Artigos, ensaios, pesquisas de interesse geral - política, cultura, sociedade, economia, filosofia, epistemologia - que merecem registro
domingo, 30 de junho de 2024
Simmel O individuo e a liberdade bbbb
O INDIVÍDUO E A LIBERDADE Georg Simmel É uma opinião universalmente aceita entre os europeus o fato de que a Renascença italiana produziu aquilo que chamamos de individualidade - a superação tanto interna quanto externa do indivíduo das formas comunitárias medievais que conformavam a forma de vida, a atividade produtiva, os traços de caráter dentro de unidades niveladoras, fazendo desaparecer os traços pessoais e impossibilitando o desenvolvimento da liberdade pessoal, da singularidade própria de cada um e da auto-responsabilidade. Não pretendo discutir se a Idade Média realmente reprimia de tal modo as características da individualidade. Mas, realmente, a ênfase consciente desses princípios parece, com certeza, ser um desempenho da Renascença e precisamente em uma forma tal que difundiu a vontade de poder, fama, prestígio e distinção em um grau desconhecido até então. Se no começo desse período, como se comenta, não existia em Florença nenhuma moda dominante para a vestimenta masculina, posto que cada qual desejava se vestir de uma maneira própria e especial, não era uma questão de diferenciação simples, mas, antes de tudo, um desejo individual de aparecer, de se apresentar da maneira mais favorável e merecedora de atenção do que era permitido pelas formas habituais. O que se toma realidade nesse movimento é precisamente o individualismo da distinção em contraponto com a ambição do homem renascentista de se impor incondicionalmente, de enfatizar o valor de sua própria singularidade. Reside na própria natureza das coisas, no entanto, que esse desejo e essa satisfação não possam ser um traço permanente do homem ou da sociedade, tendo de desaparecer da mesma forma que um estado extático. Na medida em que o individualismo se manifesta aqui como uma procura de distinção, ele deixa para trás, nos altos e baixos e características gerais do ser humano, tantos compromissos, tantas impossibilidades de desenvolver suas forças, de vivenciar livremente sua vida, de sentir a unicidade de sua própria 1 pessoa que a acumulação dessas pressões levou, no século XVIII, ao rompimento com essa noção. A noção dominante, a partir daí, vai numa outra direção, segundo um outro ideal de individualidade, cuja motivação mais íntima não é mais a distinção mas sim a liberdade. Liberdade torna-se no século XVIII a bandeira universal pela qual o indivíduo protege seus mais variados desconfortos e necessidades de autoafirmação em relação à sociedade. Ela se torna visível, seja na sua roupagem econômica nos fisiocratas – os quais homenageavam a livre concorrência dos interesses individuais como manifestação da ordem natural das coisas - seja na sua conformação mais sentimental em Rousseau - para quem a origem de todo mal e deformação advém da violência praticada sobre o homem pela sociedade historicamente constituída - seja na sua versão política na Revolução Francesa - que eleva a liberdade individual de tal modo como valor absoluto que nega aos trabalhadores a possibilidade de se unir para proteger seus interesses seja, finalmente, na sua sublimação filosófica com Kant e Fichte, os quais elevaram o eu como referência última do mundo possível de ser conhecido, e defenderam sua absoluta autonomia como valor absoluto da esfera moral. A precariedade das formas de vida, válidas socialmente no século XVIII, em relação à capacidade produtiva material e espiritual da época aparecia aos indivíduos como uma limitação insuperável das suas energias. Limitações essas visíveis nos privilégios do estamento superior, no controle despótico do comércio, nos restos ainda poderosos dos estatutos corporativos, na repressão intolerante da Igreja, nas obrigações servis da população camponesa, na heteronomia da vida estatal e na repressão às constituições citadinas. Na opressão exercida por meio dessas instituições, que perderam todo o conteúdo jurídico, nasceu o ideal da mera liberdade individual: quando apenas essas instituições, que constrangiam os potenciais da personalidade de maneira não-natural, desaparecessem, teríamos o desenvolvimento de todos os valores internos e externos, para os quais o potencial já era existente, apenas paralisados por forças políticas, religiosas e econômicas. Essa passagem equivaleria à transição da desrazão histórica à razão natural. O individualismo que almejava dessa maneira sua realização tinha 2 como fundamento a igualdade natural dos indivíduos, a idéia de que todas aquelas opressões seriam desigualdades artificialmente produzidas. Assim, quando se as destruísse com a sua casualidade histórica, sua injustiça e sua opressão, teríamos enfim o homem perfeito e, posto que perfeito - na sua eticidade, beleza e felicidade - ele não manifestaria nenhuma desigualdade. A variante histórico-cultural profunda que possibilitava essa idéia remete ao conceito de natureza do século XVIII, o qual era completamente orientado pelo mecanicismo natural cientificista. Para este, existem apenas leis gerais, e todo fenômeno, seja um homem ou uma nebulosa na Via-láctea, é apenas manifestação isolada, mesmo quando sua forma se dá com absoluta singularidade, um mero ponto de interseção de um conceito de lei geral. Por conta disso, temos o homem em geral, o homem como tal, como o centro do interesse dessa época, ao contrário do historicamente dado, singularizado e diferenciado. Esse último é, por princípio, reduzido ao primeiro. Em qualquer pessoa particular vive, em sua essência, o homem genérico, assim como a mais peculiar parte de matéria apenas expressa, essencialmente, a lei universal da matéria como tal. Com isso, temos também um contexto de pertencimento prévio e mútuo entre direito, liberdade e igualdade. Na medida em que o genérico-humano, por assim dizer o homem como lei natural, representa o núcleo essencial daquele homem individualizado por características empíricas, posição social e formação casual, temos apenas de libertá-Ia de todas essas influências e desvios históricos que violentam a sua essência mais profunda, para que apareça o que é comum a todas - o homem como tal. Aqui temos o ponto de interseção desse conceito de individualidade que pertence às maiores categorias da história espiritual: se o homem foi libertado de tudo que não é ele mesmo, temos a substância fundamental de seu ser como homem, a humanidade que vive em cada um substancialmente da mesma forma, apenas revestida, amesquinhada e desviada empírica e historicamente. Esse significado do universal é o que faz com que a literatura do tempo da revolução repetidamente fale do povo, do tirano, da liberdade em geral. Por causa disso, a "religião natural" possui uma providência, uma justiça, uma educação divina, sem reconhecer o direito a conformações específicas desse universal. Por isso, também, o "direito natural" fundamenta3 se a partir da ficção de indivíduos isolados e iguais. Por conta disso, enfim, pôde Frederico, o Grande caracterizar o príncipe ao mesmo tempo como primeiro juiz, primeiro financista, primeiro ministro da sociedade e "um homem como qualquer um dos seus mais humildes súditos". A motivação metafísica fundamental que se expressava no século XVIII na exigência prática de liberdade e igualdade era a seguinte: que o valor de cada indivíduo tem seu fundamento nele próprio, na sua autoresponsabilidade; com isso, no entanto, naquilo que ele tem em comum com todos. Talvez fosse para o indivíduo uma enorme pretensão suportar toda a soma da sua existência solitariamente, sendo uma mitigação desse peso a idéia de que a espécie, a humanidade como tal, fosse responsável por esse desempenho. O lugar mais profundo da individualidade é o da igualdade universal, seja ela fundada na "natureza", em cuja positividade universal nos inserimos tanto mais quanto mais nos apoiamos no nosso eu livre de condicionamentos e compromissos historicamente situados, seja ela ainda a universalidade da "razão", na qual, para Kant e Fichte, temos a raiz do nosso eu, ou ainda, finalmente, a "humanidade". Seja natureza, razão ou humanidade, temos sempre um compartilhamento no qual o indivíduo se encontra, quando ele acha sua própria liberdade e singularidade. Na medida em que essa época transcende todo constrangimento e heteronomia, encontramos sempre a mesma individualidade: o homem abstrato. Essa categoria toma-se a substância última da personalidade, elevando essa abstração, simultaneamente, como valor último da personalidade. O homem, diz Kant, é suficientemente profano, mas a humanidade nele é sagrada. Mas Rousseau, que possui certamente uma forte sensibilidade para as diferenças individuais, as vê, no entanto, como um fenômeno superficial. Quanto mais o homem retome ao próprio coração, em vez de dedicar-se a relações externas, compreenda sua própria interioridade absoluta, tanto mais deságua nele, ou seja, em cada um de nós da mesma forma, a parte da bondade e felicidade. Quando o homem é realmente ele próprio, possui uma força concentrada suficiente não apenas para a própria autopreservação, mas, por assim dizer, transborda para outros, permitindo a recepção desses outros em si mesmo e a identificação com estes. Somos 4 tanto mais valoráveis eticamente, tanto mais bondosos e capazes de compaixão quanto mais cada um é si próprio, ou seja, quanto mais cada qual permita que aquele núcleo interno se tome autônomo e soberano, admitindo, assim, a identificação entre os homens para além da confusão das ligações sociais e papéis fortuitos. Esse conceito de individualidade implica, em sentido prático, o laissez faire, laissez aller. Se em todos os homens encontramos o mesmo "homem como tal" como sua essência, essência essa cujo desenvolvimento perfeito é pressuposto, então as relações humanas não necessitam de intervenções reguladoras especiais. O jogo de forças aqui tem de se dar com a mesma harmonia natural dos fenômenos do mundo estelar, onde, em caso de súbita intervenção de um poder sobrenatural que alterasse o movimento próprio desses astros, apenas caos e confusão seriam daí resultantes. Com certeza, não se conseguiu eliminar por completo as sombras da liberdade nos indivíduos, na medida em que a igualdade, por meio da qual a liberdade se justificava, na realidade, manifestava-se de forma muito imperfeita. A isso se somava ainda a suposição de que quando os indivíduos conseguissem liberdade, seguiriam-se novas iniqüidades e opressões: dos tolos pelos inteligentes, dos fracos pelos fortes, dos tímidos pelos agressivos. Parece-me que foi o instinto que propiciou o acréscimo da exigência da fraternidade ao de liberdade e igualdade, posto que apenas a renúncia eticamente voluntária, que esse conceito expressa, poderia evitar que a liberdade fosse acompanhada do oposto da igualdade. A consciência geral daquela época sobre a essência da individualidade escondeu essa contradição entre igualdade e liberdade, e apenas o século XIX conseguiu, de alguma forma... (lacuna no manuscrito). Esboço agora a forma de individualismo que dissolveu a síntese do século XVIII e sua fundamentação da igualdade pela liberdade e vice-versa. No lugar daquela igualdade que expressava o ser mais profundo da humanidade e que, por outro lado, primeiro, ainda teria que realizar-se, temos agora a desigualdade. Esta, do mesmo modo que antes a igualdade, apenas necessita da liberdade, retirando-se a mera multiplicidade eventual de oportunidades e possibilidades, para determinar o destino humano. A liberdade permanece como o denominador comum também com o correlato oposto. Tão 5 logo o eu no sentimento da igualdade e universalidade sentiu-se forte o bastante, passou a procurar a desigualdade, mas apenas aquela que surgia como uma lei interna. Depois da libertação principal do indivíduo das correntes enferrujadas da corporação, do estamento por nascimento e da Igreja, o movimento segue adiante, no sentido de que os indivíduos tornados autônomos querem agora distinguir-se entre si. O importante aqui não é mais o indivíduo livre como tal, mas que este é, precisamente, aquele único e distinto. A procura moderna pela diferenciação ganha com isso uma intensificação (steigerung) que desmente a forma imediatamente anterior, sem que essa contradição permita enganos quanto à identidade do impulso primordial. Durante toda época moderna, temos a busca do indivíduo por si mesmo, por um ponto de solidez e ausência de dúvidas, o qual se torna tanto mais necessário quanto mais o horizonte prático e teórico e a complexidade da vida aumentam aceleradamente, tornando ainda mais urgente essa necessidade, a qual não pode ser encontrada em instâncias externas à própria alma. Todas as relações com os outros são, ao fim e ao cabo, apenas estações no caminho em busca de si mesmo, seja porque se sente igual aos outros e sozinho com suas próprias forças, precisando do apoio desse tipo de consciência, seja porque, com a capacidade de encarar a solidão de frente, os outros existem para permitir a cada indivíduo a comparação e a visão da própria singularidade e individualidade do próprio mundo. No século XVIII, temos ecos desse ideal já em Lessing, Herder, Lavater e, alcançando sua primeira completa configuração como obra de arte, no Wilhelm Meisters Lehrjahren. Aqui temos, pela primeira vez, a caracterização de um mundo que se organiza e se desenvolve a partir da singularidade particular de cada indivíduo. E isso sem prejudicar o fato de que os personagens são pensados como tipos. Sempre que se repita na realidade, o sentido interno de cada pessoa permanece referido precisamente àquilo em que, como um dado do destino, fundamentalmente se é diferente de todos os outros. O acento da vida e do desenvolvimento não é dirigido ao igual, mas ao absolutamente peculiar. Aqui se expressa a contradição absoluta em relação ao ideal das personalidades livres e iguais, o qual Fichte, resumindo essa corrente de 6 pensamento do século XVIII, formulou da seguinte maneira: "um ser racional tem de ser antes de tudo um indivíduo, mas não precisamente este ou aquele determinado". Em radical oposição a essa opinião, temos a fórmula de Friedrich Schlegel, que expressa o novo individualismo: "precisamente a individualidade é o original e eterno no homem, na pessoalidade (personalität) não temos grande coisa". Esta forma de individualismo encontrou seu filósofo em Schleiermacher. Para ele, a tarefa ética é exatamente que cada qual expresse a humanidade de uma forma peculiar. Sem dúvida, cada qual é uma síntese de forças constituídas universalmente, mas cada um trabalha e amolda esse material de uma forma peculiar, sendo a realização dessa singularidade, ou seja, o preenchimento de um espaço reservado, simultaneamente uma obrigação ética. Cada qual é chamado a tomar realidade o próprio destino. Essa grandiosa idéia da história mundial - de que não apenas a igualdade dos homens, mas também a sua diferenciação, é uma obrigação ética - toma-se em Schleiermacher o fulcro de uma visão de mundo. Para esse individualismo - poder-se-ia chamá-lo de qualitativo por oposição ao numérico do século XVIII, ou o da singularidade (Einzigkeit) em oposição à parte (Einzelheit) -, o romantismo foi o principal canal por meio do qual essa concepção desaguou na consciência do século XIX. Assim como Goethe criou o fundamento artístico, e Schleiermacher o metafísico, o romantismo criou a base sentimental, da vivência. Os românticos buscaram antes de tudo, seguindo Herder, a vivência do específico e singular na realidade histórica. Nesse sentido, Novalis pretendeu que o seu "único espírito" fosse transformado em incontáveis outros estranhos. Antes de tudo, no entanto, o romântico vivencia, no seu ritmo interno, o incomparável, o que é seu direito especial, o agudo e qualitativo distanciamento de si, de seus elementos e momentos em oposição aos outros, que essa forma de individualismo percebe entre os componentes da sociedade. A alma romântica é perpassada por uma infinita cadeia de oposições, a qual cada indivíduo percebe, no instante da vivência, como algo absoluto, pronto e auto-suficiente, apenas para, no instante seguinte, deixá-lo para trás e, na distinção de um momento em relação ao outro, retirar a satisfação da própria individualidade - "quem se apega a apenas um ponto, não é nada mais 7 que uma ostra racional", diz Friedrich Schlegel. A vida do romântico traduz, na protéica sucessão de oposições entre disposição e trabalho, convicção e sentimento, paralelismos da configuração social, onde cada qual, apenas pela diferença em relação aos outros, por meio da singularidade pessoal do seu ser e atividade, consegue extrair o sentido da sua existência. Sem descanso, procuram essas duas grandes forças da cultura moderna - nas mais diversas esferas, sejam internas ou externas, assim como em incontáveis fenômenos distintos - um equilíbrio. Por um lado, a saudade da personalidade auto-suficiente, na medida em que é manifestação de um Cosmo, cujo isolamento possui o enorme consolo de, no seu núcleo natural mais profundo, ser igual a tudo e a todos. Por outro lado, a saudade da singularidade da própria vida com o outro onde o isolamento não implica prejuízo, de tal forma que cada qual possa trocar bens pessoais, propriedade de cada um, e que essa troca propicie e formação de elos orgânicos interdependentes. De uma forma geral, poder-se-ia dizer que o individualismo do simplesmente livre, das personalidades pensadas em princípio como iguais, é produto do liberalismo racional da Inglaterra e da França, enquanto a singularidade qualitativa e única seria, antes de tudo, uma criação do espírito germânico. Na constituição de princípios econômicos, o século XIX seguramente uniu os dois princípios. Com certeza, a teoria da liberdade e igualdade é o fundamento da livre concorrência, enquanto a personalidade diferenciada é o fundamento da divisão do trabalho. O liberalismo do século XVIII pôs o indivíduo sobre os próprios pés, permitindo a este ir tão longe quanto esses o levem. A teoria deixou que a ordem natural das coisas cuidasse que a concorrência sem limites dos indivíduos levasse a uma harmonia de todos os interesses em jogo, de tal forma que o todo fosse favorecido com a ambição individual sem peias. Essa é a metafísica com a qual o otimismo natural do século XVIII justifica a concorrência livre. Com o individualismo das diferenças, com a radicalização da individualidade até a singularidade do ser e do desempenho, para a qual cada ser é destinado, tem-se, também, a metafísica da divisão do trabalho. Esses dois grandes princípios que atuam na econômica do século XIX de maneira 8 inseparável - a concorrência e a divisão do trabalho - aparecem, dessa forma, como projeções econômicas de aspectos metafísicos do indivíduo social. As conseqüências, no entanto, da concorrência sem peias e da especialização da divisão do trabalho para a cultura interna não se deixam apresentar exatamente como o maior benefício dessa cultura. Talvez exista, para além da sua combinação na forma econômica - a única realizada até agora -, ainda uma forma superior que constitua o ideal velado da nossa cultura. Prefiro acreditar, no entanto, que a idéia da mera personalidade livre e a da mera personalidade singular, não sejam ainda as últimas palavras do individualismo. Ao contrário, a esperança é que o imprevisível trabalho da humanidade produza sempre mais, e sempre mais variadas formas de afirmação da personalidade e do valor da existência. E quando em períodos felizes essas variedades consigam chegar a formar conjunções harmônicas, suas contradições e lutas não sejam vistas apenas como obstáculo, mas sim como potenciais para o desenvolvimento de novas forças e criações. Extraído de: SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold. Simmel e a modernidade. Brasília: UnB. 1998. p. 109-117. 9
sábado, 29 de junho de 2024
Carlo Ginzburg vários - sobre o que está fora do texto bbb
Relações de força:história, retorica, prova
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/38677/20206
mostrar que o que está fora do texto está também dentro dele,“abrigado entre as suas dobras” (p. 42). Nesse caso, a retórica base-ada na prova tem a função de descobrir no texto o histórico e fazê-lofalar. Aí consiste a relação de força. Ao citar a exortação de WalterBenjamin2, que afirmava a necessidade de “escovar a história aocontrário”, o autor confirma que “é preciso aprender a ler os teste-munhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Sódessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de forçacomo aquilo que é redutível a elas” (p. 43).O trabalho do historiador consiste em problematizar (ou analisar,como trata Ginzburg) as fontes. É nesse exercício que o esforço decompreensão das relações de força se fará presente, pois o“conhecimento possível” (p. 45) será apreendido no trabalho deconstrução de uma retórica baseada na prova. Uma retórica que se“move no âmbito do provável, não no da verdade científica (como aconcebida pelo positivismo) e numa perspectiva delimitada, longedo etnocentrismo inocente”. Para Ginzburg, a análise construtivadas fontes requer um tratamento que as concebam não como “janelasescancaradas, como acreditam os positivistas”, nem como “murosque obstruem a visão, como pensam os céticos” (p. 44), mas como“espelhos deformantes” que exigem interdições e possibilidades comvistas à construção histórica.A sua tese que vincula retórica e prova, marco do seu distancia-mento da visão pós-moderna da historiografia, será baseada em trêsexemplos que irão possibilitar alcançar o objetivo da defesa de “que,no passado, a prova era considerada parte integrante da retórica” eque hoje deixada de lado por alguns, “implica uma concepção domodo de proceder dos historiadores” (p. 13). Uma questão que pas-2Walter Benjamin, Concetto di storia, Torino, 1997.
.... Aristóteles observa: “Dorieu venceu os jogos olímpicos”. Nessapassagem, dentro da realidade grega, não estava a preocupação com aquilo que se encontrava em jogo na competição, a coroa de louros,pois todo mundo já sabia, era óbvio. A observação pressupõe umsaber compartilhado e não declarado que na sua forma oculta revelaum saber tácito evocado, o que levará Lorenzo Valla a compreenderque a retórica de Aristóteles se move no âmbito do provável. Umhistoriador distanciado dessa realidade precisará fazer a leitura doque não foi dito, que para ele não é óbvio, não está no texto, está fora dele, num espaço em branco que precisa ser decifrado. É como um dito que está na voz do outro e não é compreendido por aquele que está ouvindo, uma voz estranha, “que provém de um lugar situadofora do texto”. Na leitura de um trecho famoso da Educação sentimental, deFlaubert, Ginzburg constrói o seu capítulo “Decifrando um espaçoem branco”. Nesse capítulo, irá tratar da retórica visual, tipográfica,pois será no espaço em branco deixado pelo autor na divisão doscapítulos da Educação sentimental que Ginzburg criticará o traba-lho historiográfico que valoriza os modelos narrativos que intervêm“apenas no final, para organizar o material coletado”(p. 44). Para ele,ao contrário, deve-se considerar, ou melhor, deslocar a atenção doproduto final do documento acabado para as questões presentes no
conhcimento racional - no curriculo escolar
https://www.seer.ufal.br/index.php/debateseducacao/article/view/10567
O presente artigo tem como objetivo inicial resgatar noções clássicas da filosofia antiga no campo do currículo. Entre essas noções destacamos as concepções de: ética, comunidade, humanismo e natureza. Desse modo, consideramos que tais noções só fazem sentido quando pensadas no ideal da Paidéia grega (JAEGER, 1994). Por isso, resgatamos passagens da Republica de Platão e da Ética de Aristóteles. Por meio dessas passagens, valendo-se de analise comparativa, compreendemos a diferença entre o saber-fazer do primeiro em detrimento ao saber-agir do segundo. Nesse sentido, a ética, com Aristóteles, recebe um componente pedagógico, a virtude intelectual conhecida por phronesis (prudência). Assim, com prudência e clareza da condição ética política, podemos superar a moralização contemporânea.
Adorno. A teoria crítica desse autor constrói-se em diálogo com o pensamento iluminista de Kant, com a filosofia marxista, mas também com a psicanálise de Freud, sem que, no entanto, a filosofia adorniana possa ser compreendida em estrita consonância com qualquer um desses referenciais.
..... a educação moderna instituída, na medida em que não é capaz de enxergar os aspectos ressaltados anteriormente, mostra-se limitada ou mesmo impedida de elevar os entes humanos do seu “estado de menoridade” a uma situação de autêntica emancipação, aumentando, assim, a probabilidade de recaída na barbárie, como a que se constatou na Segunda Guerra Mundial, nos emblemáticos casos do campo de concentração de Auschwitz e do massacre nuclear das cidades de Hiroshima e Nagasaki.
Embora seja possível evocar a regressão aos instintos e o irracionalismo como motivadores de ações cruéis, desumanas e destrutivas, a organização sistemática e tecnológica de tais atos indica a presença de um determinado tipo de racionalidade que atua como meio eficaz na execução dessas ações.
Há, portanto, um tipo de aliança entre forças instintivas e racionalidade que não se presta a produzir autonomia e emancipação, mas adaptação. Nota-se, portanto, a existência de um tipo de práxis produtiva negadora das forças emancipatórias e humanizadoras. Tal modalidade de racionalidade imiscui-se, por vezes, em diversos domínios da existência, inclusive no âmbito educacional. Daí a ponderação adorniana, segundo a qual:
A necessidade de tal adaptação, da identificação com o existente, com o dado, com o poder enquanto tal, gera o potencial totalitário. Este é reforçado pela insatisfação e pelo ódio, produzidos e reproduzidos pela própria imposição à adaptação justamente porque a realidade não cumpre a promessa de autonomia. (ADORNO, 1995, p. 43-44).
O pensamento emancipador não despreza a realidade material, produtiva e corporal. Contudo, não se subordina ao cálculo, à busca da melhor performance, à adaptação às regras como fim mesmo do viver e, por consequência, não renuncia à atitude crítica e às preocupações ético-políticas que devem orientar a dimensão prática da existência.
A emancipação dos sujeitos é um projeto histórico que não ganha sentido tão somente em situações extremas de ameaça à liberdade e à humanização. Por isso, o combate à barbárie deve ser um esforço constante e continuado, pois ela pode imiscuir-se insidiosamente nas relações humanas mais cotidianas que orientam a formação dos indivíduos.
Subjetividades adaptáveis, educadas para aderir às normas e determinações das instituições sociais, que se colocam em face do mundo constituído como se esse fosse uma coisa dada, perdem a capacidade de questionar, de se revoltar, de contestar a ordem estabelecida, fechando-se aos projetos utópicos que se esforçam para construir criativamente um mundo mais humano.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2002.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
GOERGEN, Pedro. Pós-modernidade, ética e educação. 2 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
PAVIANI, Jayme. As origens da ética em Platão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
PLATÃO. A República. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.
SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
VERGNIÈRES, Solange. Ética e política em Aristóteles. Tradução Constança Marcondes Cesar. São Paulo: Paulus, 1998 (Ensaios filosóficos).
AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG/Humanitas, 2005.
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. Artefilosofia / Instituto de Filosofia, Artes e Cultura / Universidade Federal de Ouro Preto/IFAC, n.4, (jan.2008). Ouro Preto: IFAC, 2008.
ALVES, Nilda. Cultura e cotidiano escolar. In: 25ª Reunião Anual da ANPEd. Maio/Jun/Jul/Ago Nº 23, Anais... Caxambu, MG, 2003. p. 62-74. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/drzj7WstvQxKy7t5GssT4mk/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 24 mai. 2019.
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BARROS, Laura Pozzana de; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCOSSIA, Liliana da. (orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015, p. 52-75.
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 3ª ed. Rio de Janeiro- São Paulo. Editora Record, 1996. Disponível em: https://cs.ufgd.edu.br/download/Livrosobrenada-manoel-de-barros.pdf. Acesso em: 10 nov. 2018.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: As Infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010.
BARROS, Manoel de. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004. 75 p.
BRASIL. Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana, na forma definida nesta Resolução. Seção 1, p. 44-46. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/reso510.pdf. Acesso em: 18 jul. 2019.
BURITY, Joanildo. Hospitalidade, amizade e os imperativos da ordem social. In: LOPES, Alice Casimiro Lopes; SISCAR, Marcos (Orgs.). Pensando a política com Derrida: responsabilidade, tradução, porvir. – São Paulo: Cortez, 2018.
CARVALHO, Janete Magalhães (Org.). Infância em territórios curriculares. Petrópolis, RJ: DP&A, 2012.
CARVALHO, Janete Magalhães. Cotidiano escolar como comunidade de afetos. Petrópolis, RJ: DP et alii; Brasília, DF: CNPq, 2009.
CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em educação? Porto-Alegre-RS: Doisa, 2013.
CRUZ, Rosimeire Costa de Andrade. A pré-escola vista pelas crianças. 2009. Trabalho apresentado no GT 07 Educação de Crianças de 0 a 6 anos. Anais da 32ª Reunião Científica da ANPEd. Caxambu, Outubro de 2009. Disponível em: http://32reuniao.anped.org.br/arquivos/trabalhos/GT07-5619--Int.pdf. Acesso em: 05 mai. 2018.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 4 / tradução de Suely Rolnik - São Paulo: Ed. 54, 1997.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade. Tradução de AntonioRomane._ São Paulo: Escuta, 2003.
FARIA, Ana Paula R. LOURENÇO, Suzany Goulart. Por uma política do sensível na experiência do currículo: encontros e desencontros. In: CARVALHO, Janete Magalhães (Org.). Infância em territórios curriculares. Petrópolis, RJ: DP&A, 2012, p. 154-168.
HANSEN, João Adolfo (2002) “Educando príncipes no espelho”. In FREITAS, Marcos Cezar de KUHLMANN JR, Moysés. (orgs.) Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez Editora, 61-98
KOHAN, Walter Omar. A infância da educação: O conceito devir-criança. In: KOHAN, Walter Omar. (org.) Lugares da infância: filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
KOHAN, Walter Omar. Infância e filosofia. In: SARMENTO, Manuel; GOUVEIA, Maria Cristina S. (Orgs.). Estudos da Infância: Educação e Práticas Sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
KOHAN, Walter Omar. Infância, estrangeiridade e ignorância. Ensaios de filosofia e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
KOHAN, Walter Omar. Paulo Freire: um menino de 100 anos. - 1 ed. - Rio de Janeiro: NEFI, 2021.
LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2017, 128p.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira da Educação, jan./abr., n.19, 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 20 abr. 2019.
Larrosa, Jorge. O enigma da infância: ou o que vai do impossível ao verdadeiro. In: Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Tradução de Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 183-198.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
LOPES, Alice Casimiro. Por um currículo sem fundamentos. Linhas Críticas, vol. 21, núm. 45, maio-agosto, 2015, pp. 445-466 Universidade de Brasília Brasília, Brasil. Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/1935/193542556011.pdf. Acesso em: 24 mai.2019.
MAIA, Marta Nidia Varella Gomes. Datas comemorativas – uma construção ideológica que persiste na educação infantil. – Trabalho apresentado no GT 07 Educação de Crianças de 0 a 6 anos. Anais da 38ª Reunião Científica da ANPEd. São Luiz do Maranhão, Outubro de 2017. Disponível em: http://38reuniao.anped.org.br/sites/default/files/resources/programacao/trabalho_38anped_2017_GT07_25.pdf. Acesso em: 05 mai. 2019.
MASSCHELEIN, JAN E-ducando o Olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre. Educação & Realidade, vol. 33, núm. 1, enero-junio, 2008, pp. 35-47. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3172/317227051005.pdf. Acesso em 31 nov. 2021.
PEREIRA, Dulcimar. Entre conversas, bonecos e currículos. In: CARVALHO, Janete Magalhães (Org.). Infância em territórios curriculares. Petrópolis, RJ: DP&A, 2012, p. 94-111.
RAMOS, Tacyana Karla Gomes. Possibilidades de organização de práticas educativas na creche em parceria com os bebês: o que “dizem” as crianças? Trabalho apresentado no GT 07 Educação de Crianças de 0 a 6 anos. Anais da 34ª Reunião Científica da ANPEd. Natal, Outubro de 2011. Disponível em: http://34reuniao.anped.org.br/images/trabalhos/GT07/GT07-1092%20int.pdf. Acesso em: 05. Mai. 2018.
SAMPAIO, Carmen Sanches; RIBEIRO, Tiago; SOUZA, Rafael de; Conversa como metodologia de pesquisa: uma metodologia menor. In: RIBEIRO, Tiago.; SOUZA, Rafael de; SAMPAIO, Carmen Sanches. Conversa como metodologia de pesquisa: por que não? Rio de Janeiro: Ayvu, 2018, p. 21-40.
SKLIAR, Carlos. A escuta das Diferenças. Ed. Mediação. 1ª ed. 2019.
SKLIAR, Carlos. Derrida & a educação. 1ed., Belo Horizonte: Autêntica, 2008ª.
SKLIAR, Carlos. La infância, La ninez, Las interrupciones. Childhood & Philosophy, vol. 8, núm. 15, enero-junio, 2012, pp. 67-81, Universidade do Estado do Rio de Janeiro Maracanã, Brasil. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512051606004 Acesso em: 31 mai.2018.
SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí?. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
conhecimento racional - Estado, Política, indivíduo liberal bb
https://www.scielo.br/j/rsocp/a/YkZsZbDQpz94zmpNdrRWwyt/?lang=pt
Este artigo trata de problemas na teoria e na prática democráticas. No século XX novas teorias econômicas e sociológicas da racionalidade dominaram a Ciência Social, enfraquecendo os antigos ideais da democracia representativa. Por algum tempo, o paradigma burocrático pareceu oferecer uma solução, mas na década de 1980 a burocracia era criticada como ineficiente e irresponsável. Como se poderia lidar com os problemas resultantes da governança democrática? Atores políticos responderam a essa pergunta aferrando-se ao antigo ideal da democracia representativa apoiada por formas de conhecimento técnico baseadas nas novas teorias da racionalidade. Assim, uma nova governança de mercados e redes difundiu-se pelo mundo. Com isso, os governos representativos ainda lutam para dirigir o processo político, ao mesmo tempo que um conhecimento técnico ilusório entulha a participação democrática. A democracia contemporânea sofre tanto com os limites borrados da accountability quanto com a legitimidade declinante. O artigo conclui sugerindo que a renovação democrática pode depender de estilos mais interpretativos de conhecimento técnico, de formas dialógicas de elaboração de políticas públicas e de diversas vias de participação pública.
governança; democracia; accountability; modernismo; idéias políticas; políticas públicas
conceito econômico de racionalidade encontrado na economia neoclássica e na teoria da escolha racional. Ele inspira uma erosão da democracia evidente em tentativas de restringir o escopo da tomada democrática de decisões a fim de lidar com as irracionalidades coletivas. Os assuntos públicos são transferidos para instituições não-majoritárias, incluindo bancos centrais independentes e juízes e cortes. Da mesma forma, decisões democráticas futuras são constrangidas por leis que requerem que a legislação, por exemplo, equilibre orçamentos ou respeito direitos jurídicos. Um segundo tipo de conhecimento técnico baseia-se no conceito sociológico de racionalidade encontrado no institucionalismo e em formas semelhantes de Ciência Social. Ele inspira um repensar da democracia que é evidente em novas ênfases na accountability horizontal e na inclusão social. As hierarquias burocráticas cedem espaço para redes joined-up. A segurança pública, a educação e outros serviços públicos crescentemente são baseados em parcerias que incluem organizações do setor privado e grupos comunitários.
Hoje, os formuladores de pol í t icas regularmente evocam um admirável mundo novo de descentralização, envolvimento público e cessão de poder [empowerment]. Seria tolice desprezar essas falas. Os formuladores de políticas podem genuinamente acreditar que os mercados e as redes podem e devem promover ideais democráticos. No entanto, sua fé com freqüência deriva pelo menos implicitamente de afirmações de especialistas segundo as quais mercados e redes inclusivos podem apoiar uma governança eficiente que é percebida como legítima. Como tal, há uma possível tensão nesse admirável mundo novo. A participação e o diálogo são meios para a governança eficiente e a legitimidade percebida ou são meios para promover valores democráticos? O que acontecerá se o objetivo de promover a governança efetiva e a legitimidade percebida entrar em conflito com o de estender a inclusão social e a participação política?
A nova governança substitui um tipo de modernismo por outro. Vão embora a narrativa burocrática, o conhecimento técnico neutro das profissões e a accountability prodecimental; entram os mercados e as redes, a teoria da escolha racional e o institucionalismo de redes e a accountability de desempenho. As mudanças são dramáticas. Ainda assim, a nova governança, tanto como teoria quanto como prática, continua sendo parte de um modernismo que desde há tempos luta para o fim da compreensão que o século XIX tinha do Estado.
Quando historicizamos o modernismo - quando o mostramos como uma forma particular e contestável de conhecimento -, criamos a possibilidade de mover-nos além dele. A Tabela 3 ilustra essa possibilidade. Em vez das abordagens modernistas às racionalidades econômica e sociológica, poderíamos conceber a vida social em termos de formas mais contingentes de razão local. Em vez de mover-nos da accountability procedimental para a de desempenho, poderíamos encorajar a accountability procedimental, talvez a tornando menos relativa a decisões que já foram tomadas e mais relativa a cidadãos tornando pessoas fiscalizáveis durante os processos de tomadas de decisões. Em vez de apelar para a falácia do conhecimento técnico, poderíamos explorar a possibilidade de um envolvimento e de um controle mais diretos pelos cidadãos por meio da formação e da implementação de políticas públicas; poderíamos defender conceitos mais plurais e participativos de democracia.
Thumbnail
Recebido em 15 de novembro de 2010.
Aprovado em 30 de novembro de 2010.
Mark Bevir (mbevir@berkeley.edu) é Doutor em Teoria Política pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e Professor do Departamento de Ciência Política na Universidade da Califórnia (Estados Unidos), campus de Berkeley.
BEVIR, M. 2010. Democratic Governance Princeton: Princeton University.
1
O presente artigo é a tradução de "Democratic Governance: A Genealogy", apresentado no X Congresso Anual da Western Political Science Association, realizado de 31 de março a 3 de abril de 2010, em San Antonio (Estados Unidos). Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda e revisão da tradução de Ricardo V. Silva.
2
A "história
whig" refere-se à historiografia desenvolvida por pensadores simpáticos ao partido
Whig, que eram os liberais e os democratas britânicos, opostos ao partido
Tory, conservador (nota do tradutor).
3
O New Public Management foi uma forma de pensar prevalecente nos Estados Unidos entre as décadas de 1980 e 2000 que afirmava serem necessárias reformas em direção ao mercado para o Estado melhorar seu desempenho; tais reformas incluíam a diminuição da estrutura estatal, assim como a concepção de que os cidadãos são
consumidores (N. T.).
4
A Terceira Via foi um movimento político teorizado pelo sociólogo inglês Anthony Giddens em apoio às reformas liberalizantes do Primeiro-Ministro trabalhista Tony Blair (1997-2007). De acordo com eles, o Estado deveria diminuir sua atuação direta na economia e dar mais espaço para a iniciativa privada, mas sem abrir mão de seus mecanismos de controle e e direção sócio-econômica e de combate às
desigualdades sociais (N. T.).
5
A expressão "joined-up" é de difícil tradução no presente contexto. O governo joined-up é uma proposta para que diferentes setores de um governo trabalhem em conjunto, delimitando metas e objetivos transversais a eles, buscando a coordenação e a sinergia dos esforços e dos resultados. Evidentemente, ele opõe-se às ações específicas e por vezes contrapostas de cada um dos setores envolvidos. O governo joined-up foi proposto pelo Primeiro-Ministro inglês Tony Blair ano longo dos anos 1990 (N. T.).
quinta-feira, 27 de junho de 2024
Mario FS Aristoteles e as mudanções bbb texto completo
https://www.academia.edu/111750113/M%C3%81RIO_FERREIRA_DOS_SANTOS_Arist%C3%B3teles_e_as_Muta%C3%A7%C3%B5es_Da_gera%C3%A7%C3%A3o_e_da_corrup%C3%A7%C3%A3o_ed_Logos_1955?uc-sb-sw=16557344
Mario FS Aristoteles e as mudanções bbb texto completo
Mario FS Filosofia concreta obra
Mário Ferreira dos Santos Filosofia concreta obra
file:///C:/Users/HOME/OneDrive/Documentos/MARIO_FERREIRA_DOS_SANTOS_Filosofia_Concreta.pdf
Mário FS logica e dialética bbb
https://www.academia.edu/45045024/M%C3%A1rio_Ferreira_dos_Santos_Enciclop%C3%A9dia_de_Ci%C3%AAncias_Filos%C3%B3ficas_e_Sociais_Vol_02_L%C3%B3gica_e_Dial%C3%A9tica&nav_from=ef83da66-b24c-499c-91b4-5ad16a12055b&rw_pos=0
simbolica Mario Ferreira dos santos texto integral
file:///C:/Users/HOME/Downloads/Mario_Ferreira_dos_Santos_Enciclopedia_d.pdf
Tratadod de simbólica
Mario FErreira dos Santos dicionário bbb
chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://d1wqtxts1xzle7.cloudfront.net/103297447/Dicionario_de_Filosofia_e_Ciencias_Cultu_1_-libre.pdf?1686577395=&response-content-disposition=inline%3B+filename%3DDicionario_de_Filosofia_e_Ciencias_Cultu.pdf&Expires=1719501790&Signature=YkoB-VFcbOZ3tQtiAojHy-VwCPZOxzvNarU36xtGb1uD8YMEc5kcpHcTwg0Ozch8qMLXFvPlfrZ-QpiXB4Azy-6JGVdy4BRY7L1q3Jasw9NZC06O~pxxKJ~GH~QlYv39~wijRyrdwgyvsbfrhcl5nsxZsjJoNSj7GkaKtIzHtsaB5z5W8lh1tr3tKgTynXmp~uFA7fyKbUgNvuTn4XD4kDZv7UfcScA0b~EYToWz9BFHUxMbz670PTk3S0MImplyllYC4HzLU8ZazLrl1YL8lqVmcPUJKO9naJadcnUeDOrJ7q9BJDDHcFuimnqYGG~YA7PPa2fuou1Rl5HfyJRQRg__&Key-Pair-Id=APKAJLOHF5GGSLRBV4ZA
Indivíduo filosofi a conceição soares bbb x thatcher
file:///C:/Users/HOME/OneDrive/Documentos/A%20filosofia%20do%20individualismo.pdf
Introduction
This paper attempts to examine in some detail the philosophy of individualism, with the aim to explain why this philosophy is so reductionist to entirely explain all complex social phenomena.
I argue that our Western world is based, by and large, upon the
dominant modern theory of free, equal and autonomous individuals
in open and symmetrical competition in a free marketplace of commodities and ideas. Its fundamental assumption is the conception of the
individual as an isolated entity separated from its own environment,
living as a self -sufficient being. From this conception, what society is,
how society works, is exclusively explained in terms of the behaviour
of such individuals; ultimately, the individual is the cause and the only
constituent of society.
This paper is organized around three general assumptions. The first
is that some form of individualism – broadly conceived as the view that
the individual human being is a maker of the world he/she inhabits
– has been a key factor in the philosophy and the life of the West since
the Enlightenment.
The second assumption is that, since the last century, the individualist order of the modern Western world has met with challenges that
have rendered its beliefs and doctrines problematic. Historical developments, social challenges, such as industrialisation, have altered the
philosophical foundations in which individual identity and responsibility are conceived. One needs to reflect anew on the status of the
individual in our contemporary world. Hence, the third assumption is
that the notion of individualism, which has played a central role in the
12 | CONCEIÇÃO SOARES
INTERNATIONAL JOURNAL OF PHILOSOPHY & SOCIAL VALUES | VOLUME I | NÚMERO 1 | JUN. 2018
formation of the post -Renaissance world, needs to be examined in the
wake of some other perspectives namely by contrasting it with its antonym, the notion of collectivity.
I will suggest that methodological individualism, fictive (or abstract)
individualism1
and the metaphysics of individualist social philosophy
is reductionist. The first is primarily the reductionist claim that all complex social phenomena are ultimately to be explained in terms of the
actions of individual agents; the second is akin to the Hobbesian thesis
that we come into existence overnight fully formed like mushrooms;
according to the third, the only entity that is real and exists in the
(social) universe is the individual (human being), all other entities, such
as the family or society in general are not real and do not exist, as these
ultimately are nothing more than logical constructions out of the individual beings, which alone are real and exist. It would then be obvious
why any analysis of collective behavior from an individualist standpoint is necessarily very restrictive. However, although individualism
is the dominant social philosophy in modern Western thought, there
are also other currents, such as collectivism (to which I shall be making
a briefly reference in the course of this paper), which is seen as the rival
social philosophy to that of individualism
segunda-feira, 24 de junho de 2024
Paideia sobre Jaeger bbb
Sobre a Paideia de Werner Jaeger
chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://repositorio.ipv.pt/bitstream/10400.19/769/1/A%20Paideia%20Grega%20revisitada.pdf
IDEIA GREGA REVISITADA MARIA DE JESUS FONSECA * * Professora-Adjunta da ESEV É comum considerar-se que há dois períodos na história da educação grega: o período antigo, que compreende a educação homérica e a educação antiga de Esparta e Atenas, e o novo período, o da educação no "século de Péricles", correspondendo este ao período áureo da cultura grega, o qual se inicia com os Sofistas e se desenvolverá com os filósofos/educadores ou educadores/filósofos gregos Sócrates, Platão e Aristóteles. Depois, seguir-se-á o período helenístico, já de decadência, em que a Grécia é conquistada, primeiro pelos macedónios e depois pelos romanos. Atenas perde, então, a sua posição de centro cultural do mundo em favor, sobretudo, de Alexandria. E, se é certo que, apesar de vencida, a Grécia triunfou pela sua cultura, que se difundiu e universalizou - Graecia canta ferum victorem cepit et artes intulit agresti Latio (Horácio) -, não é menos verdade que o que ganhou em universalização o perdeu em originalidade e alento criador.
sexta-feira, 21 de junho de 2024
Quine bbb
file:///C:/Users/HOME/OneDrive/Documentos/quine%20palavra%20objeto.pdf
O ASPECTO PRAGMÁTICO DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM
DE W. V. O. QUINE
Vera Lúcia Caldas Vidal
Departamento de Filosofia – UFRJ
Utilizando-se a definição de pragmática proposta por
Carnap – 'conjunto de investigações sobre a linguagem em que se faz
referência explícita aos usuários’1 – pode afirmar-se que a Filosofia da
Linguagem de Quine apresenta um aspecto nitidamente pragmático o qual
se revela na afirmação que inicia o prefácio de sua obra Palavra e Objeto:
'A linguagem e uma arte social. Para assimilá-la, dispomos
somente de alguns indícios sugestivos intersubjetivamente disponíveis, que
indicam o que se pode dizer e em que circunstâncias’.
Sua preocupação com o sujeito falante e com os atos de fala
acentua-se ainda mais quando, logo a seguir, afirma que a única abordagem
válida da noção de significado lingüístico é em termos das
'disposições a responder a estímulos observáveis socialmente'.
Esta afirmação revela a forte influência behaviürista recebida
especialmente de Skinner, embora discorde de certos pressupostos do
behaviorismo lingüístico. Também fica expresso aí o seu projeto de
construir uma teoria científica do significado alicert'ada em fatos
observáveis e de domínio público, pois acredita que o significado é
inseparável do comportamento do sujeito falante.
Este projeto é reforçado em outro texto no qual propõe que se
Husserl A crise das ciências europeias
file:///C:/Users/HOME/OneDrive/Documentos/Husserl.pdf
file:///C:/Users/HOME/OneDrive/Documentos/Husserl.pdf
sujeito, pessoa, indivíduo, cristianismo bb para criticar
file:///C:/Users/HOME/OneDrive/Documentos/comunidade%20civil%20e%20crist%C3%A3.pdf
1.2. A pessoa no horizonte da revelação judaico-cristã
Há também uma história do conceito de pessoa na compreensão
da revelação judaico-cristã. Por questão de espaço, contentemo-nos com
alguns referenciais bíblicos a modo de conceituação.
A tradição judaica do AT define o ser humano, não como espécie,
mas indivíduo-imagem-de-Deus (Gn 1,27). Por isso, será sempre um ser
digno de respeito e veneração, jamais manipulável ou meio para algum
fim. Adão não um simples animal que evoluiu, nem um espírito caído do
céu. Ele é, sim, a porção de terra que evoluiu e, ao mesmo tempo, o sopro
vivo de Deus (Gn 2,7), que o torna capaz de falar com Deus, de fazer
aliança com ele (depois o fariam Noé, Abraão ou Moisés: Gn 2,15-17;
Gn 9,8-17; 17,1-17; Ex 24,1-8), de encontrar-se com ele em uma relação
Cf. APEL, K. O. La transformación de la filosofía, 2 vols., Madrid 1985 (ver Vol. II, p.
149ss). 10 Cf. LEVINAS, E. Totalidad e infinito, Salamanca 1977, p. 101ss. 11 Cf. RICOEUR, P. Soi-même comme un autre, Paris 1990, cap. VIII e IX. 12 Cf. CAFFARENA, J. Gómez. “Persona y ética teológica”, op. cit., p. 168-172.
mútua e exclusiva. Essa relação única e exclusiva de Deus com cada um,
dando-lhe um nome irrepetível, faz do ser humano indivíduo e pessoa
(Gn 15,1; 22,1; Ex 3,4; Jr 1,11; Am 7,8).
O NT radicaliza ainda mais o valor pessoal de cada indivíduo.
Cristo torna-se o modelo de pessoa, com sua relação única com Deus (Cl
1,15; Hb 1,3). Por sua vez, cada ser humano é irmão de Cristo, sua
imagem, filho de Deus no Filho (Rm 8,29; Col 1,18-20; Gl 3,26-29).
Criatura co-criadora, cada pessoa é chamada a continuar a obra do Pai e
de Cristo, transformando o mundo até que ele chegue à sua plenitude
(Rm 8,18ss) e a colocar seus valores pessoais a serviço da comunidade
(Mt 20,28). Cristo trouxe-nos o Espírito, que é fonte de liberdade para
cada um, libertando-nos dos condicionamentos escravizadores e
convocando-nos para a edificação de um mundo novo, inspirado no amor
e na liberdade (2Cor 3,17s). Os pobres e abandonados são os primeiros
nessa eleição privilegiada de Deus (Mt 11,25-30; 22,8-9)13 .
O Concílio Vaticano II também fez da antropologia um de seus
temas. Entre outros, afirma que a pessoa, dotada de dignidade (GS 26;
DH 1), em razão de sua sublime vocação para a comunhão com Deus
(GS 19), merece reverência e respeito (GS 27), pois Deus a respeita (DH
11), mesmo quando ela erra (GS 28). É um ser de relações sociais (GS
12; 25), sem as quais não pode viver (GS 12 e desenvolver seus talentos
(GS 12; 25). É sujeito de direitos invioláveis (DH 6), que devem ser
respeitados em qualquer regime político (GS 29). É princípio, sujeito e
fim de todas as instituições sociais (GS 25; 29).
1.3. Perspectiva de ação hoje: a personalização 1.3. Perspectiva de ação hoje: a personalização
No âmbito da pessoa, segundo as Diretrizes da CNBB, o grande
desafio na atualidade consiste na reconstrução da identidade pessoal e na
conquista de uma liberdade autêntica, na sociedade consumista (DGAE
65-68).
Identidade pessoal
A identidade do ser humano se tece na conjugação harmônica entre
sua natureza individual e social. Desfaz-se esta harmonia, quando a pessoa
se fecha no egoísmo ou se deixa absorver ou é agredida pelo universo
exterior. A pessoa se afirma pelo dom. Os vínculos se estreitam quando
através deles cresce a pessoa. Individualismo, desenraizamento cultural
pela migração ou êxodo, ecletismo religioso, modismos, relativismo ético,
etc. são sintomas de perda de identidade. Ações como acolhida e orientação,
aconselhamento pastoral, atenção às necessidades básicas, educação
permanente e integral, formação do espírito crítico e outras podem
contribuir na reconstrução da identidade pessoal (DGAE 85).
Liberdade autêntica
Elemento essencial da identidade pessoal é a liberdElemento essencial da identidade pessoal é a liberdade, que faz
dela, ao mesmo tempo, única e um fim em si mesma. A pessoa é o ser
irrepetível, diferente de qualquer outro e incapaz de ser suprimido por
outro, com uma vocação e tarefa própria na história. Na pessoa, dá-se a
conexão entre o universal e o particular, a unidade do universal e do
infinito, constituindo-se base de direitos inalienáveis e fundamento de
sua dignidade. A pessoa é um ser que comporta em si mesmo um destino
a uma finalidade. É o eterno do temporal, o infinito do finito, o espírito da
matéria. E tudo isso, por causa da liberdade que lhe é constitutiva e a
torna sujeito de responsabilidades.
Essa valorização da pessoa, raiz de direitos inalienáveis, deve
estender-se a todas as circunstâncias, mesmo aos casos extremos, em que
a pessoa não se manifesta na plenitude de suas faculdades. Sobre o ser
humano não se pode aplicar critérios utilitários.
Mas, a dimensão social da pessoa, não se limita a esse encontro
profundo com sua dignidade personalizada. Ser pessoa é abrir-se no
respeito ao outro, a todos, considerando-os iguais e irmãos na dignidade
humana. Dignidade que se expressa na igualdade de oportunidades em
suas relações sociais e políticas. Brota, daí, a grande tarefa da
personalização de grandes contingentes de nossa população,
menosprezados em sua condição de explorados ou excluídos. A
personalização de uns poucos não pode estar justificada pela escravidão
das maiorias. O grande escândalo é o do ‘não-homem’14 , oprimido pela
sociedade – o escravo, o explorado, o pisoteado, o estrangeiro, o pobre social-econômica-política-racial e culturalmente. Cada pessoa vale tanto
quanto qualquer outra, por isso, aos mais abastados pesa a maior
responsabilidade de serem promotores da radical igualdade de todos.
Segundo as Diretrizes da CNBB, ações pastorais, tais como: uma
sólida pastoral da juventude, promotora da formação de uma personalidade
madura face aos desvios sexuais, drogas e consumismo ilusório (DGAE
85); uma evangelização inculturada, no diálogo intercultural, através do
conhecimento e da promoção do intercâmbio das tradições culturais
(DGAE 92); pastoral da comunicação e presença pública da Igreja junto
à sociedade (DGAE 103); etc., podem contribuir para a conquista de
uma liberdade autêntica, na sociedade consumista.
2. A realização no âmbito da comunidade
A comunidade é essencial na vida e no desenvolvimento de uma
pessoa. Com efeito, todo ser humano nasce no seio de uma comunidade,
a família, e dependerá desta para o desenvolvimento de suas possibilidades.
Só consegue personalizar-se e tomar consciência do mundo e dos outros,
através do encontro pessoal e de amor no seio de uma comunidade concreta.
Da mesma forma em que é no encontro do “eu” com um “tu” que desperta
a consciência pessoal, a harmonia fundamental da pessoa depende da
aprendizagem do gerenciamento de seus conflitos no seio de uma
comunidade, transformando-os em relações amorosas15 . A Igreja quer
ser um espaço de realização da vocação cristã, enquanto comunidade,
ícone da Trindade16 2.1. História e evolução do conceito
Em linhas gerais, o conceito de comunidade pressupõe uma
pluralidade de indivíduos que se unem e se inter-relacionam com vínculos
pessoais. A comunidade se diferencia da sociedade pelo fato de que não
se forma pelas relações jurídicas ou pelos simples objetivos comuns, mas
fundamentalmente pelas relações interpessoais entre seus membros. Não basta a simples sintonização em torno de objetivos comuns, com
colaborações mútuas ocasionais; nem as relações de proximidade e
afetividade difusa, que podem dar-se em aglomerações de massas. A
comunidade sempre apresenta uma dimensão de amor e, a eclesial, também
de fé, que liga e enriquece seus membros.
Entretanto, em muitos casos, as fronteiras entre sociedade e
comunidade permanecem ambíguas. Neste sentido, pode-se dizer que o
conceito de comunidade é igualmente recente, pois depende do
desenvolvimento do conceito de pessoa. Só há comunidade quando há
indivíduos personalizados. O desenvolvimento da vivência comunitária
está ligado ao processo de personalização de seus membros. Em muitos
aspectos, a própria família, historicamente, foi mais uma sociedade com
fins econômicos e sociais, que condição de uma autêntica comunidade,
inspirada pelo amor. Sobretudo na cristandade medieval, pode-se falar
de um desenvolvimento de relações predominantemente de massas, que
se caracterizavam mais pela proximidade e pela ação conjunta do que
por formas mais individualizadas e personalizadoras. A própria Iga Igreja
caracterizou-se, neste período, mais como massa de batizados do que
como verdadeira comunidade de irmãos.
A comunidade comporta numerosos níveis e formas diversas. A
família é certamente a comunidade natural mais espontânea e fundante.
A própria experiência eclesial depende dela. Daí, pode-se passar para
comunidades mais amplas; no campo social, como a de uma associação,
município, de uma pátria ou até mesmo da humanidade inteira; e, no
campo eclesial, como a da “Igreja doméstica”17 (grupo de famílias),
comunidade de base, paróquia, diocese, enquanto “comunidade de
comunidades” (Puebla). A própria humanidade, do ponto de vista religioso,pode ser concebida como comunidade, quando alicerçada sobre vínculos
personalizadores desde pequenas comunidades, à medida em que o amor
e a fé aproximem todos os membros em torno a vivências comuns.
Contudo, deve-se levar em conta que a comunidade, enquanto
integradora de indivíduos personalizados, é inevitavelmente espaço da
exteriorização de tensões entre o indivíduo e o grupo. Por um lado, está a comunidade como expansão da pessoa em um amplo grupo de indivíduos,
que se superam para além de suas diferenças; por outro, estão pessoas,
com suas identidades diferenciadas e livres. Além disso, o egoísmo e o
pecado podem agravar esta situação. Neste caso, só a abertura ao diálogo
sincero pode levar à comunidade, em que, o comum não anula a dimensão
interior e profunda de cada um de seus membros18 .
2.2.A comunidade no horizonte da revelação
judaico-cristã
Na tradição judaica do AT, as relações comunitárias e a dimensão
interpessoal não se encontram muito desenvolvidas. A comunidade
religiosa estava indissoluvelmente ligada à organização política do povo.
Os vínculos essenciais entre os membros do povo eram estabelecidos
pela vocação religiosa (Dt 7,7-8). Somente em uma etapa posterior é que
começa um ‘resto’ ou comunidade a se diferenciar da multidão do povo
(Is 4,3; Jr 23,3-4)
No NT a dimensão cNo NT a dimensão comunitária da religião e da vida é posta em
relevo. A acolhida da própria mensagem pressupõe uma profunda
personalização, que sente sua vocação pessoal diante de Deus como única
e transcendente. A mensagem cristã se resume na fé e no amor a Deus,
mas que passa pela comunidade dos irmãos. A obra de Cristo é
precisamente um Reino de amor, que tem na Igreja seu sacramento. Para
isso, ele escolhe apóstolos que o acompanhem (Mc 3,14-15) e com eles
vive em especial intimidade, através da qual lhes foi revelando os mistérios
do Reino (Mc 6,30-31; 7,17; 4,10-11). É pela mediação desta comunidade
que surge a fé em Cristo (Mc 8,27ss; Mt 16,13-17), que se vive a nova
experiência do amor e do serviço (Mc 9,33-35; 10,41-45) e que se começou
a nova experiência missionária (Mc 6,6ss; Lc 9,1-2). A Igreja, nascida a partir da experiência pessoal, também surgiu na vivência comunitária
dos discípulos reunidos na experiência do novo encontro com o Senhor
(Lc 24,33-35; Jo 20,19; Mt 28,16ss). Os novos convertidos aderem ao
sacramento da comunidade e, por meio desta adesão, participam dos dons
de Cristo (At 2,41). Toda a experiência da difusão do cristianismo reside
na irradiação evangélica das comunidades cristãs, através das quais se
experimenta o novo e contagioso amor de Cristo (At 4,32), nas quais o Espírito dinamiza e faz sentir a experiência antecipada do Reino (At 4,ss).
As novas comunidades acolheram milhares de discípulos que buscavam
um mundo novo e seu fermento conseguiu transformar a face do mundo
(At 14,22ss; 18,7-8; 19,9ss). As cartas de Paulo constituem testemunhos
vivos das comunidades em que se vivia o cristianismo com uma unidade
capaz de superar os antagonismos de raça, classe social, de tradições
religiosas e de culturas (Fm 8,12; 1Cor 7,17-24; 12,12-13; Fl 1,7;
1,27ss)19 .
O tema da comunidade é muito presente no Concílio Vaticano II,
tanto no sentido eclesial como no social. Os textos falam que a comunidade
humana forma uma só família (GS 24), análoga à vida intratrinitária (GS
24); a vida comunitária é uma exigência da própria natureza humana,
que é um ser social (GS 12; 25; AA 18); por isso, o imperativo de respeitar
a dignidade da pessoa humana no ‘outro eu’ (GS 27), mesmo que seja
adversário (GS 28) ou até inimigo (GS 28). Reconhecer a igualdade
essencial entre todos (GS 29), implica superar a ética individualista (GS
30) e considerar como dever principal as relações sociais (GS 30), pois
Deus não criou o ser humano para viver isoladamente, mas os reúne em
seu Povo (GS 32).2.3. Perspectiva de ação hoje: refazer o tecido eclesial
Segundo as Diretrizes da CNBB, o grande desafio no âmbito da
comunidade é a fragmentação da vida e a busca de relações mais humanas
(DGAE 111).
Na esfera eclesial, longe de fundamentalismos ou saudosismos,
pode-se afirmar que a marca comunitária do cristianismo foi
gradativamente sendo perdida, na medida em que a Igreja foi difundindo
a fé cristã no encontro com os povos da cultura greco-romana. Sobretudo
quando o cristianismo tornou-se ‘religião’ oficial do Império Romano,
começou a predominar uma vivência mais de massa e multidões do que
de comunidade. Da experiência da fé em ‘Igrejas domésticas’, passa-se
às peregrinações, à presença de multidões nas grandes catedrais, às
procissões. As relações interpessoais passaram a ceder lugar ao impacto
emotivo de eventos massivos. Os sacramentos, símbolos de uma
comunidade de fé, passam a ser sinais sociológicos da pertença a uma Com o advento da modernidade, a fragmentação do comunitário
se acirra. A irrupção do indivíduo e da liberdade de consciência opera
uma privatização da religião na esfera do pessoal. O intimismo reduz o
religioso à dimensão invisível e anti-social da pessoa, perdendo-se toda a
riqueza do encontro comunitário. Em momentos o racionalismo frio, em
outros seu antagonista, o intimismo, substituem a autêntica vivência Na contemporaneidade, o sistema liberal-capitalismo acirrou ainda
mais o individualismo, fragmentando as experiências e instituições
comunitárias como um todo, a começar pela família. A pessoa se perde
no anonimato dos poderes do Estado e das instituições políticas e
econômicas. No campo religioso, as grandes tradições perdem terreno
para grupos religiosos autônomos, que tendem a fazer de Deus objeto de
desejos particulares. Cada vez mais as pessoas têm dificuldade de crer
com os outros e naquilo que os outros crêem. A experiência religiosa se
volta para o emocional, conformando comunidades invisíveis e virtuais,
de ‘cristãos’ sem Igreja.
A grande tarefa neste âmbito é ajudar os indivíduos a dar o passo
do pessoal para a comunidade, como forma de superação do individualismo
egoísta. A relação “eu-tu” precisa desembocar num “nós”, seja no eclesial,
como no social, acima de particularismos estreitos e estéreis. Esta tarefa
implica abertura para a colaboração, para o trabalho em equipe, para a
organização social e a amizade a ser travada nas lutas da vida. Só
verdadeiras comunidades podem contribuir na construção de uma
sociedade solidária. Para isso, urge a oferta de oportunidade de encontro,
de prática solidária e experiências de amizade, bem de espaços de educação
ao relacionamento solidário e fraterno (DGAE 123). Desafia a renovação 3. A realização no âmbito da sociedade
A realização da vocação humana e cristã se dá quando o indivíduo
sai de si e torna-se pessoa e, na seqüência, transcende-se na comunidade
para, finalmente, com os outros, fazer-se servidor de todos na sociedade.
Indivíduos atomizados ou massificados, não podem exprimir toda a riqueza
de seu ser. Tornam-se pessoa pela comunidade. Mas como membros da
humanidade e cidadãos universais, necessitam também da sociedade para
realizarem-se, nela sintam-se livres e participem na construção de um mundo para todos. A vocação humana advoga para a convivência de
cidadãos livres, numa sociedade livre, justa e solidária. A Igreja, enquanto
comunidade, igualmente só cumpre sua missão, na medida em que se faz
missionária, sai de si, e exerce um serviço na sociedade, o espaço de
edificação do Reino de Deus, que não é uma realidade intimista. Vaticano
II põe a Igreja nesta perspectiva: inserir-se no seio da sociedade, numa
atitude de diálogo e serviço a todos, em especial os mais pobres. 3.1. História e evolução do conceito
A sociedade é o espaço dos cidadãos. A cidadania está ligada
essencialmente à consciência dos direitos cidadãos, direitos individuais e
sociais. Esta consciência tem sua evolução histórica.
a) A invenção da cidadania
Vejamos, brevemente, alguns tópicos do processo de invenção da
cidadania.
Do direito primitivo ao direito moderno
Segundo Max Weber, nas sociedades primitivas, encontramos um
direito carismático, revelado pelos profetas ou autoridades religiosas,
que interpretavam a vontade de Deus e dos heróis míticos fundadores.
Não existe ainda o conceito de normas objetivas, independente dos
costumes. No direito tradicional, a lei é imposta por poderes seculares
ou teocráticos. As normas são tomadas como dadas, como convenções
transmitidas pela tradição. É ainda um direito particularista; não está
baseado em princípios legais universais. O direito natural inaugura o
Direito Moderno (séc. XVII e XVIII), baseado em princípios, tidos como
emanados da natureza humana. As normas são promulgadas segundo
princípios estabelecidos livremente por acordos racionais. O ser humano
passa a ser visto como portador de direitos univ universais que antecedem a
instituição do Estado.
A afirmação de um direito racional, universalmente válido, levou
à necessidade de codificação de um estatuto legal, de organização de um
sistema lógico e à corporificação do direito como sistema. Entretanto,
só a partir do século XX estas codificações passaram a ser feitas a partir
de certos acordos entre os diversos atores sociais, num espírito mais
democrático. Nos regimes absolutistas, os direitos do indivíduo são
concebidos como dádiva do soberano, em face ao direito divino dos reis.
Então, o Estado Leviatã é defendido (Hobbes) como a única maneira de evitar a anarquia social, pois “o homem é o lobo do homem”. No século
XIX, o positivismo considera o Estado como fonte central de todo o Direito,
concebido a partir de um paradigma ideal, fixo e imutável, fora de seu
contexto social, escamoteando os interesses que se ocultavam por detrás
da exaltação da razão21 .
Do direito de Estado ao estado de direito
A idéia de que os cidadãos podem organizar o Estado e a sociedade
de acordo com sua vontade, baseada na razão, desconsiderando as
tradições e os costumes, foi uma das grandes bandeiras do Iluminismo.
Na linha do “Contrato Social” de J. Rousseau, o princípio da legitimidade
dinástica é substituído pelo princípio da soberania popular. Invertendo a
relação tradicional de direitos dos governantes e deveres dos súditos, agora
o indivíduo tem direitos, e o governo obriga-se a garanti-los. É o nascimento do Estado de Direito, em que se passa do ponto de
vista do príncipe para o ponto de vista do cidadão. No Estado despótico,
o indivíduo só tem deveres, e não direitos. No Estado absoluto, os
indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado
de Direito, o indivíduo tem, não só direitos privados, mas também direitos
públicos. O Estado de Direito é o Estado de Cidadãos22 .
O que é cidadania
Segundo a concepção de T. H. Marshal, a cidadania é composta
dos direitos civis e políticos (direitos de primeira geração), e dos direitos
sociais (direitos de segunda geração)23 Os direitos civis, conquistados no séc. XVIII, correspondem aos
direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, de ir e vir, direito
à vida, segurança, etc. São os direitos que embasam a concepção liberal
clássica. Já os direitos políticos, alcançados no séc. XIX, dizem respeito
à liberdade de associação e reunião, de organização política e sindical, à
participação política eleitoral, ao sufrágio universal, etc. São também
chamados direitos individuais exercidos coletivamente.
Os direitos de segunda geração – os direitos sociais, econômicos
– foram conquistados no século XX, a partir das lutas do movimento operário e sindical. São os direitos ao trabalho, saúde, educação,
aposentadoria, seguro-desemprego, enfim, a garantia de acesso aos meios
de vida e bem-estar-social. No que se refere à relação entre direito de
cidadania e o Estado, existiria uma tensão interna entre os diversos direitos
que compõem o conceito de cidadania. Enquanto os direitos de primeira
geração – civis e políticos – exigiriam, para sua plena realização, um
Estado mínimo, os direitos de segunda geração – direitos sociais –
demandariam uma presença mais forte do Estado para serem cumpridos.
Na segunda metade de nosso século, surgiram os chamados “direitos
de terceira geração”. Trata-se de direitos que têm como titular, não o
indivíduo, mas grupos humanos como o povo, a nação, coletividades
étnicas ou a própria humanidade. É o caso do direito à autodeterminação
dos povos, direito ao desenvolvimento, direito à paz, direito ao meio
ambiente, direito das minorias, direitos das mulheres, dos jovens, das
crianças, dos anciãos, etc Já se fala hoje de “direitos de quarta geração”, relativos à bioética,
para impedir a destruição da vida e regular a criação de novas formas de
vida em laboratório pela engenharia genética.
Assim, os cidadãos ou a cidadania são sujeitos de direitos -
individuais e sociais, que, se por um lado, devem ser promovidos e
respeitados, por outro, precisam ser protegidos e defendidos pela própria
cidadania, através da organização e ação da sociedade civil.
b) Sociedade civil
a) Evolução do conceito
Na Antiguidade, há o conceito aristotélico de Politike koinonia,
traduzido para o latim por societas civilis – sociedade civil. Na Idade
Média, a societas civilis não distinguia a sociedade do Estado. Na Idade
Moderna, está associada a um corpo político onde liberdade e razão
deveriam coexistir, fundadas na concepção de contrato social. No século
XIX, Hegel a concebe como uma instância intermediária entre o Estado,
regulador das relações entre indivíduos e, instituições privadas, que se
comportam segundo seus interesses próprios. Para ele, sociedade civil
implica determinações individualistas e a procura de um princípio ético
que jamais poderia vir do mercado, mas sim das corporações. Para Marx,
sociedade civil não significa instituições intermediárias entre a sociedade
e o Estado, no sentido de uma diferenciação entre Estado e sociedade,
mas a fusão de ambos.Nos anos 70, a noção de sociedade civil muda consideravelmente.
Ela ressurge como uma oposição ao Estado, não para acabar com ele e
com o mercado, mas para fortalecer as formas societárias de organização.
A partir dos anos 80, em função da perda de prestígio dos partidos
políticos, aumentou o fosso entre o sistema institucional de representação
no plano do Estado e a chamada sociedade civil organizada. As associações
da sociedade civil assumiram o papel de formadoras da opinião pública e
constituidoras da opinião coletiva nos espaços situados fora do Estado e
do mercado. A noção de sociedade civil passa a ser compreendida em
oposição não apenas ao Estado, mas também ao mercado. Os atores da
sociedade civil organizados em movimentos sociais cumprem função
pública, absorvendo a ação comunitária existente no mundo da vida e
levando-a ao nível da esfera pública. Defendem o interesse público e se
constituem como instância de crítica e controle do poder.
Mais recentemente, novas formas de ação social transformadora
emergiram no mundo: movimentos populares, que centrados em temas de
democratização, cidadania, liberdades identidade cultural, etc., assumiram
a forma de organizações não-governamentais (ONGs), particularmente
transnacionais. Nas últimas décadas, tornaram-se importantes peças de
apoio aos programas de desenvolvimento. Nos países em desenvolvimento,
elas beneficiam cerca de 250 milhões de pessoas. Elas atuam nos planos
local, nacional, regional e internacional. Em muitos países, as ONGs
ajudam a formular as políticas públicas. Em outros, seu papel é importante
para fiscalizar projetos governamentais, por exemplo24 .
Conceituação atual
A sociedade civil, hoje, tende a autocompreender-se como a esfera
de interação social entre a economia e o Estado, composta pela esfera
íntima (família), pela esfera associativa (associações voluntárias) e pelos
movimentos sociais. Portanto, ela não engloba toda a vida social. A
sociedade política (Estado) constitui-se de partidos, organizações políticas,
parlamentos, etc. A sociedade econômica compõe-se de organizações de
produção e distribuição, como empresas e cooperativas, firmas, etc.
. Mais
bem, as sociedades políticas e econômicas surgem da sociedade civil.
Entretanto, enquanto os atores da sociedade política e econômica estão
diretamente envolvidos com o poder do Estado e com a produção econômica visando o lucro, que eles buscam controlar e gerir, o papel da
sociedade civil não está diretamente relacionado à conquista e controle
do poder, mas à geração de influência na esfera pública cultural.
Para isso, joga um papel importante a sociedade política. O papel
mediador da sociedade política entre a sociedade civil e o Estado é
indispensável, assim como o enraizamento da sociedade política na
sociedade civil. Daí a relevância da busca de formas de exercício de uma
democracia participativa. O mesmo deve ocorrer entre sociedade civil e
sociedade econômica, ainda que sua influência seja bem menor que sobre
a sociedade política. Ainda assim, a legalização dos sindicatos e o papel
das negociações coletivas testemunham a influência da sociedade civil
sobre a vida econômica e acabam desempenhando, por sua vez, um papel
mediador entre sociedade civil e o sistema de mercado2
3.2.O horizonte da revelação judaico-cristã,
na Doutrina Social da Igreja
Para a Doutrina Social da Igreja, a essência social do ser humano
deriva de sua própria limitação como indivíduo. Surge, assim, a família
como complementação do indivíduo. O mesmo acontece no campo do
trabalho, no qual somente através da colaboração de muitos é que se
pode realizar grandes tarefas, que satisfaçam as necessidades comuns.
Do mesmo modo, a organização política, que ajuda os indivíduos na
administração dos bens comuns e na sua proteção. Em resumo, a
cooperação social consegue em comum, o que nunca os indivíduos
conseguiriam sozinhos.
Entretanto, através da integração e complementação dos esforços
comuns, a sociedade não se limita a agrupar os indivíduos. A partir das
comunidades, ela consegue alcançar uma especificidade própria, capaz
de novas e diferentes conquistas. Neste sentido, o fato do ser humano
estar constituído simultaneamente por uma dimensão individual e social,
historicamente tem levado a concepções extremas. Por um lado, aparece
o individualismo que, ao considerar o indivíduo como um ser independente,
põe os interesses e objetivos dos indivíduos acima dos da sociedade. Nee. Nesta
perspectiva, a sociedade civil não é necessária, pois restringe as liberdades
eclesial comunitária.
individuais. Por outro lado, aparece o coletivismo, para o qual a pessoa
se reduz a uma peça na engrenagem da sociedade, submetida a seus fins
pré-determinados. Então, subjuga-se a liberdade, visando apenas o
fortalecimento e a organização do coletivo.
Na perspectiva cristã, a sociedade não constitui uma limitação das
pessoas e das comunidades, mas sua autêntica complementação. Ao
contrário do que preconiza o individualismo, não há autêntica liberdade
senão dentro da sociedade, pois é aí que a pessoa pode desenvolver sua
força criadora e social. E, ao contrário do coletivismo, antes de a pessoa
ser membro de um Estado, ela pertence a um povo. É nessa dimensão
mais espontânea e natural que sua liberdade amadurece e se desenvolve.
Povo está ligado a solo, sangue, história, cultura, a formas peculiares de
organização social, etc. Povo constitui nação, que não se confunde com
Estado. O Estado é o resultado do ordenamento jurídico da autoridade a
serviço do bem comum. Pode pressupor um ou vários povos. A isso o
Estado acrescenta a unidade relacional superior, que engloba e configura
as unidades relacionais inferiores, dirigindo-as no sentido de um bem que
seja comum a todos.
No horizonte do Con3.3. Perspectiva de ação hoje: refazer o tecido social
Segundo as Diretrizes da CNBB, o grande desafio no âmbito da
sociedade é o escândalo da exclusão e da violência na sociedade consumista
(DGAE 151).
No horizonte da Doutrina Social da Igreja, a sociedade deve regerse pelo princípio da solidariedade, segundo o qual a pessoa existe para a
comunidade e para a sociedade e, estas, para a pessoa. Cada pessoa é
responsável pelo bem comum na sociedade. E, a sociedade, não tem outro
objetivo senão buscar uma vida digna para as pessoas. Além deste, cabe
à sociedade reger-se igualmente pelo princípio da complementariedade,
segundo o qual ela deve ajudar a complementar a ação das pessoas ou
comunidades, naquilo em que elas não são capazes. É a busca do bem
comum, que consiste na estruturação e organização social adequadas,
capazes de somar os objetivos, esforços e ideais de todos os membros da
sociedade.
Nesta perspectiva, importa hoje reconstruir sem cessar o tecido
social, que as tendências anarquistas e totalitárias, bem como a
mercantilização das relações humanas e institucionais, operadas pelo
sistema liberal capitalista, tendem a fragmentar e destruir. Importa lutar
contra a lógica de uma sociedade engendrada pela cultura tecnológica.
Uma das missões mais importantes da Igreja, hoje, é a defesa das pessoas
e comunidades, assim como a defesa da sociedade em seus ‘corpos
intermediários’, organizados enquanto sociedade civil, diante do poder,
seja do sistema financeiro e do grande capital, seja dos Estados
‘herodianos’, que se limitam a garantir o progresso econômico de uns
poucos. O sistema liberal capitalista tende a submeter as pessoas e as
comunidades a seus objetivos pragmáticos, uniformizando povos e
culturas. Defender as culturas agredidas por modismos hegemônicos e os
valores populares ameaçados de desaparecimento, é uma das missões
mais prementes da Igreja hoje.
Por outro lado, cabe pressionar o Estado a cumprir com sua
finalidade, que é a de estimular as forças adormecidas ou excluídas da
sociedade a promover um desenvolvimento solidário, organizando os
diversos setores sociais e mobilizando-os em vista da superação da fome
e da miséria. As sociedades dos países subdesenvolvidos têm sua situação
agravada em virtude das grandes diferenças na distribuição dos bens naturais e dos recursos econômicos, dos grandes desníveis e de educação
e capacitação técnica, do desemprego, o déficit habitacional, etc. Essas
desigualdades aumentam a violência, contribuindo para a instabilidade
da situação social.
Mas, não bastam ações no âmbito dos Estados nacionais. É preciso
desencadear ações em rede, de alcance mundial, encurtando distâncias
entre os povos e contribuindo para a criação de uma comunidade
internacional, regida por uma instância de autoridade racional comum.
Só um poder de todos, consertado em nível internacional, é capaz de
regulamentar conflitos internacionais e alcançar uma relação justa e
igualitária entre os povos
quarta-feira, 19 de junho de 2024
Lógica paraconsistente bbb
Lógica paraconsistente bbb
chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.inf.ufsc.br/~j.barreto/trabaluno/tc_nerio_mauricio.pdf
terça-feira, 18 de junho de 2024
Individualismo conceito
https://portaldeperiodicos.animaeducacao.com.br/index.php/RevJur/article/view/24817
O presente artigo pretende trazer ao conhecimento uma das ideias mais criticadas e incompreendidas pela generalidade da ciência jurídica e política "“ o individualismo. São várias as perspetivas através das quais é possível estudar o individualismo, desde as suas implicações morais e sociais até Ã s políticas e económicas, mas são estás duas últimas vertentes que o texto irá abordar. O objetivo do mesmo é dotar a atual doutrina de uma perspetiva dogmática acerca do tema e que permita a construção de um Estado pós-moderno centrado no princípio da liberdade individual dos indivíduos que a compõem.
Aristóteles e a metafísica do dinheiro
Aristóteles e a metafísica do dinheiro
Aristóteles e a metafísica do dinheiro Jadir Antunes: professor do Colegiado do Curso de Filosofia da Unioeste. Trabalho apresentado como requisito parcial para ascensão profissional ao cargo de Professor Associado A – Unioeste PR. Banca examinadora: Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura – UFBA; Prof. Dr. Gilmar Henrique da Conceição – Unioeste e Prof. Dr. Rosalvo Schutz – Unioeste. Toledo, 26 de julho de 2013 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1. OS ANTECEDENTES ARISTOTÉLICOS DO DINHEIRO 2. ARISTÓTELES E O PROBLEMA DA JUSTIÇA 2.1 Definição geral de justiça 2.2 A justiça distributiva 2.3 A matematização da justiça distributiva 2.4 A justiça corretiva 2.5 A matematização da justiça corretiva 3. ARISTÓTELES E O DINHEIRO COMO MEIO DE TROCA 3.1 Os princípios gerais da troca 3.2 A proporcionalidade geométrica 3.3 A comensurabilidade dos bens pela chreia e o nomisma 4. A GÊNESE DO DINHEIRO: CHREIA VERSUS NOMOS 4.1 A relação entre chreia e nomisma 4.2 O modelo econômico da chreia 4.3 A natureza da solução aristotélica 4.4 O problema em torno da solução aristotélica 4.5 Representação versus substituição da chreia pelo nomisma 5. ARISTOTELES E O DINHEIRO COMO CAPITAL 5.1 O dinheiro como finalidade das trocas 5.2 A relação do dinheiro com a Política 5.3 A relação do dinheiro com a Metafísica 5.4 A relação do dinheiro com a Física 5.5 A relação do dinheiro com a escravidão do lar 6. MARX E O DINHEIRO 6.1 A crítica de Marx a Aristóteles 6.2 Marx e a physis-trabalho 6.3 O trabalho e as comunidades rurais do Mundo Antigo 6.4 O ouro-dinheiro como criação da physis-trabalho CONCLUSÃO INTRODUÇÃO O dinheiro tem sido o mais universal de todos os entes. Ele está em todos os lugares e em todos os tempos. Estudar o dinheiro, por isso, não é estudar qualquer ente, é estudar um ente absolutamente presente e determinante em nossas vidas. Nosso trabalho pretende, em primeiro lugar, analisar o problema da justiça nas trocas segundo a concepção aristotélica exposta na obra Ética a Nicômaco – capítulo V, e, especialmente, a relação entre χρεία e νόμισμα (chreia e nomisma = necessidade e dinheiro). Em segundo lugar, pretendemos analisar a Política (Livro I), onde Aristóteles analisa, e condena, o emprego do dinheiro como capital e finalidade das trocas. Após isso, veremos como a análise e a crítica do dinheiro realizadas na Ética e na Política se articulam com alguns aspectos da Metafísica, da Física, e da Política aristotélicas. Em terceiro lugar, analisaremos a crítica de Marx à concepção aristotélica do dinheiro em O Capital. Para esse trabalho, nos apoiaremos na tradução francesa da Ética a Nicômaco realizada por Jules Tricot (Editora Vrin) e pela edição bilíngue (grego-inglês) da Ética e da Política realizada por Harris Rackham (Loeb Classicals). Começaremos analisando a definição geral de justiça em Aristóteles, assim como as formas distributiva e corretiva de justiça e suas correspondentes expressões matemáticas. Em seguida, analisaremos os princípios gerais da troca justa, sua correspondente fórmula matemática e sua diferença com as justiças anteriores. O problema central a ser analisado inicialmente em nosso artigo será o da igualdade e comensurabilidade dos bens cambiados na troca e a relação entre chreia e nomisma - necessidade e dinheiro. Analisaremos em que medida o dinheiro pode ser entendido como representante ou substituto das necessidades humanas no papel de mensurador dos preços ou valor das mercadorias. Analisaremos, ainda, em que sentido o dinheiro é empregado por Aristóteles como padrão de medida de comparação entre as diferentes mercadorias trocadas. Por fim, analisaremos em que medida Aristóteles teria fracassado, ou não, em seu esforço de encontrar no dinheiro um padrão de medida (teórico e prático) para o valor ou preço das mercadorias. Em seguida à análise da Ética a Nicômaco, analisaremos as razões da crítica aristotélica ao emprego do dinheiro como capital. Como pretendemos mostrar, o gênio lógico de Aristóteles foi o primeiro a compreender a gênese, ou arché, das trocas e do dinheiro. Porém, este mesmo gênio, por seus próprios defeitos, foi incapaz de aceitar e compreender o dinheiro como algo mais do que dinheiro e meio de troca, de aceitar e compreender o emprego do dinheiro como capital e finalidade das trocas. Por fim, veremos a crítica de Marx à concepção nominalista do dinheiro defendida originalmente por Aristóteles e continuada pelos economistas. Segundo nossa concepção, a recusa de Aristóteles em aceitar o emprego do dinheiro como capital apoia-se sobre um conjunto de questões que vão desde sua concepção de filosofia como metafísica, até sua visão teleológica da natureza e da vida humana em comunidade. Esta recusa se explica, ainda, pela sua crítica à democracia ateniense do século IV a.C, pela sua nostálgica defesa das instituições econômicas do período pré-clássico, como a escravidão doméstica e a autossuficiência da cidade, e pela sua romântica e radical defesa do modo de vida humano como um bem viver. 1 OS ANTECEDENTES ARISTOTÉLICOS DO DINHEIRO É largamente aceita a ideia de que Aristóteles tenha sido o grande pioneiro na análise e definição do que seja o dinheiro. Podemos dizer, seguramente, como veremos, que Aristóteles não apenas inaugurou a análise teórica do dinheiro, mas a determinou absolutamente. Segundo Aristóteles, o dinheiro é uma medida de proporção entre duas mercadorias distintas. A gênese desta medida, segundo ele, está fora das mercadorias mensuradas, está naquilo que os gregos chamam de nomos, nos costumes e leis humanas. O dinheiro, por isso, chama-se nomisma, explica Aristóteles. O dinheiro e a riqueza entre os gregos, contudo, já eram objetos de reflexão antes ainda de Aristóteles, tanto entre mitógrafos, dramaturgos e comediógrafos quanto entre filósofos. Porém, esta reflexão era sempre de ordem moral, visando encontrar uma vida justa, ordenada e boa para os homens, uma vida longe das paixões devastadoras e dos desejos ilimitados do corpo. Para a tradição grega, uma vida sábia era uma vida orientada para afastar a hybris das paixões – a violência e a desmedida dos desejos – e a buscar o bem viver e a diké – a justiça emanada dos deuses. Uma vida sábia, assim, era uma vida afastada dos excessos, especialmente dos excessos em relação à aquisição da riqueza e do dinheiro. Entre os mitógrafos, a condenação à desmedida dos desejos humanos por riqueza e dinheiro foi encantadoramente registrada, por exemplo, em mitos como o de Midas, que por falta de sabedoria e prudência desejou possuir a capacidade de transformar em ouro tudo o que tocasse com suas mãos. Ao transformar tudo o que tocava em ouro, o imprudente Midas vivia o paradoxo absurdo de possuir todas as riquezas do mundo sem, contudo, poder desfrutar de nenhum de seus prazeres. Mais tarde, Apolo punirá a estupidez de Midas transformando suas orelhas em orelhas de burro. Em Homero, por exemplo, e mesmo entre os tragediógrafos, a paixão amorosa e incontrolável de Páris por Helena, paixão despertada pelas Erínias, as deusas da fúria e da discórdia, resultara, ao final da Ilíada, em saque, violência, assassinato e tragédia. Nesta epopeia, Agamenon, enlouquecido pelo desejo de saquear Troia e enriquecer com o saque, sacrifica a própria filha Ifigênia, matando-a com suas próprias mãos, esperando com este crime, receber bons ventos para sua frota naval e realizar todos os seus desejos e glorias insanas. Estes desejos incontroláveis se realizam e se encerram com mais e mais tragédias e desastres pessoais e familiares. Em sua volta para casa, a morte de Ifigênia é vingada pela mãe, Clitemnestra, que assassina Agamenon em nome da justiça familiar. Clitemnestra, por sua vez, é morta pelo próprio filho Orestes, que a mata para vingar o pai. Ao final, Orestes é morto pelas Erínias, encerrando, assim, o ciclo de sangue e mortes familiares. Os trágicos como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes continuam e atualizam em suas tragédias, o terror poético suscitado pela violência das paixões humanas em todas as suas formas já narrado por Homero e Hesíodo. O apego apaixonado, irracional e desmedido de Medeia por seu marido que a traíra, do mesmo modo que ocorre com Agamenon e sua família, se converte em ódio, desejo de vingança e assassinato dos próprios filhos pelas suas próprias mãos. O apego exagerado e desmedido de Medeia pelo marido infiel, esta hybris amorosa e feminina, este aprisionamento da alma feminina pela desmedida de seus ciúmes e rancores insanos, é comparável à paixão irracional e descomedida dos homens de negócios pelo dinheiro, que a todos traem, sejam amigos queridos ou parentes próximos, e contra todos conspiram dia após dia sem cessar. O comediógrafo Aristófanes retratou magistralmente os paradoxos da riqueza em sua comédia Pluto: um deus chamado dinheiro. Por ser cego, Pluto distribuía os dons da riqueza a todos os homens indistintamente e não apenas aos bons e justos. Assim, segundo a comédia, para ser rico não seria necessário ser bom e justo. Ao se tornarem ricos, porém, até mesmo os homens bons e justos passavam a ser dominados pela violência e pela hybris das paixões. Desta forma, o dinheiro tinha o demoníaco poder de transformar o justo em injusto, o bom em mau e o honesto em desonesto, corrompendo, assim, todos os costumes virtuosos da cidade. Esta mesma condenação moral da hybris das paixões humanas, iniciada pelos poetas e aperfeiçoada pelos dramaturgos e comediógrafos da cidade, prossegue com os filósofos. Tales de Mileto, o primeiro filósofo e um dos sete grandes sábios da cultura antiga, dizia que seu saber científico era um saber pelo saber e que, por isso, não seria útil para os amantes do ganho e da riqueza. Pitágoras era largamente conhecido por ter fundado uma seita baseada na abstinência dos prazeres e na doação de todas as propriedades e riquezas de seus membros individuais em prol da comunidade religiosa por ele fundada. Heráclito de Éfeso era enfático ao declarar que o verdadeiro modo de vida do homem era aquele orientado segundo o logos e a koinonia – a razão e a vida em comum. O materialista Demócrito de Abdera considerava que aquele que fosse totalmente submisso ao dinheiro jamais poderia ser justo. Sócrates era terminantemente inimigo dos amantes do dinheiro e da riqueza. Segundo ele, seria o desprezo dos homens comuns pelo verdadeiro saber e sua adoração insana pelo dinheiro e a riqueza que corrompiam as virtudes morais da cidade. Os estoicos e epicuristas também eram conhecidos por sua condenação ao modo de vida urbano de sua época, ao modo de vida trazido pelos contatos comerciais da Hélade com o Mediterrâneo, e pela adoção de um modo de vida baseado em hábitos simples, modestos e em harmonia com a ordem emanada da natureza. Aristóteles, do mesmo modo que seus compatriotas, partilhava desta condenação moral do dinheiro como finalidade da vida humana. Contudo, Aristóteles foi o único dentre todos que analisou meticulosamente, analisou no sentido técnico do termo, e procurou responder teoricamente “o que é o dinheiro”, e “qual a gênese e finalidade do dinheiro”. Por isso, como veremos, sua inigualável importância filosófica para o estudo científico do dinheiro. 2. ARISTÓTELES E O DINHEIRO COMO MEIO DE TROCA 2. 1 Definição geral de justiça Aristóteles parte, em sua Ética a Nicômaco – Livro V, de uma definição geral de justiça para em seguida analisar a justiça em suas formas particulares. A justiça, para Aristóteles, ocupa-se exclusivamente, ou especialmente, com o estudo prático dos homens em sua relação com a riqueza ou bens exteriores. Tendo a repartição da riqueza como seu objeto, a justiça se define, então, como a ação humana que visa a igualdade e a equidade dentro de uma determinada comunidade de interesses. Justiça, em sua definição geral, é uma espécie de disposição do caráter que torna os homens capazes de realizar ações justas, que os faz agir justamente e desejar as coisas justas. O homem justo, por isso, é aquele que obedece a lei, pois a lei é a expressão jurídica da vontade e do bem geral da comunidade. O homem justo é aquele que toma para si apenas o que lhe é próprio, não se apropriando, por isso, de nenhuma parcela da riqueza comum ou privada além daquela que lhe pertence por direito. O homem justo é aquele que respeita a igualdade, pois o justo é uma espécie de igualdade. A igualdade, segundo Aristóteles, é um meio termo entre mais e menos, perdas e ganhos, danos e lucros e vantagens e desvantagens. Respeitar a igualdade significa, por isso, em caso de divisão dos lucros, não visar a si próprio nenhuma parcela de riqueza, comum ou particular, acima daquela que lhe é devida por direito e, no caso de divisão dos prejuízos, não desejar a si próprio uma parcela menor daquela que lhe é devida na associação. Por ser um meio termo entre perdas e ganhos, a igualdade, por isso, envolve sempre dois termos extremos: o mais e o menos. O homem justo, por visar a igualdade, visa sempre o bem do outro antes de visar o seu próprio bem. Por esse motivo, a justiça é vista como um bem alheio, pois ser justo é ser bom e honesto em vista do bem dos outros membros da comunidade. A justiça, por isso, não é um direito mas uma virtude e uma prática moral humanas. Como diz Aristóteles, o homem justo possui a virtude completa e perfeita, a virtude das virtudes, porque quem estiver de posse desta virtude é capaz de usá-la em vista dos outros e não em vista de si próprio (EN 1129b30). Como a justiça em sua forma geral não existe na realidade, segundo Aristóteles, torna-se necessário, então, entendê-la dentro de determinados contextos reais. Aristóteles analisa, por isso, três esferas particulares da justiça dentro das quais ela pode ser compreendida: a justiça distributiva, a justiça corretiva e a justiça nas trocas. 2.2 A justiça distributiva A justiça distributiva tem sua esfera de ação na repartição dos bens comuns da comunidade entre seus membros individuais. Este é o caso da repartição dos bens da comunidade adquiridos através de um empreendimento comum de seus membros – como os saques provenientes da guerra. A justiça distributiva tem como princípio, portanto, quatro termos: duas porções de riqueza distintas – para as quais a igualdade é uma mediania entre mais e menos – e duas pessoas desiguais. É importante observar que no caso da justiça distributiva essa desigualdade natural ou de mérito entre as pessoas não precisará ser equalizada, como veremos no caso da justiça nas trocas. A justiça distributiva distribuirá porções de bens iguais para os iguais e porções desiguais para os desiguais. Do ponto de vista desta espécie de justiça, seria inteiramente injusto distribuir porções iguais de riqueza para pessoas naturalmente desiguais, ou, ao contrário, porções desiguais para pessoas naturalmente iguais. Segundo a aguda observação de Aristóteles (EN 1131a20), era desta assimetria na distribuição dos bens comuns que surgia a maior parte das lutas políticas no interior da cidade. Por conta desta desigualdade de mérito e da circunstância de que há quatro termos extremos envolvidos na distribuição, a justiça distributiva pode ser expressa cientificamente sob a forma de uma proporção geométrica. 2.3 A matematização da justiça distributiva Para explicar cientificamente a natureza da justiça distributiva, Aristóteles faz uso da análise geométrica das relações humanas. Como temos visto, a distribuição dos bem comuns é realizada segundo uma regra de proporcionalidade. Duas coisas são proporcionalmente iguais se entre elas houver uma razão comum. Esta razão comum é comum a duas frações individuais. Por exemplo: dizemos que 12 está para 6 assim como 6 está para 3 (12:6 :: 6:3) porque ambas têm em comum a mesma razão (ratio = logos) 2. As proporções podem ser de dois tipos: descontínuas e contínuas. Suponhamos a seguinte proporção: A:B :: C:D (A está para B assim como C está para D). Esta é uma forma de proporção descontínua porque nenhum dos termos intermediários B e C é repetido dentro da proporção. Nesta forma de proporção aparecem claramente quatro termos distintos e irredutíveis entre si – especialmente os termos médios. Numa proporção contínua, ao contrário, os termos médios podem ser equiparados entre si e, assim, ser reduzidos um ao outro. É o caso de uma proporção tal como a proporção A:B :: B:D. Neste caso, temos uma proporção contínua porque o termo B é repetido duas vezes na equação (na verdade o terceiro termo C é substituído pelo termo médio anterior B), que continua a
Neoliberalismo e individualismo Marx bbb
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643138
https://periodicos.fclar.unesp.br/perspectivas/article/view/1877/1541
Crematística troca bbbb
Crematística troca bbbb
chrome-
A Ontologia da Troca: Economia e Crematística Conceição Soares (Católica Porto Business School, Universidade Católica Portuguesa)
Resumo O objectivo deste capítulo é, partindo da filosofia de Aristóteles, fazer a distinção entre dois modos diferentes de adquirir riqueza. Uma que é integrada na gestão da casa e tem os seus limites nas necessidades decorrentes da manutenção do modo de vida do agregado familiar, e outra que é adquirida mediante o esforço para acumular cada vez mais riqueza, sem limite. Aristóteles chama à gestão doméstica economia e à acumulação de riqueza nesse âmbito, crematística natural; designando a acumulação de riqueza pela acumulação crematística antinatural. Aquilo que separa cada uma delas é a questão da medida e da desmedida. A reflexão de Aristóteles sobre esta matéria leva-nos a pensar o fim, o limite, a medida, contra a desmedida. Estes dois modos de adquirir riqueza ocorrem no seio da interação social da troca. Porém, duas questões se colocam: 1) se os dois modos de adquirir riqueza acontecem mediante esta interação de que modo a afectam?; e 2: de que modo é que o funcionamento da nossa vida social é afectado por esta medida ou desmedida nestes dois modos de adquirir riqueza? Ao longo deste capítulo indicamos alguns caminhos no sentido da resposta a estas questões. Palavras-chave: Aristóteles, crematística, ontologia, troca. Introdução É com Aristóteles que se inicia, pela primeira vez, no Ocidente, uma reflexão sobre a economia e a crematística.1 Esta reflexão não é de natureza moral, mas de natureza social, uma vez que se encontra no âmbito da ontologia da troca e do fim último da vida humana em sociedade. Essa troca de bens pode fazer-se por duas vias: 1) para provimento das necessidades da vida doméstica, a economia, que gera uma crematística natural; ou 2) para acumulação constante de riqueza, a crematística antinatural. Quando o dinheiro surge como mediador da troca, instaura-se uma ambivalência que consiste no duplo sentido que o dinheiro adquire. Por um lado, é um meio para se viver bem, proporcionando o acesso necessário aos meios da vida e, por 1 Crematística é a palavra grega para aquisição de riqueza ou propriedade. 68 outro, é um fim abstracto, cuja posse fornece o potencial abstracto da aquisição de coisas utéis, valiosas e cuja acumulação infinita se transforma, consequentemente, na sua força motriz promovendo aquilo a que nós hoje chamamos o aumento contínuo do dinheiro como capital. O contraste entre a crematística natural (economia) e a crematística antinatural consiste no facto de, na economia, a riqueza adquirir-se de acordo com a natureza e as necessidades, em que o fim último é a vida boa, e o limite da aquisição reside no bom funcionamento da vida social. Por seu turno, na crematística antinatural a acumulação da riqueza é ilimitada e por isso mesmo perturbadora da vida social, porque desvinculada do seu fim último. No livro V do capítulo 5 da Ética a Nicómaco, Aristóteles (2011) trata a questão da reciprocidade em relação à justiça e faz aí uma reflexão sobre a vida social na pólis. Essa vida na pólis é baseada na divisão do trabalho e no intercâmbio dos produtos do trabalho para a satisfação das necessidades e provisão das conveniências da vida, como componentes essenciais do viver bem e cujo objectivo último consiste no viver juntos em comunidade. A pólis é vista como uma sociedade ou uma comunidade organizada em que a justiça se realiza com base na proporcionalidade ou reciprocidade proporcional. Neste sentido, a obtenção da riqueza encontra-se vinculada a este fim último que é a vida boa e que se atinge através deste garante que é a justiça, ou esta reciprocidade proporcional. Há, neste caso, uma estreita ligação entre a prática da troca, do intercâmbio e a constituição da comunidade social. Nessa medida, o dinheiro surge para resolver um problema prático que é o da comparabilidade dos produtos na troca. Aristóteles apresenta o exemplo dos serviços de um médico, que podem ser trocados pelos de um agricultor. O dinheiro surge assim como a solução prática, na vida social, como meio de comparabilidade e nesse sentido, como base para a justiça e a proporcionalidade, como representação abstracta e universal do valor de uso. Para que a troca seja justa tem de haver uma igualdade proporcional como garante da justiça comutativa (Eldred, 2011).2 Há, para Aristóteles, uma ligação estreita entre a justiça e a aritmética como garantia da equidade da vida social e da vida boa. O dinheiro pode servir a causa da justiça quando vinculado ao seu fim último dentro dos limites desta justiça proporcional. Vemos, deste modo, que a interação económica é a constituição elementar da vida em sociedade e uma parte constitutiva do movimento da própria vida social. Contudo, na economia capitalista, a interação na vida quotidiana e o exercício da liberdade tornam-se muito mais intricados e difíceis. O dinheiro como capital é um 2 Não há justiça distributiva, sem justiça comutativa. Assim como não há justiça que não seja social. 69 poder social reificado3 que pode ser caracterizado por um dinheiro permanentemente acumulado e que retorna na forma de rendimento a partir de várias fontes: transações, receita de vendas, salários e lucro. Todas as transações são poderes sociais entre os indivíduos e agentes coletivos que lutam para receber ganhos de todo o tipo. Indivíduos e grupos competem nos diversos tipos de mercados de acordo com as formas de valor dentro dos quais se movem (Eldred, 2011, pp. 11-12). Esta estrutura socio-ontológica é a característica principal daquilo a que M. Eldred denomina o “jogo lucrativo”4 (2011) que vem dos poderes dos indivíduos livres que se esforçam para ganhar sempre mais a fim de manterem as suas vidas e atingir os seus objectivos. Nesse sentido, podemos dizer que numa sociedade capitalista as pessoas e as empresas lutam sempre para ter mais. Como M. Eldred refere, a estrutura socio-ontológica e o movimento do “jogo lucrativo” dentro dessa estrutura não é um “modelo” construído a partir da realidade, nem é um estado imaginado a partir de um estado natural, nem é uma situação hipotética para escolher “princípios da justiça” por acordo. É, de facto, uma estrutura de pensamento abstrata, com plena validade alcançada pelo pensamento através de certos elementos bem conhecidos abstraídos da vida quotidiana movendo-se dialecticamente (Eldred, 2011, p. 13). A partir daqui, todos os seres aparecem refratados mediante o prisma dos valores reificados. Esta reificação que vem deste “jogo lucrativo” cria enormes irregularidades e é aquilo a que chamamos crematística antinatural, que difere em muito dos objectivos daquilo que poderia ser a economia. Este capítulo está estruturado do seguinte modo: na primeira parte, analisaremos a estrutura ontológica da troca como matriz da nossa vida social, fundada na interação, no reconhecimento e na estima. É neste âmbito que a reflexão sobre a riqueza e os diferentes modos de a obter se inserem. Assim, a obtenção da riqueza está intimamente ligada ao metabolismo da nossa vida social. Na segunda parte, irei explicitar e desenvolver a diferença entre economia e crematística. Esta diferença é crucial para que possamos perceber se construimos sociedades mais humanas e equilibradas ou se, pelo contrário, construimos sociedades mais assimétricas e violentas. A economia parece ter-se afastado do seu fim último e, de forma totalitária, para empregar uma expressão do filósofo Levinas, tornou-se uma fonte de utilidade total.5 3Reificação é uma palavra de origem latina que significa objectivação ou coisificação. A realidade é vista como coisa e as relações sociais tornam-se impessoais, coisificadas. Veja-se Marx (1996) e também Lukács (1971). 4A expressão que o autor utiliza é gainful game, a qual traduzi por “jogo lucrativo”. 5 Veja-se Levinas (1990 e 1991). 70 1. A estrutura ontológica da troca Na tradição filosófica ocidental, os seres humanos eram considerados a partir de uma ontologia da produção.6 No entanto, a estrutura ontológica da produção é muito diferente da estrutura ontológica da troca, na qual qualquer tipo de consideração sobre a riqueza e o dinheiro se insere. A estrutura ontológica da produção implica um knowhow técnico produtivo (techné) ou um poder7, no sentido daquilo a que hoje chamamos competência, habilidade para produzir uma mudança nas coisas. Assim, aquilo que uma coisa é, é considerada na terceira pessoa do singular e, quando há mudança, essa mudança é produzida por uma pessoa numa coisa passiva, um pedaço de madeira, barro, ferro etc. A coisa produzida é dominada e muda de forma pela vontade e pelo desejo da pessoa que produz a mudança e de acordo com a sua visão ou ideia. Contudo, não podemos falar em reciprocidade na nossa relação com as coisas. Podemos ter um comportamento determinado em relação a uma coisa, mas uma coisa não se pode comportar em relação a nós. A estrutura ontológica da troca não é regida por um know-how mas é, de facto, uma ação social, motivada pelo desejo da vontade de dois seres humanos livres em que a mudança ocorre neles próprios. O saber produtivo é guiado pela capacidade de ver antecipadamente o que pode ser produzido e, por isso, agregado numa visão definitiva. Como nos diz Michael Eldred, “Este know-how é um poder ou potencial que reside na consciência humana que consiste em prever e projectar, e neste sentido pré-fabricar, o produto final para ser trazido perante nós, sabendo previamente que etapas transformativas são exigidas para alcançar esse fim” (Eldred, 2008, p. 25). Na ontologia da troca nunca sabemos antecipadamente o resultado final, porque é uma relação baseada na vontade de duas ou mais pessoas. Além disso, para a troca ter lugar, deve haver reciprocidade entre as pessoas envolvidas nela. A troca não é redutível a um único princípio. No concreto da nossa vida relacional de interação e troca, pressupõe-se sempre mais do que uma pessoa. Nesse sentido, podemos dizer que a ontologia da produção não considera o fenómeno da socialização, porque não resulta da relação de duas ou mais pessoas, mas da nossa relação com as coisas, provém do 6 De Platão a Aristóteles a metafísica e a ontologia só se preocupavam com a questão acerca das coisas no sentido primordial do ser na sua essência, naquilo que uma coisa era, na sua quidditas. Contudo, um ser humano não é uma coisa, não é um que, mas um quem, alguém. Toda a reflexão de Platão e de Aristóteles assentam numa ontologia da produção, em vez de uma ontologia da troca. É somente com Heidegger, Levinas, Feuerbach, Buber, Arendt entre outros que o fenómeno do quem é analisado. Ver também Joaquim Cerqueira Gonçalves (2013, pp. 203-208). 7Na tradição filosófica ocidental, nomeadamente a partir de Aristóteles o poder é sempre visto, como poder para efetuar uma mudança noutra coisa, dunamis que tem o potencial de trazer uma mudança, um movimento. Ver, livros Delta e Theta da Metafísica de Aristóteles (1991). 71 quê, da essência, enquanto que a ontologia da troca provém do quem. É uma relação entre pessoas ou uma trans-acção. Como Michael Eldred afirma: “As várias formulações filosóficas sobre a essência humana indicam de uma forma involuntária o quanto o questionamento filosófico permaneceu fortemente cativo da evidência do quê pensado na terceira pessoa, perdendo-se assim a dimensão ontológica da segunda pessoa, onde o quem originalmente surge” (2008, p.25). Neste sentido, o fenómeno da troca está no cerne da nossa vida social e é, de facto, uma dimensão elementar da relação social que nos associa uns aos outros, como seres humanos (Soares, 2018, p. 5). O fenómeno da troca (comércio, permuta, negociação, compra e venda) é essencial para uma compreensão plena da ontologia da nossa vida social, vivemos sempre numa proximidade inter-humana. É aqui também que o fenómeno da riqueza e do dinheiro se inscrevem. Por essa razão, o fenómeno da troca é bastante diferente e muito mais complexo do que o fenómeno da produção, porque implica e supõe sempre interação entre seres humanos livres. Assim, a essência da troca é como M. Eldred refere, “bipolar e multipolar (...)” e é a partir desta característica que se abre um novo mundo de possibilidades (Eldred, 2008, p. 166). A troca é uma interação entre as pessoas e implica um intercâmbio de relações. O fenómeno da produção, tal como já salientámos, é uma acção antecipada sobre um material passivo que nos dá aquilo de que já estavamos à espera e que tínhamos pensado. Contudo, a interação entre as pessoas não tem qualquer tipo de substrato, de suporte prévio, o que significa que no núcleo do intercâmbio reside uma fragilidade e vulnerabilidade inerente e, por esse facto, as relações entre as pessoas são muito mais exigentes e requerem uma maior vigilância e sintonia (Eldred, 2008, pp. 591-603). Não há nenhum plano prévio que possa prever e antecipar todas as eventualidades que possam ocorrer na relação, porque a relação funda-se no preciso momento em que acontece, pela interação. Ou, como M. Eldred afirma: “O mundo compartilhado entre mim e o outro dá-nos um abrigo existencial de simplicidade mais ou menos fugaz” (Eldred, 2008, p. 100). O fenómeno da troca é mais complexo do que a simples troca de mercadorias se o considerarmos a partir daquilo que o ser humano é, alguém e não uma coisa (Eldred, 2008, p. 167). Nós associamo-nos com os outros e trocamos opiniões, saudações, afrontas, presentes, reconhecimento e estima. Fazemos isso através de intercâmbios sociais em que a estrutura ontológica é muito semelhante à da troca de bens comerciais. Como M. Eldred refere, “todas as relações sociais são intercâmbios de algum tipo, e o intercâmbio é sempre, essencialmente, incorporado numa estimativa mútua do valor do outro como quem é, e com aquilo que tem (Eldred, 2008, p. 167). O intercâmbio é o movimento que sustenta a nossa vida social económica, porque é uma 72 estima mútua do valor do outro, daquilo que cada um é e tem, tendo em vista um benefício mútuo no sentido do valor de uso do que cada um tem para oferecer ao outro no sentido mais amplo. Aquilo que somos nunca é inteiramente uma construção nossa a partir de nós próprios, mas é também uma construção a partir daquilo que o mundo nos oferece como possibilidade de condução das nossas vidas. Nós só podemos viver a nossa vida através das múltiplas interações com os outros com os quais negociamos um caminho existencial e partilhado no mundo. Para fazer esse caminho, temos de confiar também no que os outros podem fazer por nós. Isso requer uma transação de dar e receber, não submissão ou rendição. Chegados aqui, e sem considerarmos ainda a mediação da troca através do dinheiro, pode-se dizer que o dar e receber através das transações que negociamos com os outros são baseadas no que podemos fazer por eles e naquilo que eles podem fazer por nós. É neste momento que as nossas habilidades/competências concretas entram em jogo e, por isso, podemos trocar serviços numa base mútua. Essas habilidades/competências constituem os nossos poderes para provocar uma mudança produtiva no mundo. Os produtos do exercício destas habilidades constituem a propriedade privada de cada um, são a sua singularidade, que deve ser respeitada pelos outros. Nós exercemos continuamente as nossas habilidades/competências numa base diária em favor de cada um e para o benefício de cada um dentro de uma estrutura de acordos mútuos ou contratos, sem qualquer tipo de conotação legal. Contudo, a partir do momento em que essas transações são feitas através da mediação do dinheiro, a troca de serviços por mútuo acordo já não é direta, como anteriormente, mas indireta e também universalizada, uma vez que o dinheiro é o equivalente universal que tem o poder social abstrato de comprar serviços de alguém cujo produto do trabalho é oferecido no mercado. Como M. Eldred refere, “assim, milhões de competências concretas e os seus respectivos produtos são abstratamente e praticamente equalizados uns com os outros como valores de troca através da mediação do dinheiro como mediador abstrato, universal” (Eldred, 2012, p. 12). Esta equalização abstrata é, em primeiro lugar, uma abstração das competências concretas de cada um, mediante uma quantificação através de uma determinada quantia de dinheiro, pois é o dinheiro que possibilita essa abstração (Eldred, 2013). Quando a troca de serviços é de comum acordo, depende da liberdade e espontaneidade de quem troca. Como M. Eldred nos diz, “O que acontece diariamente nos mercados é, portanto, devidamente denominado um poder de interação de valores de troca baseados num reconhecimento mútuo e na apreciação desses poderes (Eldred, 2011, pp. 8-9). Como o autor defende, quando o dinheiro vem intermediar a troca, adquire o poder de ser trocado por qualquer coisa no mercado e isso é a cristalização do valor de troca universal que é, 73 acima de tudo, um poder social.8 O poder social do dinheiro é completamente real, mas assenta num jogo de apreciação mútua de poderes e de capacidades humanas e, consequentemente, num jogo da liberdade humana (Eldred, 2011, p. 9).9 E este jogo é aquilo a que já fizemos referência anteriormente como sendo um “jogo lucrativo” o que significa que nas nossas economias capitalistas a nossa vida quotidiana torna-se mais complexa e a mediação da troca através do dinheiro adquire um verdadeiro poder na nossa vida. De seguida, vamos ver até que ponto esse poder é colocado ao serviço da comunidade, da sociedade ou se, pelo contrário, desvinculado do seu fim último, acaba por criar uma verdadeira entropia no metabolismo social. 2. Economia e crematística A distinção entre economia e crematística surge em duas obras diferentes de Aristóteles. Aparece no livro I da Política (1992) e também no livro V da Ética a Nicómaco (2011). Em ambas as obras esta distinção surge no contexto de uma reflexão sobre a moeda e nas duas obras a moeda é vista como um auxiliar da troca. Como referimos anteriormente, é no contexto da ontologia da troca que esta problemática surge. Para melhor entendermos esta distinção entre economia e crematística temos primeiro de compreender o papel da moeda, o que a torna necessária, e qual a sua legítima função. A troca, para Aristóteles, é vista como um meio de procura de coisas úteis para a vida, os bens de uso. Neste sentido, a troca acontece no âmbito da economia doméstica. Contudo, este não é o único meio de obter coisas úteis. Podemos obtê-las igualmente através das colheitas (agricultura) ou da captura (caça e pesca). Tal como a troca, as coisas úteis são modos de aquisição de bens. Na medida em que estes bens são úteis para a comunidade doméstica, estes vários modos de aquisição correspondem a técnicas do âmbito da economia. No domínio da economia doméstica, a troca tem um papel acessório, na medida em que cada família procura prover às suas necessidades. É só quando a família se divide em grupos separados que pode acontecer que a um dos grupos falte alguma coisa que outro tenha em excesso e, nesse caso, a troca surge como uma necessidade, de qualquer modo, a moeda, neste caso, não é necessária. A moeda só se torna necessária na economia da cidade, na pólis (Moreau, 1969). Numa família de agricultores, todos os seus membros participam nas tarefas comuns, mas na cidade cada um exerce o seu ofício. É esta comunidade de necessidades, face à 8Isto liga-se à verdadeira ilusão de que o valor de troca vale por si e, portanto, tem em si um poder de troca universal, foi a esta ilusão que Marx chamou fetichismo (Marx, 1996). 9 Ver Marx (1996). 74 especialização de cada um no seu ofício, que torna a troca de bens absolutamente necessária. Na cidade, cada artesão precisa dos outros para viver, o que significa que na cidade a troca não tem um carácter acessório, mas necessário e fulcral. Ora, é este carácter fundamental e necessário que torna imprescindível o uso da moeda, como mediação da troca e termo de comparabilidade entre bens. A finalidade da moeda, ou seja, a justificação do seu uso encontra-se na cidade. É, pois, na cidade que se é capaz de assegurar a auto-suficiência económica e simultaneamente garantir a justiça das trocas. Como já anteriormente tínhamos referido, a moeda, o dinheiro, surge de uma necessidade prática. Para Aristóteles, os povos “bárbaros” que não estavam organizados em cidades, também faziam as suas trocas, por exemplo, trigo por azeite. Mas a determinada altura estas trocam alargaram-se a outros povos, chegando mesmo a fazer-se transações de importação e exportação, o que tornava a moeda necessária. Como nem todos os objectos de troca eram facilmente transportáveis estabeleceu-se uma convenção em que as partes dariam ou receberiam na troca de qualquer material um pagamento, diríamos hoje, que lhes correspondesse. Isto significa que a moeda nasce de uma convenção internacional privada, exterior à instituição pública e independente das leis da cidade. Esta instituição tinha apenas um carácter comercial, não jurídico. A cunhagem que a moeda tinha era apenas uma indicação, um sinal. Dito de outro modo, se a matéria utilizada como moeda é escolhida em razão do seu manuseamento, da sua facilidade em circular e ser trocada por alguma coisa útil, ela não tem uma utilidade própria, ou seja, um valor intrínseco. É apenas um meio ao serviço de uma finalidade fundamental, o provimento das nossas necessidades. Porém, a instituição da moeda, que surgiu da necessidade das trocas exteriores, levou a uma transformação da natureza da própria troca. Antes do uso da moeda, a troca fazia-se sob a forma de permuta e estava limitada às necessidades recíprocas das partes. Com o uso da moeda, a troca ultrapassa os seus limites. Com a moeda abre-se uma nova possibilidade de troca que se efectua mediante a compra e venda e a partir daí é possível exercer as trocas não apenas para prover às necessidades, mas por si próprias em vista do lucro. E é a partir desta possibilidade real que consiste na libertação da moeda do seu fim natural que é possível acumulá-la sem qualquer tipo de limite. Esta nova forma de troca que consiste na compra e na venda é aquilo a que comummente se chama comércio. É evidente que na sua origem o comércio também se exercia mediante a permuta, mas rapidamente evoluiu para a forma como o conhecemos hoje. É, pois, com o desenvolvimento da técnica comercial que se produz uma grande transformação na economia que corresponde, sobretudo, a uma alteração 75 da noção de riqueza. As riquezas eram, antes de mais, coisas úteis que nos serviam para alguma coisa, correspondiam essencialmente a objectos de uso. As artes de adquirir riqueza e de usufruir dela faziam parte da economia doméstica. A esta administração e gestão de bens chamava-se crematística natural. A crematística diz respeito à aquisição de riquezas, mas não se identifica com os diversos modos de aquisição das subsistências, nem com as técnicas de produção. Havia uma distinção clara entre a produção de coisas úteis e a arte de as utilizar, de as escolher e de as dispor para as necessidades da família, ou seja, transformá-las em verdadeiras riquezas, ou bens de uso. Esta análise permite distinguir dois níveis na arte de adquirir. Um dos níveis está relacionado com a captura, a recolha ou a produção cada vez em maior número, a acumulação ilimitada. O outro nível diz respeito à aquisição dos meios subordinada aos fins da vida doméstica ou da vida política, o mesmo é dizer da vida boa em sociedade. É neste último nível que a arte de adquirir atinge a sua finalidade e exerce a sua função natural dentro da economia, constituindo a parte que se ocupa da administração dos bens e que a justo título merece o nome de crematística natural. Contudo, este não é o sentido comum dado a este termo. Ao mesmo tempo em que se altera a noção de riqueza, mediante o desenvolvimento do comércio, que se traduz pela emancipação da troca, desvinculando-a do seu fim último, opera-se um desvio em relação ao seu sentido comum. A partir desta possibilidade, a troca pode ser considerada como um modo de aquisição, comparável à produção, às colheitas ou à caça. De tal modo que, tal como temos duas formas de aquisição da riqueza, uma incontrolável e sem limite, a outra normal, natural, regulada pelas verdadeiras necessidades, temos igualmente duas formas de troca. Uma, contida dentro dos seus limites naturais, sem necessidade de moeda, dentro da economia doméstica. A outra desregulada, própria das sociedades evoluídas, tendo por condição a instituição da moeda, que torna possível o desenvolvimento do comércio e a procura metódica do lucro. É esta arte de enriquecer mediante operações fundadas sobre o uso da moeda, operações financeiras, que é designada correntemente sob o nome de crematística ou, para a distinguirmos da natural, crematística antinatural. Deste modo, podemos dizer que há uma crematística natural, normal, que faz parte da economia, da administração doméstica e política, e uma crematística sem lei, sem limite, antinatural que usurpou o nome à primeira, e que não é mais uma boa administração dos bens, mas uma simples técnica de negócios e de enriquecimento. Esta crematística antinatural é o resultado de um desvio do papel da troca, em que se modifica ou altera a estima, o juízo sobre o 76 valor das coisas, ou seja, ao valor de uso acrescenta-se, e finalmente substitui-se, o seu valor de troca. Dois milénios mais tarde, Marx (1996, p. 167) faz uso desta distinção de Aristóteles e distingue entre a simples circulação dos produtos por um lado, e a circulação do dinheiro como capital, por outro. Na primeira, a simples circulação dos produtos tem a fórmula C1-M-C2,10 vendendo um determinado produto a fim de comprar outro para a satisfação de uma falta sentida (Eldred, 2008, p. 8 e Bay, 2012, p. 29). Na segunda, a circulação do dinheiro como capital, tem a fórmula M1-C-M2, onde M2 é maior do que M1, comprando bens de consumo, a fim de fazer mais dinheiro. Na simples circulação de bens de consumo, por um lado, é a utilidade dos respectivos bens e a aquisição desses bens para o cumprimento das necessidades e desejos que são o foco de atenção e o fim motivador do intercâmbio. O dinheiro é apenas um meio de troca, isto é, um meio para trocar um bem por outro. Na circulação do dinheiro como capital, a utilidade dos bens de consumo é apenas um veículo para fazer dinheiro. Os bens de consumo são aqui apenas um meio para a interminável possibilidade de acumulação. O dinheiro não é mais um mero meio de troca, mas é a representação universal da própria riqueza numa forma quantitativa. Há assim um excesso que se encontra no coração dos negócios com dinheiro, e este excesso é o desejo do ser humano em querer ter desmedidamente mais, sem referência à vida boa. Ou, como nos diz Barbara Stiegler (1993, p. 304), há no coração da economia uma hybris que é a palavra grega para violência e essa violência pode ser vista paradoxalmente, como recusa do limite, excedendo a medida, ou como fuga da morte num movimento infinito. Enquanto na economia doméstica se respeita o limite, tendo em vista o bem viver e a justiça na sociedade, na crematística antinatural há uma hybris, uma violência inerente que corresponde ao desejo infinito de adquirir riqueza, de ter sempre mais, sem qualquer outro tipo de fim que não seja a acumulação privada. 11 Pensa-se fugir à finitude através deste desejo infinito de ter sempre mais. Como já anteriormente referimos, esta reflexão sobre a economia e a crematística é pensada por Aristóteles a partir do duplo uso que os objectos podem ter (Tabosa, 2009). O seu uso próprio, por exemplo, os sapatos são feitos para os calçarmos (valor de uso), mas também podem servir para troca (valor de troca). Neste último caso, ainda podemos fazer uma distinção. Se o sapato for cedido para alguém que precise dele, o seu uso não está longe do uso próprio, outra coisa bem diferente é quando o vendemos a alguém que, por sua vez, o revende para obter lucro (Soares, 2015). Aquilo que torna possível o lucro é este alargamento sucessivo dos mercados que suscitou a invenção da 10 Esta fórmula corresponde à designação em língua inglesa de C, commodity e M, Money. 11 Ver, a este propósito, a obra de Michel Aglietta e André Orléan, La violence de la monnaie (1982). 77 moeda e que, por conseguinte, permite o curso variável de um mesmo objecto, de uma mercadoria, segundo o tempo e o lugar. É sobre a experiência destas variações que assentam as técnicas comerciais, que embora consigam desenvolver ao máximo as suas possibilidades e os meios para atingir os fins, são isentas de normas, de verdadeira finalidade racional, no sentido Aristotélico. Este é o caso da crematística antinatural. Enquanto na economia doméstica, os usos habituais do viver bem formam os limites para os meios necessários a este fim, o esforço ilimitado para acumular mais bens perde de vista o fim e torna-se, por esse facto, pernicioso, desmedido, violento. Assenta sobre um desenvolvimento desmedido da troca, não tendo outro fim que não seja o lucro e não conhecendo outro valor que não seja aquele que se exprime em função do mercado e que é medido pela moeda, tida como a principal forma de riqueza. É claro para Aristóteles que a finalidade da economia nada tem que ver com a acumulação de capitais e de mercadorias. O desejo de ter sempre mais, abstraído ou desarticulado do cumprimento de uma necessidade específica, é puramente quantitativo e encontra o seu objeto adequado no próprio dinheiro, que é a incorporação quantitativa da riqueza (mesmo que o dinheiro seja, em última análise, apenas dígitos digitais armazenados numa conta bancária eletrónica). O próprio desejo torna-se abstratamente quantitativo, abstraído da utilidade específica dos bens, desarticulado do seu fim último que é o de viver bem em sociedade (Soares, 2017). Esta abstração anda de mãos dadas com a inversão da simples circulação dos bens de consumo na circulação de capital, infinitamente acumulado. A acumulação do dinheiro como capital é interminável e é suportada por uma vontade infinita de ter abstratamente mais. (Eldred, 2008). Aristóteles não trata a crematística em termos de categorias morais, mas sim de acordo com a natureza humana e com o funcionamento da vida social. A verdadeira riqueza consistia na produção a partir daquilo que a natureza dava e na aquisição necessária à manutenção de um fundo. Assim, a riqueza teria um limite subordinada às necessidades naturais da família. No livro I da Política, Aristóteles considera que a moeda é um factor de perversão da economia, uma vez que torna possível o comércio, a procura metódica do lucro, dando origem a uma técnica falaciosa que pretende fazer da troca uma fonte de riqueza. A crematística antinatural, que encontra a sua primeira aplicação no enriquecimento comercial, converte-se rapidamente na arte da finança, em que as operações não se efectuam sobre os próprios bens, mas sobre estes bens tornados mercadorias, sobre os títulos que os representam, sobre o dinheiro transformado em elemento primordial e termo final da troca. Transvertido deste modo, o comércio não é mais uma troca real de bens ao serviço dos consumidores, mas uma pura especulação, tendo como único objectivo o 78 lucro. As necessidades, já não são necessidades, mas quereres que servem um propósito determinado, a criação contínua da acumulação (Lee, 1989). Aristóteles considera que se aumentamos a riqueza não por via daquilo que a natureza nos dá, mas pela via desta crematística antinatural isso acontecerá sempre mediante a exploração de alguém, desvirtuando o bem viver em sociedade, criando inevitavelmente assimetrias e desigualdades. Com a crematística antinatural uma inversão dos meios ocorre, o dinheiro deixa de ser um meio para se viver bem, vive-se para se ter dinheiro e com isso desequilibra-se a nossa vida comunitária e social. Conclusão É no âmbito da ontologia da troca que devemos situar a reflexão sobre a economia e o dinheiro, porque é aí que o metabolismo da nossa vida social se dá. Como vimos a crematística antinatural altera de forma nociva esse metabolismo, criando anomalias e perturbações de vária ordem. Podemos identificar pelo menos quatro: 1. Cada indivíduo individualiza-se e molda a sua vida para seu próprio prazer sem ter em conta o outro. Isto leva a uma vida de individualismo estrito sem restrições onde os outros são vistos de forma meramente instrumental. 12 2. É um jogo sem barreiras nem limites, em que o outro é percebido como uma coisa, onde alguns podem obter muito em detrimento dos outros, o que conduz a todo o tipo de condições injustas gerando desigualdades e assimetrias colocando permanentemente em risco a coesão social e a equidade. 3. A recusa da finitude e do limite assenta na racionalização da violência. A especulação financeira mais não é do que uma tentativa de calcular o imprevisível e de calcular o incalculável com base num jogo de probabilidades. 4. Estas irregularidades do funcionamento da economia são um verdadeiro risco para o reconhecimento e bom relacionamento entre pessoas e, por vezes, subvertem completamente as nossas interações e relações justas. Nesse sentido, é crucial sublinhar que na ontologia da troca, as relações reificadas do “jogo lucrativo” assentam nas relações não-reificadas de reconhecimento e não podemos ludibriar a diferença entre o ser das coisas que é a sua utilidade, e o ser das pessoas, que é a sua bondade no sentido dos seus poderes e habilidades (um bom advogado, um bom professor, um bom empresário, um bom artesão, ou um bom pintor). A bondade das coisas é compreendida na sua valorização, e a bondade das pessoas é compreendida e reconhecida no seu ser estimado, na cordialidade. As relações humanas são sempre relações de reconhecimento com base na estima entre 12 Ver Soares (2018). 79 mim e outros, as relações reificadas são relações muito pobres e desvirtuadas e, em certo sentido, violentas. Porque as pessoas são eus refletidos sobre si mesmos e sobre o mundo, as relações sociais são sempre relações de espelhamento, de reconhecimento mútuo. A ontologia da troca é uma ontologia entre pessoas e isso compreende as relações defeituosas e, às vezes, muito egocêntricas do “jogo lucrativo”. Pensar a economia e a crematística a partir da ontologia da troca pode levar a uma reflexão mais profunda sobre o funcionamento da nossa vida social e de como chegar a uma maior justiça e equidade. Isso só se conseguirá se tivermos, efectivamente, em conta que só nos desenvolvemos como seres humanos mediante a partilha, a interação, o reconhecimento mútuo e a estima, sem isso não há comunidade humana saudável e sem isso o nosso futuro fica seriamente comprometido. A vontade desmedida de ter mais acaba por ser um logro, uma ilusão temporária e que no final termina com um sinal de menos para todos. Bibliografia Aglietta, M. e Orléan, A. (1982). La violence de la monnaie. Paris: PUF. Aristóteles. (1991). Metaphysics (J. H. McMahon, Trad.). New York: Prometheus Books. Aristóteles. (1992). Politics (T.A. Sinclair, Trad.). London: Penguin Books. Aristóteles. (2011). Nicomachean Ethics (W. D. Ross, Trad.). New York: Pacific Publishing Studio. Bay, T. (2012). Chrematistic Deviations. Journal of Interdisciplinary Economics, 24 (I), 29-54. Cerqueira Gonçalves, J. (2013). Itinerâncias de Escrita: Hermenêutica/filosofia, Vol II. Lisboa: INCM. Eldred, M. (2008). Social Ontology: Recasting political philosophy through a phenomenology of whoness. Frankfurt: Ontos Verlag. Eldred, M. (2011). Anglophone Justice Theory, the Gainful Game and the Political Power Play. Disponível em: http://www.arte-Fact.org/untpltcl/angljstc.html. 80 Eldred, M. (2013). Why social justice is a specious idea. Disponível em http://www.arte-Fact.org/untpltcl/scljstsp.html. Lee, K. (1989). Social Philosophy and Ecological Scarcity. London: Routledge. Levinas, E. (1990). Totalité et infini: Essai sur l’exteriorité. Paris: Biblio Essais. Levinas, E. (1991). Socialité et argent. In C. Chalier e M. Abensour. Cahier de L’Herne n.º 60: Levinas, 134-141. Paris: Biblio Essais. Lukács, G. (1971). History and Class Consciousness. Cambridge, MA: The MIT Press. Moscovo: Marx, K. (1996). Capital: A Critique of Political Economy (S. Moore e E. Aveling, Trad.) Progress Publishers, Vol I. em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/download/pdf/Capital-Volume-I.pdf Disponível Moreau, J. (1969). Aristote et la monnaie. Revue des Études Grecques, no. 82 (391393), 349-364. Soares, C. (2015). O trabalho na Ontologia da Vida: Implicações Éticas. Journal of Studies on Citizenship and Sustainability, no.1, 33-46. Soares, C. (2017). O Modelo Consumista-Do (Des) Cuidar ao Cuidar In Estudos de Homenagem ao Professor José Amado da Silva (pp. 243-251). Faro: Sílabas & Desafios. Soares, C. (2018). The Ontological Ground of Business Ethics. Revista Portuguesa de Filosofia, 74, n.º 2-3, 385-408. Soares, C. (2018). The Philosophy of Individualism: A Critical Perspective, International Journal of Philosophy & Social Values, Vol. I nº. 1, 11-34. Stiegler, B. (1993). Éthique financière et violence du capitalisme. Revue d’économie financière, n.º 26, 303-329. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/ecofi_09873368_1993_num_26_3_2021 81 Tabosa, A, S. (2009). O Conceito de Crematística em Aristóteles. Revista Portuguesa de Filosofia, 65, n.º 1-4, 731-736.
extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://ciencia.ucp.pt/files/39535578/A_Ontologia_da_Troca_Economia_e_Cremat_stica.pdf
Assinar:
Postagens (Atom)