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terça-feira, 18 de junho de 2024
Crematística troca bbbb
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A Ontologia da Troca: Economia e Crematística Conceição Soares (Católica Porto Business School, Universidade Católica Portuguesa)
Resumo O objectivo deste capítulo é, partindo da filosofia de Aristóteles, fazer a distinção entre dois modos diferentes de adquirir riqueza. Uma que é integrada na gestão da casa e tem os seus limites nas necessidades decorrentes da manutenção do modo de vida do agregado familiar, e outra que é adquirida mediante o esforço para acumular cada vez mais riqueza, sem limite. Aristóteles chama à gestão doméstica economia e à acumulação de riqueza nesse âmbito, crematística natural; designando a acumulação de riqueza pela acumulação crematística antinatural. Aquilo que separa cada uma delas é a questão da medida e da desmedida. A reflexão de Aristóteles sobre esta matéria leva-nos a pensar o fim, o limite, a medida, contra a desmedida. Estes dois modos de adquirir riqueza ocorrem no seio da interação social da troca. Porém, duas questões se colocam: 1) se os dois modos de adquirir riqueza acontecem mediante esta interação de que modo a afectam?; e 2: de que modo é que o funcionamento da nossa vida social é afectado por esta medida ou desmedida nestes dois modos de adquirir riqueza? Ao longo deste capítulo indicamos alguns caminhos no sentido da resposta a estas questões. Palavras-chave: Aristóteles, crematística, ontologia, troca. Introdução É com Aristóteles que se inicia, pela primeira vez, no Ocidente, uma reflexão sobre a economia e a crematística.1 Esta reflexão não é de natureza moral, mas de natureza social, uma vez que se encontra no âmbito da ontologia da troca e do fim último da vida humana em sociedade. Essa troca de bens pode fazer-se por duas vias: 1) para provimento das necessidades da vida doméstica, a economia, que gera uma crematística natural; ou 2) para acumulação constante de riqueza, a crematística antinatural. Quando o dinheiro surge como mediador da troca, instaura-se uma ambivalência que consiste no duplo sentido que o dinheiro adquire. Por um lado, é um meio para se viver bem, proporcionando o acesso necessário aos meios da vida e, por 1 Crematística é a palavra grega para aquisição de riqueza ou propriedade. 68 outro, é um fim abstracto, cuja posse fornece o potencial abstracto da aquisição de coisas utéis, valiosas e cuja acumulação infinita se transforma, consequentemente, na sua força motriz promovendo aquilo a que nós hoje chamamos o aumento contínuo do dinheiro como capital. O contraste entre a crematística natural (economia) e a crematística antinatural consiste no facto de, na economia, a riqueza adquirir-se de acordo com a natureza e as necessidades, em que o fim último é a vida boa, e o limite da aquisição reside no bom funcionamento da vida social. Por seu turno, na crematística antinatural a acumulação da riqueza é ilimitada e por isso mesmo perturbadora da vida social, porque desvinculada do seu fim último. No livro V do capítulo 5 da Ética a Nicómaco, Aristóteles (2011) trata a questão da reciprocidade em relação à justiça e faz aí uma reflexão sobre a vida social na pólis. Essa vida na pólis é baseada na divisão do trabalho e no intercâmbio dos produtos do trabalho para a satisfação das necessidades e provisão das conveniências da vida, como componentes essenciais do viver bem e cujo objectivo último consiste no viver juntos em comunidade. A pólis é vista como uma sociedade ou uma comunidade organizada em que a justiça se realiza com base na proporcionalidade ou reciprocidade proporcional. Neste sentido, a obtenção da riqueza encontra-se vinculada a este fim último que é a vida boa e que se atinge através deste garante que é a justiça, ou esta reciprocidade proporcional. Há, neste caso, uma estreita ligação entre a prática da troca, do intercâmbio e a constituição da comunidade social. Nessa medida, o dinheiro surge para resolver um problema prático que é o da comparabilidade dos produtos na troca. Aristóteles apresenta o exemplo dos serviços de um médico, que podem ser trocados pelos de um agricultor. O dinheiro surge assim como a solução prática, na vida social, como meio de comparabilidade e nesse sentido, como base para a justiça e a proporcionalidade, como representação abstracta e universal do valor de uso. Para que a troca seja justa tem de haver uma igualdade proporcional como garante da justiça comutativa (Eldred, 2011).2 Há, para Aristóteles, uma ligação estreita entre a justiça e a aritmética como garantia da equidade da vida social e da vida boa. O dinheiro pode servir a causa da justiça quando vinculado ao seu fim último dentro dos limites desta justiça proporcional. Vemos, deste modo, que a interação económica é a constituição elementar da vida em sociedade e uma parte constitutiva do movimento da própria vida social. Contudo, na economia capitalista, a interação na vida quotidiana e o exercício da liberdade tornam-se muito mais intricados e difíceis. O dinheiro como capital é um 2 Não há justiça distributiva, sem justiça comutativa. Assim como não há justiça que não seja social. 69 poder social reificado3 que pode ser caracterizado por um dinheiro permanentemente acumulado e que retorna na forma de rendimento a partir de várias fontes: transações, receita de vendas, salários e lucro. Todas as transações são poderes sociais entre os indivíduos e agentes coletivos que lutam para receber ganhos de todo o tipo. Indivíduos e grupos competem nos diversos tipos de mercados de acordo com as formas de valor dentro dos quais se movem (Eldred, 2011, pp. 11-12). Esta estrutura socio-ontológica é a característica principal daquilo a que M. Eldred denomina o “jogo lucrativo”4 (2011) que vem dos poderes dos indivíduos livres que se esforçam para ganhar sempre mais a fim de manterem as suas vidas e atingir os seus objectivos. Nesse sentido, podemos dizer que numa sociedade capitalista as pessoas e as empresas lutam sempre para ter mais. Como M. Eldred refere, a estrutura socio-ontológica e o movimento do “jogo lucrativo” dentro dessa estrutura não é um “modelo” construído a partir da realidade, nem é um estado imaginado a partir de um estado natural, nem é uma situação hipotética para escolher “princípios da justiça” por acordo. É, de facto, uma estrutura de pensamento abstrata, com plena validade alcançada pelo pensamento através de certos elementos bem conhecidos abstraídos da vida quotidiana movendo-se dialecticamente (Eldred, 2011, p. 13). A partir daqui, todos os seres aparecem refratados mediante o prisma dos valores reificados. Esta reificação que vem deste “jogo lucrativo” cria enormes irregularidades e é aquilo a que chamamos crematística antinatural, que difere em muito dos objectivos daquilo que poderia ser a economia. Este capítulo está estruturado do seguinte modo: na primeira parte, analisaremos a estrutura ontológica da troca como matriz da nossa vida social, fundada na interação, no reconhecimento e na estima. É neste âmbito que a reflexão sobre a riqueza e os diferentes modos de a obter se inserem. Assim, a obtenção da riqueza está intimamente ligada ao metabolismo da nossa vida social. Na segunda parte, irei explicitar e desenvolver a diferença entre economia e crematística. Esta diferença é crucial para que possamos perceber se construimos sociedades mais humanas e equilibradas ou se, pelo contrário, construimos sociedades mais assimétricas e violentas. A economia parece ter-se afastado do seu fim último e, de forma totalitária, para empregar uma expressão do filósofo Levinas, tornou-se uma fonte de utilidade total.5 3Reificação é uma palavra de origem latina que significa objectivação ou coisificação. A realidade é vista como coisa e as relações sociais tornam-se impessoais, coisificadas. Veja-se Marx (1996) e também Lukács (1971). 4A expressão que o autor utiliza é gainful game, a qual traduzi por “jogo lucrativo”. 5 Veja-se Levinas (1990 e 1991). 70 1. A estrutura ontológica da troca Na tradição filosófica ocidental, os seres humanos eram considerados a partir de uma ontologia da produção.6 No entanto, a estrutura ontológica da produção é muito diferente da estrutura ontológica da troca, na qual qualquer tipo de consideração sobre a riqueza e o dinheiro se insere. A estrutura ontológica da produção implica um knowhow técnico produtivo (techné) ou um poder7, no sentido daquilo a que hoje chamamos competência, habilidade para produzir uma mudança nas coisas. Assim, aquilo que uma coisa é, é considerada na terceira pessoa do singular e, quando há mudança, essa mudança é produzida por uma pessoa numa coisa passiva, um pedaço de madeira, barro, ferro etc. A coisa produzida é dominada e muda de forma pela vontade e pelo desejo da pessoa que produz a mudança e de acordo com a sua visão ou ideia. Contudo, não podemos falar em reciprocidade na nossa relação com as coisas. Podemos ter um comportamento determinado em relação a uma coisa, mas uma coisa não se pode comportar em relação a nós. A estrutura ontológica da troca não é regida por um know-how mas é, de facto, uma ação social, motivada pelo desejo da vontade de dois seres humanos livres em que a mudança ocorre neles próprios. O saber produtivo é guiado pela capacidade de ver antecipadamente o que pode ser produzido e, por isso, agregado numa visão definitiva. Como nos diz Michael Eldred, “Este know-how é um poder ou potencial que reside na consciência humana que consiste em prever e projectar, e neste sentido pré-fabricar, o produto final para ser trazido perante nós, sabendo previamente que etapas transformativas são exigidas para alcançar esse fim” (Eldred, 2008, p. 25). Na ontologia da troca nunca sabemos antecipadamente o resultado final, porque é uma relação baseada na vontade de duas ou mais pessoas. Além disso, para a troca ter lugar, deve haver reciprocidade entre as pessoas envolvidas nela. A troca não é redutível a um único princípio. No concreto da nossa vida relacional de interação e troca, pressupõe-se sempre mais do que uma pessoa. Nesse sentido, podemos dizer que a ontologia da produção não considera o fenómeno da socialização, porque não resulta da relação de duas ou mais pessoas, mas da nossa relação com as coisas, provém do 6 De Platão a Aristóteles a metafísica e a ontologia só se preocupavam com a questão acerca das coisas no sentido primordial do ser na sua essência, naquilo que uma coisa era, na sua quidditas. Contudo, um ser humano não é uma coisa, não é um que, mas um quem, alguém. Toda a reflexão de Platão e de Aristóteles assentam numa ontologia da produção, em vez de uma ontologia da troca. É somente com Heidegger, Levinas, Feuerbach, Buber, Arendt entre outros que o fenómeno do quem é analisado. Ver também Joaquim Cerqueira Gonçalves (2013, pp. 203-208). 7Na tradição filosófica ocidental, nomeadamente a partir de Aristóteles o poder é sempre visto, como poder para efetuar uma mudança noutra coisa, dunamis que tem o potencial de trazer uma mudança, um movimento. Ver, livros Delta e Theta da Metafísica de Aristóteles (1991). 71 quê, da essência, enquanto que a ontologia da troca provém do quem. É uma relação entre pessoas ou uma trans-acção. Como Michael Eldred afirma: “As várias formulações filosóficas sobre a essência humana indicam de uma forma involuntária o quanto o questionamento filosófico permaneceu fortemente cativo da evidência do quê pensado na terceira pessoa, perdendo-se assim a dimensão ontológica da segunda pessoa, onde o quem originalmente surge” (2008, p.25). Neste sentido, o fenómeno da troca está no cerne da nossa vida social e é, de facto, uma dimensão elementar da relação social que nos associa uns aos outros, como seres humanos (Soares, 2018, p. 5). O fenómeno da troca (comércio, permuta, negociação, compra e venda) é essencial para uma compreensão plena da ontologia da nossa vida social, vivemos sempre numa proximidade inter-humana. É aqui também que o fenómeno da riqueza e do dinheiro se inscrevem. Por essa razão, o fenómeno da troca é bastante diferente e muito mais complexo do que o fenómeno da produção, porque implica e supõe sempre interação entre seres humanos livres. Assim, a essência da troca é como M. Eldred refere, “bipolar e multipolar (...)” e é a partir desta característica que se abre um novo mundo de possibilidades (Eldred, 2008, p. 166). A troca é uma interação entre as pessoas e implica um intercâmbio de relações. O fenómeno da produção, tal como já salientámos, é uma acção antecipada sobre um material passivo que nos dá aquilo de que já estavamos à espera e que tínhamos pensado. Contudo, a interação entre as pessoas não tem qualquer tipo de substrato, de suporte prévio, o que significa que no núcleo do intercâmbio reside uma fragilidade e vulnerabilidade inerente e, por esse facto, as relações entre as pessoas são muito mais exigentes e requerem uma maior vigilância e sintonia (Eldred, 2008, pp. 591-603). Não há nenhum plano prévio que possa prever e antecipar todas as eventualidades que possam ocorrer na relação, porque a relação funda-se no preciso momento em que acontece, pela interação. Ou, como M. Eldred afirma: “O mundo compartilhado entre mim e o outro dá-nos um abrigo existencial de simplicidade mais ou menos fugaz” (Eldred, 2008, p. 100). O fenómeno da troca é mais complexo do que a simples troca de mercadorias se o considerarmos a partir daquilo que o ser humano é, alguém e não uma coisa (Eldred, 2008, p. 167). Nós associamo-nos com os outros e trocamos opiniões, saudações, afrontas, presentes, reconhecimento e estima. Fazemos isso através de intercâmbios sociais em que a estrutura ontológica é muito semelhante à da troca de bens comerciais. Como M. Eldred refere, “todas as relações sociais são intercâmbios de algum tipo, e o intercâmbio é sempre, essencialmente, incorporado numa estimativa mútua do valor do outro como quem é, e com aquilo que tem (Eldred, 2008, p. 167). O intercâmbio é o movimento que sustenta a nossa vida social económica, porque é uma 72 estima mútua do valor do outro, daquilo que cada um é e tem, tendo em vista um benefício mútuo no sentido do valor de uso do que cada um tem para oferecer ao outro no sentido mais amplo. Aquilo que somos nunca é inteiramente uma construção nossa a partir de nós próprios, mas é também uma construção a partir daquilo que o mundo nos oferece como possibilidade de condução das nossas vidas. Nós só podemos viver a nossa vida através das múltiplas interações com os outros com os quais negociamos um caminho existencial e partilhado no mundo. Para fazer esse caminho, temos de confiar também no que os outros podem fazer por nós. Isso requer uma transação de dar e receber, não submissão ou rendição. Chegados aqui, e sem considerarmos ainda a mediação da troca através do dinheiro, pode-se dizer que o dar e receber através das transações que negociamos com os outros são baseadas no que podemos fazer por eles e naquilo que eles podem fazer por nós. É neste momento que as nossas habilidades/competências concretas entram em jogo e, por isso, podemos trocar serviços numa base mútua. Essas habilidades/competências constituem os nossos poderes para provocar uma mudança produtiva no mundo. Os produtos do exercício destas habilidades constituem a propriedade privada de cada um, são a sua singularidade, que deve ser respeitada pelos outros. Nós exercemos continuamente as nossas habilidades/competências numa base diária em favor de cada um e para o benefício de cada um dentro de uma estrutura de acordos mútuos ou contratos, sem qualquer tipo de conotação legal. Contudo, a partir do momento em que essas transações são feitas através da mediação do dinheiro, a troca de serviços por mútuo acordo já não é direta, como anteriormente, mas indireta e também universalizada, uma vez que o dinheiro é o equivalente universal que tem o poder social abstrato de comprar serviços de alguém cujo produto do trabalho é oferecido no mercado. Como M. Eldred refere, “assim, milhões de competências concretas e os seus respectivos produtos são abstratamente e praticamente equalizados uns com os outros como valores de troca através da mediação do dinheiro como mediador abstrato, universal” (Eldred, 2012, p. 12). Esta equalização abstrata é, em primeiro lugar, uma abstração das competências concretas de cada um, mediante uma quantificação através de uma determinada quantia de dinheiro, pois é o dinheiro que possibilita essa abstração (Eldred, 2013). Quando a troca de serviços é de comum acordo, depende da liberdade e espontaneidade de quem troca. Como M. Eldred nos diz, “O que acontece diariamente nos mercados é, portanto, devidamente denominado um poder de interação de valores de troca baseados num reconhecimento mútuo e na apreciação desses poderes (Eldred, 2011, pp. 8-9). Como o autor defende, quando o dinheiro vem intermediar a troca, adquire o poder de ser trocado por qualquer coisa no mercado e isso é a cristalização do valor de troca universal que é, 73 acima de tudo, um poder social.8 O poder social do dinheiro é completamente real, mas assenta num jogo de apreciação mútua de poderes e de capacidades humanas e, consequentemente, num jogo da liberdade humana (Eldred, 2011, p. 9).9 E este jogo é aquilo a que já fizemos referência anteriormente como sendo um “jogo lucrativo” o que significa que nas nossas economias capitalistas a nossa vida quotidiana torna-se mais complexa e a mediação da troca através do dinheiro adquire um verdadeiro poder na nossa vida. De seguida, vamos ver até que ponto esse poder é colocado ao serviço da comunidade, da sociedade ou se, pelo contrário, desvinculado do seu fim último, acaba por criar uma verdadeira entropia no metabolismo social. 2. Economia e crematística A distinção entre economia e crematística surge em duas obras diferentes de Aristóteles. Aparece no livro I da Política (1992) e também no livro V da Ética a Nicómaco (2011). Em ambas as obras esta distinção surge no contexto de uma reflexão sobre a moeda e nas duas obras a moeda é vista como um auxiliar da troca. Como referimos anteriormente, é no contexto da ontologia da troca que esta problemática surge. Para melhor entendermos esta distinção entre economia e crematística temos primeiro de compreender o papel da moeda, o que a torna necessária, e qual a sua legítima função. A troca, para Aristóteles, é vista como um meio de procura de coisas úteis para a vida, os bens de uso. Neste sentido, a troca acontece no âmbito da economia doméstica. Contudo, este não é o único meio de obter coisas úteis. Podemos obtê-las igualmente através das colheitas (agricultura) ou da captura (caça e pesca). Tal como a troca, as coisas úteis são modos de aquisição de bens. Na medida em que estes bens são úteis para a comunidade doméstica, estes vários modos de aquisição correspondem a técnicas do âmbito da economia. No domínio da economia doméstica, a troca tem um papel acessório, na medida em que cada família procura prover às suas necessidades. É só quando a família se divide em grupos separados que pode acontecer que a um dos grupos falte alguma coisa que outro tenha em excesso e, nesse caso, a troca surge como uma necessidade, de qualquer modo, a moeda, neste caso, não é necessária. A moeda só se torna necessária na economia da cidade, na pólis (Moreau, 1969). Numa família de agricultores, todos os seus membros participam nas tarefas comuns, mas na cidade cada um exerce o seu ofício. É esta comunidade de necessidades, face à 8Isto liga-se à verdadeira ilusão de que o valor de troca vale por si e, portanto, tem em si um poder de troca universal, foi a esta ilusão que Marx chamou fetichismo (Marx, 1996). 9 Ver Marx (1996). 74 especialização de cada um no seu ofício, que torna a troca de bens absolutamente necessária. Na cidade, cada artesão precisa dos outros para viver, o que significa que na cidade a troca não tem um carácter acessório, mas necessário e fulcral. Ora, é este carácter fundamental e necessário que torna imprescindível o uso da moeda, como mediação da troca e termo de comparabilidade entre bens. A finalidade da moeda, ou seja, a justificação do seu uso encontra-se na cidade. É, pois, na cidade que se é capaz de assegurar a auto-suficiência económica e simultaneamente garantir a justiça das trocas. Como já anteriormente tínhamos referido, a moeda, o dinheiro, surge de uma necessidade prática. Para Aristóteles, os povos “bárbaros” que não estavam organizados em cidades, também faziam as suas trocas, por exemplo, trigo por azeite. Mas a determinada altura estas trocam alargaram-se a outros povos, chegando mesmo a fazer-se transações de importação e exportação, o que tornava a moeda necessária. Como nem todos os objectos de troca eram facilmente transportáveis estabeleceu-se uma convenção em que as partes dariam ou receberiam na troca de qualquer material um pagamento, diríamos hoje, que lhes correspondesse. Isto significa que a moeda nasce de uma convenção internacional privada, exterior à instituição pública e independente das leis da cidade. Esta instituição tinha apenas um carácter comercial, não jurídico. A cunhagem que a moeda tinha era apenas uma indicação, um sinal. Dito de outro modo, se a matéria utilizada como moeda é escolhida em razão do seu manuseamento, da sua facilidade em circular e ser trocada por alguma coisa útil, ela não tem uma utilidade própria, ou seja, um valor intrínseco. É apenas um meio ao serviço de uma finalidade fundamental, o provimento das nossas necessidades. Porém, a instituição da moeda, que surgiu da necessidade das trocas exteriores, levou a uma transformação da natureza da própria troca. Antes do uso da moeda, a troca fazia-se sob a forma de permuta e estava limitada às necessidades recíprocas das partes. Com o uso da moeda, a troca ultrapassa os seus limites. Com a moeda abre-se uma nova possibilidade de troca que se efectua mediante a compra e venda e a partir daí é possível exercer as trocas não apenas para prover às necessidades, mas por si próprias em vista do lucro. E é a partir desta possibilidade real que consiste na libertação da moeda do seu fim natural que é possível acumulá-la sem qualquer tipo de limite. Esta nova forma de troca que consiste na compra e na venda é aquilo a que comummente se chama comércio. É evidente que na sua origem o comércio também se exercia mediante a permuta, mas rapidamente evoluiu para a forma como o conhecemos hoje. É, pois, com o desenvolvimento da técnica comercial que se produz uma grande transformação na economia que corresponde, sobretudo, a uma alteração 75 da noção de riqueza. As riquezas eram, antes de mais, coisas úteis que nos serviam para alguma coisa, correspondiam essencialmente a objectos de uso. As artes de adquirir riqueza e de usufruir dela faziam parte da economia doméstica. A esta administração e gestão de bens chamava-se crematística natural. A crematística diz respeito à aquisição de riquezas, mas não se identifica com os diversos modos de aquisição das subsistências, nem com as técnicas de produção. Havia uma distinção clara entre a produção de coisas úteis e a arte de as utilizar, de as escolher e de as dispor para as necessidades da família, ou seja, transformá-las em verdadeiras riquezas, ou bens de uso. Esta análise permite distinguir dois níveis na arte de adquirir. Um dos níveis está relacionado com a captura, a recolha ou a produção cada vez em maior número, a acumulação ilimitada. O outro nível diz respeito à aquisição dos meios subordinada aos fins da vida doméstica ou da vida política, o mesmo é dizer da vida boa em sociedade. É neste último nível que a arte de adquirir atinge a sua finalidade e exerce a sua função natural dentro da economia, constituindo a parte que se ocupa da administração dos bens e que a justo título merece o nome de crematística natural. Contudo, este não é o sentido comum dado a este termo. Ao mesmo tempo em que se altera a noção de riqueza, mediante o desenvolvimento do comércio, que se traduz pela emancipação da troca, desvinculando-a do seu fim último, opera-se um desvio em relação ao seu sentido comum. A partir desta possibilidade, a troca pode ser considerada como um modo de aquisição, comparável à produção, às colheitas ou à caça. De tal modo que, tal como temos duas formas de aquisição da riqueza, uma incontrolável e sem limite, a outra normal, natural, regulada pelas verdadeiras necessidades, temos igualmente duas formas de troca. Uma, contida dentro dos seus limites naturais, sem necessidade de moeda, dentro da economia doméstica. A outra desregulada, própria das sociedades evoluídas, tendo por condição a instituição da moeda, que torna possível o desenvolvimento do comércio e a procura metódica do lucro. É esta arte de enriquecer mediante operações fundadas sobre o uso da moeda, operações financeiras, que é designada correntemente sob o nome de crematística ou, para a distinguirmos da natural, crematística antinatural. Deste modo, podemos dizer que há uma crematística natural, normal, que faz parte da economia, da administração doméstica e política, e uma crematística sem lei, sem limite, antinatural que usurpou o nome à primeira, e que não é mais uma boa administração dos bens, mas uma simples técnica de negócios e de enriquecimento. Esta crematística antinatural é o resultado de um desvio do papel da troca, em que se modifica ou altera a estima, o juízo sobre o 76 valor das coisas, ou seja, ao valor de uso acrescenta-se, e finalmente substitui-se, o seu valor de troca. Dois milénios mais tarde, Marx (1996, p. 167) faz uso desta distinção de Aristóteles e distingue entre a simples circulação dos produtos por um lado, e a circulação do dinheiro como capital, por outro. Na primeira, a simples circulação dos produtos tem a fórmula C1-M-C2,10 vendendo um determinado produto a fim de comprar outro para a satisfação de uma falta sentida (Eldred, 2008, p. 8 e Bay, 2012, p. 29). Na segunda, a circulação do dinheiro como capital, tem a fórmula M1-C-M2, onde M2 é maior do que M1, comprando bens de consumo, a fim de fazer mais dinheiro. Na simples circulação de bens de consumo, por um lado, é a utilidade dos respectivos bens e a aquisição desses bens para o cumprimento das necessidades e desejos que são o foco de atenção e o fim motivador do intercâmbio. O dinheiro é apenas um meio de troca, isto é, um meio para trocar um bem por outro. Na circulação do dinheiro como capital, a utilidade dos bens de consumo é apenas um veículo para fazer dinheiro. Os bens de consumo são aqui apenas um meio para a interminável possibilidade de acumulação. O dinheiro não é mais um mero meio de troca, mas é a representação universal da própria riqueza numa forma quantitativa. Há assim um excesso que se encontra no coração dos negócios com dinheiro, e este excesso é o desejo do ser humano em querer ter desmedidamente mais, sem referência à vida boa. Ou, como nos diz Barbara Stiegler (1993, p. 304), há no coração da economia uma hybris que é a palavra grega para violência e essa violência pode ser vista paradoxalmente, como recusa do limite, excedendo a medida, ou como fuga da morte num movimento infinito. Enquanto na economia doméstica se respeita o limite, tendo em vista o bem viver e a justiça na sociedade, na crematística antinatural há uma hybris, uma violência inerente que corresponde ao desejo infinito de adquirir riqueza, de ter sempre mais, sem qualquer outro tipo de fim que não seja a acumulação privada. 11 Pensa-se fugir à finitude através deste desejo infinito de ter sempre mais. Como já anteriormente referimos, esta reflexão sobre a economia e a crematística é pensada por Aristóteles a partir do duplo uso que os objectos podem ter (Tabosa, 2009). O seu uso próprio, por exemplo, os sapatos são feitos para os calçarmos (valor de uso), mas também podem servir para troca (valor de troca). Neste último caso, ainda podemos fazer uma distinção. Se o sapato for cedido para alguém que precise dele, o seu uso não está longe do uso próprio, outra coisa bem diferente é quando o vendemos a alguém que, por sua vez, o revende para obter lucro (Soares, 2015). Aquilo que torna possível o lucro é este alargamento sucessivo dos mercados que suscitou a invenção da 10 Esta fórmula corresponde à designação em língua inglesa de C, commodity e M, Money. 11 Ver, a este propósito, a obra de Michel Aglietta e André Orléan, La violence de la monnaie (1982). 77 moeda e que, por conseguinte, permite o curso variável de um mesmo objecto, de uma mercadoria, segundo o tempo e o lugar. É sobre a experiência destas variações que assentam as técnicas comerciais, que embora consigam desenvolver ao máximo as suas possibilidades e os meios para atingir os fins, são isentas de normas, de verdadeira finalidade racional, no sentido Aristotélico. Este é o caso da crematística antinatural. Enquanto na economia doméstica, os usos habituais do viver bem formam os limites para os meios necessários a este fim, o esforço ilimitado para acumular mais bens perde de vista o fim e torna-se, por esse facto, pernicioso, desmedido, violento. Assenta sobre um desenvolvimento desmedido da troca, não tendo outro fim que não seja o lucro e não conhecendo outro valor que não seja aquele que se exprime em função do mercado e que é medido pela moeda, tida como a principal forma de riqueza. É claro para Aristóteles que a finalidade da economia nada tem que ver com a acumulação de capitais e de mercadorias. O desejo de ter sempre mais, abstraído ou desarticulado do cumprimento de uma necessidade específica, é puramente quantitativo e encontra o seu objeto adequado no próprio dinheiro, que é a incorporação quantitativa da riqueza (mesmo que o dinheiro seja, em última análise, apenas dígitos digitais armazenados numa conta bancária eletrónica). O próprio desejo torna-se abstratamente quantitativo, abstraído da utilidade específica dos bens, desarticulado do seu fim último que é o de viver bem em sociedade (Soares, 2017). Esta abstração anda de mãos dadas com a inversão da simples circulação dos bens de consumo na circulação de capital, infinitamente acumulado. A acumulação do dinheiro como capital é interminável e é suportada por uma vontade infinita de ter abstratamente mais. (Eldred, 2008). Aristóteles não trata a crematística em termos de categorias morais, mas sim de acordo com a natureza humana e com o funcionamento da vida social. A verdadeira riqueza consistia na produção a partir daquilo que a natureza dava e na aquisição necessária à manutenção de um fundo. Assim, a riqueza teria um limite subordinada às necessidades naturais da família. No livro I da Política, Aristóteles considera que a moeda é um factor de perversão da economia, uma vez que torna possível o comércio, a procura metódica do lucro, dando origem a uma técnica falaciosa que pretende fazer da troca uma fonte de riqueza. A crematística antinatural, que encontra a sua primeira aplicação no enriquecimento comercial, converte-se rapidamente na arte da finança, em que as operações não se efectuam sobre os próprios bens, mas sobre estes bens tornados mercadorias, sobre os títulos que os representam, sobre o dinheiro transformado em elemento primordial e termo final da troca. Transvertido deste modo, o comércio não é mais uma troca real de bens ao serviço dos consumidores, mas uma pura especulação, tendo como único objectivo o 78 lucro. As necessidades, já não são necessidades, mas quereres que servem um propósito determinado, a criação contínua da acumulação (Lee, 1989). Aristóteles considera que se aumentamos a riqueza não por via daquilo que a natureza nos dá, mas pela via desta crematística antinatural isso acontecerá sempre mediante a exploração de alguém, desvirtuando o bem viver em sociedade, criando inevitavelmente assimetrias e desigualdades. Com a crematística antinatural uma inversão dos meios ocorre, o dinheiro deixa de ser um meio para se viver bem, vive-se para se ter dinheiro e com isso desequilibra-se a nossa vida comunitária e social. Conclusão É no âmbito da ontologia da troca que devemos situar a reflexão sobre a economia e o dinheiro, porque é aí que o metabolismo da nossa vida social se dá. Como vimos a crematística antinatural altera de forma nociva esse metabolismo, criando anomalias e perturbações de vária ordem. Podemos identificar pelo menos quatro: 1. Cada indivíduo individualiza-se e molda a sua vida para seu próprio prazer sem ter em conta o outro. Isto leva a uma vida de individualismo estrito sem restrições onde os outros são vistos de forma meramente instrumental. 12 2. É um jogo sem barreiras nem limites, em que o outro é percebido como uma coisa, onde alguns podem obter muito em detrimento dos outros, o que conduz a todo o tipo de condições injustas gerando desigualdades e assimetrias colocando permanentemente em risco a coesão social e a equidade. 3. A recusa da finitude e do limite assenta na racionalização da violência. A especulação financeira mais não é do que uma tentativa de calcular o imprevisível e de calcular o incalculável com base num jogo de probabilidades. 4. Estas irregularidades do funcionamento da economia são um verdadeiro risco para o reconhecimento e bom relacionamento entre pessoas e, por vezes, subvertem completamente as nossas interações e relações justas. Nesse sentido, é crucial sublinhar que na ontologia da troca, as relações reificadas do “jogo lucrativo” assentam nas relações não-reificadas de reconhecimento e não podemos ludibriar a diferença entre o ser das coisas que é a sua utilidade, e o ser das pessoas, que é a sua bondade no sentido dos seus poderes e habilidades (um bom advogado, um bom professor, um bom empresário, um bom artesão, ou um bom pintor). A bondade das coisas é compreendida na sua valorização, e a bondade das pessoas é compreendida e reconhecida no seu ser estimado, na cordialidade. As relações humanas são sempre relações de reconhecimento com base na estima entre 12 Ver Soares (2018). 79 mim e outros, as relações reificadas são relações muito pobres e desvirtuadas e, em certo sentido, violentas. Porque as pessoas são eus refletidos sobre si mesmos e sobre o mundo, as relações sociais são sempre relações de espelhamento, de reconhecimento mútuo. A ontologia da troca é uma ontologia entre pessoas e isso compreende as relações defeituosas e, às vezes, muito egocêntricas do “jogo lucrativo”. Pensar a economia e a crematística a partir da ontologia da troca pode levar a uma reflexão mais profunda sobre o funcionamento da nossa vida social e de como chegar a uma maior justiça e equidade. Isso só se conseguirá se tivermos, efectivamente, em conta que só nos desenvolvemos como seres humanos mediante a partilha, a interação, o reconhecimento mútuo e a estima, sem isso não há comunidade humana saudável e sem isso o nosso futuro fica seriamente comprometido. A vontade desmedida de ter mais acaba por ser um logro, uma ilusão temporária e que no final termina com um sinal de menos para todos. Bibliografia Aglietta, M. e Orléan, A. (1982). La violence de la monnaie. Paris: PUF. Aristóteles. (1991). Metaphysics (J. H. McMahon, Trad.). New York: Prometheus Books. Aristóteles. (1992). Politics (T.A. Sinclair, Trad.). London: Penguin Books. 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