sábado, 28 de maio de 2022

Norma Tornar a Revolta Impossível

 


Tornar a Revolta Impossível
[Making Revolt Impossible ]
Thomas Berns*
Tradução
Maria Cecília Pedreira de Almeidai; Marco Antonio Sousa Alvesii
Resumo: Neste artigo, publicado originalmente na França (Rendre la révolte impossible,
Rue Descartes, 2013/1, n. 77, pp. 121-128), Thomas Berns reflete sobre um novo tipo
de normatividade, que se afasta do modelo jurídico-discursivo e subverte um aspecto
fundamental daquilo que entendemos tradicionalmente por norma: a possibilidade de
desobediência. O autor procura discernir, nas normatividades contemporâneas, uma
nova relação com a realidade, uma pretensão de governar a partir do real. Diferentemente da norma jurídica, que expressa um ato de vontade que procura governar o real, tais normatividades são concebidas como imanentes ao real, permitindo que as práticas de governo se tornem mais insidiosas, quase imperceptíveis, como vemos na “governamentalidade algorítmica”. A tradução deste artigo para o português procura contribuir para a difusão, no Brasil, desse importante debate sobre a política e o direito na contemporaneidade.
A norma por excelência, ou seja, a norma a partir da qual se pensa a ideia mesma de normatividade e suas principais qualidades – justiça, soberania, legitimidade, validade, eficácia –, é a norma jurídica. É a partir dela que a filosofia, assim como o cidadão, refletem sobre a ideia de norma. Suas especificidades foram colocadas em evidêncipor Michel Foucault, que foi justamente aquele que mais contribuiu para tornar manifesto o caráter reducionista dessa compreensão da norma e do poder emgeral. Aquilo que Foucault chamava demodelo “jurídico-discursivo” do poder,o qual ele tentou incessantemente se afastar ao revelar seus modelos sucessivos – os mecanismos disciplinares e de egurança –, ainda que compreendidos cada vez mais, todos os três, como componentes nos quais o poder -continua
a se exercer1, aparece efetivamente em sua especificidade quando o consideramos em relação às suas duas figuras normativas rivais, mais positivas e imanentes. O modelo jurídico-discursivo
aparece assim como construído sobre a base transcendente da regra, centrado sobre a soberania ao ponto de parecer ter em vista apenas a sua verificação, pensado como aquilo que se detém ou se transfere e é, sobretudo, negativo, repressivo, ou seja, “bloqueia” os comportamentos.
Eu gostaria de levar em consideração aqui uma qualidade inerente à norma jurídica, tão inerente que tendemos a esquecê-la, qual seja, o fato de que ela é fundamentalmente uma norma à qual é possível obedecer ou desobedecer, até mesmo resistir. Mais exatamente, trata-se de uma norma que é pensada e construída em função da possibilidade que ela guarda de ser obedecida ou desobedecida – o que ultrapassa, me parece, a função apenas de proibir, que Foucault coloca em evidência. Essa qualidade
é fundamentalmente ligada às outras características da norma jurídica. Sua discursividade só tem sentido quando
concebida a partir dessa possibilidade
intrínseca da lei de ser obedecida ou desobedecida. Sua construção nos âmbitos representativos dá espaço ao debate
e à contradição. Sua não retroatividade,
sua publicidade, a sanção que ela prevê,
o direito que ela concede a um processo
equitativo no qual sua discursividade
1Mas o fato de a norma se tornar o objeto de um sopesamento, de uma concorrência entre os três modelos em questão, poderia ser
interpretado como o acabamento da racionalidade própria ao mecanismo de segurança, uma vez que se trata, nesse caso, de inscrever
a norma em um mercado, guiado por uma avaliação estatística de seus efeitos.
2Eu tomo livremente essa expressão emprestada de L. Fuller, A moralidade do direito (The morality of Law, Yale Univ. Press, 1969,
p. 33ss.), que lista oito princípios constitutivos da “moralidade interna do direito”, a saber, a generalidade, a publicidade, a nãoretroatividade, a inteligibilidade, o caráter não-contraditório, a praticabilidade, a estabilidade da norma e, por fim, o fato de que sua
implementação corresponde à sua formulação.
30 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 29-37
ISSN: 2317-9570

se prolonga, etc., todos esses princípios
de legalidade asseguram a “moralidade
interna do direito”2, encarnando a ideia
da discursividade da norma, mas deixando entender também como a possibilidade da desobediência é concomitante a essa discursividade.
Essa característica quase trivial pode
ser colocada em evidência ao se confrontar a norma jurídica, vista a partir desse ponto de vista, com as formas
normativas mais contemporâneas. Por
meio dessa confrontação, aparece também a especificidade dessas últimas e a
dificuldade na qual elas colocam o filó-
sofo que tenta diagnosticá-las fazendo
uso de ferramentas que ainda dependem do registro jurídico-discursivo.
É, antes de tudo, uma nova relação
com a realidade que é desenvolvida
pelas normatividades contemporâneas.
Essas novas normas, cuja eficácia se tornou uma questão central3, a ponto de
ocupar todo o espaço, são normas que
se apresentam como objetivas – pouco
importando se de fato o são – e encontram nessa pretensão à objetividade
a fonte de seu poder. Em outras palavras, os dispositivos normativos são
construídos, são “montados” como expressões do real. Tais atos de governo
devem, desde logo, ser claramente distinguidos daquilo que podemos chamar de ação política. Eles devem ser
tão objetivos e técnicos quanto possível. Podemos até mesmo dizer que eles
devem ser tão invisíveis quanto possível, na medida em que eles seriam portadores de sentido em si mesmos, com referência a uma responsabilidade extrínseca que todo sentido delineia (e, portanto, refletiria a desresponsabilização dos próprios indivíduos). Idealmente, essas novas atividades de governo devem consistir então, essencialmente, em desvelar, mostrar, e não em agir nem “fazer” o que quer que seja. Em suma, na maior medida possível, consiste em governar sem governar.4 Aquilo que é essencial e próprio
a esse tipo de governo decorre então do
tipo de relação com o real que se delineia: o real é pensado como algo que
existe e funciona por si mesmo, que
não tem nenhuma necessidade de ser
instituído (vemos, aqui, um ponto de
partida que encontramos desde Hume,
radicalmente oposto àquele que, na
grande tradição da filosofia política moderna, quis pensar o comum a partir da
figura inaugural do contrato social). O real deve apenas ser dito, ser retomado,
ser definido, ser tornado mais consistente. Mas isso, entenda-se bem, para
3Na medida mesmo em que a eficácia, ao menos até a emergência da análise econômica do direito, foi sempre, para o continente jurídico, uma questão secundária. Exceto se a considerarmos como algo que encontra toda a sua consistência na verificação quase solipsista da soberania: poderíamos quase dizer que, idealmente, do ponto de vista da teoria do direito, a eficácia da lei era inteiramente relativa à sua efetividade, não aos seus resultados.
4Ver meu livro Governar sem governar: uma arqueologia política da estatística (Gouverner sans gouverner. Une archéologie politique
de la statistique, PUF, 2009). Ainda sem tradução para o português (N dos T.). Por essa expressão, eu não entendo de forma alguma
que não há governo. Ao contrário, nunca se governou tanto. Mas esse poder de governar decorre de uma retenção, de uma aparente
preocupação de se colar ao real.
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 29-37
ISSN: 2317-9570

dar lugar ao governo. A definição mais
geral desse governo que se abstém de
governar reside na relação que ele estabelece com o real. Trata-se de governar
a partir do real, a partir das atividades
existentes, e não mais governar o real,
ou o concreto, entendendo que o concreto e seu governo seriam objetos de
decisão. Trata-se, então, de governar
como se nos contentássemos em recolher aquilo que já está aí, em recolher a
atividade humana, tomada em consideração e mostrada como viva e substancial.
Vejamos, a partir de agora, três aspectos mais importantes dessa aderência ao real, própria aos dispositivos normativos contemporâneos:
- Em primeiro lugar, os dispositivos normativos contemporâneos parecem, mais frequentemente, se contentar sempre em apenas colocar em questão a
definição das coisas. Nesse sentido, eles têm, cada vez mais, a forma de uma especificação técnica ou ainda de uma certificação, algo meramente sugerido, repousando sobre a conformidade em relação ao que aparece como o modelo de definição de um elemento de nossa realidade (dois exemplos evidentes: as normas ISO e o DSM). Idealmente, trata-se somente de dizer ou de reconhecer as coisas tais como elas são, não como elas deveriam ser, a ponto de poder livrar-se de toda força obrigatória.
- Em segundo lugar, os dispositivos normativos contemporâneos interpelam,
antes de tudo, aqueles sobre os quais incidem (indivíduos, empresas, centros
de pesquisa...), para que se deem conta de suas próprias atividades. É, na medida do possível, por meio dessa ação de relato (reporting) de si mesmo que a ação normativa se realiza. Uma das principais ferramentas normativas é o relatório (rapport), que permite em seguida o desenvolvimento de outras prá
ticas normativas mais específicas, como a avaliação, a classificação etc. Temos aí, ao que parece, um fundo comum à maioria dos contextos normativos contemporâneos, que é urgente questionar e que se desenvolve explorando, de uma maneira nova, o modelo da confissão ou
do reconhecimento.

5 - Em terceiro lugar, os dispositivos normativos contemporâneos inscrevem-se, majoritariamente, em uma racionalidade atuarial. Eles são geralmente nutridos, acompanhados, justificados, reforçados e corrigidos pelas técnicas estatísticas (no nível mais geral, somos sempre governados por dispositivos estatísticos). Isso é ainda mais perceptível e constante nas novas técnicas estatís- ticas que repousam sobre práticas de coleta massiva e não seletiva de dados, que exploram grandes quantidades de dados (big data) por meio da mineração de dados (datamining), o que permite produzir normas que aparecem como a expressão mesma da realidade, uma
vez que esses procedimentos parecem
ter se livrado de todo apoio nas subjetividades (ver adiante). Nós, cada vez
menos, devemos ou podemos consentir
em ceder a informação (que deixa de
ser a marca da subjetividade). Ao invés
disso, nós a abandonamos. E o tratamento que é reservado à informação,
para lhe conceder um valor normativo,
reivindica cada vez menos a expressão
de uma hipótese sobre o social. Ele se
contenta em aproveitar as correlações
que aparecem e que são cada vez mais
suficientes para que haja uma norma.
Definir o real, incitar cada um a produzir um relato de sua realidade, fazer
emergir estatisticamente normas da realidade. Essas são as três questões em
jogo, evidentemente correlacionadas,
colocadas pelas novas formas de normatividade. Essas questões permitem
que essas normatividades sejam pensadas como imanentes ao real. E permitem, de maneira mais global, que os
atos de governo apareçam como fundamentalmente habitados por um caráter inofensivo, o que garante o poder mesmo desses atos, assim como
sua transmissão. Em outras palavras,
isso confere a possibilidade de governar
ainda mais, de governar sem fim (nos
dois sentidos do termo).
Gostaria, de maneira mais específica,
de colocar em evidência esse governo
sem fim, detendo-me em alguns aspectos do terceiro tipo de dispositivo assinalado, a saber, aquele que organiza,
de maneira estatística, as práticas de
governo contemporâneas (eu entendo
aqui por práticas de governo a ideia geral de uma ação estruturada sobre os
comportamentos individuais e coletivos, qualquer que seja a fonte dessa
ação). Isso mostra, mais particularmente, como a evolução contemporâ-
nea dessas práticas de governo estatístico induz, precisamente, um deslocamento essencial quanto às possibilidades de resistência a elas, até o ponto
em que as normas assim produzidas
mudam totalmente de natureza, se a
pensamos em referência ao modelo da
norma jurídico-discursiva.
Em conjunto com Antoinette Rouvroy, já descrevi longamente o funcionamento daquilo que nós chamamos
a “governamentalidade algorítmica”,
para distinguir, deste modo, as especificidades das práticas estatísticas automatizadas, atualmente desenvolvidas em todas as esferas da atividade
humana (política de segurança, práti- cas médicas, publicidade direcionada
etc.).6 Deter-me-ei, aqui, apenas em alguns elementos que permitem ressaltar
uma tentativa de evitar qualquer possibilidade de resistência por parte dos
sujeitos envolvidos nessas práticas:
- Os dados, constitutivos daquilo que é
cada vez mais chamado de Big Data, são
coletados e conservados (o momento
do datawarehousing), de preferência por
padrão. Isso não significa, de maneira
alguma, que eles são “roubados” dos
sujeitos envolvidos. Eles são, sobretudo, abandonados: dados quaisquer,
anódinos, perfeitamente heterogêneos
uns em relação aos outros, em geral
anonimizados, sem valor intrínseco e,
sobretudo, sem finalidade. O uso que
será feito deles não é nunca definido
no momento de sua coleta. Esses dados não podem ser objeto de uma cessão, nem de um roubo (nem, portanto,
da recusa que acompanha o sentimento
desse último). Esse evitamento radical da esfera da intencionalidade – que
demanda, por princípio, ser ligada a
um questionamento acerca das finalidades –, assegura, ao mesmo tempo, a
tolerância que podemos testemunhar
em relação à constituição daquilo que
se assemelha a uma duplicação digital
da realidade, assim como a pretensão
à mais perfeita objetividade dessa duplicação, que não sofre, propriamente
falando, de nenhuma forma de subjetividade!
- O tratamento automatizado dessas
massas de dados não triados a priori
(pelo datamining), tendo em vista fazer emergir correlações, comporta as
mesmas qualidades de aderência objetiva à realidade, uma vez que o datamining parece permitir precisamente que
se faça emergir saberes, por mais rudimentares que sejam, sem que hipóteses
sejam previamente expressas (o típico
da aprendizagem de máquina [machine
learning] reside na produção automatizada das próprias hipóteses). Assim,
novamente, é a própria marca de toda
forma de subjetividade “viciando” os
saberes que parece poder ser evitada. E
essa elisão aparece como um garante da
força dos saberes assim produzidos.
- Enfim, quanto às ações sobre os comportamentos individuais ou coletivos,
tirados desses saberes estatísticos (por meio do perfilamento), elas testemunham novamente a máxima elisão dos sujeitos (apesar da aparente personalização dos serviços propostos).

7 Isso porque são mais as propensões dos sujeitos, e cada vez menos suas ações, que são atuadas por antecipação (é a ação sobre o provável ou mesmo o possível, já identificada por Foucault8 como sendo próprio aos mecanismos de segurança do biopoder). O que pode ser normatizado, cada vez mais, são os ambientes, excluindo toda forma de coerção direta sobre os comportamentos dos sujeitos.
Nesse quadro absolutamente exemplar da produção normativa contemporânea, a relação da norma é, como tal, invertida. A norma jurídica, como
norma por excelência, era pensada como aquilo que agia essencialmente
sobre os comportamentos, ou mesmo os constrangia, pressupondo, sobre essa
base, sua expressão discursiva prévia (idealmente objeto de debate), deixando espaço, necessariamente, para o seu desvio– a desobediência –, que
pode dar lugar ao prolongamento do
valor discursivo da norma (idealmente
no âmbito de um procedimento judiciá-
rio). Aqui, ao contrário, a norma é precisamente aquilo que não pode ser dito
(qualquer que seja a maneira de dizer
– até mesmo um algoritmo poderia, em
princípio, responder à ideia de uma discursividade da norma). Isso em nome
de seu caráter constantemente evolutivo (ou, então, no caso das normas mais
estruturantes, como as sequências de
algoritmos que permitem o funcionamento dos motores de busca mais utilizados, pois se acredita que o segredo
deles permite um comportamento tão
natural quanto possível). A norma aparece, ao contrário, como aquilo que
segue, da maneira mais adequada e
mais evolutiva, os comportamentos, tirando daí sua potência, até o ponto no
qual podemos dizer que não se trata,
de modo algum, de tornar os comportamentos adequados às normas, mas
sim de tornar as normas adequadas aos
comportamentos: a norma se torna o
objeto mesmo da norma.9 Sobre essa
mesma base, enfim, a norma não é mais
pensada como aquilo que devemos obedecer e que, portanto, podemos desobedecer. Ao invés disso, ela é pensada
como aquilo que não é mais possível desobedecer. O conjunto do ambiente é
organizado e reorganizado sem cessar
em função das propensões de cada um.
A eventual diferença de um comportamento em relação à norma dá imediatamente lugar a uma revisão dessa última.
Essa mudança na natureza mesma da
norma e na relação geral que ela estabelece com o real corresponde também a uma transformação quanto à natureza do objeto da norma. De ma neira espontânea, pensamos que uma
norma incide sobre as substâncias, as
realidades substanciais, tão individuais quanto possível (um sujeito, um objeto, um estatuto, eventualmente coletivos ou apresentados por grandes números, médias...). Como se uma ação normativa só pudesse ser relativa a um objeto considerado como substancial, localizável, que está submetido à norma
(e, mais uma vez, obedece-lhe ou não).
Ora, é preciso constatar que o conjunto
do processo normativo se dirige cada
vez mais para as relações, mais do que
substâncias individuais, ao ponto até
de parecer tornar essas últimas relativas às primeiras: os dados transmitidos são relações10 e somente subsistem
como relações. Os saberes gerados são
relações de relações. E as ações normativas que decorrem daí são ações sobre
as relações (ou os ambientes) referidos
às relações de relações. Não se trata,
entretanto, de concluir que uma ontologia da relação teria, assim, tomado a
dianteira, em nível político, sobre a tradicional ontologia da substância. Tratase apenas que as relações, elas mesmas,
desde que o devir se tornou o objeto
mesmo do governo, tornaram-se os primeiros apoios e objetivos das ações normativas, evitando, desse modo, os sujeitos da norma (e reduzindo a nada, assim, mais uma vez, a questão da obedi-
ência ou da desobediência).
Insistamos, para concluir, sobre um
último ponto. Se o quadro traçado
aqui conduz facilmente demais ao impasse sobre a presença, por detrás dessa
produção normativa, de interesses diversos (mercantis, securitários, políticos ou geopolíticos...), movidos por suas
finalidades próprias, é porque me parece urgente insistir sobre a expansão do campo normativo, colocando em
evidência o fato de que essa expansão é sempre mais conduzida pela aparente inofensividade intrínseca às normas produzidas, sua pretensão à objetividade, ou mais precisamente sua
aderência ao real. Isso significa que,
mais do que uma denúncia das assimetrias estruturais encobertas pelas normas (o discurso marxista), e mais do
que uma preocupação em relação aos
direitos dos sujeitos sobre os quais incidem as normas (a questão do consentimento esclarecido do discurso jurídicoliberal), nós temos cada vez mais necessidade de direcionar nossa atenção sobre as normas elas mesmas, na medida
em que elas são integralmente postas
em ação em toda forma de realidade,
aderentes a ela e tirando dessa aderên cia sua potência, dotadas, em outras palavras, de uma vida própria. Essa fusão da norma e da realidade parece tornar toda resistência esquizofrênica. Ela
exige, para além de sua análise, cuidar,
cultivar e, talvez, multiplicar nossas heterotopias.
Referências
BERNS, T. « Not individuals, Relations: What Transparency is really about. A theory of algorithmic Governmentality »,
Transparency, Society, Subjectivity – Critical Perspectives, ed. Springer, 2018.
BERNS, T. Gouverner sans gouverner. Une archéologie politique de la statistique, PUF, 2009.
BERNS, T.; ROUVROY, A. « Gouvernementalité algorithmique et perspectives d’émancipation. Le disparate comme
condition d’émancipation par la relation ? », Réseaux, 2013/1, n° 177, La Découverte, p. 163-196; [tradução para o
português publicada na Revista Eco Pós, vol. 18, n. 2, 2015, p. 35-56, https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/
article/view/2662]
BERNS, T.; JEANMART, G. « Le rapport comme réponse de l’entreprise responsable : promesse ou aveu (à partir d’Austin
et Foucault) », Dissensus, 3, 2010, pp. 117-137, http://popups.ulg.ac.be/dissensus/document.php?id=701).
BERNS, T.; JEANMART, G. « Reporting / Confession », in Multitudes, n° 36, 2009.
FOUCAULT, M. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France, 1977-1978, Seuil / Gallimard, 2004, leçon du
18 janvier 1978, p. 8 ou 21-22 [tradução para o português de Eduardo Brandão publicada em São Paulo, Martins
Fontes, 2008].
FULLER, L. The morality of Law, Yale Univ. Press, 1969.
Recebido: 10/12/2020
Aprovado: 20/12/2020
Publicado: 31/01/202 -
10A palavra “relação”, entendida aqui em seu sentido mais bruto, menos habitado, pelo qual nós qualificamos o dado, serve-nos
somente para atestar uma operação que liga a e b e é capaz de ignorar o que está por detrás dos termos assim ligados. Como, aliás,
mostramos, toda força do governo algorítmico reside in fine em sua capacidade de “monadologizar” essa relação, ao ponto em que
essa relação não mais consegue apreender o devir que seria próprio à relacionalidade (ver T. Berns e A. Rouvroy, “Governamentalidade algorítmica e perspectivas de emancipação: o díspar como condição de individuação pela relação?”, op. cit., e T. Berns, «
Not individuals, Relations: What Transparency is really about. A theory of algorithmic Governmentality », Transparency, Society,
Subjectivity – Critical Perspectives, ed. Springer, 2018, p. 243-257). Ainda sem tradução para o português” (N dos T.)
36 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 29-37
ISSN: 2317-957 Brandão publicada em São Paulo, Martins Fontes, 2008, aula de 18 de janeiro de 1978).
9Desse ponto de vista, parece-me cada vez mais fundamental analisar os fenômenos de implementação das normas (nas empresas,
nos centros de pesquisa, nos serviços públicos...), voltando-se para o fato de visarem tornar as normas as mais adequadas possíveis
à realidade concernida. Reciprocamente, o papel daqueles que se submetem às normas parece ser garantir a sua efetividade, até o
ponto em que o essencial das práticas de gestão que decorrem dessas normas consiste em lhes dar consistência, pelo desenvolvimento
de uma multiplicidade de ferramentas que se aparentam a uma pura transmissão normativa.
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 29-3
Revista Eco Pós, vol. 18, n. 2, 2015, p. 35-56, https://revistas.ufrj.br/index.php/ecopos=article=view=2662).
7Os quais, aliás, poderiam, cada vez mais, abandonar toda forma de uso de categorias discriminatórias, forçosamente coletivas (as
antigas “médias” da estatística de Quételet), em benefício de uma adequação perfeita aos devires singulares.
8M. Foucault, Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978) (Sécurité, territoire, population. Cours au
Collège de France, 1977-1978, Seuil / Gallimard, 2004, leçon du 18 janvier 1978, p. 8 ou 21-22; tradução para o português de Eduardo
34 Revista de Filosofia Moderna e Contemporâne
6Ver T. Berns e A. Rouvroy, “Governamentalidade algorítmica e perspectivas de emancipação: o díspar como condição de individuação pela relação?” (« Gouvernementalité algorithmique et perspectives d’émancipation. Le disparate comme condition
d’émancipation par la relation ? », Réseaux, 2013/1, n° 177, La Découverte, p. 163-196; tradução para o português publicada na
5Ver os dois artigos que escrevi com G. Jeanmart, “Relatório / Confissão” (« Reporting / Confession », in Multitudes, n° 36,
2009) e “O relatório como resposta da empresa responsável: promessa ou confissão (a partir de Austin e Foucault)” (« Le rapport
comme réponse de l’entreprise responsable : promesse ou aveu (à partir d’Austin et Foucault) », Dissensus, 3, 2010, pp. 117-137,
http://popups.ulg.ac.be/dissensus/document.php?id=701).
32 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.3, dez. 2020, p. 29-37
ISSN: 2317-957

Palavras-chave: Normatividade. Desobediência. Governamentalidade Algorítmica.
Abstract: In this article, originally published in France (Rendre la révolte impossible,
Rue Descartes, 2013/1, n. 77, pp. 121-128), Thomas Berns reflects on a new kind of
normativity, which departs from the legal-discursive model and subverts a fundamental
aspect of what we traditionally understand by norm: the possibility of disobedience.
The author seeks to discern, in contemporary normativities, a new relationship with
reality, a claim to govern the reality. Unlike the legal norm, which expresses an act of
will that seeks to govern the reality, such normativities are conceived as immanent to the
real, allowing government practices to become more insidious, almost imperceptible, as
we see in “algorithmic governmentality”. The translation of this article into Portuguese
seeks to contribute to the dissemination, in Brazil, of this important debate on politics
and the law in contemporary times.
Keywords: Normativity. Disobedience. Algorithmic Governmentality.
*Professor de filosofia política e ética na Université Libre de Bruxelles, autor de livros como Violence de la loi à la Renaissance
(Paris, Kimé, 2000), Droit, souveraineté et gouvernementalité (Paris, Léo Scheer, 2005), Gouverner sans gouverner: une archéologie
politique de la statistique (Paris, PUF, 2009) e La guerre des philosophes (Paris, PUF, 2019). Desenvolve, entre outros temas, estudos
sobre as novas formas de normatividade e controle estatístico, tendo desenvolvido, justamente com Antoinette Rouvroy, a noção de
“governamentalidade algorítmica”. E-mail: thomas.berns@ulb.ac.be. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8928-4390.
iProfessora do departamento de filosofia da Universidade de Brasília (UnB). Doutora em filosofia pela Universidade de São Paulo
(USP). E-mail: cecylia.a@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3099-0060.
iiProfessor da faculdade de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em filosofia pela UFMG. E-mail:
marcofilosofia@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4885-8773.

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