terça-feira, 18 de junho de 2024

Aristóteles e a metafísica do dinheiro

Aristóteles e a metafísica do dinheiro Aristóteles e a metafísica do dinheiro Jadir Antunes: professor do Colegiado do Curso de Filosofia da Unioeste. Trabalho apresentado como requisito parcial para ascensão profissional ao cargo de Professor Associado A – Unioeste PR. Banca examinadora: Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura – UFBA; Prof. Dr. Gilmar Henrique da Conceição – Unioeste e Prof. Dr. Rosalvo Schutz – Unioeste. Toledo, 26 de julho de 2013 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1. OS ANTECEDENTES ARISTOTÉLICOS DO DINHEIRO 2. ARISTÓTELES E O PROBLEMA DA JUSTIÇA 2.1 Definição geral de justiça 2.2 A justiça distributiva 2.3 A matematização da justiça distributiva 2.4 A justiça corretiva 2.5 A matematização da justiça corretiva 3. ARISTÓTELES E O DINHEIRO COMO MEIO DE TROCA 3.1 Os princípios gerais da troca 3.2 A proporcionalidade geométrica 3.3 A comensurabilidade dos bens pela chreia e o nomisma 4. A GÊNESE DO DINHEIRO: CHREIA VERSUS NOMOS 4.1 A relação entre chreia e nomisma 4.2 O modelo econômico da chreia 4.3 A natureza da solução aristotélica 4.4 O problema em torno da solução aristotélica 4.5 Representação versus substituição da chreia pelo nomisma 5. ARISTOTELES E O DINHEIRO COMO CAPITAL 5.1 O dinheiro como finalidade das trocas 5.2 A relação do dinheiro com a Política 5.3 A relação do dinheiro com a Metafísica 5.4 A relação do dinheiro com a Física 5.5 A relação do dinheiro com a escravidão do lar 6. MARX E O DINHEIRO 6.1 A crítica de Marx a Aristóteles 6.2 Marx e a physis-trabalho 6.3 O trabalho e as comunidades rurais do Mundo Antigo 6.4 O ouro-dinheiro como criação da physis-trabalho CONCLUSÃO INTRODUÇÃO O dinheiro tem sido o mais universal de todos os entes. Ele está em todos os lugares e em todos os tempos. Estudar o dinheiro, por isso, não é estudar qualquer ente, é estudar um ente absolutamente presente e determinante em nossas vidas. Nosso trabalho pretende, em primeiro lugar, analisar o problema da justiça nas trocas segundo a concepção aristotélica exposta na obra Ética a Nicômaco – capítulo V, e, especialmente, a relação entre χρεία e νόμισμα (chreia e nomisma = necessidade e dinheiro). Em segundo lugar, pretendemos analisar a Política (Livro I), onde Aristóteles analisa, e condena, o emprego do dinheiro como capital e finalidade das trocas. Após isso, veremos como a análise e a crítica do dinheiro realizadas na Ética e na Política se articulam com alguns aspectos da Metafísica, da Física, e da Política aristotélicas. Em terceiro lugar, analisaremos a crítica de Marx à concepção aristotélica do dinheiro em O Capital. Para esse trabalho, nos apoiaremos na tradução francesa da Ética a Nicômaco realizada por Jules Tricot (Editora Vrin) e pela edição bilíngue (grego-inglês) da Ética e da Política realizada por Harris Rackham (Loeb Classicals). Começaremos analisando a definição geral de justiça em Aristóteles, assim como as formas distributiva e corretiva de justiça e suas correspondentes expressões matemáticas. Em seguida, analisaremos os princípios gerais da troca justa, sua correspondente fórmula matemática e sua diferença com as justiças anteriores. O problema central a ser analisado inicialmente em nosso artigo será o da igualdade e comensurabilidade dos bens cambiados na troca e a relação entre chreia e nomisma - necessidade e dinheiro. Analisaremos em que medida o dinheiro pode ser entendido como representante ou substituto das necessidades humanas no papel de mensurador dos preços ou valor das mercadorias. Analisaremos, ainda, em que sentido o dinheiro é empregado por Aristóteles como padrão de medida de comparação entre as diferentes mercadorias trocadas. Por fim, analisaremos em que medida Aristóteles teria fracassado, ou não, em seu esforço de encontrar no dinheiro um padrão de medida (teórico e prático) para o valor ou preço das mercadorias. Em seguida à análise da Ética a Nicômaco, analisaremos as razões da crítica aristotélica ao emprego do dinheiro como capital. Como pretendemos mostrar, o gênio lógico de Aristóteles foi o primeiro a compreender a gênese, ou arché, das trocas e do dinheiro. Porém, este mesmo gênio, por seus próprios defeitos, foi incapaz de aceitar e compreender o dinheiro como algo mais do que dinheiro e meio de troca, de aceitar e compreender o emprego do dinheiro como capital e finalidade das trocas. Por fim, veremos a crítica de Marx à concepção nominalista do dinheiro defendida originalmente por Aristóteles e continuada pelos economistas. Segundo nossa concepção, a recusa de Aristóteles em aceitar o emprego do dinheiro como capital apoia-se sobre um conjunto de questões que vão desde sua concepção de filosofia como metafísica, até sua visão teleológica da natureza e da vida humana em comunidade. Esta recusa se explica, ainda, pela sua crítica à democracia ateniense do século IV a.C, pela sua nostálgica defesa das instituições econômicas do período pré-clássico, como a escravidão doméstica e a autossuficiência da cidade, e pela sua romântica e radical defesa do modo de vida humano como um bem viver. 1 OS ANTECEDENTES ARISTOTÉLICOS DO DINHEIRO É largamente aceita a ideia de que Aristóteles tenha sido o grande pioneiro na análise e definição do que seja o dinheiro. Podemos dizer, seguramente, como veremos, que Aristóteles não apenas inaugurou a análise teórica do dinheiro, mas a determinou absolutamente. Segundo Aristóteles, o dinheiro é uma medida de proporção entre duas mercadorias distintas. A gênese desta medida, segundo ele, está fora das mercadorias mensuradas, está naquilo que os gregos chamam de nomos, nos costumes e leis humanas. O dinheiro, por isso, chama-se nomisma, explica Aristóteles. O dinheiro e a riqueza entre os gregos, contudo, já eram objetos de reflexão antes ainda de Aristóteles, tanto entre mitógrafos, dramaturgos e comediógrafos quanto entre filósofos. Porém, esta reflexão era sempre de ordem moral, visando encontrar uma vida justa, ordenada e boa para os homens, uma vida longe das paixões devastadoras e dos desejos ilimitados do corpo. Para a tradição grega, uma vida sábia era uma vida orientada para afastar a hybris das paixões – a violência e a desmedida dos desejos – e a buscar o bem viver e a diké – a justiça emanada dos deuses. Uma vida sábia, assim, era uma vida afastada dos excessos, especialmente dos excessos em relação à aquisição da riqueza e do dinheiro. Entre os mitógrafos, a condenação à desmedida dos desejos humanos por riqueza e dinheiro foi encantadoramente registrada, por exemplo, em mitos como o de Midas, que por falta de sabedoria e prudência desejou possuir a capacidade de transformar em ouro tudo o que tocasse com suas mãos. Ao transformar tudo o que tocava em ouro, o imprudente Midas vivia o paradoxo absurdo de possuir todas as riquezas do mundo sem, contudo, poder desfrutar de nenhum de seus prazeres. Mais tarde, Apolo punirá a estupidez de Midas transformando suas orelhas em orelhas de burro. Em Homero, por exemplo, e mesmo entre os tragediógrafos, a paixão amorosa e incontrolável de Páris por Helena, paixão despertada pelas Erínias, as deusas da fúria e da discórdia, resultara, ao final da Ilíada, em saque, violência, assassinato e tragédia. Nesta epopeia, Agamenon, enlouquecido pelo desejo de saquear Troia e enriquecer com o saque, sacrifica a própria filha Ifigênia, matando-a com suas próprias mãos, esperando com este crime, receber bons ventos para sua frota naval e realizar todos os seus desejos e glorias insanas. Estes desejos incontroláveis se realizam e se encerram com mais e mais tragédias e desastres pessoais e familiares. Em sua volta para casa, a morte de Ifigênia é vingada pela mãe, Clitemnestra, que assassina Agamenon em nome da justiça familiar. Clitemnestra, por sua vez, é morta pelo próprio filho Orestes, que a mata para vingar o pai. Ao final, Orestes é morto pelas Erínias, encerrando, assim, o ciclo de sangue e mortes familiares. Os trágicos como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes continuam e atualizam em suas tragédias, o terror poético suscitado pela violência das paixões humanas em todas as suas formas já narrado por Homero e Hesíodo. O apego apaixonado, irracional e desmedido de Medeia por seu marido que a traíra, do mesmo modo que ocorre com Agamenon e sua família, se converte em ódio, desejo de vingança e assassinato dos próprios filhos pelas suas próprias mãos. O apego exagerado e desmedido de Medeia pelo marido infiel, esta hybris amorosa e feminina, este aprisionamento da alma feminina pela desmedida de seus ciúmes e rancores insanos, é comparável à paixão irracional e descomedida dos homens de negócios pelo dinheiro, que a todos traem, sejam amigos queridos ou parentes próximos, e contra todos conspiram dia após dia sem cessar. O comediógrafo Aristófanes retratou magistralmente os paradoxos da riqueza em sua comédia Pluto: um deus chamado dinheiro. Por ser cego, Pluto distribuía os dons da riqueza a todos os homens indistintamente e não apenas aos bons e justos. Assim, segundo a comédia, para ser rico não seria necessário ser bom e justo. Ao se tornarem ricos, porém, até mesmo os homens bons e justos passavam a ser dominados pela violência e pela hybris das paixões. Desta forma, o dinheiro tinha o demoníaco poder de transformar o justo em injusto, o bom em mau e o honesto em desonesto, corrompendo, assim, todos os costumes virtuosos da cidade. Esta mesma condenação moral da hybris das paixões humanas, iniciada pelos poetas e aperfeiçoada pelos dramaturgos e comediógrafos da cidade, prossegue com os filósofos. Tales de Mileto, o primeiro filósofo e um dos sete grandes sábios da cultura antiga, dizia que seu saber científico era um saber pelo saber e que, por isso, não seria útil para os amantes do ganho e da riqueza. Pitágoras era largamente conhecido por ter fundado uma seita baseada na abstinência dos prazeres e na doação de todas as propriedades e riquezas de seus membros individuais em prol da comunidade religiosa por ele fundada. Heráclito de Éfeso era enfático ao declarar que o verdadeiro modo de vida do homem era aquele orientado segundo o logos e a koinonia – a razão e a vida em comum. O materialista Demócrito de Abdera considerava que aquele que fosse totalmente submisso ao dinheiro jamais poderia ser justo. Sócrates era terminantemente inimigo dos amantes do dinheiro e da riqueza. Segundo ele, seria o desprezo dos homens comuns pelo verdadeiro saber e sua adoração insana pelo dinheiro e a riqueza que corrompiam as virtudes morais da cidade. Os estoicos e epicuristas também eram conhecidos por sua condenação ao modo de vida urbano de sua época, ao modo de vida trazido pelos contatos comerciais da Hélade com o Mediterrâneo, e pela adoção de um modo de vida baseado em hábitos simples, modestos e em harmonia com a ordem emanada da natureza. Aristóteles, do mesmo modo que seus compatriotas, partilhava desta condenação moral do dinheiro como finalidade da vida humana. Contudo, Aristóteles foi o único dentre todos que analisou meticulosamente, analisou no sentido técnico do termo, e procurou responder teoricamente “o que é o dinheiro”, e “qual a gênese e finalidade do dinheiro”. Por isso, como veremos, sua inigualável importância filosófica para o estudo científico do dinheiro. 2. ARISTÓTELES E O DINHEIRO COMO MEIO DE TROCA 2. 1 Definição geral de justiça Aristóteles parte, em sua Ética a Nicômaco – Livro V, de uma definição geral de justiça para em seguida analisar a justiça em suas formas particulares. A justiça, para Aristóteles, ocupa-se exclusivamente, ou especialmente, com o estudo prático dos homens em sua relação com a riqueza ou bens exteriores. Tendo a repartição da riqueza como seu objeto, a justiça se define, então, como a ação humana que visa a igualdade e a equidade dentro de uma determinada comunidade de interesses. Justiça, em sua definição geral, é uma espécie de disposição do caráter que torna os homens capazes de realizar ações justas, que os faz agir justamente e desejar as coisas justas. O homem justo, por isso, é aquele que obedece a lei, pois a lei é a expressão jurídica da vontade e do bem geral da comunidade. O homem justo é aquele que toma para si apenas o que lhe é próprio, não se apropriando, por isso, de nenhuma parcela da riqueza comum ou privada além daquela que lhe pertence por direito. O homem justo é aquele que respeita a igualdade, pois o justo é uma espécie de igualdade. A igualdade, segundo Aristóteles, é um meio termo entre mais e menos, perdas e ganhos, danos e lucros e vantagens e desvantagens. Respeitar a igualdade significa, por isso, em caso de divisão dos lucros, não visar a si próprio nenhuma parcela de riqueza, comum ou particular, acima daquela que lhe é devida por direito e, no caso de divisão dos prejuízos, não desejar a si próprio uma parcela menor daquela que lhe é devida na associação. Por ser um meio termo entre perdas e ganhos, a igualdade, por isso, envolve sempre dois termos extremos: o mais e o menos. O homem justo, por visar a igualdade, visa sempre o bem do outro antes de visar o seu próprio bem. Por esse motivo, a justiça é vista como um bem alheio, pois ser justo é ser bom e honesto em vista do bem dos outros membros da comunidade. A justiça, por isso, não é um direito mas uma virtude e uma prática moral humanas. Como diz Aristóteles, o homem justo possui a virtude completa e perfeita, a virtude das virtudes, porque quem estiver de posse desta virtude é capaz de usá-la em vista dos outros e não em vista de si próprio (EN 1129b30). Como a justiça em sua forma geral não existe na realidade, segundo Aristóteles, torna-se necessário, então, entendê-la dentro de determinados contextos reais. Aristóteles analisa, por isso, três esferas particulares da justiça dentro das quais ela pode ser compreendida: a justiça distributiva, a justiça corretiva e a justiça nas trocas. 2.2 A justiça distributiva A justiça distributiva tem sua esfera de ação na repartição dos bens comuns da comunidade entre seus membros individuais. Este é o caso da repartição dos bens da comunidade adquiridos através de um empreendimento comum de seus membros – como os saques provenientes da guerra. A justiça distributiva tem como princípio, portanto, quatro termos: duas porções de riqueza distintas – para as quais a igualdade é uma mediania entre mais e menos – e duas pessoas desiguais. É importante observar que no caso da justiça distributiva essa desigualdade natural ou de mérito entre as pessoas não precisará ser equalizada, como veremos no caso da justiça nas trocas. A justiça distributiva distribuirá porções de bens iguais para os iguais e porções desiguais para os desiguais. Do ponto de vista desta espécie de justiça, seria inteiramente injusto distribuir porções iguais de riqueza para pessoas naturalmente desiguais, ou, ao contrário, porções desiguais para pessoas naturalmente iguais. Segundo a aguda observação de Aristóteles (EN 1131a20), era desta assimetria na distribuição dos bens comuns que surgia a maior parte das lutas políticas no interior da cidade. Por conta desta desigualdade de mérito e da circunstância de que há quatro termos extremos envolvidos na distribuição, a justiça distributiva pode ser expressa cientificamente sob a forma de uma proporção geométrica. 2.3 A matematização da justiça distributiva Para explicar cientificamente a natureza da justiça distributiva, Aristóteles faz uso da análise geométrica das relações humanas. Como temos visto, a distribuição dos bem comuns é realizada segundo uma regra de proporcionalidade. Duas coisas são proporcionalmente iguais se entre elas houver uma razão comum. Esta razão comum é comum a duas frações individuais. Por exemplo: dizemos que 12 está para 6 assim como 6 está para 3 (12:6 :: 6:3) porque ambas têm em comum a mesma razão (ratio = logos) 2. As proporções podem ser de dois tipos: descontínuas e contínuas. Suponhamos a seguinte proporção: A:B :: C:D (A está para B assim como C está para D). Esta é uma forma de proporção descontínua porque nenhum dos termos intermediários B e C é repetido dentro da proporção. Nesta forma de proporção aparecem claramente quatro termos distintos e irredutíveis entre si – especialmente os termos médios. Numa proporção contínua, ao contrário, os termos médios podem ser equiparados entre si e, assim, ser reduzidos um ao outro. É o caso de uma proporção tal como a proporção A:B :: B:D. Neste caso, temos uma proporção contínua porque o termo B é repetido duas vezes na equação (na verdade o terceiro termo C é substituído pelo termo médio anterior B), que continua a

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