segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O enigma do capital e as crises do capitalismo

O enigma do capital e as crises do capitalismo

19/12/2011 11:13,  Por Vermelho
No preâmbulo do livro O enigma do capital e as crises do capitalismo, lançado recentemente pela Boitempo, o geógrafo marxista inglês David Harvey observa que o fluxo de capitais, tema central da obra, é tão vital para o sistema capitalista quanto a circulação do sangue para o corpo humano.
Por Umberto Martins

Este fluxo corresponde ao que Marx identificava como circulação do capital. Compreende o processo de valorização e reprodução do capital em escala ampliada (ou a uma “taxa composta”, como prefere o autor) e não pode sofrer solução de continuidade, sob pena de crise. “A continuidade do fluxo deve ser mantida em todos os tempos”, sublinha Harvey. “Se interrompemos, retardamos ou, pior, suspendemos o fluxo, deparamo-nos com uma crise do capitalismo em que o cotidiano não pode mais continuar no estilo a que estamos acostumados”.
A abundância que gera escassez
Desta forma, uma característica central das crises do sistema, incluindo a atual, é a interrupção do processo de valorização do capital, fato que se verifica na esfera produtiva com a depressão do comércio e queda das vendas e no ramo financeiro através da contração do crédito. As crises típicas do modo de produção capitalista são, por consequência, crises de realização, que decorrem da superprodução de capital.
Diferentemente do que ocorria nos modos de produção anteriores, como o feudalismo ou o escravismo, as crises que caracterizam o capitalismo, com manifestações cíclicas ao longo da história desde o início do século 19, são provocadas pela abundância e não pela escassez. A produção não é interrompida pela carência de capital, meios de produção e força de trabalho, mas pelo excesso desses fatores, pelo crescimento exagerado das forças produtivas em relação às relações sociais de produção. É a abundância de capital que origina a escassez de emprego e a carência de demanda. Parece paradoxal, mas é real.
A irracionalidade do sistema
“Em tempos de crise, a irracionalidade do capitalismo se torna evidente para todos”, assinala o geógrafo. “Capital e mão de obra excedentes existem lado a lado sem haver aparentemente uma forma de uni-los no meio de um imenso sofrimento humano e necessidades não realizadas. No meio do verão de 2009, um terço do equipamento de capital dos Estados Unidos esteve parado, enquanto 17% da força de trabalho estavam ou desempregados, forçados a trabalhar meio período ou ´sem ânimo´. O que poderia ser mais irracional do que isto?”
A necessidade de preservar a qualquer custo a circulação do capital esbarra em vários limites e barreiras que o sistema busca, incessantemente, superar. Entre essas barreiras destaca-se a eterna corrida entre lucro e salário, ou seja, a velha e controversa luta de classes. Reside aí também uma das contradições internas do sistema que levou Karl Marx a concluir que é no próprio capital que o capitalismo encontra os seus limites.
Neoliberalismo
Uma das expressões concentradas da luta de classes apontada por Harvey e também por outros críticos como uma causa relevante da crise atual é precisamente o neoliberalismo, que teve por marco os governos de Margaret Hilda Thatcher na Inglaterra (1979 a 1990) e Ronald Reagan (1981 a 1989) nos EUA e cujo fundamento, desde então, é uma impiedosa guerra de classes para derrubar salários e direitos da classe trabalhadora.
“As desigualdades de renda subiram nos Estados Unidos desde os anos 1970”, comenta Harvey, “ao ponto de os 90% mais baixos da pirâmide socioeconômica deterem agora apenas 29% da riqueza, deixando 10% das pessoas controlarem o resto, sendo que o 1% do topo tem 34% da riqueza e 24% da renda (três vezes mais do que tinham em 1970).”
Renda, consumo e dívida
A concentração da renda, cuja contrapartida foi a redução da participação dos salários no PIB (de 53% em 1970 para 46% em 2005), reduziu a capacidade de consumo do povo estadunidense, deprimindo a demanda por mercadorias e contribuindo, desta forma, para a recessão iniciada no final de 2007.
Durante certo tempo, lembra o escritor, “a lacuna entre o que o trabalho estava ganhando e o que ele poderia gastar foi preenchida pelo crescimento da indústria de cartões de crédito e aumento do endividamento. Nos EUA, em 1980 a dívida agregada familiar média era em torno de 40 mil dólares (em dólares constantes), mas agora é cerca de 130 mil dólares para cada família, incluindo hipotecas.”
A expansão do crédito, respaldada por uma política monetária frouxa, permitiu que o consumo descolasse da renda, subindo quando os salários estavam em baixa, fomentando a superprodução e a crise, um remédio natural para corrigir o desequilíbrio entre renda e consumo.
A tendência da taxa de lucros
O autor de “O enigma do capital” procura se guiar pela teoria marxista e apresenta idéias intrigantes e originais, ao analisar a geografia desigual do fluxo mundial de capitais, para a compreensão de um tema que continua a desafiar o pensamento econômico. Deve ser lido e digerido (como tudo o mais nesta vida) com atenção e espírito crítico, até porque se aventura por terrenos polêmicos.
Não penso que Harvey tenha razão quando sugere, na página 87, que a teoria de Marx sobre a tendência de queda na taxa média de lucros, associada à substituição de trabalho vivo (capital variável) por trabalho morto (capital constante), é “indevidamente simplista”. Mas faz falta um reexame das ideias sobre o assunto (expostas no livro 3 de “O capital”) à luz das transformações operadas pelo imperialismo (que Marx não viu nem analisou) no modo de funcionamento do capitalismo, com o preço ditado por monopólios, a exportação de capitais e a chamada “troca desigual” no comércio exterior.
Papel da classe trabalhadora
O geógrafo, que é professor em Nova York, também dilui o papel da luta de classes na atual conjuntura e é cético em relação à centralidade da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que exagera a importância dos movimentos ambientalistas e deposita esperança no movimento estudantil. “As lutas do trabalho não estão agora na vanguarda da dinâmica política, como foram nos anos 1960 e início dos anos 1970. Muito mais atenção está focada agora na relação com a natureza do que anteriormente.”
As greves e manifestações de massa que estão sacudindo a Europa em defesa dos direitos sociais e do chamado Estado de Bem Estar Social, com protagonismo óbvio dos sindicatos e dos trabalhadores, mostram que Harvey está equivocado a este respeito, o que não reduz a importância de suas observações sobre problemas relacionados à identidade e consciência de classe, além do predomínio de concepções estreitas acerca do proletariado (identificado exclusivamente com o operariado fabril).
Ao longo da sua já longa história, o capitalismo viveu inúmeras crises, algumas sumamente graves (como a Grande Depressão iniciada em 1929 e a atual crise mundial), mas sobreviveu a todas e renasceu das cinzas das duas grandes guerras do século 20. Harvey tem toda razão quando diz que “o capitalismo nunca vai cair por si próprio”. É preciso destruí-lo e esta missão, candente, ainda cabe à classe trabalhadora e a ninguém mais.
Ficha técnica
Título: O enigma do capital e as crises do capitalismo
Autor: David Harvey
Tradução: João Alexandre Peschanski
Páginas: 240
ISBN: 978-85-7559-184-0
Preço: R$ 39,00
Editora: Boitempo

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