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quinta-feira, 4 de julho de 2024
Doutrina social da Igreja bbb
Doutrina social da Igreja bbb
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"... Assim falando, urbi et orbi, Leão XIII reprojectava a Igreja, depois de um eclipse de cem anos, como aquela instância suprema sob cujas directrizes o Estado, os patrões e os operários deveriam actuar, com vista a uma «economia moral» que haveria de produzir, com equilíbrio e realismo, uma sociedade em harmonia e paz e uma ordem material justa Só um tal ordenamento socio-económico (conservador na política, socializante na economia, virtuoso e caritativo na moral) permitiria um status quo imune tanto ao egoísmo dos ricos como ao revolucionarismo dos pobres, isto é, simultaneamente alternativo tanto ao capitalismo mais selvagem e individualista como ao socialismo mais radical e revolucionário. Como em todo o ensinamento da Igreja, o segredo estava afinal num regresso à pureza das origens, ou seja, àquela caridade «paciente» e «benigna», de que falara São Paulo na sua l.a carta aos Coríntios, e que Leão XIII fez questão de invocar no fecho da encíclica 12°. A Rerum Novarum teve uma enorme repercussão, à escala do mundo ocidental de então - não apenas nos meios católicos, mas também fora deles. A maioria dos comentadores não hesitou em ver nela um claro sinal que consagrava a ruptura operada por Leão XIII face ao seu antecessor Pio IX. De um catolicismo integrista e fechado, o papado e, com ele, a Igreja, recuperava um prestígio perdido, abrindo os braços ao século e às massas, ou seja, caminhando resolutamente «do romanismo para um catolicismo mais largo» e «da diplomacia de gabinete para um apostolado mais democrático» 1 2É claro que houve, nos meios católicos, um lado, ainda aferroado ao legitimismo mais tradicionalista, que se escandalizou com a «modernidade» de Leão XIII - da mesma forma que os socialistas e, em geral, a esquerda europeia, consideraram uma aberração a intervenção do Papa nos problemas materiais da sociedade I22. "
O legado histórico de Leão XIII e da encíclica Rerum Novarum «Leão XIII estabeleceu um paradigma permanente para a Igreja. Esta, com efeito, tem a sua palavra a dizer perante determinadas situações humanas, individuais e comunitárias, nacionais e internacionais, para as quais formula uma verdadeira doutrina, um corpus, que lhe permite analisar as realidades sociais, pronunciar-se sobre elas e indicar directrizes para a justa solução dos problemas que daí derivam». (JOÃO PAULO II, Centesimus Annus, 1991) 1. Introdução Em meados de Novembro de 2002, a propósito do crescendo de contestação socio-laboral registado na sociedade portuguesa, a Conferência Episcopal divulgou uma nota pastoral, intitulada O Trabalho na Sociedade em Transformação, com o objectivo explícito de trazer o contributo da Igreja para a reflexão sobre as questões do trabalho, considerado «uma dimensão fundamental da existência humana sobre a terra» e sempre perspectivado «à luz dos princípios da Doutrina Social da Igreja». Os bispos portugueses explicitavam o sentido das suas recomendações no desenvolvimento da nota. Era seu entendimento que, nas sociedades fortemente competitivas e tecnologicamente inovadoras do início do século XXI, regidas pelos «mecanismos do mercado» e por um «pensamento neo-liberal, de cariz individualista», se tornava desde logo necessário reconsiderar o «mundo do trabalho» à luz de uma «dimensão ética», ou seja, «num conjunto de direitos e deveres que impliquem todos os intervenientes», a satisfazer «na perspectiva da paz social, alicerçada na justiça e construída através do diálogo». DIDASKALIA 3-55 XXXIV (2004) 4 DIDASKALIA Defendendo a Igreja que «o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social», essa mesma vida económico-social deveria ser «concebida de modo a que todos os homens e mulheres participem dos benefícios e dificuldades resultantes da actividade económica, segundo os princípios da justiça e da equidade». Isto significa entender o trabalhador não como um «sujeito passivo» do sistema económico mas, ao invés, como um seu elemento activo, cuja inalienável dignidade humana deve ser salvaguardada antes, e por sobre, o mero critério economicista da competitividade. E verdade que a Igreja reconhece o valor positivo do mercado e da empresa, «orientados para o bem comum»: mas desejável é que, no interior dos dois - mercado e empresa-por critérios de justiça e sob o olhar vigilante do Estado, não deixe de haver «uma certa igualdade entre as partes» (capital e trabalho), «de modo que uma delas não seja de tal maneira mais poderosa que a outra que praticamente a possa reduzir à escravidão». A dignidade do trabalho, e no trabalho, pressupõe assim que cada trabalhador possa ter condições para prover condignamente à sua subsistência, e à da sua família, e também para encontrar resposta para as «necessidades de ordem espiritual e cultural que os mecanismos económicos não favorecem». A nota da C.E.P. salientava ainda que a produtividade, outro dos conceitos-chave do discurso económico corrente, não poderia implicar a redução do homem a um «mero instrumento e factor de produção», uma vez que todo o agente da economia, ou seja, não apenas o trabalhador mas também o empresário, é «sujeito de direitos e deveres». Relembrando o «princípio universal do direito à propriedade privada», embora à luz da sua necessária subordinação ao bem comum, os bispos portugueses declaravam que os meios de produção não deveriam ser possuídos «contra o trabalho», mas a favor, e ao serviço, do trabalho. Seria assim desejável que, mediante o contributo «responsável» dos sindicatos, o tecido empresarial e fabril português promovesse «a participação activa de todos na gestão das empresas», ali realizando não apenas lucros, indubitavelmente um importante indicador de sucesso económico, mas «comunidades de pessoas». A luz destes princípios, qualquer «código de trabalho» terá de salvaguardar a dignidade da pessoa e a solidariedade colectiva, compatibilizadas com as exigências de melhoria global das condições económicas vigentes. Segundo a Igreja, a legislação laboral deve não apenas ouvir o associativismo do mundo do trabalho como respeitar, no emprego, na remuneração ou nos horários «a necessidade de defender os direitos da família», especialmente nos O LEGADO HISTÓRICO DE LEÃO XIII E DA ENCÍCLICA RERUM NOVARUM 1 5 momentos de mais aceso «confronto social». Na conclusão, os bispos portugueses exortavam a comunidade cristã a «reflectir, analisar e fazer um discernimento das situações e condições do trabalho à luz da Doutrina Social da Igreja», renovando deste modo, na «procura diligente das mudanças a promover», a «sua confiança na força e na originalidade das exigências evangélicas». Naturalmente datada, enquanto resposta conjuntural a um problema também conjuntural e localizado - a agitação suscitada em Portugal pela projectada revisão das leis do trabalho, sobre um pano de fundo de crise económica e de agitação social - a nota da Conferência Episcopal Portuguesa é uma espécie de aggiornamento da Doutrina Social da Igreja, e esta mesma uma espécie de codificação moderna das exigências evangélicas e dos fundamentos da teologia cristã para aplicação aos problemas das sociedades contemporâneas. Ora, a intervenção sistemática, e sistematizada, da Igreja católica nos problemas da sociedade, da economia e das relações laborais tem pouco mais do que um século de história, pese embora os seus muitos e variados antecedentes Remonta, por junto, ao pontificado de Leão XIII (1878-1903) e, muito especificamente, à sua encíclica Rerum Novarum, unanimemente considerada, por teólogos e historiadores, a «magna carta» fundadora da Doutrina Social da Igreja. Nas palavras de um autor actual, «não foi senão com Leão XIII que as preocupações sociais da Igreja receberam uma sistematização filosófica e teológica (...) (por isso) todos 1 De acordo com o Papa João Paulo II, «a atenção aos problemas sociais faz parte, desde o início, do ensino da Igreja e da sua concepção do homem e da vida social e, especialmente, da moral social, que foi sendo elaborada segundo as necessidades das diversas épocas. Tal património tradicional foi depois herdado e desenvolvido pelo ensino dos sumos pontífices sobre a moderna questão social a partir da encíclica Rerum Novarum» (Encíclica Laborem Exercens, 1981, cit. por Augusto da SILVA, Continuidade e inovação na doutrina social da Igreja in Análise Social, n.° 123-124, Lisboa, 1993, p. 781). V. também Paulo Fontes, A Doutrina Social da Igreja numa perspectiva histórica in Questões Sociais, Desenvolvimento e Política. Curso de Doutrina Social da Igreja, Lisboa, Universidade Católica Editora, CESP, 1994, p. 68. Todos os autores são unânimes em filiar os origens longínquas da Doutrina Social da Igreja nas próprias raízes do cristianismo expressas, por exemplo, nos evangelhos ou nos textos apostólicos e epistolares; depois, e subsequentemente, a patrística e os teólogos medievais (particularmente Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) abordaram repetidas vezes questões como a posse de bens materiais, o lucro e a usura, na perspectiva da justa organização da sociedade (Michael J. WALSH, Caminhos da lustiça e da Paz. Doutrina Social da Igreja. Documentos de 1891 a 1991, coord. de Peter Stilwell, 4." ed., Lisboa, Rei dos Livros, 2002, Introdução geral, p. 17, e Charles E. CURRAN, Catholic Social Teaching (1891-Present). A Historical, Theological and Ethical Analysis, Washington, Georgetown University Press, 2002, pp. 2-4). 6 DIDASKALIA os católicos interessados nessas temáticas citam Leão XIII como o pai de tais preocupações»2. Nesse sentido, nenhuma das intenções, e quase nenhuma das palavras, contidas na nota dos bispos portugueses é estranha à obra e ao legado permanente de Leão XIII. Sempre que se pronunciam no campo socio-económico, todos os prelados católicos, portugueses e não só, recolhem a sua inspiração numa fonte aberta pelo catolicismo leonino e sucessivamente aprofundada - na forma do discurso, mais do que nos seus grandes princípios - pelos sucessivos papas que, desde Leão XIII até à actualidade, ocuparam o trono de Pedro. 2. O sentido da Doutrina Social da Igreja Por Doutrina Social da Igreja pode entender-se, comummente, o discurso ou conjunto de ideias e ensinamentos com que a hierarquia eclesiástica se pronuncia acerca dos desafios e problemas a cada momento levantados pelas sociedades humanas. Nesse sentido, e desde a sua origem, ela nunca foi um corpo ideológico estático e imutável, revelando, bem ao invés, um carácter dinâmico, evolutivo, e adaptável sucessivamente a novas realidades, na medida em que os problemas suscitados pela democracia, pela modernidade, pelo capitalismo ou pelo socialismo de hoje são naturalmente diferentes daqueles de há cem anos atrás3. Por isso mesmo, a própria expressão «doutrina social da Igreja» não colhe a unanimidade entre os meios católicos, havendo quem lhe prefira outras formas, que substituam a palavra «doutrina» - tida porventura por excessivamente estanque - por uma alternativa que espelhe melhor a dinamicidade dos discursos e pontos de vista eclesiásticos sobre a realidade social circundante. Não foi aliás Leão XIII quem criou a expressão, preferindo falar antes do «conjunto de direitos e deveres que a filosofia cristã ensina»4. Só com Pio XI, já bem entrado o século XX, se popularizou a designação «doutrina social da Igreja»5; o Concílio Vaticano íleo Papa Paulo VI pouco a usaram, e só com João Paulo II ela foi de novo promovida, 2 Gene BURNS, The Frontiers of Catholicism. The Politics of Ideology in a Liberal World, Berkeley / Los Angeles, University of California Press, 1992, p. 32. V. também, sobre o pioneirismo do Papa Leão XIII, Ildefonso CAMACHO, Doctrina social de la Iglesia. Una aproximación histórica, Madrid, Ediciones Paulinas, 1991, p. 12. 3 Ildefonso CAMACHO, op. cit., p. 18. 4 Paulo FONTES, op. cit., p. 79. 5 Gene BURNS, op. cit., p. 32. O LEGADO HISTÓRICO DE LEÃO XIII E DA ENCÍCLICA RERUM NOVARUM 1
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