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Francisco Jozivan Guedes de Lima*Universidade Federal do Piauíjozivan2008guedes@gmail.comResumo: Este artigo objetiva demonstrar o potencial intersubjetivo e social da justiça em Kant. Trata-se de uma leitura que não concorda com as interpretações restritivas da filosofia prática kantiana que a classificam como excessivamente formalista e subjetivista. Esse tipo de restrição é encontrado tanto em Hegel quanto atualmente na Teoria Crítica como, por exemplo, no Das Recht der Freiheit de Honneth, segundo o qual a concepção de justiça de Kant não passa dos limites de um monologismo. Tais leituras de matriz hegeliana obliteram o potencial social, intersubjetivo, e de participação do cidadão na esfera pública incluso na filosofia jurídico-política kantiana. Indo na contramão dessa matriz, tentarei colocar em evidência a dimensão social da justiça em Kant a partir de três dimensões: (i) metafísico-transcendental, baseada na ideia de liberdade inata e de igualdade; (ii) ético-construtivista, que tem por conceito fundamental a autonomia; (iii) socioinstitucional, embasada no Estado de direito, republicanismo, assistência social, e esfera pública. A ideia basilar é que o formalismo e o subjetivismo são apenas um estágio, mas não o todo da justiça kantiana. Palavras-chave: Kant; justiça social; normatividade; intersubjetividade.Abstract:This paper aims to demonstrate the intersubjective and social potential of justice in Kant. It is a reading that does not agree with the restrictive interpretations of Kantian practical philosophy that classify it as excessively formalistic and subjectivist. Such a restriction is found in both Hegel and now in Critical Theory, for example, in Honneth's Das Recht der Freiheit, according to which Kant's conception of justice is no more than the confines of a monologism. Such Hegelian matrix readings obliterate the social, intersubjective, and citizen potential in the public sphere included in the Kantian legal-political philosophy. Going against this matrix, I will try to highlight the social dimension of justice in Kant from three dimensions: (i) metaphysical-transcendental, based on the idea of innate freedom and equality; (ii) ethical-constructivist, whose fundamental concept is autonomy; (iii) socio-institutional, based on the rule of law, republicanism, social aid, and public sphere. The basic idea is that formalism and subjectivism are only one stage, but not the whole of Kantian justice.Keywords: Kant; social justice; normativity; intersubjectivity.IntroduçãoNo debate Kant-Hegel, sabemos o quanto as críticas de Hegel (2007; 2010) a Kant, especialmente, nos escritos juvenis de Jena e, posteriormente, na Filosofia do Direito, mergulharam a filosofia prática kantiana num certo descrédito, sobretudo, quando se põeem questão temas concernentes à justiça e à filosofia em seu espectro *Doutor em Filosofia-PUCRS.Realizou estágio de Pós-Doutorado em Filosofia e em Direito na PUCRS com missões de estudo no Institut für Philosophie da Goethe Universität Frankfurt am Main. Atualmente é ProfessordosProgramas de Pós-Graduação em Filosofia e em Ciência Política-UFPI edo Departamento de Filosofia-UFPI.
32O potencial intersubjetivo e social da justiça em KantKant e-Prints, Campinas, Série 2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019social e intersubjetivo. Esse descrédito foi reforçado no debate contemporâneo entre liberais e comunitaristas –os primeiros rotulados como “indiferentes e esquecedores do contexto”, eos segundos rotulados como “obcecados pelo contexto” (cf. FORST, 2010) –, e mais recentemente reativado por Honneth no seu Das Recht der Freiheit (2011). O ponto em comum das críticas é o de que a filosofia de Kant padece de um forte formalismo que oblitera de modo intencional a base contextualista da normatividade1. Portanto, subjaz nela uma leitura hegeliana que tenciona mostrar as insuficiências do projeto normativo de Kant acusando o colapso da dimensão social e o seu déficit intersubjetivo. A minhahipótese é de que Hegel incorreu num equívoco topológico que consistiu em procurar a eticidade na Fundamentaçãoem vez de localizá-la em escritos voltados para questões intersubjetivas vinculadas ao direito e à política. De fato, na Grundlegung, Kant não teve o propósito de realizar uma teoria das instituições sociais e políticas, mas, exclusivamente, como ele mesmo destaca, o objetivo de buscar o princípio supremo da moralidade, princípio este que ao longo da obra irá definir como sendo a “autonomia” em antítese à heteronomia (GMS, AA 04: 389). Ou seja, trata-se de um projeto de fundamentação ou justificação normativa no plano ético que tem como ponto de partida a tese segundo a qual o princípio que determina a ação não pode ser baseado na natureza, na felicidade, em Deus ou em outro ponto que não seja a razão e a boa vontade que, sendo boa em si, age por dever, sem esperar retornos, recompensas, e sem depender de inclinações.Tencionando ir além das leituras restritivas, especialmente, as de Hegel e Honneth, proponho uma releitura capaz de exteriorizar o caráter intersubjetivo e social da justiça kantiana, procurando identificá-lo a partir de três dimensões interligadas: metafísico-transcendental, ético-construtivista, socioinstitucional2. A primeira tem como categoria central a liberdade inata; a segunda, a autonomia; e a terceira, o republicanismo, o Estado de direito, a esfera pública e a assistência social. 1Honneth (2011)faz uma divisão entre dois modelos de justiça: as versões kantianas ou procedimentalistas da justiça, que incorrem num gap entre ser e dever-ser, uma corrente segundo ele, na contemporaneidade, representada por Rawls e Habermas; e versões hegelianas da justiça, que articulam ser (ontologia, realidade, contexto) e dever-ser (justificação normativa). Como sabido, Honneth filia-se a esta última, apesar de suas críticas –em Sofrimento de indeterminação–à superinstitucionalização da eticidade operada por Hegel ao obliterar os potenciais democráticos da eticidade em prol de uma metafísica do espírito e do fortalecimento do Estado (cf. HONNETH, 2007).2Para uma abordagem mais extensa dessa proposta de releitura intersubjetiva e social de Kant, cf. LIMA, 2017.
33Francisco Jozivan Guedes de LimaKant e-Prints, Campinas, Série2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019Sistemicamente, tomarei como pressuposto a taxonomia operada pelo próprio Kant (MS) segundo a qual a sua filosofia prática é composta por quatro esferas principais: a moral, que é a esfera da liberdade inata; a ética, que é a esfera da autonomia e da autocoação; o direito, que é a esfera da coerção externa e que tem por base a moral; e a política, queé a esfera da aplicação (Anwendung) e “teoria aplicada do direito”, em que Kant põe em evidência o princípio da publicidade segundo o qual as máximas relativas aos direitos de outros homens, que não estejam de acordo com o princípio da publicidade, devem ser consideradas injustas (ZeF, AA 08: 381).Amparar-me-ei na Doutrina do Direito(Rechtslehre) e na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Da primeira obra, discutirei pontos acerca da relação entre direito e justiça e, de modo especial, a fundamentação moral do justo tencionando a superação de um juspositivismo. Da segunda obra, abordarei a dimensão ética da justiça kantiana a partir do conceito de autonomia. Além disso, com base na Rechtslehretentarei colocar em relevo a possibilidade de uma justiça social em Kant mediante a tarefa do Estado na assistência aos mais pobres.1. A dimensão metafísico-transcendental da justiça Inicialmente, quero explicitar essa escolha semântica do termo “metafísico-transcendental”, que uso para denotar um primeiro sentido de justiça em Kant. Metafísico, porque o justo tem fundamentação a priori, independente dos contextos históricos; transcendental, porque esse a priorié pensado a partir dos limites e das condições de possibilidade da razão humana. Kant (MS, AA 06: 217) considera que o fundamento do direito não pode derivar de uma antropologia moral embasada nas leis da natureza humana e nas contingências históricas, mas deve ser extraído de um princípio moral seguro e a prioriderivado da própria razão. Esse fundamento normativo é a liberdade: “liberdade (independência do arbítrio coercitivo de um outro), na medida em que pode subsistir com a liberdade de qualquer outro de acordo com uma lei universal, é este direito único, pertencente a cada homem por força da sua humanidade” (MS, AA 06: 237). Como sabemos, essa liberdade é inata, isto é, independente do contexto em que o indivíduo esteja inserido, ele é livre desde o seu nascimento. Desse modo, Kant não vincula e condiciona a liberdade, enquanto fundamento normativo do direito, à história e às contingências.
34O potencial intersubjetivo e social da justiça em KantKant e-Prints, Campinas, Série 2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019Somos livres porque somos humanos, e ser humano significa ser dotado de razão, e esta razão habilita o ser humano a ser autônomo, à autolegislação. No plano jurídico, a liberdade é a independência da coerção de outrem; ser livre é realizar a sua vontade, desde que essa realização não cause danos aos demais. Desse modo, a liberdade kantiana tem dois aspectos centrais: ela é inata, no sentido de que é um valor normativo independente de fontes empíricas e históricas;em termos jurídicos, ela é negativa, isto é, trata-se de um direito de não-intervenção, e, nesse sentido, segue o modelo hobbesiano de liberdade enquanto “ausência de impedimentos externos para ação” (HOBBES, 2003). Isso tem implicações sobre o próprio conceito de direito entendido por Kant (MS, AA 06: 230) como “o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido com o arbítrio de outro segundo uma lei universal de liberdade.” O inatismo da liberdadedecorrente da razão e, por consequência, da humanidade dos indivíduos, significa que, independente dos contextos históricos e de situações contingenciais, todos somos livres e, por isso, juridicamente tutelados. É por isso que, para Kant, liberdade e direito devem ter validade universal. Diferentemente de Hegel, Kant não faz uma escala hierárquica de povos que sejam mais livres que outros; orientais, germânicos, africanos, americanos. Todos os povos e culturas devem ser considerados igualmente livres. Do ponto de vista da justificação normativo-metafísica do direito, a liberdade é uma ideia da razão, e nenhum exemplo histórico pode esgotar o seu conceito. O sentido do justo e do injusto não pode ser extraído de condições empíricas, porque não teria validade universal, mas dependeria de um statusparticular de ação. Normativamente, um direito fundamentado na contingência e em exemplos históricos, na jurisprudência, no consuetudinário, nos costumes, ou nas tradições, ficaria num patamar de generalizações avalizadas apenas dentro de um dado contexto normativo, porém sem alcance de proteção universal a todos os indivíduos. É por isso que a fundamentação do justo não pode ser embasada na felicidade, em elementos religiosos, etc., pois são critérios que podem ser generalizados, mas não universalizados. É por esta via que Kant (MS, AA 06: 230) chega à seguinte conclusão: “uma doutrina do direito meramente empírica é [...] uma cabeça que pode ser bela, mas infelizmente não tem cérebro”. Apenas a liberdade, enquanto uma ideia da razão, é o cerne normativo da justiça para Kant. Não há uma saída eudaimonista, baseada na felicidade, ou teonômica,
35Francisco Jozivan Guedes de LimaKant e-Prints, Campinas, Série2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019embasada numa petição de princípio divino que justifiquem o direito, mas, na concepção kantiana de justiça, há uma saída iluminista e logonômica, no sentido de que ela se dá dentro dos limites da racionalidade. Todavia, não há apenas uma logonomia, mas também uma eleuteronomia, no sentido de que a liberdade é a lei da razão que normativamente justifica o direito. Há uma fundamentação moral do direito em Kant. Aqui inaugura-se, com Kant, a teoria do direito racional sob uma justificativa secularizada. Não há direitos naturais amparados na lei divina, não há costumes, mas tão-somente a razão enquanto faculdade capaz de legislar e justificar normas. Claro que há todauma crítica quanto a essa justificação moral do direito em Kant, dentre elas, uma emblemática que é a do próprio Habermas (2017, p. 590) quando em Faktizität und Geltungafirma que: “[...] em Kant, o direito moral ou natural, deduzido a priorida razão prática, ocupa a tal ponto o lugar central, que o direito corre o risco de se desfazer em moral; falta pouco para o direito ser reduzido a um modo deficiente de moral”. O cerne da crítica de Habermas é que falta autonomia ao direito kantiano, e sua dependência moral, sob um enfoque meramente metafísico e transcendental, oblitera as bases políticas no tocante à sua legitimidade democrática. Como disse anteriormente na introdução, do ponto de vista sistemático, há na filosofia de Kant uma divisão entre moral, direito, ética e política. A moral, mediante o conceito de liberdade, é a fonte normativa do direito, que é a legislação externa, isto é, a parte da coerção externa com vistas a mediar os arbítrios; a ética é a dimensão da autocoação / auto-obrigação e da autoconsciência, da internalização normativa, sem coerção da lei positiva ou jurídica. A política é a parte da aplicação (Anwendung); “a legislação ética (mesmo que deveres possam ser também externos) é aquela que nãopode ser externa; a jurídica é aquela que também pode ser externa” (MS, AA 06: 220). O direito em Kant não extrai sua normatividade –em termos de fundamentação e justificação –da ética, de si mesmo ou da política, mas da moral. A interpelação sobre o que é direito pode ser respondida a partir do que está legalmente positivado, mas a pergunta sobre fundamentação, justificação, embasamento e legitimidade excede a própria positividade da lei: “pode-se, portanto, pensar numa legislação externa que contivesse somente leis positivas, mas então teria de proceder uma lei natural que fundamentasse a autoridade do legislador” (MS, AA 06: 224).
Francisco Jozivan Guedes de Lima*Universidade Federal do Piauíjozivan2008guedes@gmail.comResumo: Este artigo objetiva demonstrar o potencial intersubjetivo e social da justiça em Kant. Trata-se de uma leitura que não concorda com as interpretações restritivas da filosofia prática kantiana que a classificam como excessivamente formalista e subjetivista. Esse tipo de restrição é encontrado tanto em Hegel quanto atualmente na Teoria Crítica como, por exemplo, no Das Recht der Freiheit de Honneth, segundo o qual a concepção de justiça de Kant não passa dos limites de um monologismo. Tais leituras de matriz hegeliana obliteram o potencial social, intersubjetivo, e de participação do cidadão na esfera pública incluso na filosofia jurídico-política kantiana. Indo na contramão dessa matriz, tentarei colocar em evidência a dimensão social da justiça em Kant a partir de três dimensões: (i) metafísico-transcendental, baseada na ideia de liberdade inata e de igualdade; (ii) ético-construtivista, que tem por conceito fundamental a autonomia; (iii) socioinstitucional, embasada no Estado de direito, republicanismo, assistência social, e esfera pública. A ideia basilar é que o formalismo e o subjetivismo são apenas um estágio, mas não o todo da justiça kantiana. Palavras-chave: Kant; justiça social; normatividade; intersubjetividade.Abstract:This paper aims to demonstrate the intersubjective and social potential of justice in Kant. It is a reading that does not agree with the restrictive interpretations of Kantian practical philosophy that classify it as excessively formalistic and subjectivist. Such a restriction is found in both Hegel and now in Critical Theory, for example, in Honneth's Das Recht der Freiheit, according to which Kant's conception of justice is no more than the confines of a monologism. Such Hegelian matrix readings obliterate the social, intersubjective, and citizen potential in the public sphere included in the Kantian legal-political philosophy. Going against this matrix, I will try to highlight the social dimension of justice in Kant from three dimensions: (i) metaphysical-transcendental, based on the idea of innate freedom and equality; (ii) ethical-constructivist, whose fundamental concept is autonomy; (iii) socio-institutional, based on the rule of law, republicanism, social aid, and public sphere. The basic idea is that formalism and subjectivism are only one stage, but not the whole of Kantian justice.Keywords: Kant; social justice; normativity; intersubjectivity.IntroduçãoNo debate Kant-Hegel, sabemos o quanto as críticas de Hegel (2007; 2010) a Kant, especialmente, nos escritos juvenis de Jena e, posteriormente, na Filosofia do Direito, mergulharam a filosofia prática kantiana num certo descrédito, sobretudo, quando se põeem questão temas concernentes à justiça e à filosofia em seu espectro *Doutor em Filosofia-PUCRS.Realizou estágio de Pós-Doutorado em Filosofia e em Direito na PUCRS com missões de estudo no Institut für Philosophie da Goethe Universität Frankfurt am Main. Atualmente é ProfessordosProgramas de Pós-Graduação em Filosofia e em Ciência Política-UFPI edo Departamento de Filosofia-UFPI.
32O potencial intersubjetivo e social da justiça em KantKant e-Prints, Campinas, Série 2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019social e intersubjetivo. Esse descrédito foi reforçado no debate contemporâneo entre liberais e comunitaristas –os primeiros rotulados como “indiferentes e esquecedores do contexto”, eos segundos rotulados como “obcecados pelo contexto” (cf. FORST, 2010) –, e mais recentemente reativado por Honneth no seu Das Recht der Freiheit (2011). O ponto em comum das críticas é o de que a filosofia de Kant padece de um forte formalismo que oblitera de modo intencional a base contextualista da normatividade1. Portanto, subjaz nela uma leitura hegeliana que tenciona mostrar as insuficiências do projeto normativo de Kant acusando o colapso da dimensão social e o seu déficit intersubjetivo. A minhahipótese é de que Hegel incorreu num equívoco topológico que consistiu em procurar a eticidade na Fundamentaçãoem vez de localizá-la em escritos voltados para questões intersubjetivas vinculadas ao direito e à política. De fato, na Grundlegung, Kant não teve o propósito de realizar uma teoria das instituições sociais e políticas, mas, exclusivamente, como ele mesmo destaca, o objetivo de buscar o princípio supremo da moralidade, princípio este que ao longo da obra irá definir como sendo a “autonomia” em antítese à heteronomia (GMS, AA 04: 389). Ou seja, trata-se de um projeto de fundamentação ou justificação normativa no plano ético que tem como ponto de partida a tese segundo a qual o princípio que determina a ação não pode ser baseado na natureza, na felicidade, em Deus ou em outro ponto que não seja a razão e a boa vontade que, sendo boa em si, age por dever, sem esperar retornos, recompensas, e sem depender de inclinações.Tencionando ir além das leituras restritivas, especialmente, as de Hegel e Honneth, proponho uma releitura capaz de exteriorizar o caráter intersubjetivo e social da justiça kantiana, procurando identificá-lo a partir de três dimensões interligadas: metafísico-transcendental, ético-construtivista, socioinstitucional2. A primeira tem como categoria central a liberdade inata; a segunda, a autonomia; e a terceira, o republicanismo, o Estado de direito, a esfera pública e a assistência social. 1Honneth (2011)faz uma divisão entre dois modelos de justiça: as versões kantianas ou procedimentalistas da justiça, que incorrem num gap entre ser e dever-ser, uma corrente segundo ele, na contemporaneidade, representada por Rawls e Habermas; e versões hegelianas da justiça, que articulam ser (ontologia, realidade, contexto) e dever-ser (justificação normativa). Como sabido, Honneth filia-se a esta última, apesar de suas críticas –em Sofrimento de indeterminação–à superinstitucionalização da eticidade operada por Hegel ao obliterar os potenciais democráticos da eticidade em prol de uma metafísica do espírito e do fortalecimento do Estado (cf. HONNETH, 2007).2Para uma abordagem mais extensa dessa proposta de releitura intersubjetiva e social de Kant, cf. LIMA, 2017.
33Francisco Jozivan Guedes de LimaKant e-Prints, Campinas, Série2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019Sistemicamente, tomarei como pressuposto a taxonomia operada pelo próprio Kant (MS) segundo a qual a sua filosofia prática é composta por quatro esferas principais: a moral, que é a esfera da liberdade inata; a ética, que é a esfera da autonomia e da autocoação; o direito, que é a esfera da coerção externa e que tem por base a moral; e a política, queé a esfera da aplicação (Anwendung) e “teoria aplicada do direito”, em que Kant põe em evidência o princípio da publicidade segundo o qual as máximas relativas aos direitos de outros homens, que não estejam de acordo com o princípio da publicidade, devem ser consideradas injustas (ZeF, AA 08: 381).Amparar-me-ei na Doutrina do Direito(Rechtslehre) e na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Da primeira obra, discutirei pontos acerca da relação entre direito e justiça e, de modo especial, a fundamentação moral do justo tencionando a superação de um juspositivismo. Da segunda obra, abordarei a dimensão ética da justiça kantiana a partir do conceito de autonomia. Além disso, com base na Rechtslehretentarei colocar em relevo a possibilidade de uma justiça social em Kant mediante a tarefa do Estado na assistência aos mais pobres.1. A dimensão metafísico-transcendental da justiça Inicialmente, quero explicitar essa escolha semântica do termo “metafísico-transcendental”, que uso para denotar um primeiro sentido de justiça em Kant. Metafísico, porque o justo tem fundamentação a priori, independente dos contextos históricos; transcendental, porque esse a priorié pensado a partir dos limites e das condições de possibilidade da razão humana. Kant (MS, AA 06: 217) considera que o fundamento do direito não pode derivar de uma antropologia moral embasada nas leis da natureza humana e nas contingências históricas, mas deve ser extraído de um princípio moral seguro e a prioriderivado da própria razão. Esse fundamento normativo é a liberdade: “liberdade (independência do arbítrio coercitivo de um outro), na medida em que pode subsistir com a liberdade de qualquer outro de acordo com uma lei universal, é este direito único, pertencente a cada homem por força da sua humanidade” (MS, AA 06: 237). Como sabemos, essa liberdade é inata, isto é, independente do contexto em que o indivíduo esteja inserido, ele é livre desde o seu nascimento. Desse modo, Kant não vincula e condiciona a liberdade, enquanto fundamento normativo do direito, à história e às contingências.
34O potencial intersubjetivo e social da justiça em KantKant e-Prints, Campinas, Série 2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019Somos livres porque somos humanos, e ser humano significa ser dotado de razão, e esta razão habilita o ser humano a ser autônomo, à autolegislação. No plano jurídico, a liberdade é a independência da coerção de outrem; ser livre é realizar a sua vontade, desde que essa realização não cause danos aos demais. Desse modo, a liberdade kantiana tem dois aspectos centrais: ela é inata, no sentido de que é um valor normativo independente de fontes empíricas e históricas;em termos jurídicos, ela é negativa, isto é, trata-se de um direito de não-intervenção, e, nesse sentido, segue o modelo hobbesiano de liberdade enquanto “ausência de impedimentos externos para ação” (HOBBES, 2003). Isso tem implicações sobre o próprio conceito de direito entendido por Kant (MS, AA 06: 230) como “o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido com o arbítrio de outro segundo uma lei universal de liberdade.” O inatismo da liberdadedecorrente da razão e, por consequência, da humanidade dos indivíduos, significa que, independente dos contextos históricos e de situações contingenciais, todos somos livres e, por isso, juridicamente tutelados. É por isso que, para Kant, liberdade e direito devem ter validade universal. Diferentemente de Hegel, Kant não faz uma escala hierárquica de povos que sejam mais livres que outros; orientais, germânicos, africanos, americanos. Todos os povos e culturas devem ser considerados igualmente livres. Do ponto de vista da justificação normativo-metafísica do direito, a liberdade é uma ideia da razão, e nenhum exemplo histórico pode esgotar o seu conceito. O sentido do justo e do injusto não pode ser extraído de condições empíricas, porque não teria validade universal, mas dependeria de um statusparticular de ação. Normativamente, um direito fundamentado na contingência e em exemplos históricos, na jurisprudência, no consuetudinário, nos costumes, ou nas tradições, ficaria num patamar de generalizações avalizadas apenas dentro de um dado contexto normativo, porém sem alcance de proteção universal a todos os indivíduos. É por isso que a fundamentação do justo não pode ser embasada na felicidade, em elementos religiosos, etc., pois são critérios que podem ser generalizados, mas não universalizados. É por esta via que Kant (MS, AA 06: 230) chega à seguinte conclusão: “uma doutrina do direito meramente empírica é [...] uma cabeça que pode ser bela, mas infelizmente não tem cérebro”. Apenas a liberdade, enquanto uma ideia da razão, é o cerne normativo da justiça para Kant. Não há uma saída eudaimonista, baseada na felicidade, ou teonômica,
35Francisco Jozivan Guedes de LimaKant e-Prints, Campinas, Série2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019embasada numa petição de princípio divino que justifiquem o direito, mas, na concepção kantiana de justiça, há uma saída iluminista e logonômica, no sentido de que ela se dá dentro dos limites da racionalidade. Todavia, não há apenas uma logonomia, mas também uma eleuteronomia, no sentido de que a liberdade é a lei da razão que normativamente justifica o direito. Há uma fundamentação moral do direito em Kant. Aqui inaugura-se, com Kant, a teoria do direito racional sob uma justificativa secularizada. Não há direitos naturais amparados na lei divina, não há costumes, mas tão-somente a razão enquanto faculdade capaz de legislar e justificar normas. Claro que há todauma crítica quanto a essa justificação moral do direito em Kant, dentre elas, uma emblemática que é a do próprio Habermas (2017, p. 590) quando em Faktizität und Geltungafirma que: “[...] em Kant, o direito moral ou natural, deduzido a priorida razão prática, ocupa a tal ponto o lugar central, que o direito corre o risco de se desfazer em moral; falta pouco para o direito ser reduzido a um modo deficiente de moral”. O cerne da crítica de Habermas é que falta autonomia ao direito kantiano, e sua dependência moral, sob um enfoque meramente metafísico e transcendental, oblitera as bases políticas no tocante à sua legitimidade democrática. Como disse anteriormente na introdução, do ponto de vista sistemático, há na filosofia de Kant uma divisão entre moral, direito, ética e política. A moral, mediante o conceito de liberdade, é a fonte normativa do direito, que é a legislação externa, isto é, a parte da coerção externa com vistas a mediar os arbítrios; a ética é a dimensão da autocoação / auto-obrigação e da autoconsciência, da internalização normativa, sem coerção da lei positiva ou jurídica. A política é a parte da aplicação (Anwendung); “a legislação ética (mesmo que deveres possam ser também externos) é aquela que nãopode ser externa; a jurídica é aquela que também pode ser externa” (MS, AA 06: 220). O direito em Kant não extrai sua normatividade –em termos de fundamentação e justificação –da ética, de si mesmo ou da política, mas da moral. A interpelação sobre o que é direito pode ser respondida a partir do que está legalmente positivado, mas a pergunta sobre fundamentação, justificação, embasamento e legitimidade excede a própria positividade da lei: “pode-se, portanto, pensar numa legislação externa que contivesse somente leis positivas, mas então teria de proceder uma lei natural que fundamentasse a autoridade do legislador” (MS, AA 06: 224).
Francisco Jozivan Guedes de Lima*Universidade Federal do Piauíjozivan2008guedes@gmail.comResumo: Este artigo objetiva demonstrar o potencial intersubjetivo e social da justiça em Kant. Trata-se de uma leitura que não concorda com as interpretações restritivas da filosofia prática kantiana que a classificam como excessivamente formalista e subjetivista. Esse tipo de restrição é encontrado tanto em Hegel quanto atualmente na Teoria Crítica como, por exemplo, no Das Recht der Freiheit de Honneth, segundo o qual a concepção de justiça de Kant não passa dos limites de um monologismo. Tais leituras de matriz hegeliana obliteram o potencial social, intersubjetivo, e de participação do cidadão na esfera pública incluso na filosofia jurídico-política kantiana. Indo na contramão dessa matriz, tentarei colocar em evidência a dimensão social da justiça em Kant a partir de três dimensões: (i) metafísico-transcendental, baseada na ideia de liberdade inata e de igualdade; (ii) ético-construtivista, que tem por conceito fundamental a autonomia; (iii) socioinstitucional, embasada no Estado de direito, republicanismo, assistência social, e esfera pública. A ideia basilar é que o formalismo e o subjetivismo são apenas um estágio, mas não o todo da justiça kantiana. Palavras-chave: Kant; justiça social; normatividade; intersubjetividade.Abstract:This paper aims to demonstrate the intersubjective and social potential of justice in Kant. It is a reading that does not agree with the restrictive interpretations of Kantian practical philosophy that classify it as excessively formalistic and subjectivist. Such a restriction is found in both Hegel and now in Critical Theory, for example, in Honneth's Das Recht der Freiheit, according to which Kant's conception of justice is no more than the confines of a monologism. Such Hegelian matrix readings obliterate the social, intersubjective, and citizen potential in the public sphere included in the Kantian legal-political philosophy. Going against this matrix, I will try to highlight the social dimension of justice in Kant from three dimensions: (i) metaphysical-transcendental, based on the idea of innate freedom and equality; (ii) ethical-constructivist, whose fundamental concept is autonomy; (iii) socio-institutional, based on the rule of law, republicanism, social aid, and public sphere. The basic idea is that formalism and subjectivism are only one stage, but not the whole of Kantian justice.Keywords: Kant; social justice; normativity; intersubjectivity.IntroduçãoNo debate Kant-Hegel, sabemos o quanto as críticas de Hegel (2007; 2010) a Kant, especialmente, nos escritos juvenis de Jena e, posteriormente, na Filosofia do Direito, mergulharam a filosofia prática kantiana num certo descrédito, sobretudo, quando se põeem questão temas concernentes à justiça e à filosofia em seu espectro *Doutor em Filosofia-PUCRS.Realizou estágio de Pós-Doutorado em Filosofia e em Direito na PUCRS com missões de estudo no Institut für Philosophie da Goethe Universität Frankfurt am Main. Atualmente é ProfessordosProgramas de Pós-Graduação em Filosofia e em Ciência Política-UFPI edo Departamento de Filosofia-UFPI.
32O potencial intersubjetivo e social da justiça em KantKant e-Prints, Campinas, Série 2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019social e intersubjetivo. Esse descrédito foi reforçado no debate contemporâneo entre liberais e comunitaristas –os primeiros rotulados como “indiferentes e esquecedores do contexto”, eos segundos rotulados como “obcecados pelo contexto” (cf. FORST, 2010) –, e mais recentemente reativado por Honneth no seu Das Recht der Freiheit (2011). O ponto em comum das críticas é o de que a filosofia de Kant padece de um forte formalismo que oblitera de modo intencional a base contextualista da normatividade1. Portanto, subjaz nela uma leitura hegeliana que tenciona mostrar as insuficiências do projeto normativo de Kant acusando o colapso da dimensão social e o seu déficit intersubjetivo. A minhahipótese é de que Hegel incorreu num equívoco topológico que consistiu em procurar a eticidade na Fundamentaçãoem vez de localizá-la em escritos voltados para questões intersubjetivas vinculadas ao direito e à política. De fato, na Grundlegung, Kant não teve o propósito de realizar uma teoria das instituições sociais e políticas, mas, exclusivamente, como ele mesmo destaca, o objetivo de buscar o princípio supremo da moralidade, princípio este que ao longo da obra irá definir como sendo a “autonomia” em antítese à heteronomia (GMS, AA 04: 389). Ou seja, trata-se de um projeto de fundamentação ou justificação normativa no plano ético que tem como ponto de partida a tese segundo a qual o princípio que determina a ação não pode ser baseado na natureza, na felicidade, em Deus ou em outro ponto que não seja a razão e a boa vontade que, sendo boa em si, age por dever, sem esperar retornos, recompensas, e sem depender de inclinações.Tencionando ir além das leituras restritivas, especialmente, as de Hegel e Honneth, proponho uma releitura capaz de exteriorizar o caráter intersubjetivo e social da justiça kantiana, procurando identificá-lo a partir de três dimensões interligadas: metafísico-transcendental, ético-construtivista, socioinstitucional2. A primeira tem como categoria central a liberdade inata; a segunda, a autonomia; e a terceira, o republicanismo, o Estado de direito, a esfera pública e a assistência social. 1Honneth (2011)faz uma divisão entre dois modelos de justiça: as versões kantianas ou procedimentalistas da justiça, que incorrem num gap entre ser e dever-ser, uma corrente segundo ele, na contemporaneidade, representada por Rawls e Habermas; e versões hegelianas da justiça, que articulam ser (ontologia, realidade, contexto) e dever-ser (justificação normativa). Como sabido, Honneth filia-se a esta última, apesar de suas críticas –em Sofrimento de indeterminação–à superinstitucionalização da eticidade operada por Hegel ao obliterar os potenciais democráticos da eticidade em prol de uma metafísica do espírito e do fortalecimento do Estado (cf. HONNETH, 2007).2Para uma abordagem mais extensa dessa proposta de releitura intersubjetiva e social de Kant, cf. LIMA, 2017.
33Francisco Jozivan Guedes de LimaKant e-Prints, Campinas, Série2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019Sistemicamente, tomarei como pressuposto a taxonomia operada pelo próprio Kant (MS) segundo a qual a sua filosofia prática é composta por quatro esferas principais: a moral, que é a esfera da liberdade inata; a ética, que é a esfera da autonomia e da autocoação; o direito, que é a esfera da coerção externa e que tem por base a moral; e a política, queé a esfera da aplicação (Anwendung) e “teoria aplicada do direito”, em que Kant põe em evidência o princípio da publicidade segundo o qual as máximas relativas aos direitos de outros homens, que não estejam de acordo com o princípio da publicidade, devem ser consideradas injustas (ZeF, AA 08: 381).Amparar-me-ei na Doutrina do Direito(Rechtslehre) e na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Da primeira obra, discutirei pontos acerca da relação entre direito e justiça e, de modo especial, a fundamentação moral do justo tencionando a superação de um juspositivismo. Da segunda obra, abordarei a dimensão ética da justiça kantiana a partir do conceito de autonomia. Além disso, com base na Rechtslehretentarei colocar em relevo a possibilidade de uma justiça social em Kant mediante a tarefa do Estado na assistência aos mais pobres.1. A dimensão metafísico-transcendental da justiça Inicialmente, quero explicitar essa escolha semântica do termo “metafísico-transcendental”, que uso para denotar um primeiro sentido de justiça em Kant. Metafísico, porque o justo tem fundamentação a priori, independente dos contextos históricos; transcendental, porque esse a priorié pensado a partir dos limites e das condições de possibilidade da razão humana. Kant (MS, AA 06: 217) considera que o fundamento do direito não pode derivar de uma antropologia moral embasada nas leis da natureza humana e nas contingências históricas, mas deve ser extraído de um princípio moral seguro e a prioriderivado da própria razão. Esse fundamento normativo é a liberdade: “liberdade (independência do arbítrio coercitivo de um outro), na medida em que pode subsistir com a liberdade de qualquer outro de acordo com uma lei universal, é este direito único, pertencente a cada homem por força da sua humanidade” (MS, AA 06: 237). Como sabemos, essa liberdade é inata, isto é, independente do contexto em que o indivíduo esteja inserido, ele é livre desde o seu nascimento. Desse modo, Kant não vincula e condiciona a liberdade, enquanto fundamento normativo do direito, à história e às contingências.
34O potencial intersubjetivo e social da justiça em KantKant e-Prints, Campinas, Série 2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019Somos livres porque somos humanos, e ser humano significa ser dotado de razão, e esta razão habilita o ser humano a ser autônomo, à autolegislação. No plano jurídico, a liberdade é a independência da coerção de outrem; ser livre é realizar a sua vontade, desde que essa realização não cause danos aos demais. Desse modo, a liberdade kantiana tem dois aspectos centrais: ela é inata, no sentido de que é um valor normativo independente de fontes empíricas e históricas;em termos jurídicos, ela é negativa, isto é, trata-se de um direito de não-intervenção, e, nesse sentido, segue o modelo hobbesiano de liberdade enquanto “ausência de impedimentos externos para ação” (HOBBES, 2003). Isso tem implicações sobre o próprio conceito de direito entendido por Kant (MS, AA 06: 230) como “o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido com o arbítrio de outro segundo uma lei universal de liberdade.” O inatismo da liberdadedecorrente da razão e, por consequência, da humanidade dos indivíduos, significa que, independente dos contextos históricos e de situações contingenciais, todos somos livres e, por isso, juridicamente tutelados. É por isso que, para Kant, liberdade e direito devem ter validade universal. Diferentemente de Hegel, Kant não faz uma escala hierárquica de povos que sejam mais livres que outros; orientais, germânicos, africanos, americanos. Todos os povos e culturas devem ser considerados igualmente livres. Do ponto de vista da justificação normativo-metafísica do direito, a liberdade é uma ideia da razão, e nenhum exemplo histórico pode esgotar o seu conceito. O sentido do justo e do injusto não pode ser extraído de condições empíricas, porque não teria validade universal, mas dependeria de um statusparticular de ação. Normativamente, um direito fundamentado na contingência e em exemplos históricos, na jurisprudência, no consuetudinário, nos costumes, ou nas tradições, ficaria num patamar de generalizações avalizadas apenas dentro de um dado contexto normativo, porém sem alcance de proteção universal a todos os indivíduos. É por isso que a fundamentação do justo não pode ser embasada na felicidade, em elementos religiosos, etc., pois são critérios que podem ser generalizados, mas não universalizados. É por esta via que Kant (MS, AA 06: 230) chega à seguinte conclusão: “uma doutrina do direito meramente empírica é [...] uma cabeça que pode ser bela, mas infelizmente não tem cérebro”. Apenas a liberdade, enquanto uma ideia da razão, é o cerne normativo da justiça para Kant. Não há uma saída eudaimonista, baseada na felicidade, ou teonômica,
35Francisco Jozivan Guedes de LimaKant e-Prints, Campinas, Série2, v. 14, n. 1, pp. 31-48, jan.-abr., 2019embasada numa petição de princípio divino que justifiquem o direito, mas, na concepção kantiana de justiça, há uma saída iluminista e logonômica, no sentido de que ela se dá dentro dos limites da racionalidade. Todavia, não há apenas uma logonomia, mas também uma eleuteronomia, no sentido de que a liberdade é a lei da razão que normativamente justifica o direito. Há uma fundamentação moral do direito em Kant. Aqui inaugura-se, com Kant, a teoria do direito racional sob uma justificativa secularizada. Não há direitos naturais amparados na lei divina, não há costumes, mas tão-somente a razão enquanto faculdade capaz de legislar e justificar normas. Claro que há todauma crítica quanto a essa justificação moral do direito em Kant, dentre elas, uma emblemática que é a do próprio Habermas (2017, p. 590) quando em Faktizität und Geltungafirma que: “[...] em Kant, o direito moral ou natural, deduzido a priorida razão prática, ocupa a tal ponto o lugar central, que o direito corre o risco de se desfazer em moral; falta pouco para o direito ser reduzido a um modo deficiente de moral”. O cerne da crítica de Habermas é que falta autonomia ao direito kantiano, e sua dependência moral, sob um enfoque meramente metafísico e transcendental, oblitera as bases políticas no tocante à sua legitimidade democrática. Como disse anteriormente na introdução, do ponto de vista sistemático, há na filosofia de Kant uma divisão entre moral, direito, ética e política. A moral, mediante o conceito de liberdade, é a fonte normativa do direito, que é a legislação externa, isto é, a parte da coerção externa com vistas a mediar os arbítrios; a ética é a dimensão da autocoação / auto-obrigação e da autoconsciência, da internalização normativa, sem coerção da lei positiva ou jurídica. A política é a parte da aplicação (Anwendung); “a legislação ética (mesmo que deveres possam ser também externos) é aquela que nãopode ser externa; a jurídica é aquela que também pode ser externa” (MS, AA 06: 220). O direito em Kant não extrai sua normatividade –em termos de fundamentação e justificação –da ética, de si mesmo ou da política, mas da moral. A interpelação sobre o que é direito pode ser respondida a partir do que está legalmente positivado, mas a pergunta sobre fundamentação, justificação, embasamento e legitimidade excede a própria positividade da lei: “pode-se, portanto, pensar numa legislação externa que contivesse somente leis positivas, mas então teria de proceder uma lei natural que fundamentasse a autoridade do legislador” (MS, AA 06: 224).
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