Título original:
STF e o “mensalão”: Decisão perigosa sem precedentes para a segurança do indivíduo
No Brasil, uma Justiça que se baseia em conjecturas e condena por presunção.
Gilberto de Souza, via Correio do Brasil
O
julgamento da Ação Penal (AP) 470, no Supremo Tribunal Federal (STF),
sob os holofotes de setores da mídia comprometidos com os mesmos
interesses que mantiveram de pé uma das piores ditaduras já vividas na
América Latina, vai muito além das cores fortes com as quais o ministro
Joaquim Barbosa, relator do processo conhecido como “mensalão”, tenta
tingir a realidade ao contar uma história crível até, verossímil como os
grandes romances, mas afastada das provas contidas nos autos. Se a
compra de votos de parlamentares transitar em julgado na mais alta Corte
de Justiça do País, com base nos votos consignados por guardiões da
Constituição brasileira para que consigam dormir à noite, amparados na
experiência de vida de cada um, ou ainda por não ser possível não se
saber de algo que não foi dito, nem provado, nas investigações ao longo
de quase uma década, a possível prisão do ex-ministro José Dirceu será a
menor das consequências. A maior delas estará no risco em que
viveremos, todos, diante de uma Justiça que se baseia em conjecturas e
condena por presunção.
A repercussão será devastadora se o
Supremo materializar sem uma prova sequer, como constatou o revisor da
AP 470, ministro Ricardo Lewandowski, os piores fantasmas da imaginária
conspiração comunista mais barburda de que já se teve notícia, para
perpetuar no poder o grupo liderado por aquele líder sindicalista, Luiz
Inácio Lula da Silva, ligado aos ex-guerrilheiros Daniel e Luiza. É aí
que começam as incongruências. Em primeiro lugar, os livros de História
do Brasil precisarão contar que a tentativa do suposto esquema de
financiamento da esquerda radical teve seu Joaquim Silvério dos Reis no
ex-deputado de extrema-direita Roberto Jefferson. Depois, que todas as
votações na Câmara dos Deputados e no Senado, durante o período de
vigência do esquema do “mensalão”, tiveram de ser anuladas por vício de
origem, o que desmoralizará de forma indelével o Poder Legislativo
nacional. E por último, embora não menos importante, nenhuma prova foi
exigida no corpo do processo para que os réus seguissem às galés. O mais
grave, porém, estará à frente, com o estabelecimento da jurisprudência.
A
partir de então, lá no futuro, qualquer juiz de primeira instância,
diante de uma denúncia na paróquia, transformada em processo com base
naquela fofoca da D. Candinha que ganhou as manchetes da Folha de Mato
Dentro, considerada muito plausível segundo a experiência de vida da
comunidade conservadora local, o magistrado condenará o acusado que, por
coincidência, era desafeto do dono do jornal e da revista que ora lhe
conferem superpoderes de herói na pequena, aprazível e imaginária Gotham
City. Ainda assim, sem um pingo de culpa por rasgar séculos de lutas e
conquistas do indivíduo, colocará a cabeça no travesseiro para uma boa
noite de sono. Ao miserável, ainda bem, será possível recorrer da
sentença à Corte imediatamente superior, expediente negado aos réus
desta ação no STF. Mas, se tal situação hipotética soa como absurdo, o
pior na realidade é a sensação que passará a reinar no país, a de que o
impensável integra o cotidiano. Ao abandonar o marco de segurança mínima
dos direitos individuais, que é a exigência das provas contidas nos
autos para que alguém seja condenado à pena privativa de liberdade,
alguns integrantes do Tribunal mais importante do país poderão viver no
sossego de suas consciências, mas terão transformado em pesadelo a vida
de toda uma nação.
Uma vez aceso o estopim da bomba armada por
Carlos Augusto Ramos, o contraventor Carlinhos Cachoeira, que explodiu
no bolso daquele funcionário dos Correios, junto com o pacotinho de R$3
mil, nada mais seguro para o alvo primário das investigações do que se
misturar à multidão e acusar o maior número possível de pares na Câmara
dos Deputados de se vender ao esquema urdido por comunistas sanguinários
instalados no poder. A Igreja se arrepia. A Casa Grande desfia o relho.
As condições para um novo golpe de Estado no Brasil se apresentam. Mas a
tentativa falha porque o presidente da República detinha, à época, os
maiores índices de aprovação jamais vistos na história desse país.
Paciência. Teriam nova oportunidade mais à frente, no julgamento do
“mensalão”.
Os autores da ópera bufa que criava a figura da
compra de consciência dos parlamentares haviam plantado a semente
transgênica no relatório da PGR. Pasmem. O esquema, disseram, visava a
aprovação de duas reformas absurdamente importantes para a implantação
do stalinismo no Brasil: da Previdência e a Lei de Falências. Como toda
história mal contada, faltam os fundamentos mais pueris. Fossem os
textos de ambas um avanço no campo socialista, capazes de abrir caminho
para a implantação do comunismo na América do Sul, seria possível
apontar o dedo longo dos conservadores na direção do Planalto. Mas, ao
contrário, da dissidência do Partido dos Trabalhadores, acusado de
manobrar alguns graus à direita, nasceu o Partido do Socialismo e
Liberdade (PSOL), integrado por parlamentares insatisfeitos,
principalmente, com a alteração no regime previdenciário do País. Esse
mesmo texto recebeu o apoio de partidos da oposição, pelas mesmas
razões. Se alguém vendeu algo nesse episódio, não foi o voto.
O
veneno destilado pela Procuradoria Geral da República (PGR) não foi
suficiente para inocular todo o processo. Com isso, parece que todos
concordam. Ainda assim, engolido de um trago só pela relatoria, viu-se
transformada em lenda a mais pura e simples bandalheira. Ainda que
vultoso, trata-se do comezinho furto aos cofres públicos por uma fenda
aberta pela quadrilha do então publicitário Marcos Valério,
experimentado nessas lides desde o mensalão mineiro. Este transcorreu
sem falhas, a ponto de nenhum tucano do bando ter experimentado, até
hoje, o alpiste na gaiola. Mas, ao tornar a história um fato, sem que as
provas contidas nos autos embasassem a argumentação fantasiosa e
eletrizante, quase uma novela das 8, estão prestes a lançar o país em um
abismo jurídico sem precedentes. Parecem desconhecer que tal
jurisprudência será capaz de atingir, indistintamente, a todo e qualquer
cidadão deste país.
Ainda mais irresponsáveis são os donos dos
jornais diários, revistas e redes de tevê que incensam um disparate de
tal envergadura. Esses empresários viram no enredo outra chance de ouro
para lustrar, com a língua, as botas do capital internacional que os
sustentam. Ao tomar em vão o santo nome da liberdade de imprensa –
sagrada e louvada por todo o sempre, salve, salve, amém – os grandes
meios de comunicação aplicam seus poderes, imensos, de forma a encostar
na parede, de um lado, o governo da presidenta Dilma Rousseff. Com isso,
garantem recursos públicos bilionários em contratos de publicidade para
seguir mais fortes no encabrestamento do Estado. E, de outro, o Poder
Judiciário. Este último parece ser ainda mais simples de manobrar. Basta
conceder algumas fotos nas capas, umas campanhas de marketing nas redes
sociais e aplausos em aviões e restaurantes para acender o imenso
braseiro do ego de alguns magistrados. Assim, conseguem sonhar com
carneirinhos, acreditar em contos de fadas e dispensar as provas
imprescindíveis para que um cidadão seja encarcerado.
Em nome de
seus próprios interesses, e apenas em nome deles, sem pensar nas
consequências do ato prestes a ser praticado, parcela considerável da
elite puxa o gatilho de uma arma carregada de ódios e mágoas na direção
da própria têmpora. Uma vez disparada, a bala de prata que deveria matar
o “sapo barbudo” e exterminar os “petralhas” estará pronta a ferir de
morte o Estado de Direito e a segurança individual de todos os
brasileiros.
Gilberto de Souza é jornalista, editor-chefe do Correio do Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário