O sucesso da física de Galileu e Newton trouxe, para as demais ciências,
um apelo para que se adequassem a seu modelo explicativo (HULL, 1971). Esse
modelo era constituído pelo método hipotéticodedutivo, guiando o planejamento
e execução de observações e experimentos de comprovação. As hipóteses
formuladas eram sempre do tipo causal, em que determinado fator por exemplo,
uma força atuando sobre um corpo gera determinado efeito por exemplo, a
alteração da velocidade desse corpo. Com esse tipo de modelo Newton conseguiu,
utilizando apenas três esquemas causais (as famosas três leis de Newton),
explicar o movimento dos corpos.
Tal concepção de causalidade reduzia a três as possibilidades
explicativas levantadas por Aristóteles:
a) causas materiais, como a massa do corpo em movimento;
b) causas formais, como a forma retilínea ou circular do movimento; e
c) causas eficientes, como a força gravitacional atuando sobre o estado
de movimento do corpo.
Desse modelo explicativo foram excluídas as causas finais propostas por
Aristóteles, que eram freqüentemente evocadas para explicar os fenômenos da
vida e da saúde. Mesmo no plano do conhecimento comum, costumamos fazer
raciocínios finalistas ou teleológicos para explicar os fenômenos da vida, especialmente
aqueles relacionados ao comportamento animal. Entendemos que animais realizam
diversas ações objetivando de modo intencional ou não atingir certas metas,
como a sobrevivência individual e a reprodução da espécie.
Como se poderia conciliar essa concepção teleológica com o modelo da
física newtoniana? Os chamados vitalistas, proponentes da
existência de uma força vital adicional às forças físicas conhecidas,
insatisfeitos com aquele modelo mecanicista do universo, não poderiam
simplesmente contrapor, à monumental física de Galileu e Newton, os princípios
metafísicos de Aristóteles e filósofos medievais. Para comprovar a existência
da teleologia, tiveram que se engajar em experimentos científicos do mesmo
estilo daqueles empregados por Galileu para demonstrar que a Terra se move.
Na última década do século XIX, Hans Driesch tentou comprovar a
existência de um princípio vital teleológico (intitulado entelechia),
por meio de um experimento no qual dividiu ao meio um embrião de ouriçodomar
que se encontrava numa fase de desenvolvimento composta de duas células
(blastômeros). Observouse que um blastômero veio a se desenvolver por inteiro,
regenerando a parte perdida. Este resultado foi interpretado por Driesch como
indicador da ação da entelechia sobre o blastômero,
conduzindoo para uma meta (telos), que seria a forma do ouriço em sua
completude (vide discussão em Weydert, 2004).
A medicina homeopática já se encontrava desenvolvida nessa época, em
particular no trabalho de Samuel Hahnemann. A homeopatia se afirmou como
prática clínica de promoção da saúde, através do princípio da "cura pelo
semelhante", isto é, promovendo a cura de uma doença através da utilização
de um princípio ativo semelhante aos fatores causadores da doença. Assumindo um
dinamismo vital que opera num domínio não abarcado pelas categorias
explicativas do mecanicismo, o movimento homeopático adotou uma estratégia
pragmática, procurando comprovar a veracidade de seus princípios através dos
efeitos benéficos oriundos de sua aplicação.
No século XIX também encontramos a grande síntese realizada por Bernard
(1865), adequando o modelo mecanicista aos avanços do conhecimento e da prática
médicas. Nesse momento, a própria física expandia seus horizontes, com o
eletromagnetismo de Maxwell, a termodinâmica de Clausius e a teoria cinética
dos gases de Boltzmann, introduzindo novos conceitos que vieram a ter
importante influência nas ciências da vida e da saúde: os conceitos de campo
magnético e de equilíbrio termodinâmico.
Os estudos de Claude Bernard sobre os mecanismos de regulação orgânica
possibilitaram, em conjunção com os avanços da física, a formulação do conceito
de homeostase por Walter Cannon em 1928 (vide BAYLISS, 1966).
Segundo Bernard, a vida depende da "constância do ambiente interno",
ou seja, de um equilíbrio que resulta de "uma compensação contínua e
delicada, estabelecida pelo mais sensível balanceamento" (BERNARD, 1865).
Tal concepção de equilíbrio dinâmico amplia o modelo mecanicista em direção ao
organicismo, sem, contudo, entrar em contradição com as premissas básicas do
primeiro.
O movimento positivista francês, que possivelmente teve em Augusto Comte
seu maior expoente, pode ser entendido como uma iniciativa fundamentalista de
preservação dos princípios da ciência moderna, e de sua aplicação para o
aperfeiçoamento da sociedade humana. Nesse contexto se forjaram os conceitos de
normalidade e patologia posteriormente discutidos por George Canguilhem.
Neste ensaio,1 discutimos em que medida
Canguilhem é bemsucedido em sua crítica a uma visão mecanicista do normal e do
patológico, e em que medida ele recai numa posição vitalista. Sugerimos a
possibilidade de que ele tenha superado a oposição entre mecanicismo e
vitalismo, antecipando os atuais modelos de sistemas dinâmicos nãolineares.
Para tal, fazemos uma breve comparação com o conceito de autoorganização
proposto por Michel Debrun (1996).
A discussão da normalidade e da patologia
O conceito de normatividade da vida faz parte do núcleo
epistemológico central do pensamento de Canguilhem. Inicialmente ele foi
apresentado numa discussão crítica do conceito de normalidade,
amplamente utilizado na clínica médica.
Em sua tese de doutorado (Ensaio sobre alguns problemas relativos ao
normal e ao patológico, 1943), o entendimento de Canguilhem sobre a
racionalidade médica era marcado por sua definição de medicina como sendo
uma atividade clínica e terapêutica, uma atividade técnica e/ou
"uma arte situada na confluência de várias ciências, mais do que uma
ciência propriamente dita [...] de instauração e restauração do normal, que não
pode ser inteiramente reduzida ao simples conhecimento" (CANGUILHEM, 1995,
p. 16, Introdução). Nesse sentido, deixou claro que seu trabalho seria "um
esforço para integrar, à especulação filosófica, alguns dos métodos e das
conquistas da medicina", ressaltando que "tivemos a ambição de
contribuir para a renovação de certos conceitos metodológicos, retificando sua
compreensão pela influência de uma informação médica" (CANGUILHEM, 1995,
p. 16).
Canguilhem tinha como objetivo final desenvolver uma metodologia
apropriada às ciências da vida, relacionandoas à atividade terapêutica na
medicina. Tal objetivo contrastava com o panorama epistemológico da época:
a identidade real dos fenômenos vitais normais e patológicos,
aparentemente tão diferentes, aos quais a experiência humana atribuiu valores
opostos, tornouse durante o século XIX uma espécie de dogma cientificamente
garantido, cuja extensão no campo da filosofia e da psicologia parecia
determinada pela autoridade que os biólogos e os médicos lhe reconheciam
(CANGUILHEM, 1995, p. 23).
Ele considerou problemático o uso então realizado dos conceitos de normalidade e patologia na
prática médica. Notou a dimensão do problema através da classificação de
nosologia somática ou de fisiologia patológica, na época: "o problema do
normal e do patológico pode, do ponto de vista médico, dividirse em problema
teratológico e em problema nosológico, e este último, por sua vez, em problema
de nosologia somática ou de fisiopatologia, e em problema de nosologia psíquica
ou de psicopatologia" (CANGUILHEM, 1995, p.16). Tal classificação
expressaria concepções ambíguas e equívocas sobre o uso do conceito de
normalidade.
Duas partes da tese de doutorado foram construídas para destrinchar este
problema epistemológico: uma parte revelando erros de concepção das relações
entre ciência e técnica, e outra mostrando interpretações ambíguas na relação
entre a norma e o normal.
A primeira parte da tese se guia pela pergunta "Seria o estado patológico
apenas uma modificação quantitativa do estado normal?" (CANGUILHEM, 1995,
p. 19). A partir dessa pergunta, ele aborda criticamente as reflexões propostas
sobre as relações entre os conceitos de normal e patológico, os quais, desde o
século XIX, eram usados para designar uma variação quantitativa de um padrão
considerado como sendo referência. É justamente essa dimensão quantitativa que,
na atividade terapêutica, autorizava a intervenção médica.
Para realizar essa análise crítica, Canguilhem realizou estudos sobre a
obra de dois autores do século XIX que influenciaram profundamente as ciências
médicas: Augusto Comte e Claude Bernard. Para ele, "esses autores
desempenharam o papel de portabandeira" (CANGUILHEM, 1995, p. 26).
Enquanto na doutrina de Comte o interesse se dirige "do patológico para o
normal com a finalidade de determinar especulativamente as leis do
normal", no pensamento de Bernard o interesse dirigese "do normal
para o patológico [...] como fundamento de uma terapêutica" (CANGUILHEM,
1995, p. 23). Nessa análise, Canguilhem distingue as dimensões valorativas e
fenomenológicas da doença, e, conseqüentemente, coloca em questão a
fundamentação quantitativista da normalidade (SERPA JUNIOR, 2006, p. 45):
Na discussão desses dois sentidos (do termo normal) fizemos ver o quanto
esse termo é equívoco, designando ao mesmo tempo um fato e um valor atribuído a
esse fato por aquele que fala, em virtude de um julgamento de apreciação que
ele adota. Fizemos ver, também, o quanto esse equívoco foi facilitado pela
tradição filosófica realista, segundo a qual toda generalidade é indício de uma
essência; toda perfeição, a realização de uma essência e, portanto, uma
generalidade observável de fato adquire o valor de perfeição realizada, e um
caráter comum adquire um valor de tipo ideal. Assinalamos uma confusão análoga
em medicina, em que o estado normal designa ao mesmo tempo o estado habitual
dos órgãos e seu estado ideal, já que o restabelecimento desse estado habitual
é o objeto usual da terapêutica (CANGUILHEM, 1995, p. 9596).
Na segunda parte de sua tese, Canguilhem apresenta sua própria abordagem
do problema, fazendo a seguinte pergunta: "Existem ciências do normal e do
patológico?" (CANGUILHEM, 1995, p. 87). A discussão só será resolvida com
a introdução do conceito de normatividade da vida que irá
tomar o lugar da noção de normalidade como foco central de
suas preocupações. A normatividade indica que a vida estabelece normas para si
mesma, ou seja, se autodetermina. Ao introduzir esse conceito, Canguilhem
resgatava a idéia de autodeterminação, que era cara ao vitalismo, porém num
contexto diferenciado, o da discussão do modelo organicista de Bernard e das
diretrizes científicas de Comte. Sua argumentação se baseou numa crítica de
determinadas categorias referenciadas no conceito de normalidade: anormal,
anomalia, norma, média e patologia são termos
enfocados em sua análise de dogmas subjacentes à atividade médica terapêutica
(CANGUILHEM, 1995, p. 9597).
Inicialmente, constatase que a ambigüidade do termo normal não
deve ser eliminada, mas problematizada. Em medicina, costumase identificar o
estado normal do corpo humano com o estado que se deseja restabelecer, no caso
de acometimento de doenças. Um primeiro problema se apresenta: "mas será
que se deve considerálo normal porque é visado como fim a ser atingido pela
terapêutica, ou pelo contrário, será que a terapêutica o visa justamente porque
ele é considerado como normal pelo interessado, isto é, pelo doente?"
(CANGUILHEM, 1995, p. 9597).
Canguilhem assume que "a atividade valorativa atribuída a um fato
biológico só poder ser feita por `aquele que fala', evidentemente um
homem". Ora, continua ele, "a medicina existe como arte da vida
porque o ser vivo considera, ele próprio, como patológicos certos estados ou comportamentos
que, em relação à polaridade dinâmica da vida, são apreendidos sob a forma de
valores negativos".
Essa proposição conduz ao segundo problema: "será que há um efeito
espontâneo que prolonga a vida, próprio da vida, que é mais ou menos lúcido para
o ser humano na luta contra os obstáculos à sua manutenção e desenvolvimento, e
que é tomado como norma?" Uma resposta se apresenta: "o
restabelecimento de um ser vivo traduz um fato fundamental da vida, que a vida
não é indiferente às condições nas quais ela não é possível, dado que a vida é
polaridade, isto é, que a vida é de fato uma atividade normativa".
A discussão sobre o normal e o patológico conduz Canguilhem ao conceito
de normatividade da vida, que se apresenta como sendo também
bivalente: seria um princípio ontológico, intrínseco à própria vida, e também
um princípio epistemológico, atribuído à vida pelo ser humano (o médico, e/ou
seu paciente, e/ou qualquer outro observador da vida). Ele apresenta ambas as
possibilidades numa pergunta retórica: "Propomos falar sobre uma
normatividade biológica [...] emprestamos assim às normas vitais um conceito
humano, ou queremos saber como é que a normatividade essencial se explica à
consciência humana, que de certo modo está em germe na vida?" (CANGUILHEM,
1995, p. 9597). A resposta a esta pergunta só poderia ser: ambas as
alternativas são verdadeiras! Contudo, devemos ressaltar a originalidade da
segunda alternativa, que constituiria o núcleo central da epistemologia de
Canguilhem: a consciência humana como expressão do processo de autoorganização
da vida.
Normatividade e polaridade da vida
Ao inferir, em sua análise crítica da normatividade médica, a existência
de uma normatividade da vida, teria Canguilhem tendido ao vitalismo? Sua
concepção de vida já havia sido anunciada em 1943, na idéia
mais geral de polaridade da vida, significando que a vida ora
participa da Natureza, ora segue suas próprias normas:
A polaridade dinâmica da vida e a normatividade que a traduz explicam um
fato epistemológico cuja importância Bichat havia sentido plenamente. Existe
patologia biológica, mas não existe patologia física, nem química, nem mecânica
[...]. Podese dizer que Aristóteles acreditara outrora numa mecânica
patológica, já que admitia dois tipos de movimentos: os movimentos naturais,
pelos quais um corpo retoma seu lugar próprio e onde fica em repouso, como a
pedra se dirige para "o baixo terrestre" e o fogo para "o alto
celeste"; e os movimentos violentos pelos quais um corpo é afastado de seu
próprio lugar, como quando se joga uma pedra para o ar. Podese dizer que o
progresso do conhecimento físico consistiu em considerar todos movimentos como
naturais, isto é, conforme as leis da natureza e que, da mesma forma, o
progresso do conhecimento biológico consiste em unificar as leis da vida
natural e da vida patológica. É justamente com essa unificação que Comte
sonhava e que Claude Bernard vangloriouse de ter realizado (como vimos). Às
reservas que, então, julgamos necessárias expor, acrescentamos ainda o
seguinte: a mecânica moderna, baseando a ciência do movimento no princípio da
inércia, tornava absurda, com efeito, a distinção entre os movimentos naturais
e os movimentos violentos, já que a inércia é precisamente a indiferença em
relação às direções e às variações do movimento. Ora, a vida está bem longe de
uma tal indiferença em relação as condições que lhe são impostas; a vida é
polaridade. O mais simples dos aparelhos biológicos de nutrição, de assimilação
e de excreção traduz uma polaridade. Quando os dejetos da assimilação deixam de
ser excretados por um organismo e obstruem ou envenenam o meio interno, tudo
isso, com efeito, está de acordo com a lei (física, química etc.), mas nada
disso está de acordo com a norma, que é a atividade do próprio organismo. Este é
o fato simples que queremos designar quando falamos em normatividade biológica
(CANGUILHEM, 1995, p. 9798).
Nessa longa citação estão sintetizados alguns dos principais dilemas
teóricos da biologia moderna, principalmente a tensão entre a visão finalista
de Aristóteles e o mecanicismo de física newtoniana. Ao invés de simplesmente
se engajar como mais um defensor da teleologia, e de seu respectivo fundamento
o princípio vital , Canguilhem procura não só reconhecer a tensão conceitual
existente, como também reelaborála em termos de uma concepção de polaridade da
própria vida. Deste modo, o problema epistemológico que era objeto de sua
análise crítica é entendido como decorrente de um estado de coisas intrínseco à
própria vida.
Canguilhem reconhece esta situação nos escritos de 1955 (A formação
do conceito de reflexo nos séculos XVI e XVII), procurando recusar a pecha
de vitalista:
Pouco importa ser ou não tido como vitalista ou pecha semelhante que se
queira atribuir com esse adjetivo. A rigor, o termo vitalista só deveria servir
para designar uma teoria biológica, ou uma filosofia do biólogo, se tal
empreendimento tem um sentido para ele, e não uma filosofia da biologia, único
empreendimento possível para um filósofo, porém não confundido com uma biologia
de filósofo, que seria um projeto monstruoso. O fato de se interessar por uma
família de espíritos e de fazêla parecer viva quando muitos a crêem morta não
conduz obrigatoriamente a uma identificação mágica com ela. Se então nos
esforçamos, tanto nesse presente estudo como em outros, a defender a biologia
dos vitalistas contra a acusação de aberração ou de esterilidade, não é
absolutamente porque pensemos estar na posse de uma chave vitalista dos
problemas colocados para a inteligência pela vida. Nós não pensamos ter a
chave, pela boa razão que nós não acreditamos nas portas misteriosas da vida.
Podese admitir que a vida desconcerte a lógica, sem que por isso acreditemos
ser preferível renunciar à formação de conceitos para procurar alguma chave
perdida. Pensamos também que uma convicção vitalista não tem a prerrogativa de
gerar no biólogo, diante os problemas que a vida lhe coloca, a preguiça e a
idiotice. Existem alguns exemplos que mostram o contrário (CANGUILHEM, 1955, p.
1).
Portanto, Canguilhem não seria o advogado de uma medicina vitalista
vide discussão em Serpa Junior (2006, p. 8), Ferraz (1994, p. 6 e seguintes),
mas sim de uma reflexão epistemológica sobre a vida que não se prendesse às
categorias mecanicistas. Para ele, enfim, o vitalismo seria apenas "a
expressão da confiança do ser vivente na vida, da identidade da vida consigo
mesma no vivente humano, consciente de viver" (CANGUILHEM, 1952, p. 101).
Quando Canguilhem assume a direção do Institut d'Histoire des Sciences
et des Techniques, da Universidade de Paris, passa a entender como sendo
primordial, na construção de seu pensamento, distinguir o progresso efetivado
pelas ciências biológicas daquele realizado pelas ciências médicas. Na
coletânea publicada em 1977 (CANGUILHEM, 1977), o filósofo enfatiza a instância
epistemológica no trabalho historiográfico voltado às ciências da vida. Entre
1969 e 1976, ele explorara uma gama de exemplos historiográficos sobre a
ideologia no campo da ciência, especificamente na Medicina e Biologia. No entanto,
o princípio ontológico de normalidade da vida ainda desempenhava papel central
em sua argumentação.
Nesses trabalhos, Canguilhem reitera que "normal" é um termo
ambíguo, que pode ser usado tanto para a descrição de um fato, como para a
atribuição de um valor (i.e., para uma avaliação do fato). Normal é aquilo
que deve ser (valor), mas também é entendido como aquilo
que se encontra na média (fato). O uso avaliativo é distinto do uso
quantitativo de normalidade. A concepção quantitativa de normal é descritiva,
na medida em que informa o quanto se afasta da posição normal, mas somente o
recurso a um valor pode servir de referência para se avaliar em que medida de
afastamento do normal ingressamos no domínio do patológico.
Por outro lado, com base no conceito de normatividade se
poderia compreender o fenômeno da vida em sua racionalidade intrínseca. A
normatividade está presente fenomenologicamente no próprio ser vivente e na
vida: "a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível...é
polaridade [...] em resumo, a vida é, de fato, uma atividade normativa"
(CANGUILHEM, 1995, p. 96); e é extensível a todos seres vivos: "Viver é,
mesmo para uma ameba, preferir e excluir" (CANGUILHEM, 1995, p. 105).
Tal distinção conceitual entre "normalidade" e "normatividade"
teria importância para a racionalidade médica, à medida que se procure
compreender a atividade terapêutica dentro do campo maior das ciências da vida
(LACEY, 1998). Dessa distinção decorre uma outra distinção feita por Canguilhem
entre patologia e anomalia. A anomalia designaria
uma variação, diferença, descontinuidade espacial e/ou morfológica da espécie,
que é valorizada negativamente pela própria vida ou seja, a anomalia é um
fenômeno intrínseco ao processo vital. Já no termo patológico, considerase
o organismo em relação ao meio, podendose ou não ser patológico, dependendo as
variações do meio ambiente. Ou seja, a patologia é um termo empregado num
julgamento extrínseco ao organismo, quando tomado em referência ao meio em que
se situa.
Desse raciocínio surgem modificações da proposta apresentada na tese de
1943, buscando um acordo com o progresso das ciências médicas em 1977. No
contexto da descoberta científica na medicina, o conceito de normal passa
a ser entendido como referente ao contexto da interação entre o organismo e o
meio, e não do organismo isoladamente. O meio é normal quando o organismo
desenvolve sua vida em acordo com sua norma. A anomalia exprime uma outra norma
de vida que se impõe; ela poderá ser inferior, igual ou superior à norma
anterior, correspondendo respectivamente aos modos patológico, normal e
favorável à fecundidade e variabilidade da vida. Neste caso, o patológico não é
ausência de uma norma biológica, mas a ocorrência de uma norma recusada pela
vida. Assim, o anormal não é a ausência, mas a restrição da normatividade
vital:
Nem toda anomalia é patológica, mas só a existência de anomalias é que
propiciou uma ciência especial das anomalias, que tende usualmente pelo fato
de ser ciência a banir, da definição da anomalia, qualquer implicação
normativa [...] a anomalia é a conseqüência de variação individual que impede
dois seres de poderem se substituir um ao outro de modo completo [...]. No
entanto, diversidade não é doença. O anormal não é patológico. Patológico
implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de
impotência, sentimento de vida contrariada [...]. Sem dúvida, há uma maneira de
considerar o patológico como normal, definindo o normal e o anormal pela
freqüência estatística relativa [...] em certo sentido podese dizer que a
saúde perfeita contínua é um fato anormal (CANGUILHEM, 1995, p. 106).
Considerações finais: sobre a normatividade da vida e a autoorganização
O conceito de causa final, de Aristóteles, assim como os
postulados de um princípio vital, pelos adversários do modelo
mecanicista da ciência moderna, tinham em comum o caráter fundamentalista atribuído
à teleologia. Ou seja, a existência de uma meta ou telos para
a atividade dos seres vivos era entendida como preexistente e condicionante desta
atividade.
No conceito de normatividade da vida de Canguilhem
podemos notar uma inversão dos fatores, em que o processo vital
antecede e determina a emergência de normas, as quais podem ser alteradas
conforme os caminhos percorridos.
A distinção entre uma teleologia fundamental e uma teleologia derivada
de um processo encontra um paralelo em estudos contemporâneos de fenômenos de
autoorganização (AO), em particular na teoria proposta por Michel Debrun
(1996). Debrun distingue entre dois tipos de AO. Na AO primária, um
sistema i.e., uma rede de relações se forma a partir das interações que se
estabelecem entre diversos elementos anteriormente independentes entre si. Já
na AO secundária, um sistema já constituído, que seja aberto a
interações com seu meio (o que é uma condição necessária, tendo em vista a
Segunda Lei da Termodinâmica), passa por transformações organizacionais que
decorrem primordialmente de relações intrínsecas (aquelas que são estabelecidas
ao longo do tempo, entre os componentes do sistema), e não de uma ação
extrínseca (i.e., de fatores externos ao sistema, o que se fosse o caso
caracterizaria uma heteroorganização).
A partir da teorização sobre a AO realizada por Debrun, podemos fazer
uma distinção mais clara entre a concepção de teleologia defendida pelos
vitalistas e o conceito de normatividade da vida de Canguilhem. O princípio
vital, que fundamenta as ações teleológicas, é concebido como um princípio
metafísico (ou, em determinadas versões, como uma força da natureza ainda não
tematizada pela Física) que se situa extrinsecamente ao ser vivo, e conduz a
atividade deste ser em direção a uma meta ou conjunto de metas. Já a
normatividade da vida, ao contrário, emerge da própria atividade do ser vivo,
se manifestando como escolha ou mesmo como intenção consciente.
Desta forma, podemos conjeturar que a normatividade da vida se situaria
no plano da AO secundária, na qual um sistema já formado um organismo vivo
estabelece, a partir de sua própria atividade ao longo do tempo (ou
seja, a partir das interações entre seus componentes e do sistema com o
ambiente), as metas que estabelece para si. Nesta concepção, tais metas são
reais, mas não se situam num plano superior ao do processo da vida. Por outro
lado, nas concepções vitalistas o princípio vital atuaria já no plano da AO
primária, dirigindo o desenvolvimento do organismo e/ou a evolução das
espécies. Neste sentido, tais processos de desenvolvimento e evolução não
seriam verdadeiramente autoorganizados, uma vez que seriam dirigidos por um
princípio externo ao sistema que se constitui e se transforma ao longo do
tempo.
Recebido em: 04/09/2006.
Aprovado em: 17/04/2007.
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421429, 2004.
Agradecemos o apoio
do CNPq, que concedeu Bolsa de Produtividade em Pesquisa ao pesquisador Alfredo
Pereira Junior, coautor deste artigo.
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