFinley (1988, p. 65-66), segundo o qual, há quatro pontos que a
caracterizam: a) o fato de ser uma democracia direta, b) com espaço restrito, c) cujo
ápice era a assembleia, onde assuntos eram deliberados com poucas limitações e d)
consistindo num sistema onde se lidava com comportamento de massa.
Uma vez já analisadas algumas exclusões subjetivas da cidadania, é
importante saber quem formava as assembleias:“Todo cidadão do sexo masculino,
quando completava 18 anos, automaticamente se qualificava para comparecer à
Assembleia, e conservava tal privilégio até sua morte” (FINLEY, 1988, p. 67). O autor
ainda destaca que, eventualmente, o homem poderia perder esta qualificação,
entretanto, cerca de 35 a 40 mil eram os homens qualificados no tempo de Péricles,
conforme informa Finley.
classe de proprietários fundiários, do tipo eupátridas, vivendo na
cidade, controlando o Estado, assumindo a função militar, aos
cultivadores aldeões que constituem o demos rural (VERNANT; VIDALNAQUET, 1989, p. 76. Grifo no original).
As mulheres estavam excluídas, bem como o considerável número de
não-cidadãos, homens livres, quase todos gregos, mas que não
podiam participar da esfera política; e também os escravos, que eram
bem mais numerosos do que os não-cidadãos. Todos os números são
estimativas, mas não seria muito incorreto supor que os cidadãos
adultos do sexo masculino representavam um sexto da população
total (FINLEY, 1988, p. 67. Sem grifo no original).
RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
209
gregos localizavam esta incompatibilidade entre a liberdade e a dgregos localizavam esta incompatibilidade entre a liberdade e a desigualdade. Com
isto, tentavam produzir uma igualdade artificial, especialmente no campo político, mas
dificilmente no âmbito das relações privadas. Destaca, por exemplo, as dificuldades em
pensar igualdade nas relações entre os indivíduos, sem pensar na abolição ou
nivelamento da riqueza (FINLEY, 1989, p. 91).
Finalmente, para compreender as limitações da democracia grega, pode ser
oportuno trazer ao debate outro elemento incidente tanto sobre o âmbito subjetivo,
quanto ao objetivo. Tal elemento diz respeito à representação de mundo dos
atenienses, que viam na ordem cósmica uma sucessão pré-determinada e inescusável
de fatos e circunstâncias, sobre as quais não era impossível interferir e faziam da
existência de cada pessoa um fato dado e inalterável. Com isto, a rigidez social era
muito intensa. Aristóteles sistematiza esta imobilidade na natureza, essência ou
vocação de cada pessoa. Anatureza que faz do escravo um ser servil e nada mais, e lhe
destina a servidão como o bem maior.
Para a sociedade ateniense, existem os oráculos, a tragédia grega. O “oráculo”
é o porta-voz dos deuses e sua palavra é certa. Foi tal convicção que levou Sócrates à
crise de confrontar-se com sua própria sabedoria, apesar da certeza deste de que
“nada sabia”, quando seu amigo, Querefonte lhe informou do pronunciamento do
Oráculo de Delfos, de que seria o filósofo o homem mais sábio de Atenas. Era a tragédia
grega que conformava o imaginário do ateniense à inafastabilidade do destino, tal como
ocorreu com Édipo que matou o pai, casou-se com a mãe e ocupou o trono de seu
próprio pai, tal como previu o oráculo, apesar da consciência dos fatos e das tentativas
drásticas de seus pais de evitarem o destino.
Se o principal pressuposto, e mais que isto, razão de ser da democracia, é a
possibilidade de modificar a realidade, melhorando-a, é oportuno questionar, qual o real
sentido e alcance de uma democracia numa sociedade onde não há fé no arbítrio?
Como já citado na avaliação de Theis (2006, p. 152), é fato que a democracia
ateniense alcançou considerável amplitude, porém, também acerta o autor aos sugerir
que não se deve poupá-la de questionamentos. Em suma, pode-se dizer que ainda que
marcada por diversas limitações e contradições, se reconhece no modelo o êxito de
consolidar espaços de exercício direto da democracia. Tanto que a assembleia, à época
de Aristóteles, reunia-se ao menos quatro vezes dentro de um período de trinta e seis
dias. Em geral, as deliberações das assembleias eram mais corriqueiras, mas
eventualmente, grandes decisões, como assuntos de guerra, eram confiadas a este
espaço (FINLEY, 1988, p. 72-74). Infelizmente, estas práticas foram justamente as mais
relegadas na evolução histórica da democracia. A democracia participativa foi
gradualmente sendo substituída pela democracia representativa, que por sua vez,
sofrendo a interferência do capitalismo, foi mergulhando numa crise cada vez mais
grave profunda.
Em suma, percebe-se que a democracia ateniense, mesmo sendo formalmente
direta, era uma democracia para elites, em uma sociedade elitista. Uma sociedade
escravagista. Assim, ainda que apresentando procedimentos promissores, do ponto de
vista da democracia participativa, era materialmente controversa, uma vez que excluía
de seus espaços deliberativos a expressiva maioria da sociedade.
Da mesma forma, as experiências democráticas que se desenvolveram no
Ocidente nos séculos seguintes, apresentaram-se marcadas por contradições
similares, especialmente contradições baseadas na exclusão direta ou indireta de
parcelas da sociedade.Ou seja: a democracia, no ocidente, nunca se efetivou
concretamente tal como se projetou formalmente. Se os projetos democráticos se
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
210
apresentaram ao longo da história da humanidade como “o governo do povo” na
prática, estiveram maculados pelo predomínio dos interesses dominantes, em geral
dos proprietários, dos senhores, dos ricos.
2. DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E CRISE DIANTE O CAPITALISMO
Após a experiência ateniense de democracia direta, o caminho trilhado no
Ocidente dirigiu-se cada vez mais à consolidação da democracia representativa.
Segundo Saldanha (1987, p. 59), “A noção de democracia, herdada da Grécia como
tantas outras, hibernou no medievo e retornou à cena, após algumas utilizações
episódicas, com Montesquieu e Rousseau”. Wolkmer (2003, p. 89-91) destaca que a
discussão e a teorização da democracia representativa ganhou força no ocidente
durante os séculos XVIII e XIX, especialmente pela polarização de debate entre
Rousseau, que defendeu com afinco a democracia direta, e Benjamin Constant, que a
criticava desde as experiências dos antigos. E ao final do século XVIII, prossegue
Wolkmer, os teóricos deram-se conta da inviabilidade da democracia participativa para
a“moderna sociedade burguesa”, passando a advogar por um sistema representativo
ao mesmo tempo em que alertavam os eleitores para a necessidade de manter
constante fiscalização sobre os representantes, evitando assim os abusos. E desta
forma, se fortalece uma nova lógica política: “[...] diferentemente da liberdade antiga
que implicava em participação direta dos cidadãos, a liberdade dos modernos
necessitaria de uma organização diferente. Daí o avanço na direção de uma
democracia representativa” (WOLKMER, 2003, p. 91).
Esta “moderna sociedade burguesa” precisava de um “Estado liberal”, com
democracia especialmente representativa, que foi se construindo a partir das
revoluções burguesas do século XVIII. No contexto que precedeu tais revoluções, o
Estado absoluto conflitava com a nova racionalidade em desenvolvimento. Assim,
contestando os pressupostos absolutistas, tais como a hereditariedade, começam as
revoluções burguesas: a primeira em 1688, Revolução Inglesa, depois em 1776, a
guerra por independência nos Estados Unidos da América e em 1791 a Revolução
Francesa, que implicou no evento com maior repercussão no período. Na destruição do
absolutismo encontram-se os interesses materiais da burguesia, pois, ante um código
social tão rigoroso, não poderiam prosperar a vida comercial e a industrialização
(SALDANHA, 1987, p. 25-31).Inclusive o rigor deste código social e do próprio Estado
absolutista excluía do exercício do poder e de quaisquer possibilidades de ascensão
política toda a classe burguesa, pois esta não integrava nem o clero, nem a nobreza. De
fato, modificar este quadro social só seria possível mediante as vias revolucionárias
que acabaram sendo utilizadas.
Da consolidação, a partir das revoluções burguesas, deste Estado liberal e dos
debates acerca da democracia, emerge uma nova cultura acerca da democracia e do
liberalismo que vão definir os paradigmas políticos da modernidade:
O liberalismo aceitaria que o povo não governasse (assim na França,
quando no início da revolução se admitia a permanência da
monarquia), contanto que o poder se dividisse: era a idéia básica em
Montesquieu. E contanto, também, que se entendesse o poder do
Estado como intrinsicamente limitado. Enquanto a democracia aceita o
RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
211
1
[…] las formalidades aparentes de la democracia se independizan de los contenidos concretos
sobre los cuales se erigen y aparecen como si por sí solas fuesen suficientes para convertir en
democrático un régimen que no los es.
E assim, esta nova ordem política com suas mediações, notadamente o Estado
e a democracia representativa, vai se delineando para atender aos interesses da classe
individualista, para favorecer a expansão do poder econômico e do mercado.
É certo que neste percurso histórico, diversas dimensões de exclusão subjetiva
foram sendo superadas, notadamente, a exclusão da mulher. O problema é que,
juntamente a estes avanços, a democracia ocidental começou a padecer de modo cada
vez mais crônico de outro mal: a identificação entre democracia e voto, que reduziu
significativamente os espaços de construção democrática. Sob esta forma, um vício
mais profundo e perigoso para a democracia plena: a identificação entre liberdade
individual e liberdade de mercado, como fruto do sistema de economia capitalista.
Ocorre que, no início do século XXI, visualiza-se de modo contundente a crise
da democracia representativa. Uma crise que, segundo Wolkmer (2003, p. 91-92) vem
acompanhada por uma crise maior, que se constata na perda de confiança nos partidos
políticos e nos poderes do Estado, bem como, sua própria eficácia institucional. Esta
crise o autor relaciona, em primeiro momento, e no caso de realidades periféricas como
as latino-americanas, a uma falácia representativa que na verdade oculta uma
delegação manipulada de poder.
Neste sentido, Atílio Boron (2009, p. 20-23) explica que a democracia se
configura em dois âmbitos: o da essência, que consiste no governo da maioria em favor
dos mais pobres, e o da aparência, que consiste nas eleições diretas, sufrágio
universal, império do direito etc. A aparência pode, ou não, corresponder à essência.
Em geral, na América Latina, não corresponde, pois,“[...] as formalidades aparentes da
democracia se tornam independentes de seus conteúdos concretos sobre os quais se
elevam e aparecem como se por si só fossem suficientes para converter em
democrático um regime que não o é” (BORON, 2009, p. 29-30. Tradução livre dos
1
autores ).
É que as sociedades capitalistas elevam a desumanização a níveis
inimagináveis, convertendo tudo em mercadoria, inclusive, o que se chama hoje,
democracia. Eis aí o problema: ao transformar os elementos da vida em mercadorias,
cria-se uma ficção que separa os objetos de seus criadores e com isto, transforma em
“agentes da vida social” tais mercadorias, que na verdade não passam de expressão
das relações sociais subjacentes.
O fato é que, os sistemas políticos chamados democráticos são, como avalia o
autor, profundamente determinados pelos interesses de mercado, ou seja, das elites
econômicas dominantes. “O projeto das classes dominantes é a democratização
transnacional que está feita contra a democracia revolucionária, que implicou e implica
o poder da maioria decidir sobre as questões econômicas e não só sobre as políticas”
(CASANOVA, 1995, p. 146. Grifo no original).
Estado e até o valoriza ou pode valorizá-lo como instrumento de
realização de um governo popular, o liberalismo desconfia do Estado e
postula sua redução ao mínimo possível (SALDANHA, 1987, p. 37).
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
212
Com isto se percebe que, por baixo da democracia contemporânea, assim
como o era na democracia ateniense, subsistem interesses dominantes que
influenciam ou mesmo determinam as “deliberações públicas”. Em Atenas, pela
exclusão direta de significativa parcela da sociedade dos seus espaços de participação,
que são postos a serviço do mercado internacional. Na democracia ocidental
contemporânea, especialmente latino-americana, pela exclusão indireta de milhões de
pessoas que, apesar de terem o direito ao voto, são excluídas da formação dos
consensos democráticos por enfrentar o flagelo da miséria, da doença e outros
sintomas da economia de mercado. Todavia, esta forma “indireta” de exclusão não toma
proporções maiores, pois a aparência da democracia, no sufrágio universal, é mantida.
Na cultura política ocidental, a grande instituição responsável pela manutenção
do sistema democrático, e na dimensão da vida concreta, pela administração de suas
contradições, é o Estado. Nele, se “unificam todos os consensos”. É que este grande
consenso é pressuposto indispensável para a legitimação de uma instituição
unificadora dos interesses sociais. O problema é que, conforme alerta Enrique Dussel
(2007, p. 54-55), os consensos por unanimidade são empiricamente impossíveis,
especialmente, nas grandes comunidades. Assim, para o autor a solução legítima para
atenuar os efeitos desta exclusão social nos consensos seria a consideração
responsável de todas as reivindicações de todos os grupos, e, na medida do possível,
seu atendimento.
Como isto não ocorre, acentua-se progressivamente a crise na democracia
representativa, especialmente, diante do fortalecimento dos movimentos populares
latino-americanos, que não somente intensificam a crise, como também a evidenciam
de modo cada vez mais contundente. Diante da crise da democracia representativa e
da degeneração das relações da vida cotidiana, uma das direções possíveis para
superar a exclusão e a marginalidade advém do poder de pressão dos novos sujeitos
sociais, agentes capazes de instaurar uma política diferenciada e criativa (WOLKMER,
2003, p. 95), tal como será observado adiante neste texto.
Nesta crise, e considerando a negação de direitos e manipulação de
consensos, o retorno aos sujeitos coletivos de direito assume grande importância. É
que, como assinala Dussel (2007), nenhum poder é maior que o poder do povo, que por
sua vez nunca pode ser tomado, mas tão somente enfraquecido. Para enfraquecer o
poder do povo, é necessário destruir seus consensos. Tal empreitada, por certo, é muito
mais viável em contextos de individualismo e competitividade, que são valores
integrados ao modo de produção capitalista. Assim, na reivindicação de direitos
apresentadas pelos agrupamentos sociais, especialmente na forma dos movimentos
populares, emerge a possibilidade de ampliação da democracia para além de sua
aparência, também em sua essência.
Assim, os novos sujeitos diferenciam-se do sujeito individual, da tradição
burguesa liberal, uma tradição que relega o coletivo. Contrariando o pensamento
dominante, desta tradição liberal burguesa do capitalismo, os novos sujeitos coletivos
vão ocupando os espaços do sujeito individual e neste processo, a comunidade
assume expressiva relevância. Ao se tornar espaço privilegiado dentro das instituições
democráticas, a comunidade impõe a descentralização do poder político pela
“participação de base”, já que fica cada vez mais evidente a crise das instituições
políticas (WOLKMER, 2003, p. 95-98)
Trata-se da afirmação de uma cidadania que não é mais “regulada” nem
RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
213
Neste processo de franca democratização, é importante reconhecer que, na
democracia liberal burguesa, os consensos que se formam na chamada “comunidade
de comunicação real”, como informa Wolkmer (2001, p 267), excluem o “outro” do
mundo periférico, este outro que deveria fundar as prioridades democráticas e que
acaba sendo ignorado e silenciado, já que não parte das mínimas condições
necessárias de subsistência e manutenção da vida para assim, integrar a
consensualidade discursiva dos debates democráticos. No mesmo sentido,
é “concessão” das elites ou do Estado. Rompe-se com o conceito liberal
burguês de cidadania (o indivíduo como titular de direitos eleitorais ou
como aquisição de direitos legalmente reconhecidos) para configurá-la,
criticamente, como conquista, construção, exercício cotidiano e prática
social (WOLKMER, 2003, p. 98).
Esse outro ao qual nos referimos está sempre pressuposto na
comunidade de comunicação, mas também sempre excluído na
comunidade real e que não argumenta efetivamente quando da
produção dos consensos - fato que corre também nas estruturas do
capitalismo periférico -; é o explorado, o dominado, o pobre ou é a vítima
não intencional do sistema (LUDWIG, 2006, p. 139. Grifo no original).
Ludwig (2006, p. 140) prossegue assinalando que desta forma, este “outro”
sofre os efeitos de um consenso do qual não fez parte. Sua condição fática de
incomunicabilidade o faz excluído, fazendo dos consensos democráticos, na verdade,
consensos de dominação e exclusão, já que não prepondera a argumentação mais
pertinente, mas sim, o silêncio histórico, político, ideológico, jurídico etc. das
divergentes, isto desde o “escravo no escravismo, do servo no feudalismo, do
trabalhador assalariado no capitalismo, do negro no racismo, geopoliticamente a
periferia em relação ao centro, etc.” (LUDWIG, 2006, p. 140). A estes acrescentamos
explicitamente os escravos, estrangeiros, povos conquistados, mulheres,
camponeses, artesãos, todos os trabalhadores da Atenas de Péricles, milenarmente
excluídos na tradição democrática ocidental, como um legado que se transmite de uma
geração a outra sem que se denuncie a prevalência de interesses dominantes em
detrimento das imensas massas populares e à custa de seu sofrimento, miséria e
exclusão.
O povo sempre foi, nesse mundo nosso, uma mera força de trabalho,
um meio de produção, primeiro escravo; depois assalariado; sempre
avassalado. Suas aspirações, desejos e interesses nunca entraram na
preocupação dos formuladores dos projetos nacionais, que só têm olho
para a prosperidade dos ricos (RIBEIRO, 2010, p. 59-60).
Cientes destes limites, por senti-los violentamente nas privações cotidianas, os
povos de diversos Estados, em especial Estados latino-americanos como Bolívia,
Equador e Venezuela, têm se insurgido contra as mediações burguesas do poder. Têm
se insurgido contra o Estado que se mostra ineficaz ao implementar as políticas
públicas, contra os partidos políticos que cada vez mais se distanciam do povo, contra a
democracia que não é capaz de incluir efetivamente os pobres, os analfabetos, os
insurgentes, os divergentes, as mulheres, os negros, os indígenas... e assim a própria
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
214
democracia, enquanto mecanismo de legitimação destas instituições, não se mostra
mais capaz de cumprir seu papel.
3. A EXPERIÊNCIA BOLIVIANA E REDEFINIÇÃO FORMAL E MATERIAL DA
DEMOCRACIA
A crise da democracia representativa e o empoderamento que emana da
tomada de consciência pelos povos latino-americanos criam demanda para uma nova
racionalidade política. Esta nova racionalidade não pode partir da inspiração da
democracia grega que excluía expressiva parte de sua sociedade e que naturalizava a
escravidão, assim como diversas outras formas de exclusão dos espaços
democráticos; também não pode partir dos pressupostos da democracia burguesa, que
exclui de seus espaços e por razões econômicas parte significativa da população; estas
democracias já não servem porque seus efeitos negativos não são mais suportados
pelos atores revolucionários dos tempos atuais, nas sociedades latino-americanas.
Não se trata de uma revolução burguesa, tais como as que ocorreram na Europa do
século XVIII. Aqui, os atores revolucionários são os trabalhadores, os indígenas, as
mulheres, os negros e todos aqueles que sofrem as diversas formas de exclusão
derivadas do sistema capitalista e de sua democracia liberal burguesa.
É assim que, conforme o que se expôs até o momento, pode-se vislumbrar uma
nova democracia, a partir da experiência política que vem se desenvolvendo na Bolívia.
Depois de uma série de lutas de insurgência popular no país, inaugurou-se um novo
paradigma político, até então não imaginado nos limites da racionalidade burguesa
eurocêntrica: trata-se da democracia comunitária, fundada num constitucionalismo
pluralista, ambos explicitamente previstos na nova Carta Política do país e
materializada nas práticas concretas deste e de outros países andinos que estão
vivenciando este constitucionalismo pluralista, como ocorre também no Equador.
Esta nova democracia, comunitária e estreitamente ligada aos interesses
populares opõe-se drasticamente às democracias “importadas” no século XIX para os
Estados latino-americanos. Estas democracias, segundo entendimento de Weffort
(1992, p. 85)iniciam-se com a “Revolução dos Cravos” nos anos 1970 em Portugal,
passam pelo Sul da Europa na mesma década e chegam à América Latina nos anos
1980, sendo que sua condição comum é a derrubada de ditaduras e que consistem em
construções incapazes de superar totalmente a tradição autoritária de seu passado nas
conjunturas de transição política.No mesmo sentido, leciona Atílio Boron (2009, p.27)
que os regimes apressadamente denominados democracias latino-americanas, são na
verdade “oligarquias” e a denominação “democracia” não decorre do conteúdo dos
regimes políticos, mas sim do fato de serem sucessão às ditaduras experimentadas no
continente.
Importante destacar que o problema das democracias latino-americanas não
inicia-se com a transição pós-ditaduras. Voltando até o século XIX, ao período póscolonial onde ocorreram as lutas por independência nas colônias do continente,
Chaunu (19--, p. 87-88), assinala que as inúmeras Constituições que se sucederam nos
seus respectivos Estados nada mais foram que cópias do modelo francês, com as
mesmas instituições, separação de poderes e demais dispositivos, inclusive os
modelos democráticos de sufrágio, com o agravante das estruturas constitucionais não
encontrarem sólida base nas estruturas sociais, que continuaram as mesmas do
RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
215
período colonial.
A“democracia transplantada” da Europa para a América Latina, não era de fato,
uma democracia concebida para as comunidades autóctones. Era a democracia liberal
burguesa branca, concebida para as elites estrangeiras e para elites nacionais, de
modo que, sob a independência formal dos Estados, permaneciam as estruturas
coloniais. As lutas por independência do século XIX não foram capazes de superar o
forte domínio colonial.
De fato, segundo o peruano Aníbal Quijano (1992), o caso mais extremo da
colonização europeia é o latino-americano, que suprimiu ou subordinou violentamente
as diversas formas de expressões no continente.E desde então, o modo de poder que
coloniza a América Latina segue a lógica do sistema capitalista (QUIJANO, 2007). Tanto
é assim, que ao final do século XX Quijano (2000) denunciava que as vendas da
General Motors na América Latina concentraram mais riqueza que a soma do Produto
Interno Bruto da Guatemala, El Salvador, Honduras, Costa Rica, Nicarágua, Panamá,
Equador, Perú, Bolívia, Paraguaie Uruguai (168 bilhões de dólares daquela, contra 159
bilhões destes).
Neste contexto de alta rentabilidade para as grandes multinacionais e miséria
para a população em geral, fica claro que o capitalismo se associou às diversas formas
de Estado ao longo dos últimos séculos, tornando-se o que Quijano (2000) chama de
“modernos Estados oligárquicos dependentes”. No mesmo período em que o autor
apresentava estas reflexões, a Bolívia era palco de um intenso conflito político,
protagonizado pelas classes populares contra a exploração econômica. Analisando
esta conjuntura e seus efeitos na ordem política interna, as reflexões críticas opostas à
democracia ocidental clássica e contemporaneamente capitalista ficarão mais claras.
Antes, todavia, cabe um justo reconhecimento à predição de Darcy Ribeiro
acerca da eclosão dos movimentos populares na América Latina. Em 1976, Darcy
Ribeiro publicava no México um texto que, revisto em 1979, passou a integrar a obra
intitulada América Latina: A Pátria Grande (TONELLI, 2011). Na obra, republicada no
ano de 2010, o autor reflete sobre a unidade continental da América Latina, contraditória
com sua estrutura sociopolítica fragmentada e sua ausência de coexistência ativa e
interatuante. Realmente, a unidade geográfica não gerou unificação entre as nações e
o autor atribui isto ao fato de que, devido às implantações coloniais, surgiram
sociedades que coexistiram sem conviver, preferindo relacionar-se diretamente com
suas metrópoles que com seus países vizinhos (RIBEIRO, 2010, p. 23).
Prosseguindo sua análise, com quase trinta anos de antecedência, Darcy
Ribeiro descreveu a cena política que adiante será ilustrada:
[...] a presença indígena é notória na Guatemala e no altiplano andino,
onde é majoritária, e no México, onde os índios se contam aos milhões e
predominam em certas regiões. Nesses casos é tão grande a massa de
sobreviventes da população indígena original que se integrou às
sociedades nacionais com um campesinato etnicamente diferenciado,
que seu destino é se reconstruírem amanhã como povos autônomos.
Isso significa que países como a Guatemala, a Bolívia, o Peru e o
Equador e áreas extensas de outros como o México e a Colômbia
estarão sujeitos, nos próximos anos, a profundas convulsões
sociais de caráter étnico que redefinirão aqueles quadros
nacionais ou os reestruturarão como federações de povos
autônomos (RIBEIRO, 2010, p. 26. Sem grifo no original).
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
Delineiam-se assim os dois polos de uma profunda tensão dialética que se
instituiu na América Latina: de um lado, os interesses oligárquicos de uma elite branca
capitalista que permaneceu, e ainda permanece em diversos Estados, na condição de
dominante e, de outro, imensos grupos sociais, especialmente indígenas, excluídos da
ordem política e democrática mantida por e para esta elite. Tendo descrito os limites da
democracia oligárquica na América Latina, passa-se a analisar a especificidade dos
países latino-americanos que vem implantando uma democracia comunitária, como é o
caso da Bolívia, cuja conjuntura política apresenta fortes razões para se acreditar que
tal tensão dialética tenha sido superada culminando, de fato, na redefinição do quadro
nacional, num processo político precedido por profundas convulsões sociais, como fora
previsto por Darcy Ribeiro.
Houve diversos processos de luta política na Bolívia nos últimos anos,
conduzindo Evo Morales à presidência e estes processos, conforme informa Proner
(2013, p. 146) situam sua causa geral no esgotamento do Estado liberal, o qual
historicamente negou a diversidade da sua população indígena.
[...] o monismo jurídico presente na linguagem do Estado liberal criou,
desde o momento da colonização, um conjunto de instituições que não
conhecem outros modelos de organização e relação em sociedade
para além das formas hegemônicas coloniais e neocoloniais [...] No
novo formato de Estado plurinacional foi necessário considerar o
pluralismo realmente presente nessas diferentes sociedades
existentes na Bolívia (PRONER, 2013, p. 146-147).
3.1 HISTÓRICO DA TRANSIÇÃO POLÍTICA BOLIVIANA
O início das revoltas populares que mudaram a cena política boliviana pode ser
identificado no que ficou conhecido como “Guerra da Água”. De acordo com Mansur
(2010), no ano de 1999 foi assinado contrato com a empresa Águas do Tunari e seu
consórcio beneficiado, encabeçado pela empresa estadunidense Bechtel, vendendolhe a empresa pública que era responsável pelo serviço de abastecimento de água e
privatizando todas as fontes de água no país (inclusive a água da chuva, a qual os
bolivianos não poderiam recolher). Em 20 de outubro foi promulgada a norma que
“legalizava” a situação. O custo da água elevou-se tanto – chegando a cem por cento de
aumento, que a população precisava transferir renda da alimentação, saúde e
educação para custeá-la.
Diante de tamanha exploração, a população mobilizou-se em uma série de
protestos, com uma morte repostada à polícia boliviana e centenas deferidos. Como
medida repressiva o Estado decretou lei marcial. Cabe lembrar que, conforme leciona
Dussel (2007, p. 57), quanto maior a repressão contra o povo, mais enfraquecida está a
instituição (Estado) que o representa.
A resistência e insurgência popular foi tamanha, que conseguiu “expulsar” a
empresa do país. A empresa, por sua vez, intentou processar o governo boliviano
exigindo indenização milionária, sob a alegação de que somente tinha
responsabilidade sobre a administração e não sobre as tarifas. Acabou desistindo do
processo diante da mobilização e dos protestos populares que decorreram de tal
intento.
216 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
Este fato político ao mesmo tempo em que foi determinado pelo
empoderamento popular manifesto na Guerra da Água, consistiu em um momento
importante para a Bolívia, para a tomada de consciência popular. De fato, não se pode
falar em democracia numa conjuntura tão espoliada quanto a que se impunha às
classes populares do país, privando-as das condições mais básicas de manutenção da
vida. Ocorre que
Em alguns casos, diante das pressões nacionais e internacionais,
populares e inclusive empresariais, ou por instruções do próprio centro
de poder transnacional, os regimes “neofacistas” ou “burocráticoautoritários” reinstalam sistemas de democracia simulada e limitada
(CASANOVA, 1995, p. 135).
Nestes casos, o real monopólio das decisões políticas permanece nas mãos
das elites econômicas, em geral, estrangeiras. Assim, no ano de 2003, o povo boliviano
se viu novamente impelido à luta pela soberania nacional. Foi o momento da chamada
“Guerra do Gás”. O conflito teve início com a tentativa de entregar a exploração das
reservas de gás natural na Bolívia aos Estados Unidos e ao México. Enquanto muitas
famílias bolivianas ainda cozinhavam à lenha, o Estado boliviano, sob o comando do
empresário Gonçalo Sánchez de Lozada, privatizava o gás nacional sem atender à
população. O futuro presidente do país, Evo Morales, na ocasião era dirigente indígena
e foi um dos manifestantes que se destacaram na série de protestos.
Em outubro de 2003, no dia 13, militares começam a disparar tiros contra a
população que vinha armada somente com paus e pedras. Helicópteros disparam tiros
contra os tetos das casas. Dentre as 65 pessoas que morreram, estava um menino de
cinco anos, alvejado por militares. Além das mortes, outras centenas de pessoas foram
feridas e desapareceram. Este momento lastimável ficou conhecido como “Massacre
De Outubro”. Mas em resposta, a pressão popular aumentou e em 17 de outubro,
Lozada foge do país e atende a exigência popular por sua renúncia, que é deixada no
Congresso.
Das diversas mobilizações populares que ocorreram na América Latina, muitas
retrocederam e só fizeram trocar governos elitistas por outros semelhantes. Todavia,
também deixaram a importante lição de que o povo, quandose propõe a derrubar
governos reacionários, é capaz de fazê-lo, mostrando assim que não são somente os
partidos políticos os sujeitos capazes de promover transições democráticas (BORON,
2009, p. 74-77). No caso boliviano, especificamente,
As defecções de Lozada, em 2003, e Carlos Mesa, em 2004, são a
grande amostra sobre a Guerra do Gás na Bolívia. Pelo fato de não
mudarem a lei de hidrocarbonetos, vista por conveniente às petroleiras
internacionais, os dois presidentes foram forçados à renúncia e abrir
espaço para outra plataforma política que tivesse outra interpretação de
interesse nacional (HAGE, 2008, p. 104).
O saldo final, no âmbito da representação política, foi que, em cinco anos (de
2001 a 2006) a Bolívia teve cinco presidentes: Hugo BanzerSuárez – jan/1997 a
ago/2001; Jorge Quiroga Ramirez – ago/2001 a ago/2002; Gonzalo Sánchez Lozada –
ago/2002 a out/2003; Carlos Diego MesaGisbert – out/2003 a jun/2005 e Eduardo
Rodríguez Veltzé – jun/2005 a jan/2006. Na medida em que os novos presidentes não
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 217
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
se pautavam pelas reivindicações democráticas do país, os bolivianos saiam
novamente às ruas exigindo sua renúncia. Isto de fato pode ser chamado democracia: a
exigência de representantes que mandem obedecendo ao povo, aos verdadeiros
consensos, orientados pelas necessidades e reivindicações da população e não aos
consensos ideologicamente manipulados e simulados pelos interesses do mercado e
suas elites econômicas.
Finalmente, no ano de 2005, foi eleito Evo Morales, com 53,8% dos votos,
depois de ter obtido 21% dos votos nas eleições presidenciais de 2002, período a partir
do qual sua popularidade aumentou progressivamente. A eleição deste presidente
também foi um fenômeno político importante, pois significou a ocupação do governo
pelos movimentos sociais, implicando, portanto, numa transição dos movimentos
sociais para o governo. Todavia, o mais importante na eleição de Evo Morales foi que,
com isto, os bolivianos obtiveram o compromisso em vão buscado nos presidentes
anteriores, um compromisso genuinamente democrático que Evo assumiu na
transmissão do mandato presidencial ao dizer: “Mandarei obedecendo ao povo”. É o
poder obediencial de Dussel (2007) inspirado no lema zapatista proclamado pelo
subcomandante Marcos. E assim, tem início o último processo político a ser retratado
na transição política e de democratização na Bolívia: o processo constituinte.
3.2 CONSTITUINTE BOLIVIANA E REFERENDOS: AMPLIAÇÃO DOS
ESPAÇOS DE DEMOCRACIA DIRETA
Segundo BartoloméClavero, a Bolívia teve efetivamente uma só constituição,
atendendo a mandos coloniais, de 1826 a 2009, ano em que emergiu um
constitucionalismo de fato anticolonialista. Para o autor, é a primeira Constituição na
América Latina que rompe decisivamente com o colonialismo constitucional. Isto
porque, diferente de outras que se insurgem somente contra o colonialismo externo, a
Bolívia reconhece o colonialismo interno e dispõe sobre formas de erradicá-lo
(CLAVERO, 2009).
De fato, no ano de 2006 foi instaurada a primeira constituinte eleita no Estado
Boliviano. Além disto, a constituinte teve suas raízes políticas nas Guerras da Água e do
Gás, marcada assim, desde seu nascedouro, pelas aspirações populares. Diz-se que
aí estão as raízes políticas da Constituinte boliviana porque diversas questões
decisivas passaram por estas guerras: não somente o questionamento quanto à gestão
dos bens públicos, e formas de tomada de decisões, mas especialmente a inserção dos
movimentos populares na defesa dos recursos naturais, fortalecendo no âmbito jurídico
a cosmovisão partilhada por grande parte da população do país.
A mobilização da Constituinte boliviana parte da organização popular
(verdadeiros responsáveis pela Constituinte) que a pleiteava, buscando realocar os
interesses coletivos das maiorias subjugadas na pauta do Estado, que se ocupava
então dos interesses de empresas privadas e multinacionais. Assim, os movimentos
populares participaram ativamente do momento pré-assembleia e seguiram
participando, ainda de que modo menos ativo, dos períodos seguintes (FAGUNDES,
2013, p. 158-161).
Os movimentos populares que iniciaram suas vitórias políticas recuperando das
mãos das elites econômicas internacionais a soberania sobre as riquezas naturais do
país, passaram, no processo constituinte, ao enfrentamento às elites nacionais, tal
218 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
como assinala Clavero (2009).
Estas elites internas são identificadas na chamada “meia-lua”, região composta
pelos departamentos de Pando, Beni, Santa Cruz, Tarija.Geograficamente, é a região
que concentra as maiores riquezas do país, tais como as minas de cobre. Como a
democratização no país se encaminhava para o controle e a distribuição públicos – e
não mais privado – das riquezas do país, as elites da “meia-lua” rejeitaram
veementemente a proposta de Constituição aprovada pela Constituinte. Não aceitava a
estatização das riquezas naturais. Como as regiões eram as que geravam mais fundos
através dos impostos, exigiam ser atendidas com um percentual maior de recursos
públicos. Também se insurgiam contra as medidas estatizantes, a reforma agrária e
outras medidas que ameaçavam o tradicional domínio das elites bolivianas sobre a
população. Sustentando então uma pauta separatista, as elites fundam o “movimento
autonomista” (BUARQUE, 2007).
Este movimento de resistência burguesa acabou por retardar todo o processo
constituinte, sendo que em 2 de junho de 2006, na eleição da constituinte, com o apoio
um pouco acima da maioria simples, ogoverno popular teve de firmar um acordo com a
oposição para aprovar o texto constitucional a ser submetido ao referendo popular, já
que eram necessários dois terços dos votos para a aprovação. Retardado por
intervenções judiciais, somente em 7 de dezembro de 2008 teve conclusão o referendo
constitucional, com 61,43% de votos favoráveis, para, em fevereiro de 2009, entrar em
vigor a nova Constituição (NOVAES, 2013).
O processo constituinte que durou quase três anos foi intercalado por diversos
referendos. O referendo é uma forma de democracia participativa, onde a decisão é
tomada diretamente pelo povo e não por seus representantes eleitos. Embora os
referendos tenham sido requeridos e até organizados pelo próprio movimento
autonomista, significaram uma sucessão de derrotas políticas para a elite nacional. Em
4 de maio de 2008 ocorreu o referendo autonômico, que consultava a população sobre
a autonomia do departamento de Santa Cruz – o mais rico da Bolívia. O estatuto
elaborado para propor a “autonomia”, foi feito em 48 horas, por um grupo de pessoas
não eleitas para tal fim e na realidade implicava na separação do Departamento, com
usurpação das riquezas naturais do povo.O Presidente Evo Morales manifestou-se
publicamente denunciando a mobilização para realização deste referendo como
conspiração encabeçada pelo Embaixador dos EUA, Philip Goldberg (SEVERO, 2008,
p. 13-14). A ilegalidade no procedimento de realização do referendo encontrou então,
resistência nas urnas:
Nos municípios de San Julian, Yapacani e Cuatro Canadas (de maioria
camponesa e indígena), não houve votação, porque a população não
permitiu a instalação das urnas, e algumas inclusive foram queimadas.
Em Camiri (região ao Sul de Santa Cruz, onde houve recentemente
uma forte greve exigindo do governo Evo Morales a nacionalização do
campo petrolífero da região controlado pela espanhola Repsol), o
repudio aos estatutos chegou a 64,5% (42,6 % se abstiveram e 21,9%
disseram "Não"). (ROCHA, 2008).
Sobre as demais localidades, constam relatos de que urnas foram queimadas e
outras “apareceram” cheias de votos já, as chamadas “urnas grávidas”, “emprenhadas”
de votos pelo sim. Na prática, empregadores obrigaram trabalhadores a exibir
comprovante de voto no referendo e pressionaram a comunidade do Estado de Santa
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 219
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
Cruz a votar pelo sim. Mesmo assim, houve abstenção de 39% da comunidade e 15%
dos que votaram disseram não. A campanha doMovimientoal Socialismo (MAS) –
partido do presidente, era no sentido de que a comunidade não deveria votar neste
referendo, para não legitimá-lo, uma vez que foi feito todo eivado de ilegalidades.
Inclusive estes referendos foram organizados pelas Cortes locais, sem participação da
Corte Nacional, num claro desafio à autoridade estatal. Milhões de bolivianos saíram às
ruas nos diversos departamentos do Estado para se manifestarem pela indivisibilidade
do Estado. Além da autonomia financeira, o Estatuto previa outras formas de soberania
que equiparavam o governador do departamento a chefe de Estado (SEVERO, 2008, p.
17-23).
O último Departamento a votar a questão da autonomia foi Tarija, o mais rico em
produção de gás. A nacionalização dos recursos naturais inverteu a equação que
permitia às multinacionais apossarem-se de 82% das riquezas do gás, deixando ao
Estado apenas 18%. Novamente o MAS convocou a abstenção ao referendo e esta,
somada aos votos nulos e votos pelo não, superaram 50% do resultado total. Dentre as
fraudes no referendo, consta o desaparecimento, denunciado pela juíza eleitoral Maria
Isabel Sosa, de 60% dos eleitoras das listas de votação, na região de Bermejo, onde o
posicionamento contrário à autonomia é mais forte (SEVERO, 2008, p. 26-28).
Posteriormente, em 9 de agosto de 2008, foi convocado o referendo
revocatório, questionando a população sobre o mandato presidencial.
Na ponta do lápis, foram 2.103.872 votos (67,4%) para o Sim à
continuidade do governo revolucionário contra 1.017.037 votos (32,5%)
para o Não, com o triunfo alcançando 95 das 112 províncias. O
presidente venceu em absolutamente todas as províncias de La Paz,
Cochabamba, Potosí e Oruro. Em Chuquisaca, foi ratificado em nove
das dez províncias. Em Tarija, em cinco das seis; em Pando, três em
cinco; em Beni, três de seis; em Santa Cruz, sete das 15 províncias
(SEVERO, 2008, p. 64. Grifo no original).
Evo Morales aumentou o percentual de apoio não somente onde já tinha
maioria, mas também em regiões onde não a havia obtido antes, nas regiões
consideradas “redutos da oposição” ao governo popular.
4. O PLURALISMO JURÍDICO COMO CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA DAS
VITÓRIAS POPULARES NA BOLÍVIA
Como já foi analisado, a Constituinte boliviana também contou com acordos
políticos, tais como os que ocorrem em qualquer processo constituinte. O caso
brasileiro é um bom exemplo: uma constituinte (a de 1988) formada por parlamentares
de corte mais progressista e por remanescentes parlamentares “biônicos”, os
conservadores indicados na época do regime militar. Se no Brasil o resultado foi uma
Carta em certa medida confusa, conciliadora de interesses contraditórios, na Bolívia,
apesar dos retrocessos decorrentes dos acordos políticos, a Constituição aprovada no
referendo tem raízes muito mais populares e descolonizadas. É uma Constituição que
de fato reflete as aspirações de seu povo, de modo que pode ser considerada
220 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
amplamente democrática.
O primeiro destaque a ser feito é que o documento supera dialeticamente a
colonização europeia. Após séculos de negação e substituição cultural, em seu art. 5, a
Constituição boliviana,embora mantenha o castelhano (idioma colonizador) como
oficial, resgata “todos os idiomas das nações e povos originários” praticados no país,
reconhecendo-os também como idiomas oficiais. Além do castelhano, são mais trinta e
seis idiomas oficiais.
No art. 1, ao tratar do modelo de Estado, declara ser a Bolívia um Estado
plurinacional comunitário e intercultural, fundado na pluralidade e no pluralismo
jurídico, entre outras inovações que superam o modelo monista e outras heranças
coloniais da metrópole colonizadora. Inclusive, no artigo seguinte, faz expressa
menção à existência pré-colonial das nações e povos reconhecidos agora como
autônomos.
É assim que dentre os grandes avanços e conquistas da nova Constituição
boliviana de 2009, consagra-se o pluralismo político e jurídico. Trata-se da primeira
constituição na América Latina a implantar um Estado plurinacional fundado num
pluralismo jurídico. E o fato é que conferir efetividade ao reconhecimento formal das
autonomias e plurinacionalidades do país, bem como a todos os seus demais
dispositivos, não seria possível sem um elemento de coesão jurídica e política. O
pluralismo jurídico apresenta-se então, comoo elemento indispensável para consolidar
as vitórias democráticas dos povos e nações bolivianas.Está relacionado à coesão
desta profunda e inédita democratização comunitária do país. É também a
concretização da predição de Casanova (1995, p. 152) que em meados dos anos
noventa afirmava que
[...] capitalismo e colonialismo global não têm assegurado o futuro de
suas democracias limitadas e estão destinados a enfrentar uma nova
batalha contra as forças democráticas e os povos do mundo. Nessa
batalha, os habitantes do Sul do planeta desempenharão um papel
muito importante, que necessariamente terá que se articular com os
povos do Norte.
Esta articulação não seria libertadora e democrática se ocorresse com a
histórica subordinação cultural, econômica e política dos povos do Sul (sendo estes, em
todo mundo, os povos colonizados, espoliados em suas riquezas, para alimentar a
cobiça das metrópoles capitalistas). Então, o respeito e garantia ao direito de
autodeterminação, superando a negação e substituição política e jurídica das
expressões autóctones, concretizadas no respeito às crenças religiosas, aos sistemas
jurídicos, à soberania territorial, à transmissão cultural entre outras formas, constituem
a essência da democracia boliviana.
Wolkmer (2001, p. 151-153), ao tratar dos movimentos sociais como fonte de
produção jurídica, assinala que esta fonte por excelência deve estar nas relações
sociais e nas necessidades fundamentais. A produção jurídica não pode furtar-se a
reproduzir a realidade e corresponder às necessidades da sociedade. Todavia, o direito
burguês-capitalista, todavia, marcado pela centralização estatal, impõe uma rígida
hierarquização das normas escritas e positivadas sobre as derivadas dos costumes
sociais, ao mesmo tempo em que rechaça as expressões informais. Com estas lições, o
autor demonstra a vulnerabilidade da democracia burguês-capitalista.
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 221
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
Reconhecer a legitimidade dos movimentos sociais como fonte de produção de
direitos requer então um novo sistema de direitos, que transcenda os estreitos e
antidemocráticos limites do monismo cultural e jurídico. Este novo sistema, o pluralismo
jurídico, embora pareça mais complexo ante a racionalidade monista colonizada, é
mais legítimo e menos violento frente às necessidades e expressões sociais diversas.
O pluralismo jurídico, que transcende o monismo estatal e que é defendido por
Wolkmer (2001) não se assemelha ao pluralismo das transnacionais capitalistas ou ao
pluralismo das redes de narcotráfico, por exemplo, pois é um pluralismo que não toma
como principal fundamento formas de coerção explícitas ou ideologicamente
dissimuladas. Estas formas, denominadas “pluralismo de cima”, ou “pluralismo
reacionário” (CARVALHO, 2010, p. 13 e ss.), somente se diferenciam do monismo por
não serem ditadas ou reconhecidas pelo Estado, porém, se prestam a manter as
antidemocráticas relações mercantis capitalistas e oligopólios nacionais e
estrangeiros.
O pluralismo jurídico comunitário participativo proposto por Wolkmer preocupase seriamente em diferenciar-se das práticas conservadoras no âmbito do direito e da
política. Preocupa-se em situar seus fundamentos de legitimidade em bases realmente
democráticas. Por isto, constitui-se a partir da junção de duas condições básicas: a
primeira condição são os fundamentos de efetividade material, que se constituem em
dois elementos: os novos sujeitos coletivos e a satisfação das necessidades humanas
fundamentais; a segunda condição básica são os fundamentos de efetividade formal,
que se constituem em três elementos: a reordenação do espaço público, privilegiando
uma democracia descentralizada e de participação popular, o desenvolvimento da ética
da alteridade e a construção de processos favorecedores de uma racionalidade
emancipatória (WOLKMER, 2001, p. 231-232).
No caso da Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia, com
relação ao primeiro elemento, ocorre a superação da lógica do indivíduo para se
legitimar os sujeitos coletivos, especialmente nos povos e nações indígenas,
reconhecidos como sujeitos portadores e criadores de direitos. O “'sujeito individual'
corporifica uma abstração formalista e ideológica de um 'ente moral' livre e igual, no bojo
de vontades autônomas, reguladas pelas leis do mercado e afetadas pelas condições
de inserção no processo do capital e do trabalho” (WOLKMER, 2001, p. 236).
Com relação ao segundo elemento, a satisfação das necessidades humanas
fundamentais, este pode ser localizado no resgate da soberania plurinacional sobre as
riquezas do país. A privatização destas riquezas pelas elites nacionais e estrangeiras,
gerava, de um lado, o acúmulo de bens supérfluos à manutenção da vida, e, de outro, a
escassez, a miséria e a privação do acesso aos meios indispensáveis a esta
manutenção e reprodução. Foi um processo iniciado politicamente nas lutas populares
das guerras da água e do gás e consolidado juridicamente na Constituição boliviana,
art. 99, III e leis infraconstitucionais, como a Lei 300, de 15 de outubro de 2012, onde
constam as diretrizes legais para a garantia do “vivir bien”. O artigo 18 desta lei trata da
inversão e distribuição da riqueza do Estado com justiça social.Mais adiante, no artigo
19, ao tratar do acesso equitativo do povo boliviano aos componentes da Mãe Terra,
determina a eliminação da concentração de propriedades improdutivas e latifúndios.
Com relação às condições formais, a reordenação do espaço público,
constatam-se especialmente duas medidas consolidadas na Constituição da Bolívia: o
reconhecimento do pluralismo jurídico e o reconhecimento de uma terceira forma de
democracia: a democracia comunitária. Na teoria de Wolkmer (2001, p. 249 e ss.) a
reordenação política do espaço público requer democracia, descentralização e
222 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS...
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
participação. Ou seja,
pensar e articular um novo pluralismo de dimensão política e jurídica é
viabilizar as condições para a implementação de uma política
democrática que direcione e ao mesmo tempo reproduza um espaço
comunitário descentralizado e participativo [...] resgatando formas de
ação humana que passam por questões como “comunidade”, “políticas
democráticas de base”, “participação e controle popular”, gestão
descentralizada”, “poder local ou municipal” e “sistema de conselhos”
(WOLKMER, 2001, p. 249-250).
Não se trata da simples negação da democracia representativa ou do Estado. O
autor defende a participação dos sujeitos coletivos interagindo com o poder
legitimamente instituído (WOLKMER, 2001, p. 254). Todavia, no âmbito nacional, o
Estado não será a fonte única e nem última de poder: será um espaço de realização das
deliberações coletivamente tomadas. Já no âmbito local, reconhece-se o direito de
autodeterminação política e jurídica dos povos e nações indígenas. A Constituição
reconhece assim, as diversas jurisdições destes povos e serve-se da Lei de Deslinde
Jurisdicional para harmonizá-las sem subalternizá-las.
A Lei nº 73 (Lei de Deslinde Jurisdicional), de 29 de dezembro de 2010, assim
como a Constituição, reconhecem o pluralismo jurídico e as origens pré-coloniais que o
legitimam. Funda-se, de um lado, nos princípios como a integridade do Estado
Plurinacional, na relação espiritual entre as nações e povos com a Mãe Terra, na
diversidade cultural e na interpretação intercultural; de outro, no pluralismo jurídico
com igualdade hierárquica entre as comunidades, na complementaridade entre as
jurisdições, mas sem intervenção sem autorização ou requerimento.
Embora reserve matérias para exclusiva regulamentação constitucional, bem
como institua mínimos éticos, como a vida, a não tortura entre outros, garante um
espaço significativo de autonomia jurisdicional aos seus povos. Também, por meio da
Lei de Deslinde, oferece instrumentos de eficácia para estas jurisdições. Dentre estes,
podem ser destacados a obrigatoriedade de cumprimento das decisões das jurisdições
das comunidades e o dever de cooperação, quando esta for solicitada. Tais medidas se
prestam a superar o abismo entre a igualdade formal e a material. Caso não houvesse
meios de garantir a eficiência e eficácia das jurisdições comunitárias, a igualdade
constitucional e legalmente prevista seria meramente formal.
Há ainda dois elementos formais na composição do pluralismo jurídico
comunitário participativo: a ética concreta da alteridade e consolidação de processos
conducentes a uma racionalidade emancipatória. Aética concreta da alteridade não se
prende a abstrações ou formalismos, mas sim, constrói-se a partir do outro, em suas
lutas cotidianas, seus conflitos e suas necessidades fundamentais, constituindo-se
como verdadeira “expressão de valores emergentes (emancipação, autonomia,
solidariedade e justiça)”, e ainda, instrumento pedagógico da libertação, fundado em
duas condições: práxis concreta das comunidades espoliadas, oprimidas, colonizadas
etc. e categorias teóricas construídas a partir das próprias culturas autóctones e
pensamentos periféricos latino-americanos (WOLKMER, 2001, p.268-269). O espaço
de concretização destas novas categorias teóricas propostas, podeser construído a
partir das jurisdições autônomas que redefinem politicamente o espaço público
boliviano.
O último elemento, a racionalidade enquanto necessidade de emancipação,
ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 223
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014.
rompe com a racionalização e mercantilização da vida moderna em sua dimensão
negativa, surgindo agora da especificidade dos valores cosmocêntricos e
transindividuais que partem da vida concreta, considerando os interesses e
necessidades da pluralidade de ações humanas, conduzindo-se a uma razão vital
liberta e emancipatória (WOLKMER, 2001, p. 282).
Desta forma, o pluralismo jurídico comunitário participativo vai se configurando
no Estado boliviano e contribuindo para a consolidação de uma genuína democracia.
Se o pluralismo jurídico surge como elemento de coesão para as transformações
políticas no país, resta ainda falar sobre a segunda medida constitucional já anunciada:
a democracia comunitária, que transcendendo as formas democráticas
tradicionalmente conhecidas no Ocidente, configura-se como um instrumento
indispensável para efetivação do pluralismo e da própria essência da democracia.
Como já expresso, tanto a democracia participativa quanto a representativa
comportam em suas realizações práticas diversas formas de exclusão. Uma exclusão
não manifesta na dimensão formal, mas vivamente presente na dimensão material.
Mesmo com os avanços das formas participativas e a radical descentralização
democrática, o pluralismo político e jurídico acabou por transcender a capacidade de
abrangência destas formas e impor a inclusão constitucional da terceira forma
democrática aqui tratada.
É assim que no art. 11, constante no capítulo terceiro da Constituiçao, que trata
do sistema de governo, a República da Bolívia declara adotar “para seu governo a
forma democrática participativa, representativa e comunitária”, todas pautadas na
igualdade entre homens e mulheres. A democracia participativa amplia seus
instrumentos para além dos mais comumente utilizados, como referendo, plebiscito e
iniciativa popular legislativa, incluindo também a possibilidade de revogação de
mandatos, assembleia, conselhos e consultas prévias, estes últimos com caráter
deliberativo. A democracia representativa vem revestida de suas garantias como voto
universal e secreto.
A grande inovação, todavia, apresenta-se no item 3, por meio do qual a
democracia comunitária prevê a eleição, designação ou nomeação de autoridades e
representantes, garantindo-se o direito de que tais procedimentos sejam adotados
conforme as normas próprias das nações e povos bolivianos. É a legitimidade destas
autoridades que é reconhecida constitucionalmente através do pluralismo jurídico.
Estas são algumas contribuições trazidas pelo constitucionalismo
contemporâneo na Bolívia. Contribuições que estão expandindo o horizonte
compreensivo do jurista, do político, do cientista, do cidadão acima de tudo. São
práticas políticas que denunciam contradições milenarmente ocultadas na esfera
democrática e demonstram que a superação das desigualdades e das injustiças sociais
está ao alcance de todos, até mesmo dos mais espoliados e oprimidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A democracia surge no Ocidente, como um sistema político de participação
direta, mas numa sociedade elitista e escravista. Seus consensos políticos são então
obtidos pelos debates entre membros destas elites e a partir da exclusão de diversos
grupos sociais e também da supressão dos pensamentos divergentes. Pouco antes do
surgimento da democracia, insere-se na vida política um importante recurso, a
224 “igualdade formal”, que permitiria a ocultação das profundas contradições entre
garantia formal e efetivação material, esta última, historicamente nunca alcançada
pelos pobres ou classes exploradas nas diversas sociedades.
As experiências democráticas que se seguiram à ateniense não foram menos
contraditórias e tampouco deixaram de ser determinadas pelos interesses dominantes
em cada época e lugar. Assim, o principal elemento comum presente nas duas formas
de experiências democráticas (participativa e representativa) conhecidas na tradição
política ocidental, é a predominância de interesses elitistas nas suas realizações
concretas, predominância esta ocultada pela ideologia da igualdade formal ou jurídica.
A distância entre o âmbito formal e o material da democracia aumenta
significativamente na modernidade iluminista onde emerge a burguesia liberal
capitalista, fazendo aumentar consigo a crise da democracia ocidental.
Desta crise emerge uma terceira forma de democracia que revoluciona a cena
política mais recente não somente por surgir fora do espaço tradicional de “importação”
de tecnologias e paradigmas jurídicos, mas especialmente por constituir-se numa
forma de democracia voltada aos interesses populares e comunitários. Assim, a
democracia comunitária, prevista no novo constitucionalismo boliviano, viabiliza a
tomada de decisões políticas desde as bases da sociedade e não desde as elites. É
uma democracia que se constrói “desde baixo”, tal como o direito pugnado pelo
pluralismo jurídico.
A emergência desta democracia comunitária, do pluralismo jurídico, da
plurinacionalidadee outros conceitos, desde os movimentos sociais até os âmbitos
oficiais, representa, em primeiro lugar, que os processos constituintes podem nascer e
ser protagonizadospelo povo, e representam também, que é possível transcender os
limites do monismo jurídico, da democracia individualista burguesa e da racionalidade
liberal capitalista, para dar lugar aos sujeitos coletivamente constituídos e assim
mutuamente significados, abrindo caminho para instituições genuinamente
democráticas, uma vez que correspondam a um consenso construído desde as bases
da sociedade (decisões legitimadas por referendos populares) e não mais como na
tradição ocidental eurocêntrica, desde as elites delegadase dissimulado sob o mando
da igualdade jurídica.
E assim, com estes processos históricos de lutas advindas de nossos sujeitos
insurgentes, a Bolívia diminuiu a convencional distância entre as dimensões formal e
material da democracia e do próprio direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUGUSTE, Jardé. A Grécia antiga e a vida grega: geografia, história, literatura, artes,
religião, vida pública e privada. São Paulo: EPU, Editora da Universidade de São Paulo,
1977. 259 p.
ARISTÓTELES. Apolítica. São Paulo: Martin Claret, 2002. 272 p.
_____________. Constituição dos atenienses. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian,
2003. 151p.
BOLÍVIA. Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia.2007-2008. Disponível
em:
Artigos, ensaios, pesquisas de interesse geral - política, cultura, sociedade, economia, filosofia, epistemologia - que merecem registro
segunda-feira, 29 de agosto de 2022
Democracia comunitária Wolkmer bbb
Democracia comunitária Wolkmer
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário