segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A jabuticaba e os vira-latas nacionais


Por Sergio Leo
"Existe só no Brasil e não é jabuticaba? Não presta". Poucos ditados concentram tão bem, em mensagem tão convincente, uma ideia tão equivocada.
Oscar Niemeyer é uma jabuticaba arquitetônica. O Bolsa Família é jabuticabalmente admirado e copiado pelas instituições internacionais que lidam com pobreza. A agilidade do sistema financeiro brasileiro, jabuticanabolizada pela sobrevivência à hiperinflação, não tem igual no mundo. O Plano Real, baseado em experiências internacionais e aclimatado para o solo brasileiro, foi uma jabuticabeira providencial, que rende frutos até hoje.
O ditado da jabuticaba é uma versão pouco frutuosa do que o economista Albert Hirschman, baseado em sua experiência como consultor internacional, especialmente na América Latina, chamava de "fracassomania": a incapacidade de ver os méritos nas adaptações e soluções locais, o pessimismo em relação às políticas - inclusive os aperfeiçoamentos incrementais e heterodoxos do capitalismo. Fernando Henrique Cardoso, amigo e admirador de Hirschman (como, aliás, José Serra), foi um dos que popularizam o termo fracassomania (que, curiosamente, Hirschman aplicou também a certos aspectos da teoria cardosiana da dependência).
Complexo de vira-lata não é um problema do Brasil
Hirschman desenvolveu sua tese a partir de outra expressão, em francês, também sacada da experiência em países em desenvolvimento: "la rage de vouloir conclure", a raiva de querer concluir: na ânsia de soluções e na pressa de terminar obras, governos, economistas, especialistas, inclinam-se pela aplicação dogmática de fórmulas já prontas e testadas em algum outro lugar, de preferência em países comprovadamente bem-sucedidos - sem notar que a receita de sucesso de um pode ser o caminho para o fracasso de outro, sujeito a condições diferentes.
A insistência em apontar as dificuldades e não reconhecer os avanços, ainda que incipientes ou insuficientes, está na raiz da fracassomania, como se queixava Fernando Henrique - que, porém, usou o termo equivocadamente ao defender, contra os críticos, a política de dólar desvalorizado dos anos 90. Ao rejeitar políticas originais e inovadoras como fatalmente ineficazes e destinadas ao fracasso, a ortodoxia, à direita e à esquerda, parece ignorar que situações inéditas podem exigir ações também singulares.
Não cabem metáforas de jabuticaba para analisar soluções e problemas que frutificaram por aqui. A emergência dos tais 40 milhões de novos integrantes da classe média, por exemplo, impulsionada por aumentos reais no salário mínimo e extensão da rede de proteção social, que foram possíveis devido a condições favoráveis no país e no mercado externo, trouxe ao Brasil novos padrões de consumo e poupança, ainda não inteiramente compreendidos. Essa jabuticaba merece mais que as preguiçosas avaliações sobre o esgotamento iminente do crescimento baseado no consumo.
Também faltam "jabuticabólogos" para orientar a excepcional situação do Brasil no cenário de comércio internacional, como grande produtor e exportador de commodities agrícolas e minerais, e portador, ao mesmo tempo, de um vigoroso mercado interno e uma complexa e diversificada estrutura industrial.
A ideia de partir para a liberalização da economia com a derrubada de barreiras a importados não encontra solo fértil em um país tão sensível aos lobbies industriais; mas a aplicação sem nuances de exigências de conteúdo nacional e de novas barreiras aos importados também entra em choque com um mundo de produção internacionalizada e pressão global por acordos de livre comércio, especialmente nas economias dinâmicas da Ásia.
Fazem falta no debate público vozes originais e tropicalizadas, como a do economista Antônio Barros de Castro, um dos primeiros a apontar a necessidade de uma estratégia mais sofisticada para lidar com o fortalecimento da China e com bilhetes premiados do Brasil, como as reservas do pré-sal, para as quais ele defendia uma política de exploração controlada, sem a urgência dos interessados em rentabilidade imediata.
A tese da fracassomania, que rejeita a singularidade da jabuticaba, se liga a outro clichê nacional equivocado: o complexo de vira-lata, diagnosticado pelo escritor Nelson Rodrigues para descrever a baixa auto-estima do brasileiro quando confrontado com o resto do mundo. Apesar do pedigree literário, essa é outra metáfora infeliz; Nelson Rodrigues estava correto ao criticar o narcisismo "às avessas" do brasileiro que "cospe em sua própria imagem"; mas errou ao eleger o malandro vira-lata como termo de comparação.
No imaginário popular, o mais conhecido vira-lata é um personagem de desenho animado, a quem Walt Disney deu independência e autoconfiança invejáveis. Disso entendem os Estados Unidos, que sempre louvaram suas jabuticabas, a ponto de transformar em ponto de honra a "excepcionalidade americana".
O vira-lata, mestiço e sem dono, não conhece limites, adapta-se às circunstâncias, sobrevive mesmo em condições precárias e reage às ameaças com sabedoria. Não merece ser comparado aos que, fracassomaníacos, desconfiam da própria capacidade de evitar os becos sem saída.
Quem se submete às vontades alheias, tem campo de ação regulado e costuma trocar a criatividade por truques ensinados pelo dono, são os cães de raça - todos, aliás, descendentes de vira-latas, resultado de gerações de cruzamentos para eliminar o inesperado e consolidar certas características especializadas.
Os cães de raça sempre serão úteis. Confiáveis, executam bem as ordens que recebem. Mas são os vira-latas que, na balbúrdia da rua, podem descobrir os melhores caminhos, com a autoconfiança que lhes garante a sobrevivência. Desde, é claro, que se livrem da coleira.
Nelson Rodrigues estava errado. O problema do Brasil não é o complexo de vira-lata. São os vira-latas complexados.
Sergio Leo é repórter especial do jornal Valor Econômico e escreve às segundas-feiras

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