https://doi.org/10.1590/S0104-44782005000200003
https://www.scielo.br/j/rsocp/a/k5cVRT5zZcDBcYpDCTxTMPc/?format=pdf&lang=pt
DOSSIÊ DEMOCRACIAS E AUTORITARISMOS Este artigo propõe uma redescrição dos princípios fundamentais da democracia de modo a abrir espaço para o conflito, a paixão e o político. Em um primeiro momento, criticam-se as versões mais propagadas da democracia deliberativa, em sua neutralização e redução do pluralismo político e abuso dos propósitos democráticos de legitimidade e racionalidade. Em seguida, analisam-se os insights de Carl Schmitt em sua compreensão do conceito do político. Finalmente, o conceito do político é apropriado de modo crítico no âmbito de uma proposta de modelo agonístico de democracia, em que se deve renunciar à naturalização das fronteiras da democracia e dos embates entre seus atores – os que eram tidos como inimigos, no interior de uma sociedade democrática, devem assumir o papel de adversários que compartilham um conjunto de valores e princípios ético-políticos, cuja interpretação está em disputa. PALAVRAS-CHAVE: democracia; pluralismo; neutralidade; conflito; conceito de político; racionalidade. I. INTRODUÇÃO Ao término deste século turbulento [século XX], a democracia liberal parece ser reconhecida como a única forma legítima de governo. Isso significa, porém, a sua vitória final sobre os seus adversários, como alguns acreditam? Há sérias razões para um certo ceticismo diante de tal presunção. Não está claro o quão forte é o presente consenso, nem por quanto tempo ele vai durar. Enquanto muito poucos ousam desafiar abertamente o modelo liberal-democrático, os sinais de desapreço pelas atuais instituições estão-se tornando generalizados. Um número crescente de pessoas vêm sentindo que os partidos tradicionais deixaram de atender a seus interesses e partidos de extrema-direita estão fazendo importantes incursões em muitos países europeus. Além disso, mesmo entre aqueles que estão resistindo ao apelo dos demagogos, persiste um cinismo acentuado sobre a política e os políticos – com seus muitos efeitos corrosivos sobre a adesão popular aos valores democráticos. Há, claramente, uma força negativa em funcionamento na maioria das sociedades liberal-democráticas, a qual contradiz o triunfalismo que testemunhamos desde o colapso do comunismo soviético. É com tais considerações em mente que pretendo examinar o debate contemporâneo em teoria democrática. Avalio as propostas oferecidas por teóricos da democracia de modo a consolidar as instituições democráticas. Minha atenção será voltada para o novo paradigma de democracia, o modelo de “democracia deliberativa”, que se tem constituído em um campo de rápido crescimento na área. Em rigor, sua idéia central – de que na sociedade democrática, as decisões políticas devem ser alcançadas por meio de um processo de deliberação entre cidadãos iguais e livres – tem acompanhado a democracia desde o seu nascimento na Grécia do século V a. C. As formas de conceber a deliberação e a definição daqueles aptos a deliberar variaram enormemente, mas a deliberação tem por longo tempo desempenhado um papel central no pensamento democrático. O que se vê hoje é, portanto, o renascimento de um tema antigo, não a inesperada emergência de algo novo. O que demanda análise, contudo, é a razão desse renovado interesse pela deliberação, bem como por suas modalidades correntes. Uma explicação aponta para os problemas que hoje enfrentam as sociedades democráticas. De fato, um dos proclamados fins dos democratas deliberativos 1 Publicado em inglês como capítulo do livro The Democratic Paradox (MOUFFE, 2000a). Tradução e resumo de Pablo Sanges Ghetti; revisão da tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda. 12 POR UM MODELO AGONÍSTICO DE DEMOCRACIA é o de oferecer uma alternativa para a compreensão da democracia que se tornou dominante na segunda metade do século XX, o “modelo agregativo”. Tal modelo teve início com o trabalho seminal de Joseph Schumpeter de 1947, Capitalism, Socialism and Democracy, que argüia que, com o desenvolvimento da democracia de massa, a soberania popular, como entendida pelos modelos clássicos de democracia, tornara-se inadequada. Um novo entendimento da democracia fazia-se necessário, colocando a ênfase na agregação de preferências, disposta por meio de partidos políticos em que as pessoas teriam a capacidade de votar em intervalos regulares. Seguese sua proposta de definir a democracia como o sistema no qual as pessoas teriam a oportunidade de aceitar ou rejeitar seus líderes graças a um processo eleitoral competitivo. Levado adiante por teóricos como Anthony Downs (1957) em An Economic Theory of Democracy, o modelo agregativo tornou-se o padrão no campo acadêmico que se auto-intitulou “teoria política empírica”. O propósito dessa corrente era o de elaborar uma abordagem descritiva da democracia, em oposição àquela clássica, de natureza normativa. Os autores que aderiram a essa escola consideraram que, sob condições modernas, noções como “bem comum” e “vontade geral” tinham de ser abandonadas e que o pluralismo de interesses e valores precisava ser reconhecido como co-extensivo à própria idéia de “povo”. Além disso, dado que em sua perspectiva o auto-interesse era o que levava os indivíduos a agir – não a crença moral segundo a qual eles deveriam agir conforme os interesses da comunidade –, eles declararam que eram os interesses e as preferências que deveriam constituir os parâmetros pelos quais os partidos políticos organizar-se-iam, além de fornecer a matéria a partir da qual a barganha e o voto seriam mobilizados. A participação popular na tomada de decisões deveria, isto sim, ser desencorajada, porquanto poderia ter apenas conseqüências nocivas para o funcionamento do sistema. A estabilidade e a ordem resultariam mais provavelmente do compromisso entre interesses diversos do que da mobilização do povo em direção a um consenso ilusório acerca do bem comum. Como conseqüência, a política democrática foi apartada de sua dimensão normativa, começando a ser concebida em termos puramente instrumentalistas. O predomínio da perspectiva agregativa, com sua redução da democracia a procedimentos para o tratamento do pluralismo de grupos de interesse, é o que a nova onda de Teoria Política normativa, inaugurada por John Rawls em sua obra de 1971, A Theory of Justice, começou a colocar em questão – o mesmo que o modelo deliberativo vem hoje desafiar. Declara-se que o predomínio do modelo agregativo encontra-se na origem do atual desapreço a atingir as instituições democráticas, bem como da exuberante crise de legitimidade das democracias ocidentais. O futuro da democracia liberal, em sua óptica, depende da recuperação de sua dimensão moral. Observando tanto um espaço para “o fato do pluralismo” (Rawls), como a necessidade de reconheceremse as diferentes concepções do bem, os democratas deliberativos afirmam, não obstante, que é possível alcançar um consenso mais profundo que o “mero acordo sobre procedimentos” – um consenso qualificado como “moral”. II. A DEMOCRACIA DELIBERATIVA E SEUS OBJETIVOS Obviamente, os democratas deliberativos não estão sozinhos ao buscarem oferecer uma alternativa à perspectiva agregativa dominante, cuja visão do processo democrático é empobrecedora. A especificidade de sua abordagem reside na promoção de uma forma de racionalidade normativa. Também é distintivo o seu esforço de fornecer uma base sólida de lealdade política [allegiance] para com a democracia liberal ao reconciliarem a idéia de soberania democrática com a defesa de instituições liberais. De fato, vale ressaltar que, enquanto críticos de um certo modus vivendi liberal, a maioria dos defensores da democracia deliberativa não é antiliberal. Diferentemente de críticos marxistas anteriores, eles acentuam o papel central de valores liberais na concepção moderna de democracia. Seu objetivo não é abrir mão do liberalismo, mas recuperar sua dimensão moral e estabelecer uma conexão forte entre valores liberais e democracia. Sua pretensão principal afirma a possibilidade, graças a procedimentos adequados de deliberação, de alcançarem-se formas de acordo que satisfariam tanto a racionalidade (entendida como defesa de direitos liberais) quanto a legitimidade democrática (tomada como soberania popular). Tal movimento reformula o princípio democráti- 13 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 1 co de soberania popular de modo a eliminar os perigos que tal princípio pode representar para os valores liberais. É a consciência desses perigos que freqüentemente preocupou liberais diante da participação popular, levando-os a tentar desencorajá-la e limitá-la. Os democratas deliberativos acreditam que tais perigos podem ser evitados, permitindo-se, por isso, que liberais abracem o ideal democrático com entusiasmo inusitado. Uma solução proposta é a de reinterpretar a soberania popular em termos intersubjetivos e redefini-la como “poder gerado comunicativamente”2. Há muitas versões diferentes da democracia deliberativa, mas elas podem ser aproximadamente classificadas em duas grandes escolas: a primeira amplamente influenciada por Rawls, a segunda por Habermas. Concentrar-me-ei, portanto, nesses dois autores, acompanhados de dois de seus seguidores, Joshua Cohen e Seyla Benhabib, respectivamente. É inegável, certamente, a existência de diferenças entre as duas abordagens – as quais serão indicadas ao longo desta exposição – mas há também convergências importantes, as quais, do ponto de vista desta pesquisa, são mais significativas que as divergências. Como já foi indicado, um dos propósitos da abordagem deliberativa – compartilhado tanto por Rawls como por Habermas – consiste em assegurar uma ligação forte entre democracia e liberalismo, combatendo todos os críticos – de direita e esquerda – que proclamaram a natureza contraditória da democracia liberal. Um exemplo é a declaração de Rawls sobre sua ambição de elaborar um liberalismo democrático que responderia não só às pretensões extraídas da idéia de liberdade, mas também daquela de igualdade. Ele procura encontrar uma solução para o desacordo que vem ocorrendo no pensamento democrático durante os últimos séculos, “Entre a tradição associada a Locke, que dá maior peso ao que Constant chamou de as ‘liberdades dos modernos’, liberdade de pensamento e consciência, alguns direitos básicos da pessoa e da propriedade e o Estado de Direito, e a tradição associada a Rousseau, que dá maior peso ao que Constant chamou de ‘liberdades dos antigos’, as iguais liberdades políticas e os valores da vida pública” (RAWLS, 1993, p. 5). No que toca a Habermas, seu livro Between Facts and Norms explicita que um dos objetivos de sua teoria procedimental da democracia é demonstrar a co-originalidade dos direitos individuais fundamentais e da soberania popular. De um lado, o autogoverno serve para proteger direitos individuais; de outro, os mesmos direitos fornecem as condições necessárias para o exercício da soberania popular. Uma vez entendidos desse modo, diz o autor, “então se pode entender como a soberania popular e os direitos humanos andam lado a lado e logo perceber a co-originalidade das autonomias cívica e privada” (HABERMAS, 1996a, p. 127). Seus seguidores, Cohen e Benhabib, também ressaltam o gesto conciliatório presente no projeto deliberativo. Enquanto Cohen considera que é um equívoco vislumbrar a liberdade dos modernos como sendo exteriores ao processo democrático e que valores liberais devem ser vistos como elementos da democracia ao invés de um constrangimento a ela (COHEN, 1998, p. 187), Benhabib (1996) declara que o modelo deliberativo pode transcender a dicotomia entre a ênfase liberal em direitos individuais e liberdades, assim como a ênfase democrática na formação coletiva e na formação da vontade. Outro ponto de convergência entre as duas versões de democracia deliberativa é a sua insistência comum na possibilidade de fundar autoridade e legitimidade em algumas formas de razão pública e sua crença compartilhada em uma forma de racionalidade que é não apenas instrumental, mas tem uma dimensão normativa: o “razoável” para Rawls, a “racionalidade comunicativa” para Habermas. Em ambos os casos uma forte separação é estabelecida entre “mero acordo” e “consenso racional”, ao passo que o campo próprio da política é identificado com a troca de argumentos entre pessoas razoáveis guiadas pelo princípio da imparcialidade. Tanto Habermas como Rawls acreditam que se pode encontrar o conteúdo idealizado da racionalidade prática nas instituições da democracia liberal. Eles divergem na elucidação da forma de razão prática incorporada pelas instituições democráticas. Rawls enfatiza o papel dos princípios de justiça alcançados por meio do artifício da “posição original” que força os participantes a deixar de lado todas as suas particularidades e interesses. Sua concepção de “justiça como eqüidade” – que enuncia a prioridade dos princípios 2 liberais básicos – conjuntamente com os “elemen- Ver, por exemplo, Habermas (1996b, p. 29). 14 POR UM MODELO AGONÍSTICO DE DEMOCRACIA tos constitucionais essenciais” fornece o quadro para o exercício da “razão pública livre”. No que concerne a Habermas, tem-se a defesa do que chama de abordagem estritamente procedimental, em que nenhum limite é estabelecido para a amplitude e o conteúdo da deliberação. São os constrangimentos procedimentais da situação ideal de fala que eliminarão as posições que não podem ser aceitas pelos participantes do “discurso” moral. Como relembrado por Benhabib, as características de tal discurso são as seguintes: “(1) a participação em tal deliberação é governada pelas normas de igualdade e simetria; todos têm as mesmas chances de iniciar atos de fala, para questionar, interrogar e abrir o debate; (2) todos têm o direito de questionar os tópicos definidos da conversação e (3) todos têm o direito de iniciar argumentos reflexivos sobre as próprias regras do procedimento discursivo e o modo pelo qual são aplicadas e implementadas. Não há regras que em princípio limitem a agenda da conversação ou a identidade dos participantes, desde que qualquer pessoa ou grupo excluído possa demonstrar justificadamente que são afetados de modo relevante pela norma proposta em questão” (BENHABIB, 1996, p. 70). Nos termos dessa perspectiva, a base de legitimidade das instituições democráticas deriva do fato de que as instâncias que afirmam um poder coercitivo fazem-no sob a presunção de que suas decisões representam um ponto de vista imparcial, que se situa na conjunção do interesse igual de todos. Cohen, depois de enunciar que a legitimidade democrática decorre de decisões coletivas entre membros iguais, declara: “De acordo com uma concepção deliberativa, uma decisão é coletiva apenas no caso em que emerge das disposições de escolhas coletivas exigíveis que estabelecem as condições para o raciocínio público livre entre iguais que são governados pelas decisões” (COHEN, 1998, p. 186). Nessa óptica, não seria suficiente que um procedimento democrático levasse em consideração os interesses de todos e alcançasse um compromisso capaz de estabelecer um modus vivendi. O propósito é o de gerar “poder comunicativo” e isso requer o estabelecimento de condições para o livre consentimento de todos os envolvidos – daí a importância de encontrarem-se procedimentos que garantiriam a imparcialidade moral. Apenas aí se pode ter certeza de que o consenso obtido é racional e não um mero acordo. Essa é a razão pela qual a ênfase é colocada na natureza do procedimento deliberativo, bem como nos tipos de razão que são tidos como aceitáveis para participantes competentes. Benhabib expõe-no da maneira seguinte: “De acordo com o modelo deliberativo de democracia, é condição necessária para a obtenção de legitimidade e racionalidade com relação ao processo de tomada de decisão coletiva em uma unidade política que as instituições dessa unidade política arranjem-se, de tal modo que aquilo que é considerado no interesse comum de todos resulte de um processo de deliberação coletiva conduzido racional e eqüitativamente entre indivíduos livres e iguais” (BENHABIB, 1996, p. 69). Para os habermasianos, o processo de deliberação tem resultados razoáveis assegurados, na medida em que se estabeleçam as condições do “discurso ideal”: quanto mais igual e imparcial, mais aberto será o processo; quanto menos os participantes são coagidos e prontos para serem guiados pela força do melhor argumento, mais os interesses verdadeiramente generalizáveis poderão ser aceitos por todos os afetados de modo relevante. Habermas e seus seguidores não negam que haja obstáculos para a realização do discurso ideal, mas os mesmos são entendidos como tendo natureza empírica. Tais obstáculos devem-se ao fato de que é improvável, dadas as limitações práticas e empíricas da vida social, que possamos deixar de lado completamente todos os nossos interesses particulares a ponto de que nossos interesses venham a coincidir com nosso “si-mesmo” [self] racional universal. Esse é o motivo pelo qual a situação ideal de fala é apresentada como “ideal regulativo”. Além disso, Habermas agora aceita que haja questões que devam permanecer alheias às práticas de debate público racional, como questões existenciais que dizem respeito não a questões de justiça, mas à vida digna – este seria em sua visão o domínio da ética –, ou, ainda, conflitos entre grupos de interesse que só possam ser resolvidos por via de compromisso. Contudo, ele considera que “essa diferenciação, dentro do campo de questões que requerem decisões políticas, não nega a importância central de considerações morais, nem a praticidade do debate racional como a forma mesma de comunicação política” (HABERMAS, 1991, p. 448). Em sua perspectiva, questões plíticas fundamentais pertencem à mesma categoria que questões morais e podem ser decididas racionalmente. Ao contrário das questões éticas, elas não podem depender de seu contexto. A validade de suas respostas vem de uma fonte independente e tem um alcance universal. Ele permanece inflexível quanto à afirmação de que a troca de argumentos e contra-argumentos, como verificada em sua abordagem, é o procedimento mais adequado para o alcance da formação racional da vontade de onde o interesse geral surgirá. A democracia deliberativa, nas duas versões consideradas aqui, em benefício da perspectiva agregativa, admite que nas condições modernas uma pluralidade de valores e interesses precisa ser reconhecida e que o consenso sobre o que Rawls chama de visões “abrangentes” [comprehensive] de natureza religiosa, moral e filosófica deve ser abandonado. Seus defensores, porém, não aceitam que isso leve à impossibilidade de um consenso racional sobre decisões políticas – entendendo-se por isso não um simples modus vivendi, mas um tipo moral de acordo, resultado do raciocínio moral livre entre iguais. Dado que os procedimentos de deliberação assegurem imparcialidade, igualdade, abertura e ausência de coerção, eles guiarão a deliberação em direção a interesses generalizados que possam ser subscritos por todos os participantes, conseqüentemente produzindo resultados legítimos. A questão da legitimidade é mais fortemente enfatizada pelos habermasianos, mas não há diferenças fundamentais entre Habermas e Rawls nesse ponto. De fato, Rawls define o princípio liberal de legitimidade de um modo congruente com a visão de Habermas: “Nosso exercício do poder político é adequado e logo justificável apenas quando ocorre de acordo com uma constituição por cujos elementos essenciais espera-se razoavelmente o apoio de todos os cidadãos, conforme princípios e ideais aceitáveis para eles como razoáveis e racionais” (RAWLS, 1993, p. 217). Essa força normativa, devido ao princípio de justificação geral, sintoniza-se com a ética do discurso de Habermas e essa é a razão por que se pode argüir a possibilidade de reformulação do construtivismo político rawlsiano na língua da ética do discurso3. Na verdade, isso é o que o próprio Cohen, de certo modo, faz; isso também mostra como esse autor fornece um bom exemplo da compatibilidade entre as duas abordagens. Particularmente, Cohen destaca o processo deliberativo e afirma que a democracia requer que os participantes não apenas sejam livres e iguais, mas também “razoáveis” – a democracia entendida como um sistema de arranjos sociais e políticos, capaz de ligar o exercício do poder ao livre exercício da razão entre iguais. Por “razoáveis” quer dizer que “eles [os participantes] procuram defender e criticar instituições e programas nos termos de considerações que outros, como livres e iguais, têm razão para aceitar, dado o fato do pluralismo razoável” (COHEN, 1998, p. 194). III. FUGINDO DO PLURALISMO Após ter delineado as idéias principais da democracia deliberativa, examinarei agora em maior detalhe alguns pontos do debate estabelecido entre Rawls e Habermas, com o objetivo de trazer a lume os defeitos cruciais da perspectiva deliberativa. Dois pontos, a partir daí, assumem particular relevância. O primeiro refere-se a uma das pretensões centrais do “liberalismo político” defendido por Rawls: um liberalismo político não-metafísico e livre de visões abrangentes. Estabelece-se uma separação clara entre o reino privado – em que uma pluralidade de diferentes e irreconciliáveis visões abrangentes coexistem – e o reino público, em que um consenso sobreposto pode ser estabelecido sobre uma concepção compartilhada de justiça. Habermas contesta que Rawls não pode ter êxito nessa estratégia de evitar questões filosóficas controversas, porque seria impossível desenvolver sua teoria no modo independente como ele anuncia. De fato, sua idéia de “razoável”, assim como sua concepção de “pessoa”, necessariamente o envolve em questões pertinentes aos conceitos de racionalidade e verdade que pretende ultrapassar (HABERMAS, 1995, p. 126). Além disso, Habermas declara que sua própria abordagem é superior à de Rawls, em função de seu caráter estritamente procedimental, que lhe permite “deixar mais questões abertas porque deposita mais confiança no processo de constituição da opinião e da vontade racionais” (idem, p. 131). Por não delimitar uma separação forte entre o público e o privado, seria uma perspectiva mais bem talhada para acomodar a amplitude de deliberação que decorre da democracia. A isso, Rawls replica que 3 Tal argumento é apresentado por Rainer Forst em sua resenha de Liberalismo político (FORST, 1994, p. 169). 16 POR UM MODELO AGONÍSTICO DE DEMOCRACIA a perspectiva de Habermas não pode ser tão estritamente procedimental como ele gostaria, pois deve incluir uma dimensão substantiva, dado que questões relativas ao resultado dos procedimentos não podem ser excluídas das escolhas que levam a eles (RAWLS, 1995, p. 170-174). Ambos estão corretos em suas críticas mútuas. Realmente, a concepção de Rawls não é tão independente de visões abrangentes como ele acredita e Habermas não pode ser tão procedimentalista como pretende. Que ambos sejam incapazes de separar o público do privado, ou o procedimental do substancial, como declaram, é revelador. O que isso revela é a impossibilidade de conseguir-se o que cada um deles, apesar de por diferentes caminhos, está realmente perseguindo, ou seja, circunscrever um domínio que não seria sujeito ao pluralismo de valores e em que um consenso sem exclusão poderia ser instaurado. Com efeito, ao evitar doutrinas abrangentes, Rawls está motivado por sua crença de que nenhum acordo racional é possível nesse campo. Eis a razão por que, com o fim de tornar as instituições liberais aceitáveis para pessoas de diferentes visões morais, filosóficas e religiosas, precisam ser neutras em relação a visões abrangentes. Por isso, a clara separação que tenta instituir entre o reino privado – com seu pluralismo de valores irreconciliáveis – e o reino público, em que um acordo político sobre concepções liberais de justiça seria assegurado por meio da criação de um consenso sobreposto em termos de justiça. No caso de Habermas, uma tentativa similar de escapar das implicações do pluralismo de valores é feita por intermédio da distinção entre ética – um domínio que permite concepções sobre o bem que competem entre si – e moralidade – em que um procedimentalismo estrito pode ser implementado e a imparcialidade alcança condição de liderança na formulação de princípios universais. Rawls e Habermas querem fundamentar a adesão à democracia liberal com um tipo de acordo racional que fecharia as portas para a possibilidade de contestação. Eles precisam, por esse motivo, relegar o pluralismo para um domínio nãopúblico, isolando a política de suas conseqüências. O fato de que sejam incapazes de manter a separação rígida que advogam tem implicações muito importantes para a política democrática. Ressalta-se aí que o domínio da política – mesmo quando questões básicas como justiça ou princípios fundamentais estão envolvidos – não é um terreno neutro que poderia ser isolado do pluralismo de valores ou em que soluções racionais e universais poderiam ser formuladas. O segundo ponto é outra questão concernente à relação entre autonomia privada e autonomia pública. Como vimos, ambos os autores procuram conciliar as “liberdades dos antigos” com as “liberdades dos modernos” e argumentam que os dois tipos de autonomia necessariamente caminham juntos. Contudo, Habermas considera que apenas sua abordagem consegue estabelecer a cooriginalidade de direitos individuais e participação democrática. Afirma que Rawls subordina a soberania democrática aos direitos liberais porque ele concebe a autonomia pública como um meio para autorizar a autonomia privada. Habermas, por seu turno, como Charles Larmore apontou, privilegia o aspecto democrático, dado que assevera que a importância dos direitos individuais subsiste em sua capacidade de tornar possível o autogoverno democrático (LARMORE, 1996, p. 217). Então, mais uma vez, temos de concluir que nenhum deles é capaz de cumprir o que anunciam. O que querem negar é o caráter paradoxal da democracia moderna e a tensão fundamental entre a lógica da democracia e a lógica do liberalismo. São incapazes de reconhecer que, ao passo que realmente direitos individuais e autogoverno democrático são constitutivos da democracia liberal – cuja novidade reside precisamente na articulação dessas tais duas tradições – também existe uma tensão entre suas “gramáticas” respectivas que nunca poderá ser eliminada. Certamente, ao contrário do que alguns de seus adversários, como Carl Schmitt, argumentaram, isso não significa que a democracia liberal é um regime fadado ao insucesso. Tal tensão, apesar de inerradicável, pode ser negociada de diferentes maneiras. De fato, uma grande parte da política democrática dá-se precisamente em torno da negociação de tal paradoxo e da articulação de soluções precárias4. O que é descabida é a procura de uma solução racional final. Não apenas infrutífera, essa empreitada carrega constrangimentos indevidos ao debate político. Tal procura deveria ser reconhecida pelo que realmente é – outra ten4 Desenvolvi esse argumento em meu artigo “Carl Schmitt and the Paradox of Liberal Democracy” (MOUFFE, 1999). 17 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 11-23 NOV. 2005 tativa de insular a política dos efeitos do pluralismo de valores, desta vez tentando fixar terminantemente todo o sentido e a hierarquia dos valores liberal-democráticos fundamentais. A teoria democrática deveria renunciar a essas formas de escapismo e enfrentar o desafio que decorre do reconhecimento do pluralismo de valores. Isso não significa aceitar um pluralismo total – alguns limites precisam ser estabelecidos com relação ao tipo de confrontação que será vista como legítima na esfera pública. Mas a natureza política dos limites deve ser reconhecida, em lugar da apresentação de tais limites como exigências da moralidade e da racionalidade. IV. QUE LEALDADE PARA A DEMOCRACIA? Se tanto Rawls como Habermas, embora de diferentes maneiras, buscam alcançar uma forma de consenso racional ao invés de um “simples modus vivendi” ou um “mero acordo” é porque acreditam que, ao obterem bases estáveis para a democracia liberal, esse consenso contribuirá para assegurar o futuro das instituições liberal-democráticas. Como vimos, enquanto Rawls considera que a questão-chave é a justiça, para Habermas ela envolve a questão da legitimidade. De acordo com Rawls, uma sociedade bem-ordenada é aquela que funciona conforme princípios estabelecidos por uma concepção compartilhada de justiça. É isso que produz estabilidade e a aceitação das instituições por parte dos cidadãos. Para Habermas, uma democracia estável e funcional requer a criação de uma unidade política integrada por meio de discernimento racional em direção à legitimidade. Essa é a razão de os habermasianos entenderem que a questão crucial descansa na busca de um caminho capaz de garantir que decisões tomadas por instituições democráticas representem um ponto de vista imparcial, expressando igualmente os interesses de todos, o que requer estabelecer procedimentos aptos a propiciar resultados racionais mediante a participação democrática. Como expresso por Seyla Benhabib, “a legitimidade em sociedades complexas deve ser pensada como resultante da livre e desimpedida deliberação pública de todos, sobre matérias de interesse comum” (BENHABIB, 1996, p. 68). Em seu desejo de mostrar as limitações do consenso democrático como vislumbrado pelo modelo agregativo – apenas preocupado com a racionalidade instrumental e a promoção do autointeresse –, os democratas deliberativos insistem na importância de um outro tipo de racionalidade, a racionalidade em marcha na ação comunicativa e na razão pública livre. Querem fazê-la a força central de movimento dos cidadãos democráticos e a base de sua fidelidade em relação a suas instituições comuns. A preocupação de Habermas e Rawls com o atual estado das instituições democráticas é uma que compartilho, mas considero as suas respostas extremamente inadequadas. A solução para nossos graves problemas contemporâneos não se resume a substituir a “racionalidade de meios-fins” dominante por uma nova forma de racionalidade, agora “deliberativa” ou “comunicativa”. De fato, há espaço para entendimentos diferentes da razão e é importante tornar mais complexo o quadro oferecido pelos detentores da visão instrumentalista. No entanto, simplesmente substituir um tipo de racionalidade por outro não nos ajudará a alcançar o problema real que a questão da lealdade política [allegiance] expõe. Como Michael Oakeshott relembrou-nos, a autoridade das instituições políticas não é uma questão de consentimento, mas de contínua adesão dos cives que reconhecem suas obrigações de obedecer às condições prescritas pela res publica (OAKESHOTT, 1975, p. 149-158). Seguindo essa linha de pensamento, podemos dar-nos conta de que o que realmente está em jogo na fidelidade a instituições democráticas é a constituição de um conjunto de práticas que façam possível a criação de cidadãos democráticos. Essa não é uma questão de justificação racional, mas de disponibilidade de formas democráticas de individualidade e subjetividade. Ao privilegiar a racionalidade, tanto a perspectiva deliberativa como a agregativa deixam de lado um elemento central, que é o papel crucial desempenhado por paixões e afetos na garantia da fidelidade a valores democráticos. Isso não pode ser ignorado, do que decorre avaliar a questão da cidadania democrática de modo bem diferente. O fracasso da teoria democrática contemporânea em atacar a questão da cidadania é a conseqüência de seu funcionamento com uma concepção de sujeito que vê os indivíduos como anteriores à sociedade, portadores de direitos naturais, e tanto agentes da maximização dos benefícios como sujeitos racionais. Em todos os casos estão abstraídos das relações sociais e de poder, linguagem, cultura e todo o conjunto de práticas que tornam a ação [agency] possível. O que falta a essas abordagens racionalistas é a própria ques- 18 POR UM MODELO AGONÍSTICO DE DEMOCRACIA tão de quais são as condições de existência do sujeito democrático. Pretendo desenvolver a visão segundo a qual não é com a construção de argumentos sobre a racionalidade incorporada em instituições liberaldemocráticas que se contribui para a criação de cidadãos da democracia. Indivíduos da democracia só serão possíveis com a multiplicação de instituições, discursos, formas de vida que fomentem a identificação com valores democráticos. Eis a razão por que, apesar de concordar com os democratas deliberativos sobre a necessidade de um conceito diferente de democracia, vejo suas propostas como contraproducentes. Em rigor, precisamos formular uma alternativa ao modelo agregativo e à concepção instrumental da política que esse modelo fomenta. Está claro que ao desencorajarem o envolvimento ativo dos cidadãos no funcionamento da unidade política e ao encorajarem a privatização da vida, eles não asseguraram a estabilidade que anunciaram. Formas extremas de individualismo espalharam-se amplamente, ameaçando a própria “fábrica social” [the very social fabric]. De outro modo, desprovidos da possibilidade de identificarem-se com concepções preciosas de cidadania, muitas pessoas estão, em um crescendo, procurando formas de identificação que podem muito freqüentemente colocar em risco o laço cívico que deveria unir a associação político-democrática. O crescimento de várias religiões, bem como de fundamentalismos morais e étnicos, é a meu ver a conseqüência direta do déficit democrático que caracteriza a maior parte das sociedades liberal-democráticas. Para enfrentar seriamente tais problemas, o único caminho é vislumbrar a cidadania democrática de uma perspectiva diferente, de modo a colocar ênfase nos tipos de práticas e não nas formas de argumentação. Em The Return of the Political (MOUFFE, 1993), argumentei que as reflexões sobre associação civil, desenvolvidas por Michael Oakeshott em On Human Conduct, são muito pertinentes para a concepção de formas modernas de comunidade política e o tipo de laço unindo cidadãos democráticos, i. e., a linguagem específica do intercâmbio civil que ele chama de res publica (idem, cap. 4). Também podemos, porém, inspirar-nos em Wittgenstein que, como demonstrei (MOUFFE, 2000), fornece insights muito importantes para uma crítica do racionalismo. Com efeito, em seu trabalho tardio, sublinhou o fato de que, para alcançarem-se acordos de opinião, deve haver acordo sobre formas de vida. Em sua ótica, concordar com a definição de um termo não é suficiente e precisamos de acordo sobre o modo que a utilizamos. Isso significa que os procedimentos devem ser entendidos como conjuntos de práticas. É porque estão inscritos em formas de vida compartilhadas e em acordos sobre juízos que os procedimentos podem ser aceitos e seguidos. Eles não podem ser vistos como regras que são criadas com base em princípios e então aplicadas a casos específicos. Regras para Wittgenstein são sempre abreviações de práticas, são inseparáveis de suas formas de vida específicas. Isso indica que uma distinção estrita entre “procedimental” e “substancial” ou entre “moral” e “ética” – distinções que são fundamentais para a abordagem habermasiana – não podem ser sustentadas. Procedimentos sempre envolvem compromissos éticos substanciais e não pode nunca haver procedimentos puramente neutros. Vistos de um tal ponto de partida, a lealdade à democracia e a crença no valor de suas instituições não dependem em dar-lhes uma fundação intelectual. Pertencem mais ao âmbito do que Wittgenstein comparou a um “compromisso apaixonado a um sistema de referência. Logo, apesar de ser crença, é realmente um modo de viver ou de avaliar-se uma vida” (WITTGENSTEIN, 1980, p. 85e). Ao contrário da democracia deliberativa, tal perspectiva também implica reconhecer os limites do consenso: “Onde dois princípios que não podem ser reconciliados realmente se encontram, cada homem declara o outro um tolo e um herético. Eu disse que ‘combateria’ o outro homem – mas não lhe daria razões? Certamente; mas quão longe iriam? Ao fim das razões, vem a persuasão” (WITTGENSTEIN, 1969, p. 81e). Ver as coisas dessa maneira deveria permitirnos perceber que levar o pluralismo a sério requer que se abra mão do sonho de um consenso racional que acarreta a fantasia de que poderíamos escapar de nossa forma de vida humana. Em nosso desejo de uma compreensão total, diz Wittgenstein, “aportamos sobre o gelo escorregadio onde não há fricção e, então, de certo modo, as condições são ideais, mas, também exatamente por isso, somos incapazes de andar: então precisamos de fricção. De volta ao terreno tosco” (WITTGENSTEIN, 1958, p. 46e). “De volta ao terreno tosco” aqui significa compreender o fato de que, longe de serem meram De volta ao terreno tosco” aqui significa compreender o fato de que, longe de serem meramen- 19 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 11-23 NOV. 2005 te empíricos ou epistemológicos, os obstáculos aos artifícios racionalistas são ontológicos. De fato, a deliberação pública livre e desimpedida de todos sobre matérias de interesse comum é uma impossibilidade conceitual, dado que formas particulares de vida que são apresentadas como seus “empecilhos” são sua própria condição de possibilidade. Sem elas, a comunicação ou a deliberação jamais adviriam. Não há justificação alguma para atribuir privilégio ao chamado “ponto de vista moral” governado pela racionalidade e pela imparcialidade e em que um consenso racional universal poderia ser alcançado. V. UM MODELO “AGONÍSTICO” DE DEMOCRACIA Além de dar ênfase às práticas e aos jogos de linguagem, uma alternativa ao quadro conceitual racionalista também requer entender o fato de que o poder é constitutivo das relações sociais. Um dos defeitos da abordagem deliberativa é que, ao postular a disponibilidade de uma esfera pública em que o poder teria sido eliminado e onde um consenso racional poderia ser produzido, este modelo de política democrática é incapaz de reconhecer a dimensão do antagonismo e seu caráter inerradicável, que decorre do pluralismo de valores. Eis o motivo por que esse modelo está fadado a menosprezar a especificidade do político, vislumbrado assim como um domínio particular da moralidade. A democracia deliberativa provê uma boa ilustração do que Schmitt expressou sobre o pensamento liberal: “De um modo muito sistemático, o pensamento liberal evade ou ignora o Estado e a política e manifesta-se, ao invés disso, em termos de uma típica e sempre recorrente polaridade de duas esferas heterogêneas, sabidamente a ética e a economia” (SCHMITT, 1976, p. 70). De fato, ao modelo agregativo, inspirado pela economia, a única alternativa que os democratas deliberativos podem opor é uma que reduz a política à ética. De maneira a remediar essa séria deficiência, precisamos de um modelo democrático capaz de apreender a natureza do político. Isso requer o desenvolvimento de uma abordagem que inscreve a questão do poder e do antagonismo em seu próprio centro. É tal perspectiva que advogo, cujas bases teóricas foram delineadas em Hegemony and Socialist Strategy (LACLAU & MOUFFE, 1985). A tese central do livro é a de que a objetividade social é constituída por meio de atos de poder. Isso implica que qualquer objetividade social é em última instância política e que ela tem de mostrar os traços de exclusão que governam a sua constituição. Esse ponto de convergência – ou de arruinamento mútuo – entre a objetividade e o poder é o que nós queremos dizer com “hegemonia”. Esse modo de apresentar o problema indica que o poder não deve ser concebido como uma relação externa acontecendo entre duas identidades préconstituídas, mas sim como constituindo as identidades elas mesmas. Considerando-se que qualquer ordem política é a expressão de uma hegemonia, de um padrão específico de relações de poder, a prática política não pode ser entendida como simplesmente representando os interesses de identidades pré-constituídas, mas como constituindo essas próprias identidades em um terreno precário e sempre vulnerável. Asseverar a natureza hegemônica de qualquer tipo de ordem social significa operar um deslocamento das relações tradicionais entre democracia e poder. De acordo com a abordagem deliberativa, quanto mais democrática uma sociedade, menos o poder será constitutivo das relações sociais. Se aceitarmos, contudo, que as relações de poder são constitutivas do social, então a questão principal para a política democrática não é como eliminar o poder, mas como constituir formas de poder mais compatíveis com valores democráticos. Compreender a natureza constitutiva do poder implica abandonar o ideal de uma sociedade democrática como a realização de perfeitas harmonia ou transparência. O caráter democrático de uma sociedade só pode ser dado na hipótese em que nenhum ator social limitado possa atribuir-se a representação da totalidade ou pretenda ter controle absoluto sobre a sua fundação. A democracia requer, portanto, que a natureza puramente construída das relações sociais encontre seu complemento nos fundamentos puramente pragmáticos das pretensões de legitimidade do poder. Isso implica que não haja nenhuma lacuna insuperável entre poder e legitimidade – obviamente não no sentido de que todo poder seja automaticamente legítimo, mas no sentido de que a) se qualquer poder é capaz de se impor, é porque foi reconhecido como legítimo em algumas partes e b) se a legitimidade não se baseia em um fundamento apriorístico, é porque se baseia em alguma forma de poder bem-sucedido. Essa conexão entre poder e legitimidade e a ordem hegemônica 20 POR UM MODELO AGONÍSTICO DE DEMOCRACIA que ela acarreta é precisamente o que a abordagem deliberativa renega ao estabelecer a possibilidade de um tipo racional de argumentação em que o poder foi eliminado e em que a legitimidade é fundada na racionalidade pura. Uma vez delimitado o terreno teórico, podemos começar a formular uma alternativa tanto ao modelo agregativo quanto ao modelo deliberativo – um modelo que proponho chamar de “pluralismo agonístico”5. Uma primeira distinção é necessária para esclarecer a nova perspectiva que estou formulando, a distinção entre “política” [politics] e “o político” [the political]. Por “o político” refiro-me à dimensão do antagonismo inerente às relações humanas, um antagonismo que pode tomar muitas formas e emergir em diferentes tipos de relações sociais. A “política”, por outro lado, indica o conjunto de práticas, discursos e instituições que procuram estabelecer uma certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que são sempre conflituais porque são sempre afetadas pela dimensão do “político”. Considero que é apenas quando reconhecermos a dimensão do “político” e entendemos que a “política” consiste em domesticar a hostilidade e em tentar conter o potencial antagonismo que existe nas relações humanas que seremos capazes de formular o que considero ser a questão central para a política democrática. Essa questão, vênia aos racionalistas, não é a de como tentar chegar a um consenso sem exclusão, dado que isso acarretaria a erradicação do político. A política busca a criação da unidade em um contexto de conflitos e diversidade; está sempre ligada à criação de um “nós” em oposição a um “eles”. A novidade da política democrática não é a superação dessa oposição nós-eles – que é uma impossibilidade –, mas o caminho diferente em que ela é estabelecida. O ponto crucial é estabelecer essa discriminação nóseles de um modo compatível com a democracia. Vislumbrada a partir da óptica do “pluralismo agonístico”, o propósito da política democrática é construir o “eles” de tal modo que não sejam percebidos como inimigos a serem destruídos, mas como adversários, ou seja, pessoas cujas idéias são combatidas, mas cujo direito de defender tais idéias não é colocado em questão. Esse é o verdadeiro sentido da tolerância liberal-democrática, a qual não requer a condescendência para com idéias que opomos, ou indiferença diante de pontos de vista com os quais discordamos, mas requer, sim, que tratemos aqueles que os defendem como opositores legítimos. A categoria de “adversário”, todavia, não elimina o antagonismo e ela deve ser distinguida da noção liberal do competidor com que ela é identificada algumas vezes. Um adversário é um inimigo, mas um inimigo legítimo, com quem temos alguma base comum, em virtude de termos uma adesão compartilhada aos princípios ético-políticos da democracia liberal: liberdade e igualdade. Discordamos, porém, em relação ao sentido e à implementação dos princípios e não se pode resolver tal desacordo por meio de deliberação ou de discussão racional. De fato, dado o pluralismo inerradicável de valores, não há solução racional para o conflito – daí a sua dimensão antagonística6. Isso não significa, obviamente, que adversários não possam cessar de discordar, mas isso não prova que o antagonismo foi erradicado. Aceitar a visão do adversário significa passar por uma mudança radical de identidades políticas. É mais uma espécie de conversão do que um processo de persuasão racional (do mesmo modo que Thomas Kuhn argumentou que a adesão a um novo paradigma científico é uma conversão). Pactos [compromises] certamente são também possíveis; eles são parte integrante do cotidiano da política, mas deveriam ser vistos como interrupções temporárias de uma confrontação contínua. 6 Essa dimensão antagonística, que não pode nunca ser completamente eliminada mas apenas “domada” ou “sublimada” ao ser, por assim dizer, “exaurida” de um modo agonístico, é o que, em minha perspectiva, distingue meu entendimento de agonismo daquele formulado por outros “teóricos agonísticos”, os que são influenciados por Nietzsche ou Hannah Arendt, como William Connolly ou Bonnie Honig. Parece-me que suas concepções deixam aberta a possibilidade de que o político, sob algumas condições, torne-se absolutamente congruente com o ético – otimismo de que não compartilho. 5 O “pluralismo agonístico” como definido aqui é uma tentativa de operar o que Richard Rorty chamaria de “redescrição” do auto-entendimento básico do regime liberal-democrático, que enfatiza a importância de reconhecerse a sua dimensão conflitual. Deve ser portanto distinguido do modo pelo qual o mesmo termo é usado por John Gray para referir-se à rivalidade mais larga entre formas de vida inteiras, as quais ele vê como “a verdade mais profunda da qual o agonismo liberal é apenas um exemplo” (GRAY, 1995, p. 84). 21 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 11-23 NOV. 2005 Introduzir a categoria do “adversário” requer tornar complexa a noção de antagonismo e a distinção de duas formas diferentes mediante as quais ela pode emergir: o antagonismo propriamente dito e o agonismo. O antagonismo é a luta entre inimigos, enquanto o agonismo representa a luta entre adversários. Podemos, portanto, reformular nosso problema dizendo que, desde a perspectiva do “pluralismo agonístico”, o propósito da política democrática é transformar antagonismo em agonismo. Isso demanda oferecer canais por meio dos quais às paixões coletivas serão dados mecanismos de expressarem-se sobre questões que, ainda que permitindo possibilidade suficiente de identificação, não construirão o opositor como inimigo, mas como adversário. Uma diferença importante em relação ao modelo da democracia deliberativa é que, para o “pluralismo agonístico”, a tarefa primordial da política democrática não é eliminar as paixões da esfera do público, de modo a tornar possível um consenso racional, mas mobilizar tais paixões em prol de desígnios democráticos. Uma das chaves para a tese do pluralismo agonístico é que, longe de pôr em risco a democracia, a confrontação agonística é, de fato, sua condição de existência. A especificidade da democracia moderna reside no reconhecimento e na legitimação do conflito e na recusa de suprimi-lo pela imposição de uma ordem autoritária. Rompendo com a representação simbólica da sociedade como um corpo orgânico – que era característica do modo holístico de organização social –, uma sociedade democrática reconhece o pluralismo de valores, o “desencantamento do mundo” diagnosticado por Max Weber e os conflitos inevitáveis que dele decorrem. Concordo com aqueles que afirmam que uma democracia pluralista exige um certo volume de consenso e que ela requer a lealdade aos valores que constituem seus “princípios ético-políticos”. Entretanto, dado que tais princípios ético-políticos só podem existir por meio de muitas interpretações diferentes e conflitantes, esse consenso está fadado a ser um “consenso conflituoso”. Esse é, com efeito, o terreno privilegiado de confrontação agonística entre adversários. Idealmente, tal confrontação deveria ser observada em torno das diversas concepções de cidadania que correspondem às diferentes interpretações dos princípios ético-políticos: liberal-conservadora, social-democrata, neoliberal, radical-democrática e assim por diante. Cada uma delas propõe a sua própria interpretação do “bem comum” e tenta implementar uma forma diferente de hegemonia. Para alimentar a lealdade a suas instituições, o sistema democrático requer a disponibilidade daquelas formas de identificação com a cidadania em disputa. Elas provêem o terreno em que as paixões podem ser mobilizadas em torno de objetivos democráticos e o antagonismo transformado em agonismo. Uma democracia em bom funcionamento demanda um embate intenso de posições políticas. Se faltar isso, há o perigo de que a confrontação democrática seja substituída por uma confrontação dentre outras formas de identificação coletiva, como é o caso da política da identidade. Muita ênfase no consenso e a recusa de confrontação levam à apatia e ao desapreço pela participação política. Ainda pior, o resultado pode ser a cristalização de paixões coletivas em torno de questões que não podem ser manejadas [managed] pelo processo democrático e uma explosão de antagonismo que pode desfiar os próprios fundamentos da civilidade. É por essa razão que o ideal de uma democracia pluralista não pode ser alcançar um consenso racional na esfera pública. Esse consenso não pode existir. Devemos aceitar que cada consenso existe como resultado temporário de uma hegemonia provisória, como estabilização do poder e que ele sempre acarreta alguma forma de exclusão. Idéias de que o poder poderia ser dissolvido por meio de um debate racional e de que a legitimidade poderia ser baseada na racionalidade pura são ilusões que podem colocar em risco as instituições democráticas. O que o modelo da democracia deliberativa está denegando é a dimensão da “indecisibilidade” e da indefectibilidade do antagonismo, que são constitutivas do político. Ao postularem a disponibilidade de uma esfera pública não-exclusiva de deliberação em que se poderia obter um consenso racional, os autores que defendem tal modelo negam o caráter inerentemente conflitual do pluralismo moderno. Eles são incapazes de reconhecer que pôr fim à deliberação sempre resulta de uma decisão que exclui outras possibilidades e pela qual não se deve deixar de assumir responsabilidade com o apelo a comandos de regras gerais ou princípios. Eis porque uma perspectiva como o “pluralismo agonista”, que revela a impossibil dade de estabelecer um consenso sem exclusão, é de fundamental importância para a política democrática. Ao precaver-nos contra a ilusão de que uma democracia perfeitamente bem-sucedida possa ser alcançada, força-nos a manter viva a contestação democrática. Abrir caminho para o dissenso e promover as instituições em que possa ser manifestado é vital para uma democracia pluralista e deve-se abandonar a própria idéia segundo a qual poderia haver um tempo em que pudesse deixar de ser necessário, pois que a sociedade seria a tal ponto bem-ordenada. Uma abordagem “agonística” reconhece os limites reais de tais fronteiras e as formas de exclusão que delas decorrem, ao invés de tentar disfarçá-los sob o véu da racionalidade e da moralidade. Compreendendo a natureza hegemônica das relações sociais e identidades, nossa abordagem pode contribuir para subverter a sempre presente tentação existente nas sociedades democráticas de naturalizar suas fronteiras e “essencializar” as suas identidades. Por essa razão, ele é muito mais receptivo do que o modelo deliberativo à multiplicidade de vozes que as sociedades pluralistas contemporâneas abarcam e à complexidade de sua estrutura de poder. Chantal Mouffe (mouffec@wmin.ac.uk) é Professora de Teoria Política na Universidade de Westminster (Inglaterra) e cientista política formada pelas universidades de Louvain, Paris e Essex. Lecionou em diversas universidades da Europa, América do Norte e América Latina; organizou os livros Gramsci and Marxist Theory, Dimensions of Radical Democracy, Deconstruction and Pragmatism e The Challenge of Carl Schmitt; é co-autora (com Ernesto Laclau) de Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics (1985) e autora de The Return of the Political (1993), The Democratic Paradox (2000) e On the Political (2005). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENHABIB, S. 1996. Toward a Deliberative Model of Democratic Legitimacy. In : _____. (ed.). Democracy and Difference. Princeton : Princeton University. COHEN, J. 1998. Democracy and Liberty. In : ELSTER, J. (ed.). Deliberative Democracy. Cambridge, Mass. : Cambridge University. DOWNS, A. 1957. An Economic Theory of Democracy. New York : Harper & Row. GRAY, J. 1995. Enlightenment’s Wake : Politics and Culture at the Close of the Modern Age. London : Routledge. HABERMAS, J. 1991. Further Reflections on the Public Sphere. 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