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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
INCOMPLETUDE
PORQUE ANDA SUMIDA A NOÇÃO DE INCOMPLETUDE Humpty Dumpty, o gnomo irascível, afirma a Alice: “Quando utilizo uma palavra, ela significa precisamente aquilo que eu quero que ela signifique. Nada mais, nada menos”. Alice contesta dizendo que “o problema está em saber se é possível fazer que uma palavra signifique montes de coisas diferentes”. Ao que Humpty Dumpty replica com arrrogância: “O problema está em saber quem é que manda. Ponto final".
Nesse diálogo, o autor Lewis Carrol nos introduz a um sentimento evocado muito raramente: o sentimento de incompletude, anacrônico, ao que parece, nesta atualidade em que nos impingem a regularidade do mecanismo, como suprassumo da competência e da responsabilidade. Incompletude não significa falta; ao contrário, significa excesso. Vou a um concerto musical e à saída, em conversa com os demais, observo que cada um reteve da execução da peça musical uma dimensão diversa. Um se prendeu à melodia, outra ao andamento, outro à estrutura harmônica, outro ao desempenho do maestro, outro à execução da orquestra, outro à inspiração do tema, outro à convergência harmônica dos movimentos e assim por diante. Isso é a exponenciação da realidade vivida: o sentimento de incompletude. Tudo isso reunido em mim, que os ouço, numa mesma pessoa. É como se fosse uma ascensão sem fim rumo a mim mesmo, ou a nós mesmos como comunidade. A realidade, ou a experiência de viver, não cabe em palavras. A própria existência é um excesso: Há mais sonhos a sonhar do que a nossa capacidade de realizá-los. Há mais seduções do que possibilidades de se entregar a elas. O que nos priva do sentimento da incompletude é o mundo linear da quantidade, que nos asfixia na atualidade. ao fragmentar a experiência do tempo do relógio, mediante a noção de progresso, ou de futuro, ou de esperança ou de utopia. "O progresso, o futuro e toda a constelação semântica associada à quantidade consistem em fragmentar a plenitude do presente em pequenas quantidades contraditórias, do amanhã e depois do amanhã, portadoras de uma frustração intrínseca, que faz desejar mais a mesma coisa, sob a falsa aparência de outra, elevando ao paroxismo a sensação de escassez. Um novo automóvel, saído de fábrica, já vem com a sua imagem bichada, ao ser reconhecido pelo seu comprador e pelos outros num determinado ponto da escala de prestígio e status, abaixo da categoria que lhe está acima. Esse é o espetáculo da mercadoria, que compraz ao tempo em que frustra (Vaneigem, R., Traité de savoir vivre à l’usage des jeunes genérations, Paris, Gallimard, 1967. |Leia-se também Baudrilhard, J.; A sociedade de consumo, Lisboa, Edições 70, 1975).
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