publicado em 14 de outubro de 2012 às 15:22
PARA ENTENDER O JULGAMENTO DO
“MENSALÃO”
Ao se encerrar o processo penal de maior
repercussão pública dos últimos anos, é preciso dele tirar as necessárias
conclusões ético-políticas.
Comecemos por focalizar aquilo que representa o
nervo central da vida humana em sociedade, ou seja, o poder.
No Brasil, a esfera do poder sempre se apresentou
dividida em dois níveis, um oficial e outro não-oficial, sendo o último
encoberto pelo primeiro.
O nível oficial de poder aparece com destaque, e é
exibido a todos como prova de nosso avanço político.
A Constituição, por exemplo, declara solenemente
que todo poder emana do povo.
Quem meditar, porém, nem que seja um instante,
sobre a realidade brasileira, percebe claramente que o povo é, e sempre foi,
mero figurante no teatro político.
Ainda no escalão oficial, e com grande
visibilidade, atuam os órgãos clássicos do Estado: o Executivo, o Legislativo,
o Judiciário e outros órgãos auxiliares.
Finalmente, completando esse nível oficial de poder
e com a mesma visibilidade, há o conjunto de todos aqueles que militam nos
partidos políticos.
Para a opinião pública e os observadores menos
atentos, todo o poder político concentra-se aí.
É preciso uma boa acuidade visual para enxergar,
por trás dessa fachada brilhante, um segundo nível de poder, que na realidade
quase sempre suplanta o primeiro.
É o grupo formado pelo grande empresariado:
financeiro, industrial, comercial, de serviços e do agronegócio.
No exercício desse poder dominante (embora sempre
oculto), o grande empresariado conta com alguns aliados históricos, como a
corporação militar e a classe média superior.
Esta, aliás, tem cada vez mais sua visão de mundo
moldada pela televisão, o rádio e a grande imprensa, os quais estão, desde há
muito, sob o controle de um oligopólio empresarial.
Ora, a opinião – autêntica ou fabricada – da classe
média conservadora sempre influenciou poderosamente a mentalidade da grande
maioria dos membros do nosso Poder Judiciário.
Tentemos, agora, compreender o rumoroso caso do
“mensalão”.
Ele nasceu, alimentou-se e chegou ao auge
exclusivamente no nível do poder político oficial.
A maioria absoluta dos réus integrava o mesmo
partido político; por sinal, aquele que está no poder federal há quase dez
anos.
Esse partido surgiu, e permaneceu durante alguns
poucos anos, como uma agremiação política de defesa dos trabalhadores contra o
empresariado.
Depois, em grande parte por iniciativa e sob a
direção de José Dirceu, foi aos poucos procurando amancebar-se com os homens de
negócio.
Os grandes empresários permaneceram aparentemente
alheios ao debate do “mensalão”, embora fazendo força nos bastidores para uma
condenação exemplar de todos os acusados.
Essa manobra tática, como em tantas outras
ocasiões, teve por objetivo desviar a atenção geral sobre a Grande Corrupção da
máquina estatal, por eles, empresários, mantida constantemente em atividade
magistralmente desde Pedro Álvares Cabral.
Quanto à classe média conservadora, cujas opiniões
influenciam grandemente os magistrados, não foi preciso grande esforço dos
meios de comunicação de massa para nela suscitar a fúria punitiva dos políticos
corruptos, e para saudar o relator do processo do “mensalão” como herói
nacional.
É que os integrantes dessa classe, muito embora nem
sempre procedam de modo honesto em suas relações com as autoridades – bastando
citar a compra de facilidades na obtenção de licenças de toda sorte, com ou sem
despachante; ou a não-declaração de rendimentos ao Fisco –, sempre esteve
convencida de que a desonestidade pecuniária dos políticos é muito pior para o
povo do que a exploração empresarial dos trabalhadores e dos consumidores.
E o Judiciário nisso tudo?
Sabe-se, tradicionalmente, que nesta terra somente
são condenados os 3 Ps: pretos, pobres e prostitutas.
Agora, ao que parece, estas últimas (sobretudo na
high society) passaram a ser substituídas pelos políticos, de modo a conservar
o mesmo sistema de letra inicial.
Pouco se indaga, porém, sobre a razão pela qual um
“mensalão” anterior ao do PT, e que serviu de inspiração para este, orquestrado
em outro partido político (por coincidência, seu atual opositor ferrenho),
ainda não tenha sido julgado, nem parece que irá sê-lo às vésperas das próximas
eleições.
Da mesma forma, não causou comoção, à época, o fato
de que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tivesse sido publicamente
acusado de haver comprado a aprovação da sua reeleição no Congresso por emenda
constitucional, e a digna Procuradoria-Geral da República permanecesse muda e
queda.
Tampouco houve o menor esboço de revolta popular
diante da criminosa façanha de privatização de empresas estatais, sob a
presidência de Fernando Henrique Cardoso.
As poucas ações intentadas contra esse gravíssimo
atentado ao patrimônio nacional, em particular a ação popular visando a anular
a venda da Vale do Rio Doce na bacia das almas, jamais chegaram a ser julgadas
definitivamente pelo Poder Judiciário.
Mas aí vem a pergunta indiscreta: – E os grandes
empresários? Bem, estes parecem merecer especial desvelo por parte dos
magistrados.
Ainda recentemente, a condenação em primeira
instância por vários crimes econômicos de um desses privilegiados, provocou o
imediato afastamento do Chefe da Polícia Federal, e a concessão de
habeas-corpus diretamente pelo presidente do Supremo Tribunal, saltando por
cima de todas as instâncias intermediárias.
Estranho também, para dizer o mínimo, o caso do
ex-presidente Fernando Collor.
Seu impeachment foi decidido por “atentado à
dignidade do cargo” (entenda-se, a organização de uma empresa de corrupção pelo
seu fac-totum, Paulo Cezar Farias).
Alguns “contribuintes” para a caixinha
presidencial, entrevistados na televisão, declararam candidamente terem sido
constrangidos a pagar, para obter decisões governamentais que estimavam
lícitas, em seu favor.
E o Supremo Tribunal Federal, aí sim, chamado a
decidir, não vislumbrou crime algum no episódio.
Vou mais além.
Alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao
votarem no processo do “mensalão”, declararam que os crimes aí denunciados eram
“gravíssimos”.
Ora, os mesmos Ministros que assim se pronunciaram,
chamados a votar no processo da lei de anistia, não consideraram como dotados
da mesma gravidade os crimes de terrorismo praticados pelos agentes da
repressão, durante o regime empresarial-militar: a saber, a sistemática tortura
de presos políticos, muitas vezes até à morte, ou a execução sumária de
opositores ao regime, com o esquartejamento e a ocultação dos cadáveres.
Com efeito, ao julgar em abril de 2010 a ação
intentada pelo Conselho Federal da OAB, para que fosse reinterpretada, à luz da
nova Constituição e do sistema internacional de direitos humanos, a lei de
anistia de 1979, o mesmo Supremo Tribunal, por ampla maioria, decidiu que fora
válido aquele apagamento dos crimes de terrorismo de Estado, estabelecido como
condição para que a corporação militar abrisse mão do poder supremo.
O severíssimo relator do “mensalão”, alegando
doença, não compareceu às duas sessões de julgamento.
Pois bem, foi preciso, para vergonha nossa, que
alguns meses depois a Corte Interamericana de Direitos Humanos reabrisse a
discussão sobre a matéria, e julgasse insustentável essa decisão do nosso mais
alto tribunal.
Na verdade, o que poucos entendem – mesmo no meio
jurídico – é que o julgamento de casos com importante componente político ou
religioso não se faz por meio do puro silogismo jurídico tradicional: a
interpretação das normas jurídicas pertinentes ao caso, como premissa maior; o
exame dos fatos, como premissa menor, seguindo logicamente a conclusão.
O procedimento mental costuma ser bem outro.
De imediato, em casos que tais, salvo raras e
honrosas exceções, os juízes fazem interiormente um pré-julgamento, em função
de sua mentalidade própria ou visão de mundo; vale dizer, de suas preferências
valorativas, crenças, opiniões, ou até mesmo preconceitos.
É só num segundo momento, por razões de protocolo,
que entra em jogo o raciocínio jurídico-formal.
E aí, quando se trata de um colegiado julgador, a
discussão do caso pelos seus integrantes costuma assumir toda a confusão de um
diálogo de surdos.
Foi o que sucedeu no julgamento do “mensalão”.
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