quinta-feira, 4 de julho de 2024

O nascimento da tragédia sobre Nietzsche bbb

O nascimento da tragédia sobre Nietzsche bbb chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://aletp.com.br/wp-content/uploads/2017/12/nietzsche-a-visao-dionisiaca-do-mundo.pdf Sinopse Nos três textos traduzidos neste livro podemos acompanhar progressivamente o nascimento do primeiro pensamento filosófico de Nietzsche, que iria ser exposto e acabado em O nascimento da tragédia, mas que aqui revela uma intimidade que não mais poderemos encontrar nesta obra. Assim, no primeiro texto traduzido, “O drama musical grego” — conferência proferida por Nietzsche, aos 25 anos de idade, como professor de filologia da Universidade da Basileia — vemos este filósofo ainda muito preso às concepções de Wagner sobre a arte. Na conferência seguinte, “Sócrates e a tragédia”, proferida dias depois nas mesmas circunstâncias, entramos já num terreno em que a originalidade de Nietzsche começa a se afirmar. Esta última conferência rendeu ao filósofo suas primeiras antipatias no meio acadêmico, pois nela estava implícita uma crítica a todo o mundo erudito, a todo cientificismo e a todo racionalismo cujas limitações impediam, segundo Nietzsche, uma penetração verdadeiramente originária no sentido mais primordial e mais vigoroso da civilização grega antiga. Mas é no último texto por nós traduzido, em “A visão dionisíaca do mundo”, que aflora o pensamento mais próprio de Nietzsche, quando pela primeira vez vemos expostas as suas concepções do dionisismo, do apolinismo e de toda uma visão artística do mundo que deveria substituir as tentativas, fadadas ao fracasso, da erudição de tocar o cerne originário de onde emanou toda a força de vida da humanidade grega antiga. Todo este texto é composto de fórmulas plenas de fertilidade, que darão o primeiro impulso ao pensamento nietzscheano e que ressoarão ainda no seu pensamento mais tardio. Visando facilitar o mais possível ao leitor o acesso aos textos traduzidos, fizemos com que a tradução fosse acompanhada por notas detalhadas, veiculando informações e mesmo explicando passos difíceis. Ademais, dispusemos, antes de cada texto, uma “Nota introdutória”, com informações biográficas oportunas tiradas da correspondência de Nietzsche e de suas mais importantes biografias, preparamos um “Prefácio dos tradutores”, uma “Introdução sobre o teatro grego antigo no seu contexto de surgimento e desenvolvimento”, que pode proporcionar informações gerais sobre o teatro grego esclarecedoras para todos os textos traduzidos, e um “Posfácio”, que tem o intuito de possibilitar uma penetração no universo do pensamento de Nietzsche.Contracapa “(...) É somente em “A visão dionisíaca do mundo”, escrito durante o verão de1870, que as categorias estéticas do apolíneo e do dionisíaco são resolutamente introduzidas. Durante as conferências proferidas no começo de 1870, os cortejos dionisíacos, a vida natural dionisíaca eram mencionados, mas o contexto era mais concreto, mais flutuante; e, em contrapartida, o termo ‘apolíneo’ só aparece em um emprego não estético, em que, curiosamente, tratava-se da ‘clareza apolínea’ de Sócrates, em referência à dialética e à ciência. Quanto ao resto, em “O drama musical grego”, a preocupação com relação às teses wagnerianas é importante demais e faz obstáculo a uma exposição original. Ele insiste sobre a crítica da ópera moderna e da tragédia clássica francesa: e, como antítese, o drama antigo é apresentado como uma pluralidade unificada de contribuições artísticas paralelas, em que a música ela mesma é rebaixada ao nível de meio em vista de um fim. Por outro lado, em “Sócrates e a tragédia”, a crítica de Sócrates e de Eurípides se desenrola de modo jocoso à maneira de Aristófanes, com um desenvolvimento mais aceitável e mais convincente do que em O nascimento da tragédia.” (Giorgio Colli1 , In Escritos sobre Nietzsche). Nota 1 Giorgio Colli preparou a edição, com Mazzino Montinari, das “Kritischen Gesamtausgabe”, a Edição Crítica em alemão das obras completas de Nietzsche.Apresentação PREFÁCIO DOS TRADUTORES A nossa tradução se baseia na Kritische Studienausgabe2 organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Em sua revisão tivemos o cuidado de cotejá-la, particularmente, com as traduções de André Sánchez Pascoal e de Jean-Louis Backès para as línguas espanhola e francesa, respectivamente. Em algumas passagens chegamos a adotar a solução de algum destes tradutores, quando elas nos pareceram melhores do que as encontradas por nós — o que se tornou oportuno pelo fato destas traduções terem sido feitas em línguas latinas como a nossa. Mas em muitas passagens, e mesmo no todo da tradução, tivemos que nos afastar tanto do texto espanhol como do francês — no que vale, entretanto, mencionar a extrema fidelidade da tradução espanhola de André Sánchez Pascoal. Algumas poucas passagens, que encontramos na versão de um ou outro tradutor, em que o sentido do texto original era particularmente traído, deixamos assinaladas em nota, indicando as razões que nos levaram a nossa própria tradução. Os textos que traduzimos neste volume são duas conferências proferidas por Nietzsche no exercício de sua atividade docente na Basileia, com os títulos “O drama musical grego” e “Sócrates e a tragédia”, e um texto, intitulado “A visão dionisíaca do mundo”, que pela sua importância dá o título ao nosso livro. Todos estes textos foram escritos por Nietzsche pouco antes da elaboração de O nascimento da tragédia, para apresentar suas ideias sobre a arte grega, que amadureciam sob as influências cardeais de seus estudos filológicos, da filosofia de Artur Schopenhauer e das concepções artísticas de Richard Wagner, e que constituíram, com modificações, acréscimos e supressões, o núcleo mais significativo desta obra. Desta maneira, na primeira conferência, “O drama musical grego”, encontram-se esboçadas as concepções sobre o teatro grego que serão expostas nos capítulos 7 e 8 e 9, principalmente, de O nascimento da tragédia — a saber, a concepção do ator e do poeta trágicos, do coro e de sua origem a partir do cortejo orgiático, as diferenças entre o público da tragédia grega e o público do teatro contemporâneo, entre a tragédia antiga e a ópera, etc.. Nesta primeira conferência, porém, a influência de Wagner ainda é muito marcada, a ponto de não podermos perceber muito bem a originalidade das concepções artísticas de Nietzsche. É na progressão, justamente, de todos os três textos que podemos ver surgir, pela primeira vez, a originalidade particular do pensamento de Nietzsche e de toda a sua visão artística do mundo. Assim, na segunda conferência, “Sócrates e a tragédia”, faz-se notar uma ousadia de pensamento que iria atemorizar o próprio Wagner. Partindo de uma interpretação penetrante das obras de Aristófanes — particularmente de As rãs —, Nietzsche nos mostra a obra de Eurípides e sobretudo o socratismo, enquanto gênio racional orientador da criação artística euripidiana, como agentes determinantes da decadência de toda a arte grega — e consequentemente da civilização grega, como poderemos entender em nosso “Posfácio” — ao eliminarem da tragédia a hegemonia do espírito da música e ao desencadearem na arte trágica a preponderância da potência da lógica. Esta conferência, justamente, rendeu a Nietzsche as primeiras inimizades, ao promover a crítica ao cientificismo característico do meioacadêmico em que este pensador, como professor de filologia, se inseria, e ao negar a todo racionalismo a possibilidade de tocar o cerne da força vital da humanidade grega, como queria a filologia. Aqui, pela primeira vez, se declara a filosofia a marteladas, a destruição necessária à criação, tão característica do pensamento nietzscheano. O núcleo instigante de polêmica desta conferência se transferiu para O nascimento da tragédia, constituindo-se no foco das controvérsias a seu respeito. Com efeito, partes de “Socrates e a tragédia” foram aproveitadas para compor o capítulo 11 e alguns outros seguintes desta obra — sendo que somente na conferência podemos constatar com propriedade a importância que o gênio crítico de Aristófanes teve para a interpretação de Nietzsche da decadência da civilização grega. Em “A visão dionisíaca do mundo”, enfim, o apolinismo e sobretudo o dionisismo têm uma exposição inigualável, que nos permite, como em nenhum outro texto, compreender muito do fundamental destas concepções. A visão artística do mundo de Nietzsche encontra aqui, pela primeira vez, um acabamento fértil de ressonâncias em todo mundo do pensamento e da arte, manifestando, em seu primeiro brilho, toda a força de sua originalidade. O essencial desta visão artística do mundo constituiu-se nos alicerces do pensamento que se consubstanciou em O nascimento da tragédia, e que em boa parte se desenvolveria em toda a sua obra posterior. No texto que aqui traduzimos, porém, muito do que naquela obra apareceu apenas sob forma de alusão encontra um desenvolvimento mais amplo e mais rico, permitindonos um acesso mais íntimo ao seu sentido. Com o intuito de proporcionar informações que possam ajudar na compreensão e contextualização das traduções, nós colocamos, adiante, antes dos textos traduzidos, uma “Nota Introdutória” em que resumimos os dados biográficos do autor mais significativos concernentes a cada texto, e logo a seguir uma “Introdução” que visa informar, ainda que de uma maneira muito geral mas oportuna, sobre o teatro grego antigoIntrodução Sobre o Teatro Grego Antigo no seu Contexto de Surgimento e Desenvolvimento MARCOS SINÉSIO PEREIRA FERNANDES* O teatro grego surgiu no contexto do culto religioso, estando ligado particularmente ao deus Dionísio, e nunca esteve desligado da religião. A palavra teatro vem do grego théatron (θεατρον), em que théa (θεα) quer dizer ‘ação de olhar, de contemplar; aspecto; objeto de contemplação, espetáculo etc,’ e em que o sufixo –tron (τρον) significa ‘instrumento de’, donde théatron querer dizer ‘máquina de espetáculos’. Théa e théatron derivam do verbo theáomai (θεαοµαι ou θεωµαι) que significa ‘ver, contemplar, considerar, examinar, ser espectador; contemplar pela inteligência etc.’ Derivada da mesma origem é a palavra theoría (θεωρια), que quer dizer ‘ação de observar; ação de ver um espetáculo, de assistir uma festa; (e posteriormente) contemplação do espírito, meditação, estudo’, da qual deriva a nossa palavra teoria. O teatro teve em sua origem duas modalidades artísticas principais: a tragédia e a comédia. A palavra tragédia (τραγωδια) deriva de trágos (τραγος), que significa ‘bode; puberdade, os primeiros desejos do sentido, lubricidade (pois o bode simbolizava para os antigos, pelas suas características, o desejo sexual, a lubricidade)’, e de ode (ωδη), que significa ‘canto com acompanhamento de instrumentos; ação de cantar’. A palavra tragodía (τραγωδια) mesma significava em grego ‘canto do bode; canto religioso com o qual se acompanhava o sacrifício de um bode nas festas de Dionísio; tragédia, drama heroico; evento trágico etc’. O tragodós (τραγωδος) era primordialmente aquele que dançava e cantava durante a imolação de um bode nas festas de Dionísio, sendo que este termo significou também, em seguida, ‘aquele que dança e canta em um coro trágico; ator trágico; membro do coro trágico; poeta trágico etc’. Alguns estudiosos, em nossos dias, interpretaram que o canto do bode era o canto dos companheiros de Dionísio em seus cortejos orgiáticos, dos sátiros, os filhos de Sileno — que teria, segundo uma tradição, sido um educador daquele deus (Sileno era famoso pela sua feiúra e sua sabedoria, e suas formas eram em parte equinas). Porém, só muito tardiamente — a saber, na época helenística e romana da cultura grega — os sátiros foram representados como seres em que se misturavam formas humanas e formas caprinas, tendo os membros inferiores até mais ou menos a cintura em forma caprina e um chifre e feições que lembravam as feições caprinas. No tempo áureo das tragédias e mesmo pouco depois — a saber, no século V e IV a. C — , os sátiros apareciam como seres em que se misturavam as formas humanas com a equina, tendo então os membros inferiores semelhantes às patas traseiras de um cavalo, além de um rabo e orelhas de cavalo3. Esta hipótese permaneceu, porém, apoiada em passagens de textos do século V (particularmente no fragmento 207 do Prometeu Pirceu de Ésquilo) em que sátiros são chamados de bode, não pela sua forma, mas hipoteticamente pela sua lascívia — pois, como já dissemos, o bode écaracterizado pela lubricidade. Uma outra hipótese foi a de que o canto do bode era o canto lamentoso da vítima sacrificada a Dionísio — que como vimos acima era um bode. Toda a tragédia se assemelha a um ritual de sacrifício. No centro da orquestra, no teatro grego, havia um altar a Dionísio (o thyméle — θυµελη), sugerindo que o destino trágico do herói a representação trágica eram como uma imolação a Dionísio. Na Grécia, sobretudo nas épocas arcaicas, eram praticados rituais de sacrifício dos chamados bodes expiatórios (em grego pharmakós — ϕαρµακος), em que um indivíduo, carregado de todas as impurezas da comunidade, era sacrificado. Em Atenas havia um ritual nas festas chamadas Targélias, dedicadas a Apolo e Ártemis, que remetia a este sacrifício. Um homem e uma mulher eram surrados enquanto eram conduzidos através de toda a cidade. Depois eram sacrificados fora das fronteiras da cidade, queimados, e suas cinzas jogadas no mar. Na época clássica eram apenas jogados no mar e depois expulsos para fora das fronteiras da cidade. Eles eram chamados de pharmakoí, bodes expiatórios. O ritual de sacrifício era uma tradição que existia em muitas outras civilizações. Nas Sáceas4 babilônicas, por exemplo, que são mencionadas por Nietzsche em O nascimento da tragédia, um prisioneiro era sacrificado depois de ser nomeado rei da Babilônia por cinco dias, tempo em que tinha direito a desfrutar de todo o harém do próprio rei e de dar livre curso a todos os seus apetites até o momento de seu sacrifício. Durante este tempo as orgias eram celebradas em toda a cidade. Os sacerdotes rezavam nos templos para que o caos não tomasse definitivamente conta de toda a cidade, até o prisioneiro-rei ser sacrificado. Depois disso, o antigo rei, representando Marduk, o rei dos deuses babilônicos, libertando-se do mundo dos mortos em que estivera detido durante o tempo das orgias, matava Tiamat, o monstro que ameaçava o mundo com sua força caótica, e que tinha caráter feminino. Do corpo de Tiamat dividido em dois pela sua espada ele fazia ressurgir o Céu e a Terra, e assim reinaugurava a ordem no universo. Pouco depois, a ordem em toda a cidade era restaurada, e o rei assumia novamente o seu reinado. Aristóteles afirma na Poética5: “A tragédia (...) opera a catarse (καθαρσις) dos sentimentos de piedade e de temor”. Na Política6 diz ainda o filósofo: “Além disso a flauta7 não age sobre o costume, ela tem antes o caráter orgiático, de maneira que ela não deve ser empregada senão nas ocasiões em que o espetáculo tende antes à catarse (καθαρσις) das paixões do que à nossa instrução.” E mais adiante, na mesma obra8, podemos ler: “Nós aceitamos a divisão das melodias, proposta por certos autores versados em filosofia, em melodia moral, melodia ativa e melodias que provocam o entusiasmo, e, segundo eles, os modos musicais são naturalmente apropriados a cada uma destas melodias, um modo respondendo a um tipo de melodia, um outro a um outro; mas nós dizemos, de nosso lado, que a música deve ser praticada não só em vista de uma vantagem, mas de várias (pois ela tem em vista a educação e a catarse (καθαρσις) — mas o que entendemos por catarse (καθαρσις) ? Por agora nós tomamos este termo em seu sentido geral, mas nós tornaremos a falar dele mais claramente em nossa Poética(...)” A palavra grega katharsis (καθαρσις), de onde se origina catarse em português, significa ‘purificação, purgação; alívio da alma pela satisfação de uma necessidade moral; cerimônia de purificação às quais eram submetidos os candidatos a alguma iniciação’.Katharsios (καθαρσιος) significa ‘o que se pode purificar ou expiar; o que purifica’ e tó katharsion (το καθαρσιον) significa ‘sacrifício expiatório; vítima oferecida para um sacrifício expiatório’. Com o que já dissemos acima podemos entender que a hipótese da interpretação de tragédia como um sacrifício encontra o seu eco aqui. Nietzsche, porém, no contexto de pensamento dos textos que traduzimos neste livro, interpretou a catarse, a purificação, como um gozo estético que só a música sublime poderia proporcionar, ou seja, a música que se volta para o fundo de dor da Vontade, para o Uno-originário de pura dor, e cria a sua imagem mais acabada. O gozo estético pode ser interpretado como uma sublimação do sacrifício, em que o homem se coloca o mais adequadamente diante do fundo de dor da Vontade que constitui todo o mundo, realizando o supremo êxtase desta, que é justamente o sentido de catarse para Nietzsche. Essa possibilidade de transformar a dor em êxtase, pela via da estética, seria justamente o sentido aliciador para a vida do pensamento de Nietzsche desde o seu ponto de partida, que assim já diferencia-se essencialmente do pensamento de Schopenhauer. Mas não temos espaço para explicar aqui satisfatoriamente esta conjuntura de pensamento. Recomendamos a leitura do nosso “Posfácio” para quem quer dar mais alguns passos neste sentido.A comédia, em grego komodía (κωµωδια), vem de kômos(κωµος) que significa ‘festa dórica com cantos e danças em honra de Dionísio; festa com cantos e danças nas ruas, em honra do vencedor ou do aniversário da vitória em um dos quatro grande jogos helênicos; grupo de pessoas que percorriam as ruas depois de um festim, com música, cantos e danças; festim, banquete’. Komos (Κωµος) era uma divindade da alegria e do prazer. A origem da comédia é muito discutida. Aristóteles disse, em sua Poética9, que ela teria derivado dos cantos fálicos. Nas dionisíacas rurais, em Atenas, por exemplo, que eram comemoradas em cada demos no mês de dezembro, como festas de agradecimento pela colheita, sobretudo, do vinho, e em que tinha lugar alegres entretenimentos, havia uma longa procissão cantada, que era justamente chamada de komos, a qual era conduzida por canéforas10 e por jovens que levavam vinho, folhas de parreira, figos e o bode que devia ser sacrificado; no fim do cortejo era portado um falo11. Depois do sacrifício se representava a origem de Dionísio em farsas improvisadas. Alguns estudiosos, porém, dizem que a comédia provém do cortejo jocoso, que é significado por kômos, em combinação com uma farsa literária. Não nos ocuparemos em aprofundar aqui a discussão sobre a origem obscura da comédia porque ela não interessa tanto quanto a tragédia para a compreensão dos textos de Nietzsche que queremos esclarecer. A tragédia teria derivado, segundo Aristóteles12 , do ditirambo. Nietzsche concorda com Aristóteles neste ponto. Por isso, deixaremos indicado aqui, resumidamente, o que era o ditirambo. O ditirambo era cantado, em honra de Dionísio, nos primeiros dias da primavera por um coro cíclico, ou seja, por cantores-dançarinos que evoluíam em círculo em torno de um altar — como faria também o coro trágico, mais tardio. Ele era acompanhado pela flauta dupla, instrumento lendário do sátiro Marsyas. Cinquenta pessoas, vestidas de sátiro como o cortejo do deus, compunham o coro, do qual se destacava um corifeu, que representava Dionísio, e que cantava em contraposição ao coro. O ditirambo teria se originado em Sicione, como um canto cultual a Dionísio, de onde passa a Corinto, na época do tirano Periandro (tido, em algumas listas tradicionais, como um dos sete sábios), onde teria sido reorganizado pelo citaredo Arion13 que seria também o autor do próprio nome14 ‘ditirambo’. Arion teria feito cantar ditirambos em Corinto por alguns coreutas disfarçados de sátiros, com o rosto sujo de borra de vinho e a cabeça coberta de folhagens. É de Corinto que teria passado a Atenas. Em Atenas o primeiro concurso de ditirambo teria sido organizado em torno do ano 508 e 505 a. C. (portanto na época de Clístenes, tido como fundador da democracia ateniense). O primeiro grande compositor de ditirambos em Atenas teria sido Lasos de Hermione, e entre seus sucessores estão Píndaro, que fora também seu aluno, Simonides (que teria vencido o concurso em 489 a. C e obtido além disso 56 triunfos) e Bacchylides. Além de do ditirambo, Aristóteles15 também deriva a tragédia do drama satírico (ou do satírico simplesmente, como está no texto aristotélico: satyrikoû — σατυρ ικου), que nos primeiros tempos do concurso de tragédias devia ser apresentado ao final de uma triologia trágica (como veremos adiante). Os estudiosos ainda especulam se Aristóteles nesta passagem não queria chamar de drama satírico o ditirambo. Alguns autores consideraram que Arion teria sido também o primeiro a compor uma tragédia. De acordo com Heródoto16, porém, a tragédia teria a sua origem em Sicione, instituída pelo tirano Clístenes17. Segundo o pai da história, ela teria derivado de um culto ao herói Ádrastos18, que envolvia coros que cantavam as desventuras do dito herói, denominados por Herôdotos de coros trágicos19. Adrastos representava a aristocracia em Sicione, e por isso o tirano Clístenes teria querido banir o seu culto, o que só conseguiu transformando-o em um culto a Dionísio, ao invés de a Ádrastos. Nisto vemos a ligação original do apolinismo com o dionisismo, aludida por Nietzsche, na ligação da arte apolínea, própria da aristocracia mais original da polis, com a arte dionisíaca que trazia à representação as forças do devir que incidiam na polis. O dionisismo, de acordo mesmo com o pensamento de Nietzsche, tem relação com o advento da força da Terra, do apego à riqueza, à vida material, aos apetites, ao desejo, forçando a decadência da elevação apolínea na polis sob a hegemonia da aristocracia guerreira. Com as vicissitudes do devir na polis grega em geral, foi se acumulando uma camada de população não escrava, advinda de cidadãos malogrados e que perderam suas terras, e de estrangeiros que por vários motivos emigraram de suas pátrias e vieram viver em outra polis. Esta população, que tinha perdido o vínculo com a terra, característico da aristocracia original — arsitocracia que prezava a sua nobreza de sangue e que como nobreza guerreira tinha fundado a elevação apolínea constituidora primordial da polis –, passou a veicular tensões na polis justamente em torno do que chamamos hoje de bens materiais, que eram o problema candente desta parte da população. Esta população, quando não sucumbiu na pobreza e marginalização, se constituiu na classe dos artesãos e dos comerciantes — esta última assumindo grande importância em Atenas. Ela foi agente de variadas conturbações no estado apolíneo e deu ensejo à instalação de diversas tiranias, que derrubaram a hegemonia da aristocracia original e apoiaram-se na camada mais pobre da população ou na classe mais abastada, liderada muitas vezes pelos comerciantes. Em todos os casos passou a haver uma valorização das forças da Terra, do que nós chamamos hoje de valores materiais: a riqueza, o desejo, etc.. Estes valores entravam em tensão com o parâmetro da virtude guerreira original, a coragem, que implicava um comedido desapego de toda a vida sobre a Terra, de tudo o que nós chamamos hoje de bem material — como mostraram os espartanos — e uma valorização de bens que pairam acima de todo devir sobre

Nenhum comentário:

Postar um comentário