O legado homérico em Eça de Queirós
por Leonardo Davino de Oliveira e Simone Silva de Lima*
por Leonardo Davino de Oliveira e Simone Silva de Lima*
Nosso trabalho tem o objetivo de fazer uma análise comparada do conto A perfeição, de Eça de Queirós, com o texto do canto V da Odisséia, de Homero. Tentaremos observar as relações existentes entre tais textos tão distantes cronologicamente, buscando entender o porquê da releitura queirosiana.
1. O CANTO V DA ODISSEIA, DE HOMERO
A Odisséia é um poema épico dividido em 24 Cantos com um total de 12.110 versos, cujo argumento principal é a volta de Ulisses, Odisseu em grego, de Tróia a Ítaca. Podemos dividir a narrativa em Proposição e Invocação, versos 1 a 10; Narração, verso 11 do livro I até o 544 do livro XXIV; e Epílogo, versos 545 a 548 do livro XXIV.
Ulisses é o rei de Ítaca que vai a Tróia lutar contra os troianos. É o herói perfeito, pois vamos encontrar, na tradição homérica, epítetos para ele, como o homem de mil voltas, o herói astucioso, o herói engenhoso, o muito prudente, o industrioso, o habilidoso, o resistente, o glorioso, etc.
No Canto V, Ulisses, que está na casa de Alcínoo, narra suas experiências na ilha da bela Calipso e na Feácia. Formando uma nova assembléia dos deuses, Zeus envia Hermes para Ogígia, mandando Calipso libertar Ulisses. A contragosto, ela faz o que é ordenado. Ulisses, que se encontrava tristonho e choroso, mesmo vivendo em uma ilha paradisíaca com a bela ninfa que lhe prometera a imortalidade, prefere voltar para Ítaca. No décimo oitavo dia, Posidon, Senhor dos mares, o vê e, se irritando, desfaz a balsa construída por Ulisses. Mas Ino lhe entrega o seu véu com ordem de o devolver assim que chegar a terra. Depois de muito sofrimento e salvo, Ulisses chega à terra dos Feácios.
As personagens de Homero, como pontua Auerbach, dão a conhecer no seu interior o que não dizem aos outros, falam para si, de modo a que apenas o leitor o saiba.
Ogígia, ilha de Calipso, é um lugar prazeroso, representação dos campos elísios, da perfeição. Porém, apesar da vitalidade do corpo de Ulisses, sua alma não tem paz. Ele prefere sua terra à imortalidade do corpo e ao prazer, ou seja, é melhor envelhecer ao lado da sua mulher, a querida Penélope, na pedregosa Ítala, fugindo da morte psíquica.
Ulisses é o rei de Ítaca que vai a Tróia lutar contra os troianos. É o herói perfeito, pois vamos encontrar, na tradição homérica, epítetos para ele, como o homem de mil voltas, o herói astucioso, o herói engenhoso, o muito prudente, o industrioso, o habilidoso, o resistente, o glorioso, etc.
No Canto V, Ulisses, que está na casa de Alcínoo, narra suas experiências na ilha da bela Calipso e na Feácia. Formando uma nova assembléia dos deuses, Zeus envia Hermes para Ogígia, mandando Calipso libertar Ulisses. A contragosto, ela faz o que é ordenado. Ulisses, que se encontrava tristonho e choroso, mesmo vivendo em uma ilha paradisíaca com a bela ninfa que lhe prometera a imortalidade, prefere voltar para Ítaca. No décimo oitavo dia, Posidon, Senhor dos mares, o vê e, se irritando, desfaz a balsa construída por Ulisses. Mas Ino lhe entrega o seu véu com ordem de o devolver assim que chegar a terra. Depois de muito sofrimento e salvo, Ulisses chega à terra dos Feácios.
As personagens de Homero, como pontua Auerbach, dão a conhecer no seu interior o que não dizem aos outros, falam para si, de modo a que apenas o leitor o saiba.
Ogígia, ilha de Calipso, é um lugar prazeroso, representação dos campos elísios, da perfeição. Porém, apesar da vitalidade do corpo de Ulisses, sua alma não tem paz. Ele prefere sua terra à imortalidade do corpo e ao prazer, ou seja, é melhor envelhecer ao lado da sua mulher, a querida Penélope, na pedregosa Ítala, fugindo da morte psíquica.
2. A PERFEIÇÃO, DE EÇA DE QUEIRÓS
Eça de Queirós, tido como baluarte do Realismo português, publica em 1897 o conto A perfeição, influenciado pela estética simbolista, que vai negar a estética realista da busca alucinada pela forma perfeita e trará o homem para uma realidade mais subjetiva, pois a forma ideal, representada no conto pela ilha de Calipso, é inatingível, mas é a procura da felicidade, com todas as dificuldades e vulnerabilidades que torna o homem feliz, isto é, uma vida regada apenas de prazer não tem graça nenhuma, que a perfeição cansa. A idéia central do texto é a construção, por Ulisses, da jangada em que sairá da ilha. É por isso que o Simbolismo é a negação do Naturalismo e do Parnasianismo.
A nova estética valoriza as manifestações metafísicas e espirituais. O "eu" passa a ser o universo, mas não o "eu" superficial e piegas do Romantismo. Há oposição entre a matéria e o espírito, a purificação, na qual o espírito atinge as regiões etéreas, o espaço infinito. Daí o motivo de Ulisses sair em busca de sua essência, ou seja, o lar, a família, pois, em última instância, o Simbolismo é a oposição entre o corpo e a alma, com a liberação da alma, só conseguida ao se romperem as correntes que a aprisionam ao corpo, ou seja, com a morte.
O Simbolismo desenvolve uma linguagem carregada de símbolos, em clara oposição à literatura de linguagem mais seca e impessoal. Tudo é sugestão. As palavras transcendem o significado, ao mesmo tempo em que apelam para a totalização de nossa percepção, para todos os nossos sentidos.
No entanto, o início do simbolismo não pode ser entendido como término do Realismo. Na verdade, no final do século XIX e início do XX temos três tendências que caminham paralelas: o Realismo e suas manifestações (romances realistas e naturalistas e a poesia parnasiana); o Simbolismo, situado à margem da literatura acadêmica da época; e o pré-Modernismo.
Não são nítidas as relações entre a arte simbolista e a vida política e social portuguesa, e as ligações que se estabelecem nesse nível não esclarecem absolutamente os problemas da poesia simbolista. No entanto, a Proclamação da República parece ter definido certas tendências pré-simbolistas, numa atmosfera neo-romântica, que corresponderiam a duas posições ideológicas: a monárquica e a republicana.
Eça de Queirós, tido como baluarte do Realismo português, publica em 1897 o conto A perfeição, influenciado pela estética simbolista, que vai negar a estética realista da busca alucinada pela forma perfeita e trará o homem para uma realidade mais subjetiva, pois a forma ideal, representada no conto pela ilha de Calipso, é inatingível, mas é a procura da felicidade, com todas as dificuldades e vulnerabilidades que torna o homem feliz, isto é, uma vida regada apenas de prazer não tem graça nenhuma, que a perfeição cansa. A idéia central do texto é a construção, por Ulisses, da jangada em que sairá da ilha. É por isso que o Simbolismo é a negação do Naturalismo e do Parnasianismo.
A nova estética valoriza as manifestações metafísicas e espirituais. O "eu" passa a ser o universo, mas não o "eu" superficial e piegas do Romantismo. Há oposição entre a matéria e o espírito, a purificação, na qual o espírito atinge as regiões etéreas, o espaço infinito. Daí o motivo de Ulisses sair em busca de sua essência, ou seja, o lar, a família, pois, em última instância, o Simbolismo é a oposição entre o corpo e a alma, com a liberação da alma, só conseguida ao se romperem as correntes que a aprisionam ao corpo, ou seja, com a morte.
O Simbolismo desenvolve uma linguagem carregada de símbolos, em clara oposição à literatura de linguagem mais seca e impessoal. Tudo é sugestão. As palavras transcendem o significado, ao mesmo tempo em que apelam para a totalização de nossa percepção, para todos os nossos sentidos.
No entanto, o início do simbolismo não pode ser entendido como término do Realismo. Na verdade, no final do século XIX e início do XX temos três tendências que caminham paralelas: o Realismo e suas manifestações (romances realistas e naturalistas e a poesia parnasiana); o Simbolismo, situado à margem da literatura acadêmica da época; e o pré-Modernismo.
Não são nítidas as relações entre a arte simbolista e a vida política e social portuguesa, e as ligações que se estabelecem nesse nível não esclarecem absolutamente os problemas da poesia simbolista. No entanto, a Proclamação da República parece ter definido certas tendências pré-simbolistas, numa atmosfera neo-romântica, que corresponderiam a duas posições ideológicas: a monárquica e a republicana.
2.1. O CONTO
O conto, como define Júlio Cortazar, está para a fotografia, por sua narrativa curta, focada em poucos personagens e num determinado tempo e espaço. Há total utilização estética dessa limitação, eliminando as situações intermediárias. O romance, por sua vez, está para o cinema.
Em A perfeição, Eça de Queiroz vai tencionar cada detalhe do espaço, apresentando uma verdadeira fotografia da ilha.
As contradições entre homens mortais e deuses imortais é bastante visível, no conto. Calipso questiona o motivo de Ulisses preferir Penélope a ela. Ulisses responde que o mal da deusa está na perfeição.
Em A perfeição, Eça de Queiroz vai tencionar cada detalhe do espaço, apresentando uma verdadeira fotografia da ilha.
As contradições entre homens mortais e deuses imortais é bastante visível, no conto. Calipso questiona o motivo de Ulisses preferir Penélope a ela. Ulisses responde que o mal da deusa está na perfeição.
2.2. AS PERSONAGENS E OS SÍMBOLOS CENTRAIS
Ulisses: Simboliza o homem comum alçado à condição de herói, cujas glórias não estão nas benesses de uma vida estática, mas na oportunidade de continuar lutando sempre. Ele é "subtil e desgraçado", "facundo e astuto", etc.
Calipso: Simboliza a frieza da estética impessoal do Realismo e Parnasianismo, que precisa ser abandonada. "... a mocidade imortal do seu corpo rebrilhava como a neve".
Mercúrio: Simboliza a intermediaçãode entre o Realismo e o Simbolismo. Esta personagem, portanto, é responsável pela libertação de Ulisses. Percebemos isto na sua fala com Calipso: "Ora o destino deste herói não é ficar na ociosidade imortal do teu leito, longe daqueles que o choram, e que carecem da sua força e manhas divinas."
A ilha: É o próprio Parnaso, o espaço reservado aos artistas que buscam a perfeição da forma, e que, segundo o conto, precisa ser deixada para trás.
A jangada: Simboliza o retorno à realidade subjetiva. Ao construí-la, Ulisses constrói sua volta.
Calipso: Simboliza a frieza da estética impessoal do Realismo e Parnasianismo, que precisa ser abandonada. "... a mocidade imortal do seu corpo rebrilhava como a neve".
Mercúrio: Simboliza a intermediaçãode entre o Realismo e o Simbolismo. Esta personagem, portanto, é responsável pela libertação de Ulisses. Percebemos isto na sua fala com Calipso: "Ora o destino deste herói não é ficar na ociosidade imortal do teu leito, longe daqueles que o choram, e que carecem da sua força e manhas divinas."
A ilha: É o próprio Parnaso, o espaço reservado aos artistas que buscam a perfeição da forma, e que, segundo o conto, precisa ser deixada para trás.
A jangada: Simboliza o retorno à realidade subjetiva. Ao construí-la, Ulisses constrói sua volta.
2.3. FOCO NARRATIVO
Temos uma narrativa em 3ª pessoa, onisciente e onipresente. O narrador não participa da história, não se envolve com a trama, mas sabe o que se passa com os personagens e o que pensam e sentem. Fica evidente qual é a posição ideológica do narrador. Suas críticas e opiniões estão presentes no texto em sua própria voz ou nos pensamentos e atitudes dos personagens.
2.4. TEMPO
O tempo narrativo é rigorosamente cronológico e linear. No entanto, deve-se levar em consideração as recordações de Ulisses, que são apresentadas ao leitor por meio da memória das lembranças mnemônicas da personagem, sua entrada em Tróia, o cavalo de Pau, as astúcias para conter a impaciência dos guerreiros, o pavoroso Polifemo, as manobras entre Cila e Caríbdis, as sereias, etc.
2.5. ESPAÇO
A história se passa, em toda a sua totalidade, na ilha de Ogígia, da deusa Calipso. Percebe-se que a descrição da ilha entra em conflito com os sentimentos da personagem principal: "A divina ilha, com seus rochedos de abalastro, os bosques de cedros e tuias odoríferas, as messes eternas dourando os vales, a frescura das roseiras revestindo os outeiros suaves, resplandecia, adormecida na moleza da sesta, toda envolta em mar resplandecente. Nem um sopro dos Zéfiros curiosos, que brincam e correm por sobre o arquipélago, desmanchava a serenidade do luminoso ar, mais doce que o vinho mais doce, todo repassado pelo fino aroma dos prados de violetas ... o subtil Ulisses, com os olhos perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia, revolvendo o queixume do seu coração..."
3. UMA ANÁLISE COMPARADA
A perfeição para Ulisses, nos dois textos, está na Ítaca pedregosa, envelhecendo ao lado da mulher amada, e passando por todas as dificuldades e alegrias de um homem comum, mas que se torna herói justamente por suportar as adversidades da vida com dignidade. Os dois textos celebram o ser humano perfeito, o herói, em busca do banal (casa, família...). Em ambos os textos, os processos psicológicos não deixa ficar nada oculto ou inexpresso.
Ao declarar que "Morro de saudades da morte", o Ulisses queirosiano torna-se o porta-voz da escola Simbolista, porque é um personagem que sente falta das coisas do quotidiano comum e que foram esquecidas pela busca de uma vida perfeita pregada no Realismo, ao mesmo tempo em que retoma temas do Romantismo. O adensamento lírico, que dava ao artista romântico um ar místico, é substituído pelo adensamento estético do Realismo, o que transforma o artista simbolista num trabalhador em busca da perfeição através da forma, mas sem esquecer a subjetividade. O eu realista retorna das ermas paragens utópicas e concentra-se no tempo presente, porém vislumbrando um futuro melhor, em que a alma possa ter harmonia. Ou seja, o Simbolismo, mesmo negando as escolas anteriores, "bebe" em suas fontes. Já Calipso, com sua ilha de prazeres, representa a figura romântica que precisa ser abandonada para o enfrentamento da realidade, mas também a perfeição fria e vazia do Realismo e Parnasianismo.
Podemos tomar a Odisséia como um poema realista na medida em que retrata a realidade de um período histórico, o arcaico (VIII - VI a. c.), em que religião e sociedade da época eram extremamente indissociáveis. No entanto, ao reler o texto de Homero, que não deixa nada na penumbra ou inacabado, Eça de Queirós atualiza o tema com uma descrição minuciosa dos acontecimentos quotidianos, tratados a partir das subjetividades da personagem principal, tendo ainda um contexto social bastante diverso daquele e até mesmo os meios de representação bastante diferentes. Enquanto o texto homérico é um poema, transmitido numa cultura oral, e portanto "cantado", o texto queirosiano é um conto, numa cultura escrita, de sorte que as referências e as intenções são outras.
Uma das intenções de Eça de Queirós, como de alguns intelectuais de sua época, é chamar a atenção para a superação da visão racionalista e mecanicista do universo, daí que vai tratar de questões que transcendem a possibilidade de comprovação objetiva, na busca de um modo supra-racional de conhecimento que pudesse penetrar as camadas profundas do "eu" e traduzir os "mistérios" da vida, discutindo o que realmente faz o Ser Humano feliz. É que as correntes materialistas e racionalistas da segunda metade do século XIX não mais respondem às exigências de uma nova realidade, já que o processo burguês-industrial evolui a passos largos, gerando, inclusive, a luta das grandes potências pelos mercados fornecedores de matéria-prima e mercados consumidores. Assim, sempre que se torna difícil analisar o mundo exterior e entendê-lo racionalmente, a tendência natural é cair na sua negação, voltando-se para uma realidade subjetiva, e as tendências espiritualistas renascem e o subconsciente e o inconsciente são valorizados, segundo a lição freudiana.
Como já afirmamos, os dois Ulisses se diferem na contextualização. Para o Simbolismo, arte não é só emoção, mas a tomada de consciência dessa emoção, e também cognição. Mais do que tocar os desvãos do inconsciente, pretende-se senti-los, examiná-los.
A perfeição é Ogígia, "de crescimento admirável, a vinha os pimpolhos estende / da gruta côncava em torno, a vergar com o peso dos cachos. / Água mui clara promana de quatro nascentes vizinhas, / que juntas surdem, mas abrem caminhos por partes diversas. / Prados macios em torno se viam, com aipo e violeta, / cheios de viço. Até um deus imortal que ali viesse, por certo se admiraria com tal espetáculo, na alma folgando." (v. 68-74). Já a realidade subjetiva é sentir a vida envelhecendo ao lado da mulher amada e do filho. O símbolo implica não apenas a evasão a dar um nome diretamente, mas a expressão indireta de um significado que é impossível dar diretamente, que é essencialmente indefinível e inesgotável.
Ao declarar que "Morro de saudades da morte", o Ulisses queirosiano torna-se o porta-voz da escola Simbolista, porque é um personagem que sente falta das coisas do quotidiano comum e que foram esquecidas pela busca de uma vida perfeita pregada no Realismo, ao mesmo tempo em que retoma temas do Romantismo. O adensamento lírico, que dava ao artista romântico um ar místico, é substituído pelo adensamento estético do Realismo, o que transforma o artista simbolista num trabalhador em busca da perfeição através da forma, mas sem esquecer a subjetividade. O eu realista retorna das ermas paragens utópicas e concentra-se no tempo presente, porém vislumbrando um futuro melhor, em que a alma possa ter harmonia. Ou seja, o Simbolismo, mesmo negando as escolas anteriores, "bebe" em suas fontes. Já Calipso, com sua ilha de prazeres, representa a figura romântica que precisa ser abandonada para o enfrentamento da realidade, mas também a perfeição fria e vazia do Realismo e Parnasianismo.
Podemos tomar a Odisséia como um poema realista na medida em que retrata a realidade de um período histórico, o arcaico (VIII - VI a. c.), em que religião e sociedade da época eram extremamente indissociáveis. No entanto, ao reler o texto de Homero, que não deixa nada na penumbra ou inacabado, Eça de Queirós atualiza o tema com uma descrição minuciosa dos acontecimentos quotidianos, tratados a partir das subjetividades da personagem principal, tendo ainda um contexto social bastante diverso daquele e até mesmo os meios de representação bastante diferentes. Enquanto o texto homérico é um poema, transmitido numa cultura oral, e portanto "cantado", o texto queirosiano é um conto, numa cultura escrita, de sorte que as referências e as intenções são outras.
Uma das intenções de Eça de Queirós, como de alguns intelectuais de sua época, é chamar a atenção para a superação da visão racionalista e mecanicista do universo, daí que vai tratar de questões que transcendem a possibilidade de comprovação objetiva, na busca de um modo supra-racional de conhecimento que pudesse penetrar as camadas profundas do "eu" e traduzir os "mistérios" da vida, discutindo o que realmente faz o Ser Humano feliz. É que as correntes materialistas e racionalistas da segunda metade do século XIX não mais respondem às exigências de uma nova realidade, já que o processo burguês-industrial evolui a passos largos, gerando, inclusive, a luta das grandes potências pelos mercados fornecedores de matéria-prima e mercados consumidores. Assim, sempre que se torna difícil analisar o mundo exterior e entendê-lo racionalmente, a tendência natural é cair na sua negação, voltando-se para uma realidade subjetiva, e as tendências espiritualistas renascem e o subconsciente e o inconsciente são valorizados, segundo a lição freudiana.
Como já afirmamos, os dois Ulisses se diferem na contextualização. Para o Simbolismo, arte não é só emoção, mas a tomada de consciência dessa emoção, e também cognição. Mais do que tocar os desvãos do inconsciente, pretende-se senti-los, examiná-los.
A perfeição é Ogígia, "de crescimento admirável, a vinha os pimpolhos estende / da gruta côncava em torno, a vergar com o peso dos cachos. / Água mui clara promana de quatro nascentes vizinhas, / que juntas surdem, mas abrem caminhos por partes diversas. / Prados macios em torno se viam, com aipo e violeta, / cheios de viço. Até um deus imortal que ali viesse, por certo se admiraria com tal espetáculo, na alma folgando." (v. 68-74). Já a realidade subjetiva é sentir a vida envelhecendo ao lado da mulher amada e do filho. O símbolo implica não apenas a evasão a dar um nome diretamente, mas a expressão indireta de um significado que é impossível dar diretamente, que é essencialmente indefinível e inesgotável.
OBSERVAÇÕES FINAIS
Reconhecemos que A perfeição é uma obra simbolista. O simbolismo começa por ser a negação do Realismo e suas manifestações. O homem volta-se para uma realidade subjetiva, retomando assim um aspecto abandonado desde o Romantismo. Por este e outros motivos já apresentados na análise, a personagem principal de A perfeição, Ulisses, abandona a perfeição estética do Realismo e de um mundo ideal, simbolizado por Calipso, e vai em busca da essência do ser humano, aquilo que ele tem de mais profundo e comum com todos - a alma. A perfeição está nas angústias do dia-a-dia, nas imperfeições da vida comum. Daí Eça de Queiroz adequar o personagem do texto realista homérico ao seu simbolismo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUERBACH, Erich. "A cicatriz de Ulisses". Mimesis: a representação da realidade na literatura universal. São Paulo: Perspectiva, 2002.
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1998.
CALVINO, Ítalo. "As odisséias na odisséia". Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
HOMERO. Odisséia. São Paulo: Ediouro, 2000.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2001.
MOISÈS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1997.
MOISÉS, Massaud. O conto português. São Paulo: Cultrix, 1975.
QUEIRÓS, Eça de. "A perfeição". Contos. Lisboa: Livros do Brasil, 1887.
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1998.
CALVINO, Ítalo. "As odisséias na odisséia". Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
HOMERO. Odisséia. São Paulo: Ediouro, 2000.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2001.
MOISÈS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1997.
MOISÉS, Massaud. O conto português. São Paulo: Cultrix, 1975.
QUEIRÓS, Eça de. "A perfeição". Contos. Lisboa: Livros do Brasil, 1887.
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