quarta-feira, 17 de julho de 2013

Jogos da fome nos EUA Paul Krugman



16/07/2013
Algo terrível aconteceu com a alma do Partido Republicano. Nós fomos além da doutrina econômica ruim. Nós até fomos além do egoísmo e dos interesses especiais. Neste momento, estamos falando de um estado de espírito que sente muita satisfação em infligir mais sofrimento aos que já são miseráveis.
O fato que desencadeou estas observações é, como você deve ter adivinhado, a monstruosa lei agrícola que a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou na semana passada.
Câmara dos EUA desafia ameaça de veto e aprova lei agrícola
Durante décadas, os projetos de lei para o setor agrícola têm tido dois componentes principais. Um componente oferece subsídios aos agricultores; o outro oferece ajuda nutricional aos norte-americanos necessitados, principalmente na forma de cupons de alimentação (que hoje são oficialmente conhecidos como SNAP, Supplemental Nutrition Assistance Program, ou Programa Suplementar de Assistência à Nutrição).
Muito tempo atrás, quando os subsídios ajudavam muitos agricultores pobres, seria possível defender esse pacote completo como uma forma de apoio aos mais necessitados. Com o passar dos anos, no entanto, esses dois componentes se afastaram um do outro. Os subsídios agrícolas transformaram-se num programa contaminado por fraudes que beneficiam principalmente as corporações e os cidadãos mais ricos do país. Enquanto isso, os cupons de alimentação se tornaram uma parte crucial da rede de segurança social dos EUA.
Então, os republicanos da Câmara dos Deputados dos EUA votaram para manter os subsídios agrícolas –em um nível mais elevado do que o proposto pelo Senado e pela Casa Branca– e, ao mesmo tempo, para eliminar os cupons de alimentação do projeto de lei.
Para conseguir apreciar plenamente o que acabou de acontecer, ouça a retórica utilizada com frequência pelos conservadores para justificar a eliminação de programas que fazem parte da rede de segurança social dos EUA. É mais ou menos assim: “Você é individualmente livre para ajudar os pobres. Mas o governo não tem o direito de tirar dinheiro das pessoas” –com frequência, nesse ponto, eles acrescentam as palavras “sob a mira de uma arma” e “obrigá-las a dá-lo aos pobres”.
No entanto, aparentemente é perfeitamente OK tirar dinheiro das pessoas sob a mira de uma arma e obrigá-las a dá-lo às empresas de agronegócios e aos mais ricos.
Alguns inimigos dos cupons de alimentação não citam essa filosofia libertária para justificar seu posicionamento; em vez disso, citam a Bíblia. O deputado republicano Stephen Fincher, do Tennessee, por exemplo, citou o Novo Testamento: “Aquele que não está disposto a trabalhar não deve comer”. Como era de se esperar, Fincher recebeu pessoalmente milhões de dólares em subsídios agrícolas.
Considerando-se esse espantoso sistema de dois pesos e duas medidas –e eu não acho que a palavra “hipocrisia” faça justiça a ele–, parece quase um anticlímax falar sobre fatos e números. Mas eu acho que deveríamos.
Então: o uso dos cupons de alimentação, de fato, aumentou nos últimos anos. O percentual da população que recebe esse tipo de auxílio passou de 8,7%, em 2007, para 15,2%, de acordo com os dados mais recentes. Não há, no entanto, nenhum mistério aqui. O SNAP foi criado para ajudar as famílias em dificuldades financeiras e, ultimamente, muitas famílias estão passando por dificuldades.
Na verdade, o uso do SNAP tende a ser atrelado a índices amplos de desemprego, como o U6, que inclui os subempregados e os trabalhadores que pararam temporariamente de buscar um emprego ativamente. E o U6 mais do que dobrou durante a crise, passando de aproximadamente 8% antes da Grande Recessão para 17% no início de 2010. É verdade que, desde então, o índice amplo de desemprego diminuiu ligeiramente, enquanto que os números relacionados aos cupons de alimentação continuaram subindo –mas sempre há certa defasagem nessa relação, e provavelmente também é verdade que algumas famílias se viram obrigadas a utilizar os cupons de alimentação devido aos cortes drásticos adotados nos subsídios concedidos aos desempregados.
E como explicar a teoria, comum entre os políticos de direita, de que vivemos a situação contrária, ou seja, nossas taxas de desemprego são altas devido aos programas do governo que, na verdade, pagam para que as pessoas não trabalhem? — os refeitórios públicos causaram a Grande Depressão! A resposta pura e simples é: isso só pode ser brincadeira. Você realmente acredita que os norte-americanos estão vivendo uma vida boa com US$ 134 por mês, valor do benefício médio pago pelo SNAP?
Mesmo assim, vamos fingir que levamos essa crença dos direitistas a sério. Se a taxa de desemprego está alta porque os benefícios do governo estão induzindo as pessoas a ficarem em casa, o que causa uma redução na força de trabalho, então a lei da oferta e da procura deveria se aplicar nesse caso: a retirada de circulação de todos esses trabalhadores deveria estar causando uma escassez de mão de obra e um aumento dos salários, especialmente entre os trabalhadores com baixos rendimentos, que têm mais probabilidade de receber ajuda do governo. Na realidade, é claro, os salários estão estagnados ou em queda –e isso é especialmente verdadeiro para os grupos que mais se beneficiam dos cupons de alimentação.
Então o que está acontecendo aqui? Será que é apenas racismo? Sem dúvida que as antigas mentiras racistas –como a imagem pintada por Ronald Reagan dos “negros indignos e preguiçosos que vivem do trabalhando duro contribuintes brancos em vez de conseguirem um emprego” e que usavam os cupons de alimentação para comprar um T-bone steak– ainda têm algum apelo. Mas, atualmente, quase a metade dos beneficiários dos cupons de alimentação são brancos não-hispânicos. No Tennessee, terra natal de Fincher, o republicano citador da Bíblia, esse número está em 63%. Por isso, a situação não tem apenas a ver com raça.
Ela tem a ver com o quê, então? De alguma maneira, um dos dois grandes partidos de nosso país foi infectado por uma mesquinhez quase patológica, um desdém pelo que Rick Santelli, da rede CNBC, no famoso discurso de lançamento do Tea Party, chamou de “perdedores”. Se você for norte-americano e estiver na pior, essas pessoas não vão querer te ajudar. Elas querem te dar um chute extra. Eu não consigo entender essa atitude completamente, mas ela é uma coisa terrível de se ver.
Tradutor: Cláudia Gonçalves
PAUL KRUGMAN
Professor de Princeton e colunista do New York Times desde 1999, Krugman venceu o prêmio Nobel de economia em 2008

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