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terça-feira, 4 de março de 2025
PARA O SER HUMANO A NORMA
PARA O SER HUMANO A NORMA É A CAPACIDADE DE MUDAR DE NORMA" (Georges Canguilhem)
Passam-se os anos, e algumas ideias sedimentam-se em mim com a intensidade de um encantamento. Todas elas têm como referência última a existência, que não tem outra referência senão a si mesma. Existir é inventar-se a si mesmo, movido pelo desejo de permanecer no que se é, diferentemente, como diz Espinosa. O filósofo diria que existir é conjugar os verbos e advérbios modais nas suas infinitas flexões. Desejo sair de mim mesmo em busca de outrem, como objeto do desejo, que retorna à minha consciência como exponenciação da variedade dos modos de existir, mediante a representação de novos papeis, um reflexo caleidoscópico de minhas potencialidades, nas quais busco realizar-me, recorrentemente. A felicidade não está no fim da viagem, a última estação. Nessa visão de mundo, o que importa é o MODO de viajar.
Em contraste, as ontologias - todas elas - buscam agarrar-se a um pau de enchente metafísico, inseguras e medrosas de si mesmas. Toda ontologia, assim como a Bíblia, desdobra-se numa narrativa, com começo, meio e fim. E para tanto impõe-se uma visão do tempo como transcurso entre o antes e o depois. Para nós, ocidentais, a aferição costumeira do tempo é a do relógio mecânico (agora digital), que faz do tempo algo à disposição do ser humano à maneira de um taxi estacionado no ponto, à espera de percorrer um caminho que se estende à sua frente, antes de se anunciar para onde pretende ir. Tanto esse sentimento é premente na atualidade, que se fala em TRAJETÓRIA de vida, uma metáfora retirada da Física, que descreve o deslocamento de um corpo, se consciente, rumo a um objetivo determinado. Não há ideologia que não comece por submeter à sua forja a noção de tempo. Assim, Platão, em sua República, contrapondo-se ao tempo cíclico do mito, inaugura no Ocidente o tempo LINEAR. Com Platão, somos advertidos de que é preciso chegar a algum lugar determinado, não se admitindo mais que o caminho se faça ao caminhar, como escreve o poeta espanhol Antonio Machado, possivelmente inspirado na sabedoria do Tao. Que lugar é esse de Platão? Sabem-no os filósofos, que ele elegeu para conduzir a cidade (Estado). Assim, com o tempo linear, caberá a uns mandar e aos demais obedecer. O tempo linear é o do progresso automático, da ontologia, do messianismo, da utopia, que tem aqui a função de gerar, alimentar e manter o estado de salivação feérica em que se debate a vítima, em resposta à expectativa de uma existência que se frustra, porque lhe é oferecida em migalhas, fragmentos de uma experiência que se quer plena a cada instante. Trata-se de uma ontologia associada ao monoteísmo, que se converte em modelo na Mecânica newtoniana, sob a égide do deslocamento, uma ontologia que é tambem uma ÉTICA, a ÉTICA DO DEVER SER, que se impõe indistintamente à maçã de Newton e ao ser humano. A opção de "liberdade" assim oferecida a ambos é a mesma: dizer sim à lei da gravidade, como se para o ser humano a norma não consistisse na capacidade de mudar de norma, para sintonizar-se com o seu contexto, em estado de mudança. Por não admitir o tempo como vivência interior, assim como ocorre em outras culturas, como no Oriente ou entre os ameríndios, o tempo linear impõe-se na sua pretensão objetivista de modo autoritário e excludente. E esse é o tempo que prevalece na atualidade, o tempo do status quo, o tempo dos meritocratas que crescem à custa de puxar para cima os próprios cabelos, o tempo do mercado autorregulável, o tempo do Capital. /// A questão sobre outras modalidades do tempo, além do tempo linear, fica para uma outra postagem. Nivaldo Manzano
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