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domingo, 2 de outubro de 2022
Espinosa Coerência e comunidade em Espinosa
https://philarchive.org/archive/OLICEC
Oliveira, Fernando Bonadia de. Coerência e comunidade em Espinosa. 2015. 267f. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
Este trabalho desenvolve uma investigação sobre as noções de coerência e comunidade nas obras de
Bento de Espinosa (1632-1677), em especial na Ética demonstrada em ordem geométrica. A noção
de coerência, entendida como modo pelo qual as partes da natureza se relacionam para compor o
todo do universo, é um problema central em toda a história da filosofia. Espinosa também se
posicionou em relação a essa questão, formulando uma teoria que procura explicar a relação entre
as partes do universo sem recorrer a nenhuma causa exterior a ele, configurando assim uma filosofia
da imanência. Nessa perspectiva, o objetivo da pesquisa consiste em mostrar como o problema da
coerência apareceu em diferentes campos da obra espinosana, sendo sempre solucionado através de
uma mesma explicação imanente da natureza, que se estabeleceu definitivamente com a introdução
da noção de comum na cadeia dedutiva da Ética. Para isso, partimos de uma perspectiva histórica e
examinamos inicialmente algumas cartas de Espinosa, verificando como a pergunta sobre a
coerência da natureza foi ali respondida. Posteriormente, ao analisar a Ética, apresentamos como,
em cada de uma de suas cinco partes, a ideia de comunidade se faz presente, emergindo tanto no
campo especulativo quanto no campo prático.
O problema da relação entre as partes e o todo atravessa a história da filosofia. As filosofias
que se colocaram sob a perspectiva da transcendência tiveram de solucionar o problema da
relação entre as partes e o todo da natureza mediante o recurso a uma causa exterior, um
Deus ou certa entidade que, de fora do mundo, cria o mundo e todas as coisas que nele
habitam. O modo pelo qual esse ser ordena e coordena cada parte do todo discrepa em cada
forma transcendente de pensamento a mobilizar intermináveis debates. Já as doutrinas que
pretendem se colocar sob a perspectiva da imanência não podem recorrer a uma causa
exterior; precisam, ao contrário, de um fundamento interno, de uma lógica intrínseca ao
próprio real que opere de maneira autorregulada, sem carecer da ação de algo a intervir de
fora.
O filósofo Bento de Espinosa, no século XVII, decidiu-se pela segunda alternativa
e, por isso, foi associado com muita razão por Yirmiyahu Yovel ao passado pré-socrático
ou pré-cristão da filosofia, tempo em que as concepções de mundo buscavam se afastar da
mitificação da natureza. De acordo com o comentador, Espinosa retomou a ideia de
imanência abandonada desde Platão, dando a ela uma renovada fundamentação1
.
A polêmica em torno da relação entre parte e todo da natureza – o que será
chamado, ao longo deste trabalho, de “problema da coerência” – acompanhou toda a
produção de Espinosa, entendida como produção de uma filosofia da imanência.
O objetivo do trabalho ora proposto consiste em mostrar como o problema da
coerência apareceu em diferentes domínios da obra espinosana, sendo sempre solucionado
através de uma mesma explicação imanente da natureza, que se consolidou com a
introdução da ideia de comunidade na cadeia dedutiva da Ética. “Coerência” não deve,
pois, ser compreendida aqui em registro lógico, como indicador de certa teoria da verdade,
nem como vínculo que une sujeito e predicado em dado raciocínio2
. Do mesmo modo,
1 Yovel, Y. Marx's ontology and Spinoza's philosophy of immanence. Studia Spinozana – an international and
interdisciplinary series. Würzburg: Königshausen & Neumann, vol. 9, 1993, p. 218.
2 O trabalho não discute, por consequência, temáticas relativas ao afastamento ou à aproximação da
epistemologia espinosana de uma teoria coerentista da verdade. Tal matéria, já estudada entre alguns
comentadores de Espinosa, não será aqui posta em questão (sobre esse ponto, cf. Gleizer, M. Ideia adequada,
holismo semântico e verdade como coerência em Espinosa. In: Revista Analytica, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2,
2009, p. 65-85). Igualmente, a noção de coerência não será tomada especificamente na acepção da palavra
que remete à relação entre sujeito e predicado; em certa passagem do TEI sobre natureza das ficções (§62;
10
“comunidade” não designa, em especial, algum tipo de coletivo humano ou sociedade
comum de homens3
, mas o ser comum das coisas, que emerge no espinosismo em diversos
contextos, sempre pondo em relação as partes de um todo4
.
Ao situar o pensamento espinosano na breve história da imanência, Yovel nos
convenceu a atentar aos primeiros passos da filosofia, e a repor as teorias mais antigas da
coerência, tendo por objetivo descobrir como o autor da Ética se posiciona em relação a
esse debate original. Para tanto, foi necessário revelar como as críticas de Sócrates e de
Aristóteles combateram as explicações imanentes dos primeiros filósofos, e de que forma,
ao desqualificá-los, deram origem à necessidade de um transcendente capaz de explicar
todos os nexos do mundo.
Anaxágoras ofereceu a ação liberadora da Inteligência (Nous) como instrumento
imanente de explicação para a articulação entre os infinitos elementos existentes na
natureza. Platão e Aristóteles, porém, encontraram dificuldades na doutrina de Anaxágoras;
em todas as críticas que lhe fizeram, denunciaram a ausência de algum princípio moral ou
finalista na ação da Inteligência, e a condenaram como fenômeno meramente mecânico,
aleatório e indeterminado.
De nossa parte, ao recolocar o pensamento espinosano na tradição da filosofia
antiga não tivemos em mira empreender um longo desvio de cunho simplesmente
comparativo, apontando possíveis marcas da tradição pré-socrática em Espinosa, mas
detectar qual é o nervo central da “nova e poderosa sistematização” que o filósofo, no
século XVII, conferiu à imanência. A fim de não incorrer em nenhuma negligência
metodológica, sobretudo o anacronismo, é importante reconhecer que a consideração da
filosofia espinosana no nível da filosofia pré-socrática não significa tomá-la fora de seu
próprio tempo. Ao invés disso, considerando Espinosa em seu tempo, o mostraremos em
busca de um sistema que, protegido das críticas dos defensores maiores da transcendência,
viesse a produzir um saber blindado contra toda forma de ignorância.
GII, 24), o próprio filósofo emprega o nome “coerência” nesse sentido. Ele escreve: “(...) se falamos, por
acaso, de homens que repentinamente são transformados em animais, isso é dito de modo muito geral, de
maneira que não se apresenta em nossa mente nenhum conceito, isto é, nenhuma ideia ou coerência entre
sujeito e predicado (idea, sive cohaerentia subjecti et praedicati)”.
3 A esse tipo de comunidade se refere Alexander Matheron na quarta parte do livro Individu et communauté
chez Spinoza (Paris: Minuit, 1969).
4 A noção de comunidade, dada sua generalidade, abraça a multiplicidade de maneiras pelas quais o ser
comum das coisas é tomado nas deduções da Ética; veja-se, por exemplo, as expressões algo em comum,
noção comum, direito comum, consenso comum etc. frequentemente empregadas pelo filósofo.
11
Como este trabalho se inicia com a análise dessa problemática, o primeiro capítulo
do texto possui um acento marcadamente histórico. A pertinência da discussão sobre a
coerência na Antiguidade para os fins deste estudo é explicitada no decorrer do capítulo em
pontos que dão a conhecer como o nome de Espinosa foi lançado pela crítica de sua época,
especialmente por Leibniz, ao universo das investigações pré-socráticas.
Se Leibniz, como veremos, relegou Espinosa ao grupo dos partidários do puro
mecanicismo e o identificou, negativamente, ao naturalismo neo-estoico, Nietzsche
apresentou-nos uma leitura positiva da cosmologia de Anaxágoras5
, muito mais valiosa
para o intento de situar o pensamento espinosano na tradição filosófica antiga. Segundo ele,
o Nous é um exemplar precioso do mais profundo espírito trágico, afinal nele se anuncia a
busca da negação da ordem moral do mundo, que patrocinaria, posteriormente, “um
milênio e meio de cultura transcendente”. Espinosa, como o próprio Nietzsche admitiu,
também se recusou a introduzir a moral na ordem da natureza e, por conseguinte, conforme
demonstraremos, pode ser pensado na vizinhança dos pré-socráticos.
Além de se aproximar da tradição pré-socrática, Espinosa tirou proveito das escolas
helenísticas formadas no momento em que as mentalidades se recompuseram do “desenlace
sufocado” dado por Aristóteles à filosofia6
.
O primeiro sinal disso é a leitura das cartas trocadas entre ele e Henry Oldenburg, o
Secretário da Royal Society de Londres. A correspondência que travaram atravessou todo o
período de composição da Ética; embora tenha sido intermitente, foi sempre acompanhada,
em algum nível, da discussão a respeito da coerência.
Objeto por excelência do segundo capítulo, esse especialíssimo trânsito de cartas
entre Holanda e Inglaterra, enleado a notícias científicas e trocas de informações políticas,
contém um número enorme de passagens em que Espinosa se reporta a raciocínios
similares aos da filosofia do jardim e da filosofia do pórtico. Da primeira à última carta, os
correspondentes avançaram da discussão metafísica em torno das primeiras páginas da
5 Essa mudança de perspectiva em relação ao período pré-socrático é bem compreensível e já foi notada por
diversos historiadores. O conhecimento da filosofia pré-socrática no tempo de Espinosa e Leibniz era muito
diferente daquele que os historiadores (e filósofos como Hegel e Nietzsche) passaram a ter na segunda metade
do século XIX, quando os escritos do período grego “trágico” começaram a ganhar uma armadura filológica
mais rigorosa e completa.
6 Marx, na primeira linha de sua tese de doutorado, escreve: “Parece acontecer à filosofia grega o que não se
deve suceder numa boa tragédia: apresentar um desenlace sufocado. Com Aristóteles, o Alexandre Magno da
filosofia grega, parece findar na Grécia a história objetiva da filosofia” (Marx, K. Diferença entre as filosofias
da natureza em Demócrito e Epicuro. Tradução: E. Bini & A. Venâncio. São Paulo: Global, 1985, p. 17).
Ética em composição à discussão das principais polêmicas disseminadas pelo Tratado
Teológico-Político.
Em todas as etapas desse diálogo, a coerência da natureza foi problematizada em
vários campos do conhecimento: a metafísica, a física, a política, a biologia e a ética.
Examinamos, com foco voltado à noção de coerência, as críticas de Oldenburg às primeiras
linhas da Ética e as objeções de Espinosa ao ensaio publicado por Robert Boyle. Em
seguida, empenhamo-nos em compreender a definição de cohaerentia dada na famosa
Carta 32 de maneira muito próxima à noção de convenientia.
Feita essa problematização inicial, os capítulos restantes envolvem o estudo da
noção de comunidade no corpo da obra maior de Espinosa. Na terceira etapa do trabalho,
partindo da constatação de que a Ética é também um todo composto de cinco partes,
procuramos evidenciar como se ligam os termos conveniência e comércio no pensamento
espinosano, e também como ambos favorecem o entendimento da gênese da expressão “ter
algo em comum” na ordenação geométrica do livro.
Os dois capítulos finais exploram o lugar das expressões associadas à ideia de
comunidade, tanto nas primeiras quanto nas últimas partes da Ética. O escopo dessa parte
da tese consiste em demonstrar como a mesma ordenação de nomes, conceitos e
argumentos disposta por Espinosa no plano da metafísica é utilizada identicamente no
plano da política, e como é possível compreender o processo de elaboração de seu
pensamento sem as rupturas que os comentadores frequentemente enxergam quando
ponderam a construção de seu projeto filosófico.
O trabalho vai gradualmente se deslocando dos problemas descortinados pelo
pensamento antigo para incidir em uma temática profundamente contemporânea,
concernente ao significado atribuído à noção espinosana de “comum” por filósofos
políticos cuja produção bibliográfica vem aumentando nos últimos quinze anos. Esse
significado se deve fundamentalmente à resposta dada pelo filósofo para a pergunta sobre a
coerência e por sua defesa racional da imanência.
Ao fim, pretendemos ter esclarecido, entre outras coisas, que na filosofia de
Espinosa coerência e comunidade não são conceitos estáticos a descrever unicamente
regras ou leis de concordância natural entre as coisas, mas o fundamento do que
definiremos mais adiante como produção de totalidade, produção que se faz tanto mais
13
intensa para os homens em toda a natureza, quanto mais eles instituem direitos comuns na
política.
14
CAPÍTULO 1: UM PROBLEMA DE COERÊNCIA
Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m’espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
anda o mundo concertado.
(Camões)
1.1. O problema
O desconcerto do mundo, cantado pelo poeta Luís de Camões, coloca em questão a
desconformidade dos acontecimentos da vida. Os bons, merecedores da mais alta
tranquilidade da alma, enfrentam graves turbulências; os maus, indignos da felicidade,
nadam contentes nos mares da vida. Sinal maior de que a existência reina em desacerto foi
o destino do próprio poeta: ciente do desconcerto, ele escolheu ser mau e alçar assim o bem
mundano “tão mal ordenado”. Tendo sido mau e punido, amargou a pena de viver um
mundo que só para ele foi imprevisivelmente justo. O desarranjo reinante, capturado pelo
verso camoniano, contempla, do ponto de vista moral, a desafortunada ordenação entre as
partes da natureza. Os versos não fazem alusão à autoridade de quem as ordenou tão mal,
apenas lamentam.
Voltaire, no Poema sobre o desastre de Lisboa7
, não só manifesta o desajuste do
mundo, como também escancara sua face mais cruel e sagrada. As vítimas do abalo
ocorrido coincidentemente no dia de Todos os Santos, com seus “membros dispersos”,
entre mulheres e infantes “uns nos outros amontoados”, foram todas submetidas a um
extremo sofrimento, uma calamidade total8
. A Igreja, representada por membros da
Companhia de Jesus, afirmou que o tremor na capital era uma punição de Deus não só
pelos pecados cometidos no reino português, mas também em virtude da rala devoção dos
7 A referência é ao horripilante terremoto seguido de tsunami que abateu a capital portuguesa em 1755,
deixando aproximadamente quinze mil mortos, e mais de vinte mil construções em ruínas.
8 Voltaire. Poème sur le désastre de Lisbonne. In : Mélanges. Ed. Jacques van den Heuvel. Paris: Gallimard,
1961, p. 304.
15
governantes. Um grande líder dos jesuítas, Gabriel Malagrida, afamado no Brasil e em
Portugal, condenou severamente aqueles que construíam abrigos para os desamparados e
recomendou a todos, com ênfase, fazer penitências e procissões. Pombal, contra a
Companhia, defendeu a bandeira da superação da tragédia e preferiu aproveitar a
oportunidade e reconstruir a cidade de acordo com o espírito intelectual e econômico da
época. O primeiro-ministro do rei D. João propalou, afinado ao discurso iluminista, que
tudo se devia apenas a causas naturais, e mais nada9
.
Voltaire e Rousseau discutiram com a maior profundidade (e para além da mera
lamentação) a questão teológica e filosófica da providência envolvida nesse caso
específico. Rousseau se empenhou em livrar da culpa o divino: atribuiu o terremoto a
razões naturais, ajuntando a elas a responsabilidade dos próprios cidadãos que, ao
construírem casas em um local tão geologicamente desfavorável, nada diferente podiam
esperar10
.
Voltaire pergunta se acaso a destruição da cidade foi obra de um “Deus livre e bom”
que, do alto de sua bondade, punia os maus. Também contra a Companhia, ele indaga:
haveria mais vícios em Lisboa do que em Londres e Paris? “O Universo inteiro, sem este
abismo infernal, sem engolir Lisboa, teria estado em maior mal?”. O autor evidencia sua
indignação relativamente à ideia de um Deus justo que, por meio de uma “benévola
escolha”, tudo determina e, apesar disso, não impede que uma catástrofe aconteça: todo o
poema repele, com veemência, o dito dos filósofos segundo o qual “tudo está bem” e “tudo
é necessário”11. Seu foco mais evidente – a teoria do otimismo – recai naturalmente sobre
Leibniz.
Leibniz nunca me ensina por quais nós invisíveis,
No mais bem ordenado dos universos possíveis,
Uma desordem eterna, um caos de infelicidades,
Aos nossos vãos prazeres mistura certas dores que são verdades,
Nem por que é que o inocente, tal como o culpado,
Sofre do mesmo modo este mal desgraçado12
.
9 Marques, J. The paths of providence: Voltaire and Rousseau on the Lisbon earthquake. Cadernos de
História e Filosofia da Ciência. Campinas-SP, v. 15, jan/jun 2005, p. 34-35.
10 Rousseau, J.-J. Carta sobre a providência. In: Escritos sobre a religião e a moral. Tradução J. Oscar de
Almeida Marques. Campinas-SP: IFCH-UNICAMP. Cadernos de Tradução, n. 2, agosto de 2002, pp. 7-22.
11 Voltaire, op. cit., p. 309.
12 Idem, p. 308.
16
As amarras leibnizianas do universo mais bem ordenado possível tecem a realidade
como “uma desordem eterna”, um autêntico “caos de infelicidades” e misturam dores de
verdade a prazeres inúteis. Os “nós invisíveis” que atam as partes todas do mundo fazem do
culpado e do inocente o mesmo alvo de uma idêntica sentença, igualmente desgraçada para
ambos. Os argumentos de Leibniz para a sustentação da tese do melhor dos mundos são
bem conhecidos:
Da perfeição suprema de Deus depreende-se que, ao produzir o universo, Ele
terá escolhido o melhor plano possível, onde haja a maior variedade com a maior
ordem, com o melhor ordenamento do terreno, do lugar e do tempo (...). A
sabedoria suprema de Deus levou-O a escolher, sobretudo, as leis do movimento
mais bem ajustadas e mais convenientes às razões abstratas e metafísicas (...).
Tudo nas coisas está ordenado de uma vez por todas com tanta ordem e
consonância quanto é possível, porque a suprema sabedoria e bondade só pode
agir com uma harmonia perfeita (...)13
.
Na concepção leibniziana, todos os mundos possíveis, concorrendo no intelecto de
Deus, pretendiam à existência cada um mediante as potencialidades de suas perfeições14;
como é sumamente perfeito, Deus escolheu o mundo que apresentou a maior variedade e a
melhor ordenação, optando pelas leis mecânicas mais convenientes e adequadas à melhor
harmonia possível.
Como acreditar – inquire Voltaire – que a melhor harmonia possível presente no
intelecto de um Deus perfeitíssimo seja de tal maneira cruel que Lisboa esteja em ruínas,
mas se dance em Paris?15
O terremoto de Lisboa retrata uma situação exemplar para se problematizar a
coerência entre partes e todo, afinal, esse episódio coloca em pauta, a um só tempo, a
determinação da ordem física e a instituição da ordem moral do mundo: um sismo, todos
sabem, é um confrontar-se de partes de placas rochosas subterrâneas que, seguindo certas
leis de movimento naturalmente dadas, chocam-se umas com as outras; igualmente, implica
um problema moral, na medida em que resulta em inúmeras mortes de inocentes e promove
toda sorte de dores tanto aos bons quanto aos maus, indiferentemente.
13 Leibniz, G. Princípios da Natureza e da Graça fundados na Razão (§§10-11; §13). In: Obras escolhidas.
Tradução: A. Borges Coelho. Lisboa: Horizonte, s/d., p. 9-10.
14 Leibniz, Princípios da Natureza..., op. cit, p. 9.
15 Voltaire, op. cit., p. 302.
1 O desastre que se eternizou na memória dos europeus no século XVIII mobiliza,
pois, o problema da coerência tanto no plano físico quanto no plano moral. A coerência ou
a falta de coerência da natureza assaltou os homens em todos os tempos históricos, de modo
que desde as primeiras especulações dos filósofos pré-socráticos, ou mesmo antes deles,
com as explicações mitológicas para a origem do universo, o problema da relação entre
parte e todo foi profundamente discutido.
1.2. Um modelo pré-socrático16
Aristóteles, no primeiro livro da Metafísica, ao constatar que “a sabedoria é uma
ciência a respeito de certos princípios e causas”, regressa a Hesíodo e à base de sua
cosmogonia que propunha a terra como “o primeiro corpo que veio a ser”17. No início,
segundo o poeta, só havia Caos; depois, conformando uma primeira ordem ao mundo,
surgiu Terra18
.
Quando, porém, como explica Aristóteles, os homens passaram a se admirar de sua
ignorância a respeito da natureza e do universo, eles foram aprimorando suas questões
16 Doravante serão feitas citações de pensadores pré-socráticos, Platão e Aristóteles.
Para a citação dos pré-socráticos utilizaremos as diversas traduções oferecidas pela coleção Os
Pensadores (Pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1999). Em um único caso, que será pontualmente
assinalado, empregaremos a tradução preparada por Gerd Bornheim (Os filósofos pré-socráticos. São Paulo:
Cultrix, 1998). Em todas as citações, informaremos a paginação da consagrada edição Diels-Kranz, sinalizada
por “DK”. Para as citações de Platão e Aristóteles que remetem aos pré-socráticos também ofereceremos a
numeração de página da edição Diels-Kranz (antecedida pela mesma sigla). Neste capítulo, sempre que
houver a indicação “Os Pensadores”, seguida de número de página, estaremos nos referindo ao volume sobre
os pré-socráticos.
As obras de Platão citadas serão as seguintes: Apologia de Sócrates (Tradução: S. Regino. São Paulo:
Martin Claret, 2009; edição bilíngue), Sofista (Tradução: J. Paleikat & J. Cruz Costa. São Paulo: Abril
Cultural, 1983), Crátilo (Tradução: L. Souza. In: Souza, L. Crátilo de Platão – estudo e tradução. 2010.
Dissertação [Mestrado em Letras]. Universidade de São Paulo, São Paulo), Protágoras (Tradução: A. Lobo
Vilela. Lisboa: Inquérito, s/d), Fédon (Tradução: C. Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 2011).
Finalmente, listamos as edições de Aristóteles empregadas: Metafísica I, II e III (Tradução: L.
Angioni. Campinas-SP: IFCH/Unicamp, 2008; Col. Cadernos de Tradução, n. 15); Metafísica XII (Tradução:
L. Angioni. In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência. Campinas-SP, v. 15, jan./jun. 2005); Física I e II
(Tradução: L. Angioni. Campinas-SP: IFCH/Unicamp, 2008; Col. Cadernos de Tradução, n. 1); Física III e
IV (Física. Traducción: G. Echandía. Madrid: Gredos Editorial, 1995); Sobre a geração e corrupção (On the
generation and corruption. Translation: H. Joachim. In: Barnes, J. The complete works of Aristotle , vol. 1.
Princeton: Princeton University Press, 1984); Ética a Nicômaco (Tradução: L. Vallandro & G. Bornheim. São
Paulo: Abril Cultural, 1973); e Retórica (Tradução: M. Alexandre Júnior, P. Alberto & A. Pena. Lisboa:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005).
17 Aristóteles, Metafísica I, 8, 989 a 10.
18 Os versos da Teogonia que inspiraram a afirmação de Aristóteles são precisamente os seguintes: “Sim bem
primeiro nasceu Caos, depois também / Terra de amplo seio (...)” (cf. Hesíodo, Teogonia. Tradução: J.
Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 91).
18
quanto à cosmogonia, e começaram a investigar impasses sobre dificuldades maiores,
“sobre as afecções da lua, do sol e dos astros, e sobre a geração do todo”19
.
Os pensadores anteriores a Sócrates e Platão se dedicaram, de fato, a meditar sobre
o princípio material do mundo. De acordo com Aristóteles20, os primeiros homens que
viveram unicamente voltados ao ócio e ao lazer, dispondo de tempo para pensar, atribuíram
a causa de todo o cosmos ou a um único elemento, ou a um conjunto de elementos. Assim,
ele relembra que Tales propôs a água como princípio; Anaxímenes e Diógenes o ar; Hipaso
e Heráclito, o fogo; Anaximandro o ilimitado (apeiron); Pitágoras, o número; Parmênides,
o fogo e a terra; Empédocles os quatro elementos: água, ar, fogo e terra (mais amizade e
discórdia, formando um total de seis princípios)21
.
Os pré-socráticos tardios – os que se aproximam mais dos tempos da Grécia clássica
– tiveram como bagagem estas concepções cosmológicas que estavam sendo produzidas
nas cidades gregas de Mileto, Samos, Éfeso, Eleia e Agrigento por volta do século VI antes
da era cristã. Ainda que tais pensadores e muitos outros compusessem a imagem da mais
pura sabedoria, absorvida dos povos antigos (egípcios, babilônicos, mesopotâmicos,
caldeus etc.), duas teorias se digladiavam e colocavam, em conformidade com a tradição,
os problemas fundamentais com os quais toda a filosofia posterior teve de lidar: de um
lado, o que se chamou de doutrina imobilista (geralmente referida a Parmênides e aos
eleatas), e de outro a doutrina mobilista (frequentemente referida a Heráclito).
Conquanto estudos recentes mostrem que entre as filosofias de Parmênides e
Heráclito não há necessariamente a contraposição radical que até hoje domina os manuais
de filosofia22, colocava-se para o século V, sob este prisma, o delicado impasse de fazer
convergirem as duas concepções sem que se perdesse, de cada uma, a sua natureza
fundamental. Ao lado dos eleatas, era necessário manter a tese fundamental do ser uno, isto
é, a concepção segundo a qual o ser é e o não ser não é. Ao lado de Heráclito, era
necessário explicar a multiplicidade dos seres e do vir a ser de cada coisa, ou seja, dar conta
19 Aristóteles, Metafísica I, 2, 982 b 15-16.
20 Cf. Aristóteles, Metafísica I, 3, 983 b 33 a 984 a 4.
21 Aristóteles, Sobre a geração e corrupção I, 1, 314 a 17-19. Na Metafísica, Aristóteles explica que o número
era para os pitagóricos um fundamento material; era, pois, “matéria dos entes” (Metafísica I, 5, 986 a 15-16).
Também o ilimitado de Anaximandro parece possuir o estatuto de matéria ou elemento, como no dizer de
Nietzsche, um “elemento primordial” (cf. Nietzsche, F. A Filosofia na idade trágica dos gregos. Tradução:
M. Inês de Andrade. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 35).
22 Cf. Bocayuva, I. “Parmênides e Heráclito: diferença e sintonia”. Kriterion. Belo Horizonte-MG, n. 112,
dez. 2010, p. 399-410.
19
do múltiplo, não como mera aparência, tal como reivindicavam Parmênides e Melisso, mas do múltiplo, não como mera aparência, tal como reivindicavam Parmênides e Melisso, mas
como uma realidade.
Esse debate entre mobilismo e imobilismo, como vulgarmente se costumou chamar,
acompanhou a filosofia posterior, e envolveu, igualmente, as conjecturas em torno da noção
de conhecimento, para além da dimensão meramente física. Sócrates, no final do Crátilo,
incita uma crítica ao mobilismo extremo que, ao negar qualquer fixidez aos objetos da
natureza, impede a própria formação do conhecimento23. Como se nota, as duas teorias,
postas como diametralmente contrárias, deveriam ser conciliadas.
É justamente no entrechoque dessas duas tendências que as filosofias de
Anaxágoras de Clazômena e Demócrito de Abdera se formaram no século V; ambas
tiveram que dar conta dos impasses impostos entre o ser e o vir a ser. O atomismo de
Leucipo e Demócrito foi discutido no século XVII dentro do círculo científico ao qual
Espinosa pertencia e será analisado, portanto, mais adiante. Anaxágoras ocupa um lugar
essencial na história da filosofia não só pelas circunstâncias históricas e geográficas que
vivenciou, mas também pela pluralidade de interpretações que sua cosmologia disseminou
ao longo dos séculos; sua doutrina cultiva um vocabulário muito similar (senão idêntico) ao
vocabulário filosófico disposto por Espinosa e pelo século XVII no que tange à questão da
coerência: é com Anaxágoras que os termos “união”, “separação”, “necessidade” e
“acidente/acaso”, “semelhança” e “dessemelhança”, “identidade” e “diferença”, “todo” e
“parte” são pela primeira vez colocados de uma forma complexa.
Embora de Clazômena (nascido em 500 a.C.), Anaxágoras fez fama em Atenas,
onde chegou com cerca de vinte anos. De imediato, começou a participar de grandes
círculos intelectuais da cidade, frequentando os mesmos espaços que Temistócles,
responsável por ampliar de maneira significativa o conhecimento grego sobre os mares.
Atraindo a atenção de todos por ser jovem e muito sábio, ele se destacou como professor de
Péricles e como autor de tratados de filosofia natural24; foi um dos grandes responsáveis por
23 “Mas nem é possível falar de conhecer, Crátilo, se todas as coisas mudam de forma e nada permanece”
(Crátilo, 440a).
24 Gershenson, D. & Greenberg, D. Anaxagoras and the birth of scientific method. N. York, Toronto &
London: Blaisdell, 1964, p. 1, 3-4.
20
trazer toda a tradição dos debates cosmológicos para Atenas, a cidade que se tornava então,
graças a Péricles, uma liderança política25
.
Anaxágoras, com sua cosmogonia, situa-se entre os primeiros a teorizar a relação
entre as partes do universo, avançando em relação às explicações que se restringiam a
oferecer o princípio material do mundo. À luz da física, manteve a observação atenta e
cuidadosa dos fenômenos como base de seu método: nada escapava de sua percepção
capciosa, nem as estrelas durante a noite, nem o sol durante o dia; tempestades e terremotos
foram por ele estudados, bem como a totalidade do mundo orgânico e inorgânico26. Somada
ao pensamento dos atomistas, a filosofia de Anaxágoras representa o ponto mais elevado
deste modo de inquirir a natureza e refletir sobre causas e princípios. Não há como negar
que Heráclito, alguns pitagóricos e vários pensadores alinhados aos eleatas também tenham
indagado sobre a coerência da natureza; no entanto, é com o filósofo de Clazômena que
todas essas tendências parecem encontrar seu momento máximo de desenvolvimento;
depois dele, com as críticas que lhe foram feitas por Platão e Aristóteles, a filosofia
enveredará por outro caminho.
Antes de Anaxágoras, a escola de Mileto (com Tales, Anaximandro e Anaxímenes)
não passou da menção ao princípio material do mundo e de discussões sobre a natureza
desse princípio. No plano da física, Anaxágoras, assim como Empédocles, tinha em mente
manter a concepção ontológica dos eleatas, para a qual o ser é e o não ser não é, mas sem
abandonar, como fizera Parmênides e seus seguidores, a explicação da multiplicidade,
relegando-a ao estatuto de mera aparência.
Para a maioria dos intérpretes, o pensador de Clazômena fundamenta sua
cosmologia na ideia de que as causas da matéria são ilimitadas27
. Nous, isto é, a
Inteligência28
- uma matéria muito sutil – é para ele a causa do movimento, da separação e
da ordenação de todas as coisas existentes. Todas as coisas existentes, ilimitadas em
quantidade e em pequenez (tamanho), estavam a princípio absolutamente juntas, quando
essa Inteligência começou a separá-las. Diz-se que estavam “a princípio absolutamente
25 Idem, p. 2.
26 Idem, p. 5.
27 O termo “ilimitadas” traduz aqui ápeira, literalmente, “sem limites”. No entanto, costuma-se traduzir por
“infinitas” (cf. Os Pensadores, p. 221) ou “indefinidas”, em alguns casos.
28 Nous será traduzido aqui como “Inteligência”, porém, há diversas traduções para esta palavra: “Espírito”,
“Entendimento”, “Mente” etc.
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juntas”, pois as coisas sempre permanecem juntas, ainda que – depois da ação do Nous –
fiquem mais ou menos separadas.
No fragmento 11 do tratado anaxagoreano Sobre a natureza, o filósofo apresenta
sua mais notória tese, a de que “em cada coisa há uma porção de cada coisa, exceto no
Nous”
29. Desse modo, em sua concepção, tudo é parte de tudo e somente a Inteligência
permanece homogênea. Embora para muitos comentadores o Nous seja, na verdade, o único
princípio da cosmogonia de Anaxágoras, sua aparição no quadro do pensamento filosófico
pré-socrático vai além desse dado, pois faz emergir duas grandes descobertas: a primeira
consiste na admissão de um único princípio ordenador e inteligente de todas as partes da
natureza, reconhecidas agora como multiplicidades reais; a segunda corresponde ao sentido
em que esse princípio motriz opera: separando de cada coisa o que ela tem de diferente de
si mesma e reunindo, em um processo infindo, o que é comum a cada uma delas. Esse
movimento impresso pela Inteligência sobre todas as coisas as separa sempre mais, mas
nunca absolutamente. Dois fragmentos de Sobre a natureza nos informam acerca disso:
Fragmento 8: As coisas neste cosmos não estão isoladas, nem separadas com
machado umas das outras, nem o quente do frio, nem o frio do quente.
Fragmento 13: E quando o Espírito (Nous) começou o movimento, separou-se de
tudo o que era posto em movimento; e tudo o que o espírito pôs em movimento
foi separado. E quando as coisas foram postas em movimento e separadas, a
revolução separou-as ainda mais umas das outras30
.
O primeiro fragmento, concordando com a tese da presença de todas as coisas em
todas as coisas, assegura que nada no cosmos está isolado (isto é, sem conexão com o
circundante) ou separado por ruptura (como com um machado). O segundo marca um
princípio temporal para o movimento (“quando o espírito começou o movimento”), e cria
uma identidade lógica entre mover e separar, considerando que ambas as ações se estendem
cada vez mais no tempo, embora nunca separe as coisas definitivamente (“a revolução
separou-as ainda mais umas das outras”).
O modo pelo qual as coisas estão separadas (fragmento 8) e o tempo em que essa
separação se deu, ainda que de forma inconclusa (fragmento 13), leva Anaxágoras a admitir
– para grande parte dos comentadores – a tese de um caos original, tal como no poema de
29 DK 59 B 11. Os Pensadores, p. 223.
30 A citação está conforme a tradução de Gerd Bornheim (DK 59 B 8, 13). Em Os Pensadores, p. 222 e 223.
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Hesíodo; obriga-o, ademais, a ter que explicar como agiu certa vez essa Inteligência, a
única coisa que a nada se mistura, sendo totalmente ilimitada, autônoma, homogênea e por
si mesma (como se lê no fragmento 12).
O oitavo capítulo da Metafísica I aperfeiçoa o entendimento desse caos
anaxagoreano. Nessa passagem, Aristóteles critica a cosmogonia de Anaxágoras por pensar
as coisas como originalmente juntas, reivindicando aquela prioridade do não-misturado.
Para o estagirita, é
de vários modos absurdo afirmar que todas coisas estavam misturadas no início
– porque é preciso que elas estivessem previamente dadas como não-misturadas,
e porque não é verdade que qualquer coisa naturalmente é apta a se misturar com
qualquer coisa (...)31
.
Anaxágoras construiu, como se percebe pela crítica aristotélica, uma ideia de caos
diferente do caos mitológico, de modo a não defini-lo mais como não-ser, mas como um ser
imóvel, que não vem a ser nem deixa de ser, não se gera nem se corrompe, que permanece
desde sempre eterno. Com isso, ele manteve a salvo o essencial da doutrina de Parmênides:
por mais que reconheça a existência de infinitas substâncias, nunca haverá mais ou menos
substâncias, elas sempre existirão em idêntica quantidade. Por outro lado, ele não relegará o
movimento, empiricamente perceptível, ao não-ser ou ao aparente: a mudança e o
movimento serão tidos como realidade, mobilizando as infinitas substâncias, ainda que não
sejam capazes, por si mesmos, de engendrar novos itens ou destruir sequer um deles.
O início do movimento (quando a Inteligência começou a mover e separar as coisas)
e o término do movimento (se ela finalmente vier a separar absolutamente tudo) são e
serão, sempre, desconhecidos pelos homens32. No entanto, é possível conhecer como a
Inteligência, sendo não-misturada, causa o movimento e ordena as coisas, dispondo-as
conforme as percebemos.
Aqui incide o pensamento segundo o qual “qualquer coisa é naturalmente apta a se
misturar com qualquer coisa”, tal como Aristóteles enuncia em sua crítica. Esse
31 Aristóteles, Metafísica I, 8, 989 b 4-9.
32 Cf. Fragmento 7: “Assim das coisas separadas não podemos conhecer a quantidade, nem na teoria, nem na
prática” (DK 59 B 7; Os Pensadores, p. 222). Nietzsche observa que, como a mistura originária era infinita, o
Nous precisa de um tempo infinito para desfazê-la por completo (cf. Nietzsche, A filosofia na idade trágica
dos gregos, op. cit., p. 95).
23
pensamento é formulado por Anaxágoras, da forma a mais clara que chegou à posteridade, no
fragmento 12 de Sobre a Natureza33. Nesse texto, ele explica o modo de operação da
Inteligência, começando por esclarecer que, se tudo está misturado em tudo e ela é a única
coisa homogênea, então não poderia estar misturada a nada, pois se estivesse ligada a um
item qualquer, estaria ligada a todos imediatamente. Portanto, embora reconheça que em
algumas coisas o Nous está incluído (cf. fragmento 11), de nenhuma forma pode-se dizer
que se mistura a isso que ele contém ou em que está contido. Trata-se da “mais fina de
todas as coisas e a mais pura; e tem todo conhecimento de todas as coisas e a maior força;
(...) tem poder sobre todas as coisas que têm alma, tanto as maiores como as menores”
(fragmento 12). O sentido da operação do Nous é o de ordenar um caos de coisas
misturadas, reunindo as “partes iguais” ou as “sementes” de cada coisa que integra o
universo. Isso faz surgir a teoria das sementes ou das homeomerias34, por meio da qual o
filósofo de Clazômena reivindica que, se tudo tem parte em tudo, o que caracteriza cada
coisa é aquilo que ela tem em maior quantidade. Assim, por exemplo, ouro é aquilo em que
existem muitas coisas (como cabelo, carne, osso etc.), mas predominantemente ouro.
Os homeômeros, de acordo com a tradição, passaram a designar sempre isso: os
compostos de partes exatamente iguais; uma coisa homeômera é encontrada quando, sendo
ela dividida infinitas vezes, o que resta é idêntico àquilo que era antes da divisão. As
homeomerias não são criadas nem destruídas, mas eternas; apenas parecem geradas e
corrompidas na medida em que se combinam e se diluem, mas, como já foi expresso, nem
vêm a ser nem deixam de ser. Diante disso, a direção do agir do Nous é mais claramente
apreendida. Para Simplício, Teofrasto a descreveu bem afirmando que
(...) na separação do ilimitado as coisas de origem comum eram levadas umas às
outras, e porque no todo havia ouro, gerava-se ouro, e porque havia terra,
gerava-se terra; e assim também cada uma das outras coisas, que não se
engendravam, mas já antes eram subjacentes35
.
33 Sobre o fragmento 12 e sua importância no conjunto dos fragmentos que nos chegaram de Anaxágoras, cf.
o longo comentário de Schofield, M. An essay on Anaxagoras. London/New York: Cambridge, 1980, p. 3-35.
34 O termo homeomerias, literalmente, “partes iguais” é provavelmente uma criação de Aristóteles ao
interpretar Anaxágoras. O próprio Anaxágoras parece ter usado a palavra “spermata” para se referir às
“sementes” de cada coisa.
35 DK 59 A 41. Os Pensadores, p. 216.
24
Esse dado é fundamental, porque evidencia que o sentido da ação do Nous (aquilo
que separa o ilimitado) se faz como aproximação de coisas comuns ou semelhantes; “tudo é
nutrido pelo semelhante”36. Além disso, ele expressa o primeiro momento da história da
filosofia em que se cria certa dinâmica de coisas em comum articulada a toda uma
maquinaria conceitual dedicada a explicar a coerência da natureza.
Temos, assim, não só a aparição de um princípio inteligente ordenador do caos
original, mas também uma compreensão da organização complexa das partes da natureza
através do argumento de que “cada homeomeria, semelhantemente ao todo, contém todas as
coisas já existentes, e que não são apenas infinitas, mas infinitas vezes infinitas (...)”37
.
1.3. As críticas de Sócrates
Desde esse momento, o termo ou mesmo a ideia de homeomeria povoará os estudos
sobre física e metafísica, habitando inclusive discussões de filosofia prática. Um exemplo é
o Protágoras de Platão, quando a noção de homeomeria (não o termo propriamente dito)
aparece ainda antes de Aristóteles. Nesse diálogo sobre a possibilidade ou a
impossibilidade de se ensinar a virtude, após uma longa exposição de Protágoras, Sócrates
aponta ao seu interlocutor algumas objeções. A primeira delas diz respeito à natureza das
partes que constituem a virtude: seriam elas partes iguais, como as partes do ouro (distintas
apenas quanto ao tamanho), ou como as partes do rosto (diferentes como o nariz, a boca, o
olho etc.)? O objetivo de Sócrates era saber se, para Protágoras, a virtude era una e
composta de partes diferentes como a justiça, a temperança e a piedade, ou se todas essas
qualidades eram apenas nomes diferentes de uma só coisa – a virtude – de modo que, tendo
efetivamente uma dessas qualidades, um homem possui imediatamente toda a virtude38
.
A noção de homeomeria se apresenta neste debate sobre a moral e, relacionada ou
não ao conceito físico de Anaxágoras, ela o expressa bem: a virtude tomada como algo
homeômero seria tal que uma vez alguém participando de qualquer parte dela (como a
justiça, por exemplo), teria imediatamente acesso a todas as demais (a piedade, a coragem
etc.), afinal todas as partes teriam parte em todas as partes.
36 Aristóteles, Física III, 4, 203 b 10; DK 59 A 45. Os Pensadores, p. 217.
37 Idem.
38 Platão, Protágoras, 329 c-e.
25
No decorrer do diálogo, seduzido pela maiêutica, Protágoras é obrigado a
experimentar a ironia de Sócrates. Inquirido pelo mestre de Platão, o sofista afirmou que as
partes da virtude eram diferentes, de tal forma que seria possível a alguém ter uma parte da
virtude e não outra, por exemplo, ser corajoso, mas não ser justo (isto é, participar da
coragem, mas não da justiça)39. Entretanto, pouco depois, embaraçado pelas perguntas
socráticas, ele foi obrigado a reconhecer que as partes da virtude são profundamente
semelhantes entre si, pois não poderia ser dito virtuoso um homem que comete uma
injustiça corajosamente, ou aquele que, sendo justo, comete uma impiedade40
.
É certo que Platão não invoca o nome de Anaxágoras para pensar esta questão no
Protágoras, mas no Fédon, ele é explicitamente evocado para receber a crítica que mais
fortemente pesará sobre seu nome ao longo de toda a tradição filosófica. Pode-se dizer,
aliás, que toda a tradição filosófica, ao menos no que tange à discussão sobre a coerência
entre as partes da natureza, se construiu à luz desta crítica: a ausência de uma teleologia na
ação do Nous e, mais especificamente, a falta de uma identificação entre o Nous e a ideia
(moral) de bem.
Antes de beber a cicuta, a certa altura do Fédon, Sócrates conta que ainda jovem
havia ouvido alguém dizer que Anaxágoras expusera em livro a teoria segundo a qual uma
Inteligência (Nous) seria a causa de tudo e coordenadora de todas as coisas. Encantado com
esse pensamento, Sócrates imaginou que o autor demonstrar-lhe-ia como essa mente
organizaria tudo em seu lugar, dispondo as coisas da melhor maneira possível e para o bem
comum; Anaxágoras não se limitaria a expor que a Terra era redonda ou plana, mas
mostraria o porquê de ser melhor uma forma em relação à outra. O desencanto, porém, se
deu quando ele foi estudar a cosmologia anaxagoreana e não encontrou o melhor como
causa única de tudo, e sim explicações físicas extravagantes que excluíam toda e qualquer
menção ao bem.
[Anaxágoras] não recorria à mente [Nous] para nada, nem a qualquer outra causa
para a explicação da ordem natural das coisas, só ao ar, ao éter, à água, e a uma
infinidade de causas extravagantes. Quis parecer-me que com ele acontecia
como com quem começasse por declarar que tudo o que Sócrates faz é
determinado pela inteligência, para depois, ao tentar apresentar a causa de cada
um dos meus atos, afirmar, de início, que a razão de encontrar-me sentado agora
39 Platão, Protágoras, 329 e.
40 Platão, Protágoras, 331 a
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