segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Democracia comunitária Wolkmer bbb

Democracia comunitária Wolkmer

 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS E COMUNITÁRIOS LATINO-AMERICANOS REDEFINITION OF THE CONCEPT OF DEMOCRACYFROM THE PLURAL AND COMMUNITARIAN RIGHTS LATIN AMERICAN Antonio Carlos Wolkmer ISSN 1982-0496 Licenciado sob uma Licença Creative Commons Professor Titular de História das Instituições Jurídicas, dos cursos de graduação e pósgraduação em Direito da UFSC. Doutor em Direito e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (RJ). É pesquisador nível 1-A do CNPq. Professor visitante de cursos de pósgraduação em várias universidades do Brasil e do exterior (Argentina, Peru, Colômbia, Chile, Venezuela, Costa Rica, Puerto Rico, México, Espanha e Itália). Autor de diversos livros, dentre os quais: Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001; Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina (Org.) Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004; Sintesis de uma história das ideias jurídicas: da Antiguidade clássica à Modernidade. 2. ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008; Introdução ao pensamento jurídico crítico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012; História do Direito no Brasil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013; Constitucionalismo Latinoamericano. Tendências Contemporâneas (Orgs.) Curitiba: Juruá, 2013 Resumo A democracia no Ocidente desenvolveu-se historicamente como um sistema de legitimação dos interesses dominantes em cada época, realidade agravada com o advento da economia capitalista de mercado, que conduziu a democracia a uma profunda crise. Como resposta à crise das instituições políticas tradicionais, tem surgido uma série de revoluções e lutas de resistência popular no continente latinoamericano, com especial força nos países andinos, cuja experiência mais notável, a boliviana com seu pluralismo jurídico e sua democracia comunitária, será analisada neste artigo. A experiência boliviana diminui a histórica distância entre os âmbitos formal e material da democracia, assimetria esta que a consolidou,desde sua origem, como um instrumento ideológico de conformação social. Ou seja, a democracia pode ser reinventada a partir dos direitos plurais e comunitários advindos do novo constitucionalismo dos Andes Débora Ferrazzo Graduada em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) em 2011. Mestranda no curso de pós-graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do núcleo de estudos e práticas emancipatórias (NEPE). Bolsista de mestrado da CAPES. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 201 INTRODUÇÃO As experiências democráticas desenvolvidas no Ocidente têm seu marco inicial na democracia direta ateniense dos séculos VI a IV a.C. Tratou-se de uma bem sucedida experiência de democracia, com inúmeras assembleias e deliberações públicas, todavia com espaços reservados para as elites da época, afinal, Atenas era então uma sociedade elitista e escravista, o que significa dizer que sua democracia, embora significativa, não era plena, pois era definida pelos acordos de interesses dominantes. Nos séculos seguintes, o aspecto mais promissor da democracia ateniense, qual seja, a participação direta dos cidadãos, foi sendo gradualmente substituído pela forma representativa até culminar na contemporaneidade, em que a democracia representativa se transformasse no grande instrumento de exercício do poder político dos Estados Ocidentais. Junto com este intenso desenvolvimento, adveio também a crise das mediações democráticas, que confrontadas com a ineficácia e crescente descrédito das políticas públicas, dos partidos políticos e instituições públicas em geral, dá espaço para práticas políticas insurgentes e criativas, potencialmente capazes de revolucionar desde uma perspectiva popular e francamente democrática, grandes paradigmas políticos eurocêntricos, como Estado, monismo jurídico e a própria democracia. Tal caso pode ser vislumbrado na experiência boliviana, que adiante será analisada. Investigar e buscar compreender os eventos e transformações políticas que Abstract Democracy has been historically developed as a central element of a system seeking legitimacy of dominant interests within several periods of Western history. The advent of the capitalist market economy aggravated this state of inequality and led democracy to a much deeper crisis. In response to the crisis of traditional political institutions various popular revolutions and resistance struggles have emerged across the Latin American continent, especially in the so called “Andeans Countries”. One of the most notable experiences is the case of Bolivia, where an innovative legal system based on legal pluralism and communitarian democracy has been instituted. This article will examine the Bolivian experience and its attempt to diminish the historical distance between the formal and the material spheres of democracy. This distance not only created but contributed to consolidate social asymmetry as an ideological device to preserve an unjust social order. Bolivia's unique constitutional experience demonstrates that democracy can be reinvented from the perspective of legal pluralism and communitarian democracy, which set up the core of the new Andean Constitutionalism. Keywords: democracy; communitarian democracy; legal pluralism. um instrumento ideológico de conformação social. Ou seja, a democracia pode ser reinventada a partir dos direitos plurais e comunitários advindos do novo constitucionalismo dos Andes. Palavras-chave: democracia; democracia comunitária; pluralismo jurídico. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 202 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... 1. ORIGEM DA DEMOCRACIA OCIDENTAL: PARA UMA REVISÃO CRÍTICA DA EXPERIÊNCIA ATENIENSE As experiências democráticas ocidentais têm sua inspiração na democracia grega, inaugurada séculos antes de Cristo e, desde então, difundida no tempo e espaço, inclusive pelo legado teórico de filósofos como Aristóteles. Claude Mossé (2008, p.29-33) informa que no século IV a.C., Sólon era tido como o pai da democracia dos ancestrais, cujo modelo de sistema político, junto às leis estabelecidas por Clístenes, deveriam ser a orientação para a Constituição de Atenas, na ocasião de sua revisão. Para Mossé, o conhecimento do sistema político anterior a Sólon é impreciso, dada a ausência de documentos contemporâneos aos fatos, sendo o sistema conhecido somente pelas reconstituições posteriores e dados arqueológicos, os quais ensejam interpretações muitas vezes contraditórias. O que informa a obra aristotélica é que, ao tempo de Sólon, havia uma atmosfera de conflito entre ricos e pobres. Aposse da terra era exclusiva dos ricos e os pobres somente poderiam cultivar a terra, devendo para tanto, entregar cinco sextos dos frutos do cultivo ao proprietário. Na obra A Constituição dos Atenienses surge, vêm se desenvolvendo nos Estados latino-americanos, tal como ocorre na Bolívia assume especial relevância no debate contemporâneo sobre a democracia, uma instituição tão importante para a ciência política e também para a teoria do direito, mas que enfrenta severa crise nas suas formas tradicionais – democracia participativa e democracia representativa. Este processo que vem se desenvolvendo a partir das experiências dos países andinos permite relacionar diversas concepções teóricas aos fenômenos concretos destes países. Ademais, trata-se de um processo inacabado. É a história acontecendo. Buscar-se-á, portanto, demonstrar como a experiência política boliviana significa um importante avanço na democratização de fato do país, uma democratização mais abrangente e concreta que as outras experiências já ocorridas na história do Ocidente. É assim que a primeira parte da análise fará uma revisão crítica sobre a experiência ateniense, buscando demostrar que, embora tenha sido uma democracia direta, era um sistema profundamente excludente e fruto de pensamentos dominantes numa sociedade elitista. A segunda parte discutirá o impacto do capitalismo liberal na democracia, deslocando os espaços de participação para o cenário de representação, consolidando, na democracia eurocêntrica, o caráter burguês individualista conveniente à industrialização e à expansão dos mercados, e contribuindo, na dissimulação das injustiças sociais para mergulhar a democracia em profunda crise. A terceira parte discute a insurgência popular, em especial indígena, a partir do caso boliviano nas suas lutas constituinte pela satisfação das necessidades fundamentais do povo, que engendraram um quadro de empoderamento popular que vem revolucionando “desde baixo” os pressupostos políticos vigentes no continente, inclusive com a inserção de uma terceira - e inédita - forma de democracia: a democracia comunitária. Finalmente, a quarta parte discutirá o papel do pluralismo jurídico, constitucionalmente previsto naquele ordenamento, enquanto elemento de coesão e harmonização jurídica da inusitada democratização que o país vem consolidando. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 203 Como em toda parte, as classes populares entraram em luta com uma oligarquia opressora. Camponeses condenados por suas dívidas à escravidão, comerciantes indignados a quem a própria riqueza não permitiu esperar a obtenção de direitos políticos, todos se concentraram para exigir a publicação das leis que só eram conhecidas dos Eupátridas (GLOTZ, 1980, p. 100. Grifo no original). então, o termo hectêmoros, cuja tradução é controversa, mas, razoavelmente aceita como “homens da sexta parte”(ARISTÓTELES, 2003, p. 22). Com tributos tão pesados, o endividamento crescia e junto com ele a ameaça de escravidão por dívidas. Diante desta atmosfera conflituosa que se estabeleceu no campo político, Sólon pressentiu a rebelião camponesa que o impeliria à tirania, papel que se recusava a assumir (MOSSÉ, 1979, p. 20-21) e cujo risco o motivou a promover a série de reformas que o inseriu na História. Para conter a rebelião, a medida sabidamente eficaz seria a distribuição das terras (MOSSÉ, 1985, p.18-19), medida que certamente provocaria fortes reações dentre a classe proprietária ateniense. Diante disto, a solução intermediária foi que “[...] embora ele tenha recusado a partilha igualitária das terras que teria criado uma sociedade igualitária, Sólon concedia a igualdade jurídica, uma vez que as leis por ele promulgadas seriam iguais para todos” (MOSSÉ, 2008 p. 33-34). Neste contexto conflituoso, cerca de seis séculos antes de Cristo, surge o instituto da igualdade formal, que dissimula conjunturas de profunda desigualdade e injustiça, porém, mostra-se hábil para conter as forças insurgentes de oposição à exploração. E é nesta medida de instituição da igualdade formal que se situam as bases da democracia ocidental. Outra medida de Sólon foi a divisão dos atenienses em quatro classes sociais, considerando a renda de cada pessoa (os pentacosiomedimnos, hipeus, zeugitas e tetes respectivamente), das quais, somente as três primeiras poderiam ascender às magistraturas. A última classe poderia somente participar das assembleias e tribunais como jurados. O conjunto das reformas de Sólon se tornam injustas ao fim, pois embora todos passem a dever igual obediência à lei, os privilégios de classes e a rigidez da estrutura social que transmitia tais privilégios pelo nascimento se mantiveram (MOSSÉ, 2008 p. 34-36). Assim, é Clístenes quem, mais tarde, divide os atenienses em dez tribos, instituindo diversas “demos” que substituíram o patronímico (nome do pai) pelo demótico (nome do demos), ou seja, alterava a estrutura que perpetuava o legado familiar dos privilégios por uma na qual não se pudesse identificar os atenienses por sua ascendência e esta mudança tornaria a Constituiçao de Atenas bem mais favorável ao povo, aproximando-a da democracia (MOSSÉ, 2008, p.36-39). A partir destas experiências, de Sólon e Clístenes, Péricles viria a apresentar a sua proposta de regime político, a qual se fundou em três princípios: a soberania do demos, princípio do qual deriva a palavra democracia (que se compõe de duas palavras: demos - povo - ekratein - exercício da soberania); a igualdade dos cidadãos e a pertença à comunidade cívica (MOSSÉ, 2008, p. 69-85). Apesar de tais princípios, ainda subsistiram a distinção entre livres e não livres (os escravos ainda existiam em suas diversas classes e atribuições), cidadãos e não cidadãos (onde os cidadãos pobres confundiam-se com os não cidadãos), ricos e pobres, bem como a marginalização social e política das mulheres, que para além das funções de procriação ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 204 [...] reconhece-se que a “questão democrática” tenha encontrado considerável amplitude na Atenas da época de Péricles. Todavia, seria um equivoco poupá-la de questionamentos. A existência, de um lado, de seres humanos escravizados e, de outro, de cidadãos livres, indica que, embora se tivessem verificado avanços políticos importantes (sobretudo no que se refere à condenação de atividades voltadas ao enriquecimento privado), é pouco recomendado falar de igualdade, justiça e democracia sem rigorosas contextualizações – talvez uma das grandes lições que aquela época tenha nos legado (THEIS, 2006, p. 152). e cuidado do lar, assumem, com as leis de Péricles classes de estrangeira, cidadã, escrava etc. (MOSSÉ, 2008, p.129-143). De qualquer forma, é à época de Péricles que Claude Mossé (1985, p. 38)atribui o apogeu da democracia ateniense. Neste quadro situa-se a origem da democracia que fez da experiência ateniense seu grande paradigma, uma fonte de referência viva até os dias atuais, exaltado por diversos teóricos e estadistas. Todavia, caberia aqui uma revisão um pouco mais crítica do que pode ter sido esta experiência democrática, porque O autor problematiza já no início do trabalho a impossibilidade de afirmar que a experiência grega, mesmo no tempo de Péricles, tenha sido uma experiência de democracia plena. São contradições como as que ensejam este tipo de perspectiva que serão analisadas a seguir. 1.1 ESTRUTURA SOCIOPOLÍTICA ATENIENSE Muito do que se sabe sobre a Atenas, especialmente dos séculos IV a.C. e seguintes, foi apreendido das obras de Aristóteles que, ao sistematizar descritivamente a cultura vigente e consolidar seu método analítico, recorreu, como era de costume entre os teóricos da época, às experiências antepassadas, legando assim, diversos registros históricos acerca do que ocorreu na vida social e política de seu tempo. A formação social Atenas caracterizava-se pela divisão da população em três classes: a dos cidadãos, que gozavam de todos os direitos sociais e políticos (tal condição era transmitida pelo nascimento; raramente concedida a outros); a dos estrangeiros domiciliados ou metecos,que não tinham direitos sociais ou políticos, pois embora bem acolhidos, não faziam parte da cidade e tinham de viver sob a responsabilidade de um cidadão, sob pena de enfrentar o risco de serem processados e escravizados, e a dos escravos, que em Atenas eram muito numerosos, mais inclusive que os cidadãos. Quando libertos, os escravos passavam a integrar a classe dos metecos e seu antigo amo se tornava seu patrono (AUGUSTE, 1977, p.169-170). A classe dos escravos era bastante diversificada com formas diferentes de escravidão não somente quanto à origem desta, como também quanto às funções, condições e subjetividade dos escravos. Disto decorre que diversas palavras diferentes designavam os escravos. As distinções variam quanto à espécie: por exemplo, escravo comprado ou nascido na casa (argyronetos-oikogenes), escravo marcado a ferro RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 205 No pensamento aristotélico, constata-se que o filósofo aceita, embora não considere realidade absoluta, a escravidão decorrente das diferentes aptidões dos homens. Por exemplo, há homens cuja natureza seja obedecer e outros cuja natureza seja mandar. Entre estes, a escravidão dos primeiros é aceitável. Não o é, entretanto, quando decorre da conquista em guerra (CHEVALLIER, 1982, p. 96). em brasa (stigmatias), ou peculiaridades regionais, como quando Pólux diz que os atenienses chamam seus escravos de paides (meninos) mesmo quando são mais velhos (FINLEY, 1989, p.143. Grifo no original). Aristóteles considera o escravo como um instrumento animado. É porque aos olhos do grego, a humanidade do homem não é separada de seu caráter social; e o homem é social enquanto ser político, como cidadão. Porque fora da cidade, o escravo está fora da sociedade, fora do humano. Não tem outra existência senão a de instrumento produtivo (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1989, p. 83-84). Quanto à origem, a escravidão era transmitida também pelo nascimento, bem como poderia decorrer de dívida ou da conquista de povos em guerra. Neste último caso, Chevallier (1982, p. 95) identifica na obra aristotélica, refutação à escravidão de povos vizinhos. Se para a cultura política era natural tal escravização enquanto uma das finalidades da cidade, para Aristóteles, a tarefa do legislador não se aproximaria destes objetivos, mas sim, da busca por uma boa vida e pela efetivação da felicidade aos agrupamentos humanos que constituem a cidade, da mesma forma que deve buscar a otimização das aptidões dos homens que integram as comunidades vizinhas. Se a natureza do escravo é servir, não é a mesma a do cidadão livre vencido em guerra e da mesma forma que não há bem maior que cumprir sua natureza, não existe mal maior que contrariá-la. Acerca da escravidão por dívida, pode-se dizer que “Salvo em casos excepcionais, era somente entre classes, entre rico e pobre, para colocar em termos simples e amplos, que a dívida levava à escravidão na prática” (FINLEY, 1989, p. 166). O autor demonstra a importância do empréstimo, da dívida, para originar e manter relações de escravidão e servidão. Não que todos os empréstimos se prestassem a este fim, mas muitas vezes, o empréstimo tinha de fato este escopo, o de dispor da mão de obra e, junto com ela, da própria pessoa (FINLEY, 1989, p. 166-168). Para Aristóteles, o escravo é parte do todo “senhor”. Assim, a autoridade e a obediência, seriam coisas não só úteis, como também necessárias, em razão da natureza de cada ser. A distinção entre as naturezas humanas mostra-se uma diferenciação necessária, pois a igualdade no direito de governar seria maléfica. Destacando que, para o escravo, obedecer é o que há de mais simples e a força física é o que de melhor ele pode oferecer, posto que não possui razão plena. Por outro lado, há indivíduos sem aptidão à força física, mas com aptidão à vida civil (ARISTÓTELES, 2002, p. 17-19). Assim o escravo fica excluído do espaço democrático, sendo esta exclusão bastante significativa, embora naturalizada pelo pensamento dominante à época. A função do escravo é o trabalho produtivo, suprir as necessidades de sobrevivência e tal função é inferior à atividade intelectual, especialmente filosófica, que não se ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 206 Aristóteles, em seu próprio testamento, ordenou a libertação imediata de alguns de seus próprios escravos, prevendo para a adolescência a dos filhos destes últimos, se na época fizerem jus à liberdade [...] se Aristóteles é o defensor da escravidão, não deixa de ser também o seu reformador (CHEVALLIER, 1982, p. 96). contaminava pelas necessidades práticas. Em Sánchez Vázquez (2007, p. 40-42) pode-se perceber que tal teorização foi útil à ideologia dominante, uma vez que o trabalho tinha somente valor de uso, e não valor de troca, como assumiu com o capitalismo. Isto não quer dizer que não havia divergências quanto ao tema, uma vez que “[...] na própria antiguidade grega ouvem-se vozes que discordam dessa atitude depreciativa em relação ao trabalho produtivo [...] Opiniões do gênero encontram-se, sobretudo, entre os sofistas que se pronunciam contra a escravidão” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2007, p. 42). Além disto, Platão ao reproduzir os diálogos de Sócrates, dá indícios de perspectivas diferentes acerca da natureza dos homens, senhores ou escravos, como ocorre no diálogo Fédon, no qual, ao relatar os últimos momentos da vida de Sócrates, trata da teoria das reminiscências, ou seja, das lembranças de vidas passadas que são despertas pelas experiências práticas, transformando-se em saberes. Segundo tal teoria, assinala o interlocutor Cebes “interroga-se um homem. Se as perguntas são bem conduzidas, por si mesmo ele dirá, de modo exato, como as coisas realmente são” (PLATÃO, 1991, p. 131). Isto quer dizer que não importa quem seja o interlocutor, pode chegar, desde que conduzido corretamente, às mesmas conclusões. De fato, os diálogos de Platão trazem a mostra disto no método socrático que, conduzindo todos os interlocutores somente através dos questionamentos adequados, converte o pensamento mesmo dos mais relutantes. Finalmente, quanto à escravidão, destaca-se que não somente as posições dos filósofos e sofistas, quanto a própria postura de Aristóteles foi contraditória, como se depreende do fato de que Outra exclusão significativa dos espaços democráticos se encontra na figura da mulher. Assim como a escravidão, também naturalizada pelo pensamento dominante de seu tempo. As mulheres de Atenas não participavam do exercício da cidadania. Não detinham o direito de se manifestar na Assembleia. Na democrática pólis, “[...] as mulheres atenienses tinham menos direitos à herança que as mulheres de Esparta ou Creta; em compensação, os cidadãos atenienses tinham menos liberdade para dispor de suas propriedades que suas mulheres, filhas e parentes do sexo feminino” (FINLEY, 1989, p.92). Amulher sempre vivia sob a autoridade de um homem: do pai, depois do marido e na falta deste, do filho ou de um tutor designado em testamento do marido. Permanecia sempre em casa, aparecendo em público somente em dias festivos e recebendo visitas somente de mulheres ou parentes próximos (AUGUSTE, 1977, p. 204). Ante o pensamento dominante ateniense, se o filho (homem) era um ser incompleto, a mulher era um ser perpetuamente incapaz, tal como se depreende da obra aristotélica: O homem livre manda no escravo de modo diverso daquele do marido na mulher, do pai no filho. Os elementos da alma estão em cada um desses seres, porém em graus diversos. O escravo é inteiramente RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 207 Assim, para investigar os limites e sucessos da democracia grega, serão adotados dois critérios: um subjetivo, onde serão considerados os atores habilitados a participar dos espaços democráticos e outro objetivo, onde serão considerados os espaços em si e suas competências decisórias. No âmbito subjetivo, já foram constatadas duas significativas exclusões: aos escravos e mulheres o óbice à participação dos espaços democráticos era intransponível. De fato, tal situação era naturalizada pela cultura vigente à época, todavia, não se pode olvidar que tal cultura era produto não de um consenso, mas sim, de um pensamento dominante que encontrava divergências, como já visto. Ademocracia, portanto, refletia também interesses dominantes. É que “[...] para os marxistas, o mundo antigo constitui uma sociedade de classes que pode ser definida em sua forma típica como modo de produção escravista” (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1989, p. 66-67). Analisando a perspectiva, o autor defende que nem todas as sociedades clássicas antigas podem ser consideradas escravagistas – e para Chevallier (1982, p.97) de fato nem toda a Atenas o era, uma vez que a massa pobre, enquanto maioria como em quase todas as democracias, como sublinha o autor, não tinha, condições de comprar e sustentar escravos. O autor destaca formas distintas de escravidão, em âmbitos diferentes da cidade e recorda que o próprio Marx frisou o papel da escravidão no início e fim das formas de propriedade. Aliás, recorrendo às lições do próprio Marx, Finley destaca que a luta de classe se marcava por outros tipos de contradições. No caso de Atenas, reinava a política e era neste contexto, o da vida política, que a luta de classe se desenvolveu, na medida em que destituído da faculdade de querer; a mulher possui-a, porém fraca; a do filho não é completa (ARISTÓTELES, 2002, p. 33). Ocorre que, não somente quanto à condição do escravo como também quanto à condição da mulher na sociedade, a exclusão da vida política e social, bem como a subordinação de ambos aos cidadãos (homens livres) não era um consenso absoluto. Também em Platão, precursor de Aristóteles, depreende-se uma perspectiva diferenciada acerca da “incapacidade” das mulheres, e de forma ainda mais explícita que no caso da escravidão. Sobre as mulheres, para o filósofo Estas não devem apenas ser mulheres no seu Estado, mas contribuir também para a função de “guardiões” que os homens têm. Platão acredita na capacidade da mulher para cooperar criadoramente na vida da comunidade, mas não é onde parece que devia buscá-la, na família, que ele procura esta cooperação. Não partilha da opinião dominante no seu país, segundo a qual a mulher é destinada pela natureza exclusivamente a conceber e a criar filhos e a governar a casa. É certo que reconhece que a mulher é mais fraca que o homem, mas não crê que isto seja obstáculo para ela participar nas funções e nos deveres de “guardiões”. E se participa da profissão do homem, é indubitável que precisa da mesma alimentação e da mesma cultura que ele. Por conseguinte, a mulher da classe dominante deverá ser educada na música e na ginástica, tal como o homem, e como ele, se deverá formar para a guerra (JAEGER, 1995, p. 814-815. Sem grifo no original). a contradição principal opõe a princípio, na origem da cidade, uma ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 208 Sobre o quórum das assembleias, Auguste (1977, p. 171) destaca em sua obra que “um grande número de cidadãos abstinha-se de comparecer”, apesar de serem oferecidas compensações pela participação, tais como o pagamento de uma indenização a quem participasse das assembleias. Finley também descreve a crise de representatividade, questionando o “quorum” das assembleias, especialmente considerando, por exemplo, que os habitantes de campo dificilmente se deslocariam para os eventos. Questiona ainda a oscilação nas decisões, apresentando alguns exemplos onde deliberações opostas foram tomadas em curtos espaços de tempo, como, de um dia para o outro. As decisões de cada membro da assembleia, claro, não eram corporativistas como as atuais, pois estes membros não eram passíveis de punição ou recompensa por seus votos. Entretanto, eram marcadas por suas experiências pessoais, seus afetos e desafetos (FINLEY, 1988, p. 67-72). Com tantas contradições, o autor conclui que “[...] tanto antigamente como agora, a política era um modo de vida para muito poucos membros da comunidade.” (FINLEY, 1989, p.87). O autor ainda assinala que se a história do pensamento político destaca a incompatibilidade entre liberdade e igualdade, na Atenas clássica, muitos Quanto à massa pobre, os camponeses recordados por Chevallier, que não eram escravos, porém, não possuíam seus próprios escravos, estes camponeses igualmente não participavam dos espaços de deliberação política. Contudo, a participação nas funções públicas em geral é o elemento que define a cidadania, já que é na condição de membro da assembleia do povo que consiste a autoridade suprema numa democracia (CHEVALLIER, 1982, p. 106). Quanto ao âmbito objetivo da democracia ateniense, pode ser definida através das lições deFinley (1988, p. 65-66), segundo o qual, há quatro pontos que a caracterizam: a) o fato de ser uma democracia direta, b) com espaço restrito, c) cujo ápice era a assembleia, onde assuntos eram deliberados com poucas limitações e d) consistindo num sistema onde se lidava com comportamento de massa. Uma vez já analisadas algumas exclusões subjetivas da cidadania, é importante saber quem formava as assembleias:“Todo cidadão do sexo masculino, quando completava 18 anos, automaticamente se qualificava para comparecer à Assembleia, e conservava tal privilégio até sua morte” (FINLEY, 1988, p. 67). O autor ainda destaca que, eventualmente, o homem poderia perder esta qualificação, entretanto, cerca de 35 a 40 mil eram os homens qualificados no tempo de Péricles, conforme informa Finley. classe de proprietários fundiários, do tipo eupátridas, vivendo na cidade, controlando o Estado, assumindo a função militar, aos cultivadores aldeões que constituem o demos rural (VERNANT; VIDALNAQUET, 1989, p. 76. Grifo no original). As mulheres estavam excluídas, bem como o considerável número de não-cidadãos, homens livres, quase todos gregos, mas que não podiam participar da esfera política; e também os escravos, que eram bem mais numerosos do que os não-cidadãos. Todos os números são estimativas, mas não seria muito incorreto supor que os cidadãos adultos do sexo masculino representavam um sexto da população total (FINLEY, 1988, p. 67. Sem grifo no original). RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 209 gregos localizavam esta incompatibilidade entre a liberdade e a dgregos localizavam esta incompatibilidade entre a liberdade e a desigualdade. Com isto, tentavam produzir uma igualdade artificial, especialmente no campo político, mas dificilmente no âmbito das relações privadas. Destaca, por exemplo, as dificuldades em pensar igualdade nas relações entre os indivíduos, sem pensar na abolição ou nivelamento da riqueza (FINLEY, 1989, p. 91). Finalmente, para compreender as limitações da democracia grega, pode ser oportuno trazer ao debate outro elemento incidente tanto sobre o âmbito subjetivo, quanto ao objetivo. Tal elemento diz respeito à representação de mundo dos atenienses, que viam na ordem cósmica uma sucessão pré-determinada e inescusável de fatos e circunstâncias, sobre as quais não era impossível interferir e faziam da existência de cada pessoa um fato dado e inalterável. Com isto, a rigidez social era muito intensa. Aristóteles sistematiza esta imobilidade na natureza, essência ou vocação de cada pessoa. Anatureza que faz do escravo um ser servil e nada mais, e lhe destina a servidão como o bem maior. Para a sociedade ateniense, existem os oráculos, a tragédia grega. O “oráculo” é o porta-voz dos deuses e sua palavra é certa. Foi tal convicção que levou Sócrates à crise de confrontar-se com sua própria sabedoria, apesar da certeza deste de que “nada sabia”, quando seu amigo, Querefonte lhe informou do pronunciamento do Oráculo de Delfos, de que seria o filósofo o homem mais sábio de Atenas. Era a tragédia grega que conformava o imaginário do ateniense à inafastabilidade do destino, tal como ocorreu com Édipo que matou o pai, casou-se com a mãe e ocupou o trono de seu próprio pai, tal como previu o oráculo, apesar da consciência dos fatos e das tentativas drásticas de seus pais de evitarem o destino. Se o principal pressuposto, e mais que isto, razão de ser da democracia, é a possibilidade de modificar a realidade, melhorando-a, é oportuno questionar, qual o real sentido e alcance de uma democracia numa sociedade onde não há fé no arbítrio? Como já citado na avaliação de Theis (2006, p. 152), é fato que a democracia ateniense alcançou considerável amplitude, porém, também acerta o autor aos sugerir que não se deve poupá-la de questionamentos. Em suma, pode-se dizer que ainda que marcada por diversas limitações e contradições, se reconhece no modelo o êxito de consolidar espaços de exercício direto da democracia. Tanto que a assembleia, à época de Aristóteles, reunia-se ao menos quatro vezes dentro de um período de trinta e seis dias. Em geral, as deliberações das assembleias eram mais corriqueiras, mas eventualmente, grandes decisões, como assuntos de guerra, eram confiadas a este espaço (FINLEY, 1988, p. 72-74). Infelizmente, estas práticas foram justamente as mais relegadas na evolução histórica da democracia. A democracia participativa foi gradualmente sendo substituída pela democracia representativa, que por sua vez, sofrendo a interferência do capitalismo, foi mergulhando numa crise cada vez mais grave profunda. Em suma, percebe-se que a democracia ateniense, mesmo sendo formalmente direta, era uma democracia para elites, em uma sociedade elitista. Uma sociedade escravagista. Assim, ainda que apresentando procedimentos promissores, do ponto de vista da democracia participativa, era materialmente controversa, uma vez que excluía de seus espaços deliberativos a expressiva maioria da sociedade. Da mesma forma, as experiências democráticas que se desenvolveram no Ocidente nos séculos seguintes, apresentaram-se marcadas por contradições similares, especialmente contradições baseadas na exclusão direta ou indireta de parcelas da sociedade.Ou seja: a democracia, no ocidente, nunca se efetivou concretamente tal como se projetou formalmente. Se os projetos democráticos se ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 210 apresentaram ao longo da história da humanidade como “o governo do povo” na prática, estiveram maculados pelo predomínio dos interesses dominantes, em geral dos proprietários, dos senhores, dos ricos. 2. DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E CRISE DIANTE O CAPITALISMO Após a experiência ateniense de democracia direta, o caminho trilhado no Ocidente dirigiu-se cada vez mais à consolidação da democracia representativa. Segundo Saldanha (1987, p. 59), “A noção de democracia, herdada da Grécia como tantas outras, hibernou no medievo e retornou à cena, após algumas utilizações episódicas, com Montesquieu e Rousseau”. Wolkmer (2003, p. 89-91) destaca que a discussão e a teorização da democracia representativa ganhou força no ocidente durante os séculos XVIII e XIX, especialmente pela polarização de debate entre Rousseau, que defendeu com afinco a democracia direta, e Benjamin Constant, que a criticava desde as experiências dos antigos. E ao final do século XVIII, prossegue Wolkmer, os teóricos deram-se conta da inviabilidade da democracia participativa para a“moderna sociedade burguesa”, passando a advogar por um sistema representativo ao mesmo tempo em que alertavam os eleitores para a necessidade de manter constante fiscalização sobre os representantes, evitando assim os abusos. E desta forma, se fortalece uma nova lógica política: “[...] diferentemente da liberdade antiga que implicava em participação direta dos cidadãos, a liberdade dos modernos necessitaria de uma organização diferente. Daí o avanço na direção de uma democracia representativa” (WOLKMER, 2003, p. 91). Esta “moderna sociedade burguesa” precisava de um “Estado liberal”, com democracia especialmente representativa, que foi se construindo a partir das revoluções burguesas do século XVIII. No contexto que precedeu tais revoluções, o Estado absoluto conflitava com a nova racionalidade em desenvolvimento. Assim, contestando os pressupostos absolutistas, tais como a hereditariedade, começam as revoluções burguesas: a primeira em 1688, Revolução Inglesa, depois em 1776, a guerra por independência nos Estados Unidos da América e em 1791 a Revolução Francesa, que implicou no evento com maior repercussão no período. Na destruição do absolutismo encontram-se os interesses materiais da burguesia, pois, ante um código social tão rigoroso, não poderiam prosperar a vida comercial e a industrialização (SALDANHA, 1987, p. 25-31).Inclusive o rigor deste código social e do próprio Estado absolutista excluía do exercício do poder e de quaisquer possibilidades de ascensão política toda a classe burguesa, pois esta não integrava nem o clero, nem a nobreza. De fato, modificar este quadro social só seria possível mediante as vias revolucionárias que acabaram sendo utilizadas. Da consolidação, a partir das revoluções burguesas, deste Estado liberal e dos debates acerca da democracia, emerge uma nova cultura acerca da democracia e do liberalismo que vão definir os paradigmas políticos da modernidade: O liberalismo aceitaria que o povo não governasse (assim na França, quando no início da revolução se admitia a permanência da monarquia), contanto que o poder se dividisse: era a idéia básica em Montesquieu. E contanto, também, que se entendesse o poder do Estado como intrinsicamente limitado. Enquanto a democracia aceita o RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 211 1 […] las formalidades aparentes de la democracia se independizan de los contenidos concretos sobre los cuales se erigen y aparecen como si por sí solas fuesen suficientes para convertir en democrático un régimen que no los es. E assim, esta nova ordem política com suas mediações, notadamente o Estado e a democracia representativa, vai se delineando para atender aos interesses da classe individualista, para favorecer a expansão do poder econômico e do mercado. É certo que neste percurso histórico, diversas dimensões de exclusão subjetiva foram sendo superadas, notadamente, a exclusão da mulher. O problema é que, juntamente a estes avanços, a democracia ocidental começou a padecer de modo cada vez mais crônico de outro mal: a identificação entre democracia e voto, que reduziu significativamente os espaços de construção democrática. Sob esta forma, um vício mais profundo e perigoso para a democracia plena: a identificação entre liberdade individual e liberdade de mercado, como fruto do sistema de economia capitalista. Ocorre que, no início do século XXI, visualiza-se de modo contundente a crise da democracia representativa. Uma crise que, segundo Wolkmer (2003, p. 91-92) vem acompanhada por uma crise maior, que se constata na perda de confiança nos partidos políticos e nos poderes do Estado, bem como, sua própria eficácia institucional. Esta crise o autor relaciona, em primeiro momento, e no caso de realidades periféricas como as latino-americanas, a uma falácia representativa que na verdade oculta uma delegação manipulada de poder. Neste sentido, Atílio Boron (2009, p. 20-23) explica que a democracia se configura em dois âmbitos: o da essência, que consiste no governo da maioria em favor dos mais pobres, e o da aparência, que consiste nas eleições diretas, sufrágio universal, império do direito etc. A aparência pode, ou não, corresponder à essência. Em geral, na América Latina, não corresponde, pois,“[...] as formalidades aparentes da democracia se tornam independentes de seus conteúdos concretos sobre os quais se elevam e aparecem como se por si só fossem suficientes para converter em democrático um regime que não o é” (BORON, 2009, p. 29-30. Tradução livre dos 1 autores ). É que as sociedades capitalistas elevam a desumanização a níveis inimagináveis, convertendo tudo em mercadoria, inclusive, o que se chama hoje, democracia. Eis aí o problema: ao transformar os elementos da vida em mercadorias, cria-se uma ficção que separa os objetos de seus criadores e com isto, transforma em “agentes da vida social” tais mercadorias, que na verdade não passam de expressão das relações sociais subjacentes. O fato é que, os sistemas políticos chamados democráticos são, como avalia o autor, profundamente determinados pelos interesses de mercado, ou seja, das elites econômicas dominantes. “O projeto das classes dominantes é a democratização transnacional que está feita contra a democracia revolucionária, que implicou e implica o poder da maioria decidir sobre as questões econômicas e não só sobre as políticas” (CASANOVA, 1995, p. 146. Grifo no original). Estado e até o valoriza ou pode valorizá-lo como instrumento de realização de um governo popular, o liberalismo desconfia do Estado e postula sua redução ao mínimo possível (SALDANHA, 1987, p. 37). ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 212 Com isto se percebe que, por baixo da democracia contemporânea, assim como o era na democracia ateniense, subsistem interesses dominantes que influenciam ou mesmo determinam as “deliberações públicas”. Em Atenas, pela exclusão direta de significativa parcela da sociedade dos seus espaços de participação, que são postos a serviço do mercado internacional. Na democracia ocidental contemporânea, especialmente latino-americana, pela exclusão indireta de milhões de pessoas que, apesar de terem o direito ao voto, são excluídas da formação dos consensos democráticos por enfrentar o flagelo da miséria, da doença e outros sintomas da economia de mercado. Todavia, esta forma “indireta” de exclusão não toma proporções maiores, pois a aparência da democracia, no sufrágio universal, é mantida. Na cultura política ocidental, a grande instituição responsável pela manutenção do sistema democrático, e na dimensão da vida concreta, pela administração de suas contradições, é o Estado. Nele, se “unificam todos os consensos”. É que este grande consenso é pressuposto indispensável para a legitimação de uma instituição unificadora dos interesses sociais. O problema é que, conforme alerta Enrique Dussel (2007, p. 54-55), os consensos por unanimidade são empiricamente impossíveis, especialmente, nas grandes comunidades. Assim, para o autor a solução legítima para atenuar os efeitos desta exclusão social nos consensos seria a consideração responsável de todas as reivindicações de todos os grupos, e, na medida do possível, seu atendimento. Como isto não ocorre, acentua-se progressivamente a crise na democracia representativa, especialmente, diante do fortalecimento dos movimentos populares latino-americanos, que não somente intensificam a crise, como também a evidenciam de modo cada vez mais contundente. Diante da crise da democracia representativa e da degeneração das relações da vida cotidiana, uma das direções possíveis para superar a exclusão e a marginalidade advém do poder de pressão dos novos sujeitos sociais, agentes capazes de instaurar uma política diferenciada e criativa (WOLKMER, 2003, p. 95), tal como será observado adiante neste texto. Nesta crise, e considerando a negação de direitos e manipulação de consensos, o retorno aos sujeitos coletivos de direito assume grande importância. É que, como assinala Dussel (2007), nenhum poder é maior que o poder do povo, que por sua vez nunca pode ser tomado, mas tão somente enfraquecido. Para enfraquecer o poder do povo, é necessário destruir seus consensos. Tal empreitada, por certo, é muito mais viável em contextos de individualismo e competitividade, que são valores integrados ao modo de produção capitalista. Assim, na reivindicação de direitos apresentadas pelos agrupamentos sociais, especialmente na forma dos movimentos populares, emerge a possibilidade de ampliação da democracia para além de sua aparência, também em sua essência. Assim, os novos sujeitos diferenciam-se do sujeito individual, da tradição burguesa liberal, uma tradição que relega o coletivo. Contrariando o pensamento dominante, desta tradição liberal burguesa do capitalismo, os novos sujeitos coletivos vão ocupando os espaços do sujeito individual e neste processo, a comunidade assume expressiva relevância. Ao se tornar espaço privilegiado dentro das instituições democráticas, a comunidade impõe a descentralização do poder político pela “participação de base”, já que fica cada vez mais evidente a crise das instituições políticas (WOLKMER, 2003, p. 95-98) Trata-se da afirmação de uma cidadania que não é mais “regulada” nem RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 213 Neste processo de franca democratização, é importante reconhecer que, na democracia liberal burguesa, os consensos que se formam na chamada “comunidade de comunicação real”, como informa Wolkmer (2001, p 267), excluem o “outro” do mundo periférico, este outro que deveria fundar as prioridades democráticas e que acaba sendo ignorado e silenciado, já que não parte das mínimas condições necessárias de subsistência e manutenção da vida para assim, integrar a consensualidade discursiva dos debates democráticos. No mesmo sentido, é “concessão” das elites ou do Estado. Rompe-se com o conceito liberal burguês de cidadania (o indivíduo como titular de direitos eleitorais ou como aquisição de direitos legalmente reconhecidos) para configurá-la, criticamente, como conquista, construção, exercício cotidiano e prática social (WOLKMER, 2003, p. 98). Esse outro ao qual nos referimos está sempre pressuposto na comunidade de comunicação, mas também sempre excluído na comunidade real e que não argumenta efetivamente quando da produção dos consensos - fato que corre também nas estruturas do capitalismo periférico -; é o explorado, o dominado, o pobre ou é a vítima não intencional do sistema (LUDWIG, 2006, p. 139. Grifo no original). Ludwig (2006, p. 140) prossegue assinalando que desta forma, este “outro” sofre os efeitos de um consenso do qual não fez parte. Sua condição fática de incomunicabilidade o faz excluído, fazendo dos consensos democráticos, na verdade, consensos de dominação e exclusão, já que não prepondera a argumentação mais pertinente, mas sim, o silêncio histórico, político, ideológico, jurídico etc. das divergentes, isto desde o “escravo no escravismo, do servo no feudalismo, do trabalhador assalariado no capitalismo, do negro no racismo, geopoliticamente a periferia em relação ao centro, etc.” (LUDWIG, 2006, p. 140). A estes acrescentamos explicitamente os escravos, estrangeiros, povos conquistados, mulheres, camponeses, artesãos, todos os trabalhadores da Atenas de Péricles, milenarmente excluídos na tradição democrática ocidental, como um legado que se transmite de uma geração a outra sem que se denuncie a prevalência de interesses dominantes em detrimento das imensas massas populares e à custa de seu sofrimento, miséria e exclusão. O povo sempre foi, nesse mundo nosso, uma mera força de trabalho, um meio de produção, primeiro escravo; depois assalariado; sempre avassalado. Suas aspirações, desejos e interesses nunca entraram na preocupação dos formuladores dos projetos nacionais, que só têm olho para a prosperidade dos ricos (RIBEIRO, 2010, p. 59-60). Cientes destes limites, por senti-los violentamente nas privações cotidianas, os povos de diversos Estados, em especial Estados latino-americanos como Bolívia, Equador e Venezuela, têm se insurgido contra as mediações burguesas do poder. Têm se insurgido contra o Estado que se mostra ineficaz ao implementar as políticas públicas, contra os partidos políticos que cada vez mais se distanciam do povo, contra a democracia que não é capaz de incluir efetivamente os pobres, os analfabetos, os insurgentes, os divergentes, as mulheres, os negros, os indígenas... e assim a própria ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 214 democracia, enquanto mecanismo de legitimação destas instituições, não se mostra mais capaz de cumprir seu papel. 3. A EXPERIÊNCIA BOLIVIANA E REDEFINIÇÃO FORMAL E MATERIAL DA DEMOCRACIA A crise da democracia representativa e o empoderamento que emana da tomada de consciência pelos povos latino-americanos criam demanda para uma nova racionalidade política. Esta nova racionalidade não pode partir da inspiração da democracia grega que excluía expressiva parte de sua sociedade e que naturalizava a escravidão, assim como diversas outras formas de exclusão dos espaços democráticos; também não pode partir dos pressupostos da democracia burguesa, que exclui de seus espaços e por razões econômicas parte significativa da população; estas democracias já não servem porque seus efeitos negativos não são mais suportados pelos atores revolucionários dos tempos atuais, nas sociedades latino-americanas. Não se trata de uma revolução burguesa, tais como as que ocorreram na Europa do século XVIII. Aqui, os atores revolucionários são os trabalhadores, os indígenas, as mulheres, os negros e todos aqueles que sofrem as diversas formas de exclusão derivadas do sistema capitalista e de sua democracia liberal burguesa. É assim que, conforme o que se expôs até o momento, pode-se vislumbrar uma nova democracia, a partir da experiência política que vem se desenvolvendo na Bolívia. Depois de uma série de lutas de insurgência popular no país, inaugurou-se um novo paradigma político, até então não imaginado nos limites da racionalidade burguesa eurocêntrica: trata-se da democracia comunitária, fundada num constitucionalismo pluralista, ambos explicitamente previstos na nova Carta Política do país e materializada nas práticas concretas deste e de outros países andinos que estão vivenciando este constitucionalismo pluralista, como ocorre também no Equador. Esta nova democracia, comunitária e estreitamente ligada aos interesses populares opõe-se drasticamente às democracias “importadas” no século XIX para os Estados latino-americanos. Estas democracias, segundo entendimento de Weffort (1992, p. 85)iniciam-se com a “Revolução dos Cravos” nos anos 1970 em Portugal, passam pelo Sul da Europa na mesma década e chegam à América Latina nos anos 1980, sendo que sua condição comum é a derrubada de ditaduras e que consistem em construções incapazes de superar totalmente a tradição autoritária de seu passado nas conjunturas de transição política.No mesmo sentido, leciona Atílio Boron (2009, p.27) que os regimes apressadamente denominados democracias latino-americanas, são na verdade “oligarquias” e a denominação “democracia” não decorre do conteúdo dos regimes políticos, mas sim do fato de serem sucessão às ditaduras experimentadas no continente. Importante destacar que o problema das democracias latino-americanas não inicia-se com a transição pós-ditaduras. Voltando até o século XIX, ao período póscolonial onde ocorreram as lutas por independência nas colônias do continente, Chaunu (19--, p. 87-88), assinala que as inúmeras Constituições que se sucederam nos seus respectivos Estados nada mais foram que cópias do modelo francês, com as mesmas instituições, separação de poderes e demais dispositivos, inclusive os modelos democráticos de sufrágio, com o agravante das estruturas constitucionais não encontrarem sólida base nas estruturas sociais, que continuaram as mesmas do RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 215 período colonial. A“democracia transplantada” da Europa para a América Latina, não era de fato, uma democracia concebida para as comunidades autóctones. Era a democracia liberal burguesa branca, concebida para as elites estrangeiras e para elites nacionais, de modo que, sob a independência formal dos Estados, permaneciam as estruturas coloniais. As lutas por independência do século XIX não foram capazes de superar o forte domínio colonial. De fato, segundo o peruano Aníbal Quijano (1992), o caso mais extremo da colonização europeia é o latino-americano, que suprimiu ou subordinou violentamente as diversas formas de expressões no continente.E desde então, o modo de poder que coloniza a América Latina segue a lógica do sistema capitalista (QUIJANO, 2007). Tanto é assim, que ao final do século XX Quijano (2000) denunciava que as vendas da General Motors na América Latina concentraram mais riqueza que a soma do Produto Interno Bruto da Guatemala, El Salvador, Honduras, Costa Rica, Nicarágua, Panamá, Equador, Perú, Bolívia, Paraguaie Uruguai (168 bilhões de dólares daquela, contra 159 bilhões destes). Neste contexto de alta rentabilidade para as grandes multinacionais e miséria para a população em geral, fica claro que o capitalismo se associou às diversas formas de Estado ao longo dos últimos séculos, tornando-se o que Quijano (2000) chama de “modernos Estados oligárquicos dependentes”. No mesmo período em que o autor apresentava estas reflexões, a Bolívia era palco de um intenso conflito político, protagonizado pelas classes populares contra a exploração econômica. Analisando esta conjuntura e seus efeitos na ordem política interna, as reflexões críticas opostas à democracia ocidental clássica e contemporaneamente capitalista ficarão mais claras. Antes, todavia, cabe um justo reconhecimento à predição de Darcy Ribeiro acerca da eclosão dos movimentos populares na América Latina. Em 1976, Darcy Ribeiro publicava no México um texto que, revisto em 1979, passou a integrar a obra intitulada América Latina: A Pátria Grande (TONELLI, 2011). Na obra, republicada no ano de 2010, o autor reflete sobre a unidade continental da América Latina, contraditória com sua estrutura sociopolítica fragmentada e sua ausência de coexistência ativa e interatuante. Realmente, a unidade geográfica não gerou unificação entre as nações e o autor atribui isto ao fato de que, devido às implantações coloniais, surgiram sociedades que coexistiram sem conviver, preferindo relacionar-se diretamente com suas metrópoles que com seus países vizinhos (RIBEIRO, 2010, p. 23). Prosseguindo sua análise, com quase trinta anos de antecedência, Darcy Ribeiro descreveu a cena política que adiante será ilustrada: [...] a presença indígena é notória na Guatemala e no altiplano andino, onde é majoritária, e no México, onde os índios se contam aos milhões e predominam em certas regiões. Nesses casos é tão grande a massa de sobreviventes da população indígena original que se integrou às sociedades nacionais com um campesinato etnicamente diferenciado, que seu destino é se reconstruírem amanhã como povos autônomos. Isso significa que países como a Guatemala, a Bolívia, o Peru e o Equador e áreas extensas de outros como o México e a Colômbia estarão sujeitos, nos próximos anos, a profundas convulsões sociais de caráter étnico que redefinirão aqueles quadros nacionais ou os reestruturarão como federações de povos autônomos (RIBEIRO, 2010, p. 26. Sem grifo no original). ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. Delineiam-se assim os dois polos de uma profunda tensão dialética que se instituiu na América Latina: de um lado, os interesses oligárquicos de uma elite branca capitalista que permaneceu, e ainda permanece em diversos Estados, na condição de dominante e, de outro, imensos grupos sociais, especialmente indígenas, excluídos da ordem política e democrática mantida por e para esta elite. Tendo descrito os limites da democracia oligárquica na América Latina, passa-se a analisar a especificidade dos países latino-americanos que vem implantando uma democracia comunitária, como é o caso da Bolívia, cuja conjuntura política apresenta fortes razões para se acreditar que tal tensão dialética tenha sido superada culminando, de fato, na redefinição do quadro nacional, num processo político precedido por profundas convulsões sociais, como fora previsto por Darcy Ribeiro. Houve diversos processos de luta política na Bolívia nos últimos anos, conduzindo Evo Morales à presidência e estes processos, conforme informa Proner (2013, p. 146) situam sua causa geral no esgotamento do Estado liberal, o qual historicamente negou a diversidade da sua população indígena. [...] o monismo jurídico presente na linguagem do Estado liberal criou, desde o momento da colonização, um conjunto de instituições que não conhecem outros modelos de organização e relação em sociedade para além das formas hegemônicas coloniais e neocoloniais [...] No novo formato de Estado plurinacional foi necessário considerar o pluralismo realmente presente nessas diferentes sociedades existentes na Bolívia (PRONER, 2013, p. 146-147). 3.1 HISTÓRICO DA TRANSIÇÃO POLÍTICA BOLIVIANA O início das revoltas populares que mudaram a cena política boliviana pode ser identificado no que ficou conhecido como “Guerra da Água”. De acordo com Mansur (2010), no ano de 1999 foi assinado contrato com a empresa Águas do Tunari e seu consórcio beneficiado, encabeçado pela empresa estadunidense Bechtel, vendendolhe a empresa pública que era responsável pelo serviço de abastecimento de água e privatizando todas as fontes de água no país (inclusive a água da chuva, a qual os bolivianos não poderiam recolher). Em 20 de outubro foi promulgada a norma que “legalizava” a situação. O custo da água elevou-se tanto – chegando a cem por cento de aumento, que a população precisava transferir renda da alimentação, saúde e educação para custeá-la. Diante de tamanha exploração, a população mobilizou-se em uma série de protestos, com uma morte repostada à polícia boliviana e centenas deferidos. Como medida repressiva o Estado decretou lei marcial. Cabe lembrar que, conforme leciona Dussel (2007, p. 57), quanto maior a repressão contra o povo, mais enfraquecida está a instituição (Estado) que o representa. A resistência e insurgência popular foi tamanha, que conseguiu “expulsar” a empresa do país. A empresa, por sua vez, intentou processar o governo boliviano exigindo indenização milionária, sob a alegação de que somente tinha responsabilidade sobre a administração e não sobre as tarifas. Acabou desistindo do processo diante da mobilização e dos protestos populares que decorreram de tal intento. 216 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. Este fato político ao mesmo tempo em que foi determinado pelo empoderamento popular manifesto na Guerra da Água, consistiu em um momento importante para a Bolívia, para a tomada de consciência popular. De fato, não se pode falar em democracia numa conjuntura tão espoliada quanto a que se impunha às classes populares do país, privando-as das condições mais básicas de manutenção da vida. Ocorre que Em alguns casos, diante das pressões nacionais e internacionais, populares e inclusive empresariais, ou por instruções do próprio centro de poder transnacional, os regimes “neofacistas” ou “burocráticoautoritários” reinstalam sistemas de democracia simulada e limitada (CASANOVA, 1995, p. 135). Nestes casos, o real monopólio das decisões políticas permanece nas mãos das elites econômicas, em geral, estrangeiras. Assim, no ano de 2003, o povo boliviano se viu novamente impelido à luta pela soberania nacional. Foi o momento da chamada “Guerra do Gás”. O conflito teve início com a tentativa de entregar a exploração das reservas de gás natural na Bolívia aos Estados Unidos e ao México. Enquanto muitas famílias bolivianas ainda cozinhavam à lenha, o Estado boliviano, sob o comando do empresário Gonçalo Sánchez de Lozada, privatizava o gás nacional sem atender à população. O futuro presidente do país, Evo Morales, na ocasião era dirigente indígena e foi um dos manifestantes que se destacaram na série de protestos. Em outubro de 2003, no dia 13, militares começam a disparar tiros contra a população que vinha armada somente com paus e pedras. Helicópteros disparam tiros contra os tetos das casas. Dentre as 65 pessoas que morreram, estava um menino de cinco anos, alvejado por militares. Além das mortes, outras centenas de pessoas foram feridas e desapareceram. Este momento lastimável ficou conhecido como “Massacre De Outubro”. Mas em resposta, a pressão popular aumentou e em 17 de outubro, Lozada foge do país e atende a exigência popular por sua renúncia, que é deixada no Congresso. Das diversas mobilizações populares que ocorreram na América Latina, muitas retrocederam e só fizeram trocar governos elitistas por outros semelhantes. Todavia, também deixaram a importante lição de que o povo, quandose propõe a derrubar governos reacionários, é capaz de fazê-lo, mostrando assim que não são somente os partidos políticos os sujeitos capazes de promover transições democráticas (BORON, 2009, p. 74-77). No caso boliviano, especificamente, As defecções de Lozada, em 2003, e Carlos Mesa, em 2004, são a grande amostra sobre a Guerra do Gás na Bolívia. Pelo fato de não mudarem a lei de hidrocarbonetos, vista por conveniente às petroleiras internacionais, os dois presidentes foram forçados à renúncia e abrir espaço para outra plataforma política que tivesse outra interpretação de interesse nacional (HAGE, 2008, p. 104). O saldo final, no âmbito da representação política, foi que, em cinco anos (de 2001 a 2006) a Bolívia teve cinco presidentes: Hugo BanzerSuárez – jan/1997 a ago/2001; Jorge Quiroga Ramirez – ago/2001 a ago/2002; Gonzalo Sánchez Lozada – ago/2002 a out/2003; Carlos Diego MesaGisbert – out/2003 a jun/2005 e Eduardo Rodríguez Veltzé – jun/2005 a jan/2006. Na medida em que os novos presidentes não ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 217 Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. se pautavam pelas reivindicações democráticas do país, os bolivianos saiam novamente às ruas exigindo sua renúncia. Isto de fato pode ser chamado democracia: a exigência de representantes que mandem obedecendo ao povo, aos verdadeiros consensos, orientados pelas necessidades e reivindicações da população e não aos consensos ideologicamente manipulados e simulados pelos interesses do mercado e suas elites econômicas. Finalmente, no ano de 2005, foi eleito Evo Morales, com 53,8% dos votos, depois de ter obtido 21% dos votos nas eleições presidenciais de 2002, período a partir do qual sua popularidade aumentou progressivamente. A eleição deste presidente também foi um fenômeno político importante, pois significou a ocupação do governo pelos movimentos sociais, implicando, portanto, numa transição dos movimentos sociais para o governo. Todavia, o mais importante na eleição de Evo Morales foi que, com isto, os bolivianos obtiveram o compromisso em vão buscado nos presidentes anteriores, um compromisso genuinamente democrático que Evo assumiu na transmissão do mandato presidencial ao dizer: “Mandarei obedecendo ao povo”. É o poder obediencial de Dussel (2007) inspirado no lema zapatista proclamado pelo subcomandante Marcos. E assim, tem início o último processo político a ser retratado na transição política e de democratização na Bolívia: o processo constituinte. 3.2 CONSTITUINTE BOLIVIANA E REFERENDOS: AMPLIAÇÃO DOS ESPAÇOS DE DEMOCRACIA DIRETA Segundo BartoloméClavero, a Bolívia teve efetivamente uma só constituição, atendendo a mandos coloniais, de 1826 a 2009, ano em que emergiu um constitucionalismo de fato anticolonialista. Para o autor, é a primeira Constituição na América Latina que rompe decisivamente com o colonialismo constitucional. Isto porque, diferente de outras que se insurgem somente contra o colonialismo externo, a Bolívia reconhece o colonialismo interno e dispõe sobre formas de erradicá-lo (CLAVERO, 2009). De fato, no ano de 2006 foi instaurada a primeira constituinte eleita no Estado Boliviano. Além disto, a constituinte teve suas raízes políticas nas Guerras da Água e do Gás, marcada assim, desde seu nascedouro, pelas aspirações populares. Diz-se que aí estão as raízes políticas da Constituinte boliviana porque diversas questões decisivas passaram por estas guerras: não somente o questionamento quanto à gestão dos bens públicos, e formas de tomada de decisões, mas especialmente a inserção dos movimentos populares na defesa dos recursos naturais, fortalecendo no âmbito jurídico a cosmovisão partilhada por grande parte da população do país. A mobilização da Constituinte boliviana parte da organização popular (verdadeiros responsáveis pela Constituinte) que a pleiteava, buscando realocar os interesses coletivos das maiorias subjugadas na pauta do Estado, que se ocupava então dos interesses de empresas privadas e multinacionais. Assim, os movimentos populares participaram ativamente do momento pré-assembleia e seguiram participando, ainda de que modo menos ativo, dos períodos seguintes (FAGUNDES, 2013, p. 158-161). Os movimentos populares que iniciaram suas vitórias políticas recuperando das mãos das elites econômicas internacionais a soberania sobre as riquezas naturais do país, passaram, no processo constituinte, ao enfrentamento às elites nacionais, tal 218 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. como assinala Clavero (2009). Estas elites internas são identificadas na chamada “meia-lua”, região composta pelos departamentos de Pando, Beni, Santa Cruz, Tarija.Geograficamente, é a região que concentra as maiores riquezas do país, tais como as minas de cobre. Como a democratização no país se encaminhava para o controle e a distribuição públicos – e não mais privado – das riquezas do país, as elites da “meia-lua” rejeitaram veementemente a proposta de Constituição aprovada pela Constituinte. Não aceitava a estatização das riquezas naturais. Como as regiões eram as que geravam mais fundos através dos impostos, exigiam ser atendidas com um percentual maior de recursos públicos. Também se insurgiam contra as medidas estatizantes, a reforma agrária e outras medidas que ameaçavam o tradicional domínio das elites bolivianas sobre a população. Sustentando então uma pauta separatista, as elites fundam o “movimento autonomista” (BUARQUE, 2007). Este movimento de resistência burguesa acabou por retardar todo o processo constituinte, sendo que em 2 de junho de 2006, na eleição da constituinte, com o apoio um pouco acima da maioria simples, ogoverno popular teve de firmar um acordo com a oposição para aprovar o texto constitucional a ser submetido ao referendo popular, já que eram necessários dois terços dos votos para a aprovação. Retardado por intervenções judiciais, somente em 7 de dezembro de 2008 teve conclusão o referendo constitucional, com 61,43% de votos favoráveis, para, em fevereiro de 2009, entrar em vigor a nova Constituição (NOVAES, 2013). O processo constituinte que durou quase três anos foi intercalado por diversos referendos. O referendo é uma forma de democracia participativa, onde a decisão é tomada diretamente pelo povo e não por seus representantes eleitos. Embora os referendos tenham sido requeridos e até organizados pelo próprio movimento autonomista, significaram uma sucessão de derrotas políticas para a elite nacional. Em 4 de maio de 2008 ocorreu o referendo autonômico, que consultava a população sobre a autonomia do departamento de Santa Cruz – o mais rico da Bolívia. O estatuto elaborado para propor a “autonomia”, foi feito em 48 horas, por um grupo de pessoas não eleitas para tal fim e na realidade implicava na separação do Departamento, com usurpação das riquezas naturais do povo.O Presidente Evo Morales manifestou-se publicamente denunciando a mobilização para realização deste referendo como conspiração encabeçada pelo Embaixador dos EUA, Philip Goldberg (SEVERO, 2008, p. 13-14). A ilegalidade no procedimento de realização do referendo encontrou então, resistência nas urnas: Nos municípios de San Julian, Yapacani e Cuatro Canadas (de maioria camponesa e indígena), não houve votação, porque a população não permitiu a instalação das urnas, e algumas inclusive foram queimadas. Em Camiri (região ao Sul de Santa Cruz, onde houve recentemente uma forte greve exigindo do governo Evo Morales a nacionalização do campo petrolífero da região controlado pela espanhola Repsol), o repudio aos estatutos chegou a 64,5% (42,6 % se abstiveram e 21,9% disseram "Não"). (ROCHA, 2008). Sobre as demais localidades, constam relatos de que urnas foram queimadas e outras “apareceram” cheias de votos já, as chamadas “urnas grávidas”, “emprenhadas” de votos pelo sim. Na prática, empregadores obrigaram trabalhadores a exibir comprovante de voto no referendo e pressionaram a comunidade do Estado de Santa ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 219 Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. Cruz a votar pelo sim. Mesmo assim, houve abstenção de 39% da comunidade e 15% dos que votaram disseram não. A campanha doMovimientoal Socialismo (MAS) – partido do presidente, era no sentido de que a comunidade não deveria votar neste referendo, para não legitimá-lo, uma vez que foi feito todo eivado de ilegalidades. Inclusive estes referendos foram organizados pelas Cortes locais, sem participação da Corte Nacional, num claro desafio à autoridade estatal. Milhões de bolivianos saíram às ruas nos diversos departamentos do Estado para se manifestarem pela indivisibilidade do Estado. Além da autonomia financeira, o Estatuto previa outras formas de soberania que equiparavam o governador do departamento a chefe de Estado (SEVERO, 2008, p. 17-23). O último Departamento a votar a questão da autonomia foi Tarija, o mais rico em produção de gás. A nacionalização dos recursos naturais inverteu a equação que permitia às multinacionais apossarem-se de 82% das riquezas do gás, deixando ao Estado apenas 18%. Novamente o MAS convocou a abstenção ao referendo e esta, somada aos votos nulos e votos pelo não, superaram 50% do resultado total. Dentre as fraudes no referendo, consta o desaparecimento, denunciado pela juíza eleitoral Maria Isabel Sosa, de 60% dos eleitoras das listas de votação, na região de Bermejo, onde o posicionamento contrário à autonomia é mais forte (SEVERO, 2008, p. 26-28). Posteriormente, em 9 de agosto de 2008, foi convocado o referendo revocatório, questionando a população sobre o mandato presidencial. Na ponta do lápis, foram 2.103.872 votos (67,4%) para o Sim à continuidade do governo revolucionário contra 1.017.037 votos (32,5%) para o Não, com o triunfo alcançando 95 das 112 províncias. O presidente venceu em absolutamente todas as províncias de La Paz, Cochabamba, Potosí e Oruro. Em Chuquisaca, foi ratificado em nove das dez províncias. Em Tarija, em cinco das seis; em Pando, três em cinco; em Beni, três de seis; em Santa Cruz, sete das 15 províncias (SEVERO, 2008, p. 64. Grifo no original). Evo Morales aumentou o percentual de apoio não somente onde já tinha maioria, mas também em regiões onde não a havia obtido antes, nas regiões consideradas “redutos da oposição” ao governo popular. 4. O PLURALISMO JURÍDICO COMO CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA DAS VITÓRIAS POPULARES NA BOLÍVIA Como já foi analisado, a Constituinte boliviana também contou com acordos políticos, tais como os que ocorrem em qualquer processo constituinte. O caso brasileiro é um bom exemplo: uma constituinte (a de 1988) formada por parlamentares de corte mais progressista e por remanescentes parlamentares “biônicos”, os conservadores indicados na época do regime militar. Se no Brasil o resultado foi uma Carta em certa medida confusa, conciliadora de interesses contraditórios, na Bolívia, apesar dos retrocessos decorrentes dos acordos políticos, a Constituição aprovada no referendo tem raízes muito mais populares e descolonizadas. É uma Constituição que de fato reflete as aspirações de seu povo, de modo que pode ser considerada 220 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. amplamente democrática. O primeiro destaque a ser feito é que o documento supera dialeticamente a colonização europeia. Após séculos de negação e substituição cultural, em seu art. 5, a Constituição boliviana,embora mantenha o castelhano (idioma colonizador) como oficial, resgata “todos os idiomas das nações e povos originários” praticados no país, reconhecendo-os também como idiomas oficiais. Além do castelhano, são mais trinta e seis idiomas oficiais. No art. 1, ao tratar do modelo de Estado, declara ser a Bolívia um Estado plurinacional comunitário e intercultural, fundado na pluralidade e no pluralismo jurídico, entre outras inovações que superam o modelo monista e outras heranças coloniais da metrópole colonizadora. Inclusive, no artigo seguinte, faz expressa menção à existência pré-colonial das nações e povos reconhecidos agora como autônomos. É assim que dentre os grandes avanços e conquistas da nova Constituição boliviana de 2009, consagra-se o pluralismo político e jurídico. Trata-se da primeira constituição na América Latina a implantar um Estado plurinacional fundado num pluralismo jurídico. E o fato é que conferir efetividade ao reconhecimento formal das autonomias e plurinacionalidades do país, bem como a todos os seus demais dispositivos, não seria possível sem um elemento de coesão jurídica e política. O pluralismo jurídico apresenta-se então, comoo elemento indispensável para consolidar as vitórias democráticas dos povos e nações bolivianas.Está relacionado à coesão desta profunda e inédita democratização comunitária do país. É também a concretização da predição de Casanova (1995, p. 152) que em meados dos anos noventa afirmava que [...] capitalismo e colonialismo global não têm assegurado o futuro de suas democracias limitadas e estão destinados a enfrentar uma nova batalha contra as forças democráticas e os povos do mundo. Nessa batalha, os habitantes do Sul do planeta desempenharão um papel muito importante, que necessariamente terá que se articular com os povos do Norte. Esta articulação não seria libertadora e democrática se ocorresse com a histórica subordinação cultural, econômica e política dos povos do Sul (sendo estes, em todo mundo, os povos colonizados, espoliados em suas riquezas, para alimentar a cobiça das metrópoles capitalistas). Então, o respeito e garantia ao direito de autodeterminação, superando a negação e substituição política e jurídica das expressões autóctones, concretizadas no respeito às crenças religiosas, aos sistemas jurídicos, à soberania territorial, à transmissão cultural entre outras formas, constituem a essência da democracia boliviana. Wolkmer (2001, p. 151-153), ao tratar dos movimentos sociais como fonte de produção jurídica, assinala que esta fonte por excelência deve estar nas relações sociais e nas necessidades fundamentais. A produção jurídica não pode furtar-se a reproduzir a realidade e corresponder às necessidades da sociedade. Todavia, o direito burguês-capitalista, todavia, marcado pela centralização estatal, impõe uma rígida hierarquização das normas escritas e positivadas sobre as derivadas dos costumes sociais, ao mesmo tempo em que rechaça as expressões informais. Com estas lições, o autor demonstra a vulnerabilidade da democracia burguês-capitalista. ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 221 Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. Reconhecer a legitimidade dos movimentos sociais como fonte de produção de direitos requer então um novo sistema de direitos, que transcenda os estreitos e antidemocráticos limites do monismo cultural e jurídico. Este novo sistema, o pluralismo jurídico, embora pareça mais complexo ante a racionalidade monista colonizada, é mais legítimo e menos violento frente às necessidades e expressões sociais diversas. O pluralismo jurídico, que transcende o monismo estatal e que é defendido por Wolkmer (2001) não se assemelha ao pluralismo das transnacionais capitalistas ou ao pluralismo das redes de narcotráfico, por exemplo, pois é um pluralismo que não toma como principal fundamento formas de coerção explícitas ou ideologicamente dissimuladas. Estas formas, denominadas “pluralismo de cima”, ou “pluralismo reacionário” (CARVALHO, 2010, p. 13 e ss.), somente se diferenciam do monismo por não serem ditadas ou reconhecidas pelo Estado, porém, se prestam a manter as antidemocráticas relações mercantis capitalistas e oligopólios nacionais e estrangeiros. O pluralismo jurídico comunitário participativo proposto por Wolkmer preocupase seriamente em diferenciar-se das práticas conservadoras no âmbito do direito e da política. Preocupa-se em situar seus fundamentos de legitimidade em bases realmente democráticas. Por isto, constitui-se a partir da junção de duas condições básicas: a primeira condição são os fundamentos de efetividade material, que se constituem em dois elementos: os novos sujeitos coletivos e a satisfação das necessidades humanas fundamentais; a segunda condição básica são os fundamentos de efetividade formal, que se constituem em três elementos: a reordenação do espaço público, privilegiando uma democracia descentralizada e de participação popular, o desenvolvimento da ética da alteridade e a construção de processos favorecedores de uma racionalidade emancipatória (WOLKMER, 2001, p. 231-232). No caso da Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia, com relação ao primeiro elemento, ocorre a superação da lógica do indivíduo para se legitimar os sujeitos coletivos, especialmente nos povos e nações indígenas, reconhecidos como sujeitos portadores e criadores de direitos. O “'sujeito individual' corporifica uma abstração formalista e ideológica de um 'ente moral' livre e igual, no bojo de vontades autônomas, reguladas pelas leis do mercado e afetadas pelas condições de inserção no processo do capital e do trabalho” (WOLKMER, 2001, p. 236). Com relação ao segundo elemento, a satisfação das necessidades humanas fundamentais, este pode ser localizado no resgate da soberania plurinacional sobre as riquezas do país. A privatização destas riquezas pelas elites nacionais e estrangeiras, gerava, de um lado, o acúmulo de bens supérfluos à manutenção da vida, e, de outro, a escassez, a miséria e a privação do acesso aos meios indispensáveis a esta manutenção e reprodução. Foi um processo iniciado politicamente nas lutas populares das guerras da água e do gás e consolidado juridicamente na Constituição boliviana, art. 99, III e leis infraconstitucionais, como a Lei 300, de 15 de outubro de 2012, onde constam as diretrizes legais para a garantia do “vivir bien”. O artigo 18 desta lei trata da inversão e distribuição da riqueza do Estado com justiça social.Mais adiante, no artigo 19, ao tratar do acesso equitativo do povo boliviano aos componentes da Mãe Terra, determina a eliminação da concentração de propriedades improdutivas e latifúndios. Com relação às condições formais, a reordenação do espaço público, constatam-se especialmente duas medidas consolidadas na Constituição da Bolívia: o reconhecimento do pluralismo jurídico e o reconhecimento de uma terceira forma de democracia: a democracia comunitária. Na teoria de Wolkmer (2001, p. 249 e ss.) a reordenação política do espaço público requer democracia, descentralização e 222 RESIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DE DIREITOS PLURAIS... Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. participação. Ou seja, pensar e articular um novo pluralismo de dimensão política e jurídica é viabilizar as condições para a implementação de uma política democrática que direcione e ao mesmo tempo reproduza um espaço comunitário descentralizado e participativo [...] resgatando formas de ação humana que passam por questões como “comunidade”, “políticas democráticas de base”, “participação e controle popular”, gestão descentralizada”, “poder local ou municipal” e “sistema de conselhos” (WOLKMER, 2001, p. 249-250). Não se trata da simples negação da democracia representativa ou do Estado. O autor defende a participação dos sujeitos coletivos interagindo com o poder legitimamente instituído (WOLKMER, 2001, p. 254). Todavia, no âmbito nacional, o Estado não será a fonte única e nem última de poder: será um espaço de realização das deliberações coletivamente tomadas. Já no âmbito local, reconhece-se o direito de autodeterminação política e jurídica dos povos e nações indígenas. A Constituição reconhece assim, as diversas jurisdições destes povos e serve-se da Lei de Deslinde Jurisdicional para harmonizá-las sem subalternizá-las. A Lei nº 73 (Lei de Deslinde Jurisdicional), de 29 de dezembro de 2010, assim como a Constituição, reconhecem o pluralismo jurídico e as origens pré-coloniais que o legitimam. Funda-se, de um lado, nos princípios como a integridade do Estado Plurinacional, na relação espiritual entre as nações e povos com a Mãe Terra, na diversidade cultural e na interpretação intercultural; de outro, no pluralismo jurídico com igualdade hierárquica entre as comunidades, na complementaridade entre as jurisdições, mas sem intervenção sem autorização ou requerimento. Embora reserve matérias para exclusiva regulamentação constitucional, bem como institua mínimos éticos, como a vida, a não tortura entre outros, garante um espaço significativo de autonomia jurisdicional aos seus povos. Também, por meio da Lei de Deslinde, oferece instrumentos de eficácia para estas jurisdições. Dentre estes, podem ser destacados a obrigatoriedade de cumprimento das decisões das jurisdições das comunidades e o dever de cooperação, quando esta for solicitada. Tais medidas se prestam a superar o abismo entre a igualdade formal e a material. Caso não houvesse meios de garantir a eficiência e eficácia das jurisdições comunitárias, a igualdade constitucional e legalmente prevista seria meramente formal. Há ainda dois elementos formais na composição do pluralismo jurídico comunitário participativo: a ética concreta da alteridade e consolidação de processos conducentes a uma racionalidade emancipatória. Aética concreta da alteridade não se prende a abstrações ou formalismos, mas sim, constrói-se a partir do outro, em suas lutas cotidianas, seus conflitos e suas necessidades fundamentais, constituindo-se como verdadeira “expressão de valores emergentes (emancipação, autonomia, solidariedade e justiça)”, e ainda, instrumento pedagógico da libertação, fundado em duas condições: práxis concreta das comunidades espoliadas, oprimidas, colonizadas etc. e categorias teóricas construídas a partir das próprias culturas autóctones e pensamentos periféricos latino-americanos (WOLKMER, 2001, p.268-269). O espaço de concretização destas novas categorias teóricas propostas, podeser construído a partir das jurisdições autônomas que redefinem politicamente o espaço público boliviano. O último elemento, a racionalidade enquanto necessidade de emancipação, ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 223 Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. rompe com a racionalização e mercantilização da vida moderna em sua dimensão negativa, surgindo agora da especificidade dos valores cosmocêntricos e transindividuais que partem da vida concreta, considerando os interesses e necessidades da pluralidade de ações humanas, conduzindo-se a uma razão vital liberta e emancipatória (WOLKMER, 2001, p. 282). Desta forma, o pluralismo jurídico comunitário participativo vai se configurando no Estado boliviano e contribuindo para a consolidação de uma genuína democracia. Se o pluralismo jurídico surge como elemento de coesão para as transformações políticas no país, resta ainda falar sobre a segunda medida constitucional já anunciada: a democracia comunitária, que transcendendo as formas democráticas tradicionalmente conhecidas no Ocidente, configura-se como um instrumento indispensável para efetivação do pluralismo e da própria essência da democracia. Como já expresso, tanto a democracia participativa quanto a representativa comportam em suas realizações práticas diversas formas de exclusão. Uma exclusão não manifesta na dimensão formal, mas vivamente presente na dimensão material. Mesmo com os avanços das formas participativas e a radical descentralização democrática, o pluralismo político e jurídico acabou por transcender a capacidade de abrangência destas formas e impor a inclusão constitucional da terceira forma democrática aqui tratada. É assim que no art. 11, constante no capítulo terceiro da Constituiçao, que trata do sistema de governo, a República da Bolívia declara adotar “para seu governo a forma democrática participativa, representativa e comunitária”, todas pautadas na igualdade entre homens e mulheres. A democracia participativa amplia seus instrumentos para além dos mais comumente utilizados, como referendo, plebiscito e iniciativa popular legislativa, incluindo também a possibilidade de revogação de mandatos, assembleia, conselhos e consultas prévias, estes últimos com caráter deliberativo. A democracia representativa vem revestida de suas garantias como voto universal e secreto. A grande inovação, todavia, apresenta-se no item 3, por meio do qual a democracia comunitária prevê a eleição, designação ou nomeação de autoridades e representantes, garantindo-se o direito de que tais procedimentos sejam adotados conforme as normas próprias das nações e povos bolivianos. É a legitimidade destas autoridades que é reconhecida constitucionalmente através do pluralismo jurídico. Estas são algumas contribuições trazidas pelo constitucionalismo contemporâneo na Bolívia. Contribuições que estão expandindo o horizonte compreensivo do jurista, do político, do cientista, do cidadão acima de tudo. São práticas políticas que denunciam contradições milenarmente ocultadas na esfera democrática e demonstram que a superação das desigualdades e das injustiças sociais está ao alcance de todos, até mesmo dos mais espoliados e oprimidos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A democracia surge no Ocidente, como um sistema político de participação direta, mas numa sociedade elitista e escravista. Seus consensos políticos são então obtidos pelos debates entre membros destas elites e a partir da exclusão de diversos grupos sociais e também da supressão dos pensamentos divergentes. Pouco antes do surgimento da democracia, insere-se na vida política um importante recurso, a 224  “igualdade formal”, que permitiria a ocultação das profundas contradições entre garantia formal e efetivação material, esta última, historicamente nunca alcançada pelos pobres ou classes exploradas nas diversas sociedades. As experiências democráticas que se seguiram à ateniense não foram menos contraditórias e tampouco deixaram de ser determinadas pelos interesses dominantes em cada época e lugar. Assim, o principal elemento comum presente nas duas formas de experiências democráticas (participativa e representativa) conhecidas na tradição política ocidental, é a predominância de interesses elitistas nas suas realizações concretas, predominância esta ocultada pela ideologia da igualdade formal ou jurídica. A distância entre o âmbito formal e o material da democracia aumenta significativamente na modernidade iluminista onde emerge a burguesia liberal capitalista, fazendo aumentar consigo a crise da democracia ocidental. Desta crise emerge uma terceira forma de democracia que revoluciona a cena política mais recente não somente por surgir fora do espaço tradicional de “importação” de tecnologias e paradigmas jurídicos, mas especialmente por constituir-se numa forma de democracia voltada aos interesses populares e comunitários. Assim, a democracia comunitária, prevista no novo constitucionalismo boliviano, viabiliza a tomada de decisões políticas desde as bases da sociedade e não desde as elites. É uma democracia que se constrói “desde baixo”, tal como o direito pugnado pelo pluralismo jurídico. A emergência desta democracia comunitária, do pluralismo jurídico, da plurinacionalidadee outros conceitos, desde os movimentos sociais até os âmbitos oficiais, representa, em primeiro lugar, que os processos constituintes podem nascer e ser protagonizadospelo povo, e representam também, que é possível transcender os limites do monismo jurídico, da democracia individualista burguesa e da racionalidade liberal capitalista, para dar lugar aos sujeitos coletivamente constituídos e assim mutuamente significados, abrindo caminho para instituições genuinamente democráticas, uma vez que correspondam a um consenso construído desde as bases da sociedade (decisões legitimadas por referendos populares) e não mais como na tradição ocidental eurocêntrica, desde as elites delegadase dissimulado sob o mando da igualdade jurídica. E assim, com estes processos históricos de lutas advindas de nossos sujeitos insurgentes, a Bolívia diminuiu a convencional distância entre as dimensões formal e material da democracia e do próprio direito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUGUSTE, Jardé. A Grécia antiga e a vida grega: geografia, história, literatura, artes, religião, vida pública e privada. São Paulo: EPU, Editora da Universidade de São Paulo, 1977. 259 p. ARISTÓTELES. Apolítica. São Paulo: Martin Claret, 2002. 272 p. _____________. Constituição dos atenienses. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2003. 151p. BOLÍVIA. Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia.2007-2008. Disponível em: . Acessoem: 04 abr. 2013. ________. Ley nº 071, de 21 de deciembre de 2010. Ley de derechos de la madre tierra. ANTONIO CARLOS WOLKMER / DÉBORA FERRAZZO 225 Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 16, n. 16, p. 200-228, julho/dezembro de 2014. 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Democracia agonística Mouffe

 

https://doi.org/10.1590/S0104-44782005000200003

https://www.scielo.br/j/rsocp/a/k5cVRT5zZcDBcYpDCTxTMPc/?format=pdf&lang=pt  

DOSSIÊ DEMOCRACIAS E AUTORITARISMOS Este artigo propõe uma redescrição dos princípios fundamentais da democracia de modo a abrir espaço para o conflito, a paixão e o político. Em um primeiro momento, criticam-se as versões mais propagadas da democracia deliberativa, em sua neutralização e redução do pluralismo político e abuso dos propósitos democráticos de legitimidade e racionalidade. Em seguida, analisam-se os insights de Carl Schmitt em sua compreensão do conceito do político. Finalmente, o conceito do político é apropriado de modo crítico no âmbito de uma proposta de modelo agonístico de democracia, em que se deve renunciar à naturalização das fronteiras da democracia e dos embates entre seus atores – os que eram tidos como inimigos, no interior de uma sociedade democrática, devem assumir o papel de adversários que compartilham um conjunto de valores e princípios ético-políticos, cuja interpretação está em disputa. PALAVRAS-CHAVE: democracia; pluralismo; neutralidade; conflito; conceito de político; racionalidade. I. INTRODUÇÃO Ao término deste século turbulento [século XX], a democracia liberal parece ser reconhecida como a única forma legítima de governo. Isso significa, porém, a sua vitória final sobre os seus adversários, como alguns acreditam? Há sérias razões para um certo ceticismo diante de tal presunção. Não está claro o quão forte é o presente consenso, nem por quanto tempo ele vai durar. Enquanto muito poucos ousam desafiar abertamente o modelo liberal-democrático, os sinais de desapreço pelas atuais instituições estão-se tornando generalizados. Um número crescente de pessoas vêm sentindo que os partidos tradicionais deixaram de atender a seus interesses e partidos de extrema-direita estão fazendo importantes incursões em muitos países europeus. Além disso, mesmo entre aqueles que estão resistindo ao apelo dos demagogos, persiste um cinismo acentuado sobre a política e os políticos – com seus muitos efeitos corrosivos sobre a adesão popular aos valores democráticos. Há, claramente, uma força negativa em funcionamento na maioria das sociedades liberal-democráticas, a qual contradiz o triunfalismo que testemunhamos desde o colapso do comunismo soviético. É com tais considerações em mente que pretendo examinar o debate contemporâneo em teoria democrática. Avalio as propostas oferecidas por teóricos da democracia de modo a consolidar as instituições democráticas. Minha atenção será voltada para o novo paradigma de democracia, o modelo de “democracia deliberativa”, que se tem constituído em um campo de rápido crescimento na área. Em rigor, sua idéia central – de que na sociedade democrática, as decisões políticas devem ser alcançadas por meio de um processo de deliberação entre cidadãos iguais e livres – tem acompanhado a democracia desde o seu nascimento na Grécia do século V a. C. As formas de conceber a deliberação e a definição daqueles aptos a deliberar variaram enormemente, mas a deliberação tem por longo tempo desempenhado um papel central no pensamento democrático. O que se vê hoje é, portanto, o renascimento de um tema antigo, não a inesperada emergência de algo novo. O que demanda análise, contudo, é a razão desse renovado interesse pela deliberação, bem como por suas modalidades correntes. Uma explicação aponta para os problemas que hoje enfrentam as sociedades democráticas. De fato, um dos proclamados fins dos democratas deliberativos 1 Publicado em inglês como capítulo do livro The Democratic Paradox (MOUFFE, 2000a). Tradução e resumo de Pablo Sanges Ghetti; revisão da tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda. 12 POR UM MODELO AGONÍSTICO DE DEMOCRACIA é o de oferecer uma alternativa para a compreensão da democracia que se tornou dominante na segunda metade do século XX, o “modelo agregativo”. Tal modelo teve início com o trabalho seminal de Joseph Schumpeter de 1947, Capitalism, Socialism and Democracy, que argüia que, com o desenvolvimento da democracia de massa, a soberania popular, como entendida pelos modelos clássicos de democracia, tornara-se inadequada. Um novo entendimento da democracia fazia-se necessário, colocando a ênfase na agregação de preferências, disposta por meio de partidos políticos em que as pessoas teriam a capacidade de votar em intervalos regulares. Seguese sua proposta de definir a democracia como o sistema no qual as pessoas teriam a oportunidade de aceitar ou rejeitar seus líderes graças a um processo eleitoral competitivo. Levado adiante por teóricos como Anthony Downs (1957) em An Economic Theory of Democracy, o modelo agregativo tornou-se o padrão no campo acadêmico que se auto-intitulou “teoria política empírica”. O propósito dessa corrente era o de elaborar uma abordagem descritiva da democracia, em oposição àquela clássica, de natureza normativa. Os autores que aderiram a essa escola consideraram que, sob condições modernas, noções como “bem comum” e “vontade geral” tinham de ser abandonadas e que o pluralismo de interesses e valores precisava ser reconhecido como co-extensivo à própria idéia de “povo”. Além disso, dado que em sua perspectiva o auto-interesse era o que levava os indivíduos a agir – não a crença moral segundo a qual eles deveriam agir conforme os interesses da comunidade –, eles declararam que eram os interesses e as preferências que deveriam constituir os parâmetros pelos quais os partidos políticos organizar-se-iam, além de fornecer a matéria a partir da qual a barganha e o voto seriam mobilizados. A participação popular na tomada de decisões deveria, isto sim, ser desencorajada, porquanto poderia ter apenas conseqüências nocivas para o funcionamento do sistema. A estabilidade e a ordem resultariam mais provavelmente do compromisso entre interesses diversos do que da mobilização do povo em direção a um consenso ilusório acerca do bem comum. Como conseqüência, a política democrática foi apartada de sua dimensão normativa, começando a ser concebida em termos puramente instrumentalistas. O predomínio da perspectiva agregativa, com sua redução da democracia a procedimentos para o tratamento do pluralismo de grupos de interesse, é o que a nova onda de Teoria Política normativa, inaugurada por John Rawls em sua obra de 1971, A Theory of Justice, começou a colocar em questão – o mesmo que o modelo deliberativo vem hoje desafiar. Declara-se que o predomínio do modelo agregativo encontra-se na origem do atual desapreço a atingir as instituições democráticas, bem como da exuberante crise de legitimidade das democracias ocidentais. O futuro da democracia liberal, em sua óptica, depende da recuperação de sua dimensão moral. Observando tanto um espaço para “o fato do pluralismo” (Rawls), como a necessidade de reconheceremse as diferentes concepções do bem, os democratas deliberativos afirmam, não obstante, que é possível alcançar um consenso mais profundo que o “mero acordo sobre procedimentos” – um consenso qualificado como “moral”. II. A DEMOCRACIA DELIBERATIVA E SEUS OBJETIVOS Obviamente, os democratas deliberativos não estão sozinhos ao buscarem oferecer uma alternativa à perspectiva agregativa dominante, cuja visão do processo democrático é empobrecedora. A especificidade de sua abordagem reside na promoção de uma forma de racionalidade normativa. Também é distintivo o seu esforço de fornecer uma base sólida de lealdade política [allegiance] para com a democracia liberal ao reconciliarem a idéia de soberania democrática com a defesa de instituições liberais. De fato, vale ressaltar que, enquanto críticos de um certo modus vivendi liberal, a maioria dos defensores da democracia deliberativa não é antiliberal. Diferentemente de críticos marxistas anteriores, eles acentuam o papel central de valores liberais na concepção moderna de democracia. Seu objetivo não é abrir mão do liberalismo, mas recuperar sua dimensão moral e estabelecer uma conexão forte entre valores liberais e democracia. Sua pretensão principal afirma a possibilidade, graças a procedimentos adequados de deliberação, de alcançarem-se formas de acordo que satisfariam tanto a racionalidade (entendida como defesa de direitos liberais) quanto a legitimidade democrática (tomada como soberania popular). Tal movimento reformula o princípio democráti- 13 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 1 co de soberania popular de modo a eliminar os perigos que tal princípio pode representar para os valores liberais. É a consciência desses perigos que freqüentemente preocupou liberais diante da participação popular, levando-os a tentar desencorajá-la e limitá-la. Os democratas deliberativos acreditam que tais perigos podem ser evitados, permitindo-se, por isso, que liberais abracem o ideal democrático com entusiasmo inusitado. Uma solução proposta é a de reinterpretar a soberania popular em termos intersubjetivos e redefini-la como “poder gerado comunicativamente”2. Há muitas versões diferentes da democracia deliberativa, mas elas podem ser aproximadamente classificadas em duas grandes escolas: a primeira amplamente influenciada por Rawls, a segunda por Habermas. Concentrar-me-ei, portanto, nesses dois autores, acompanhados de dois de seus seguidores, Joshua Cohen e Seyla Benhabib, respectivamente. É inegável, certamente, a existência de diferenças entre as duas abordagens – as quais serão indicadas ao longo desta exposição – mas há também convergências importantes, as quais, do ponto de vista desta pesquisa, são mais significativas que as divergências. Como já foi indicado, um dos propósitos da abordagem deliberativa – compartilhado tanto por Rawls como por Habermas – consiste em assegurar uma ligação forte entre democracia e liberalismo, combatendo todos os críticos – de direita e esquerda – que proclamaram a natureza contraditória da democracia liberal. Um exemplo é a declaração de Rawls sobre sua ambição de elaborar um liberalismo democrático que responderia não só às pretensões extraídas da idéia de liberdade, mas também daquela de igualdade. Ele procura encontrar uma solução para o desacordo que vem ocorrendo no pensamento democrático durante os últimos séculos, “Entre a tradição associada a Locke, que dá maior peso ao que Constant chamou de as ‘liberdades dos modernos’, liberdade de pensamento e consciência, alguns direitos básicos da pessoa e da propriedade e o Estado de Direito, e a tradição associada a Rousseau, que dá maior peso ao que Constant chamou de ‘liberdades dos antigos’, as iguais liberdades políticas e os valores da vida pública” (RAWLS, 1993, p. 5). No que toca a Habermas, seu livro Between Facts and Norms explicita que um dos objetivos de sua teoria procedimental da democracia é demonstrar a co-originalidade dos direitos individuais fundamentais e da soberania popular. De um lado, o autogoverno serve para proteger direitos individuais; de outro, os mesmos direitos fornecem as condições necessárias para o exercício da soberania popular. Uma vez entendidos desse modo, diz o autor, “então se pode entender como a soberania popular e os direitos humanos andam lado a lado e logo perceber a co-originalidade das autonomias cívica e privada” (HABERMAS, 1996a, p. 127). Seus seguidores, Cohen e Benhabib, também ressaltam o gesto conciliatório presente no projeto deliberativo. Enquanto Cohen considera que é um equívoco vislumbrar a liberdade dos modernos como sendo exteriores ao processo democrático e que valores liberais devem ser vistos como elementos da democracia ao invés de um constrangimento a ela (COHEN, 1998, p. 187), Benhabib (1996) declara que o modelo deliberativo pode transcender a dicotomia entre a ênfase liberal em direitos individuais e liberdades, assim como a ênfase democrática na formação coletiva e na formação da vontade. Outro ponto de convergência entre as duas versões de democracia deliberativa é a sua insistência comum na possibilidade de fundar autoridade e legitimidade em algumas formas de razão pública e sua crença compartilhada em uma forma de racionalidade que é não apenas instrumental, mas tem uma dimensão normativa: o “razoável” para Rawls, a “racionalidade comunicativa” para Habermas. Em ambos os casos uma forte separação é estabelecida entre “mero acordo” e “consenso racional”, ao passo que o campo próprio da política é identificado com a troca de argumentos entre pessoas razoáveis guiadas pelo princípio da imparcialidade. Tanto Habermas como Rawls acreditam que se pode encontrar o conteúdo idealizado da racionalidade prática nas instituições da democracia liberal. Eles divergem na elucidação da forma de razão prática incorporada pelas instituições democráticas. Rawls enfatiza o papel dos princípios de justiça alcançados por meio do artifício da “posição original” que força os participantes a deixar de lado todas as suas particularidades e interesses. Sua concepção de “justiça como eqüidade” – que enuncia a prioridade dos princípios 2 liberais básicos – conjuntamente com os “elemen- Ver, por exemplo, Habermas (1996b, p. 29). 14 POR UM MODELO AGONÍSTICO DE DEMOCRACIA tos constitucionais essenciais” fornece o quadro para o exercício da “razão pública livre”. No que concerne a Habermas, tem-se a defesa do que chama de abordagem estritamente procedimental, em que nenhum limite é estabelecido para a amplitude e o conteúdo da deliberação. São os constrangimentos procedimentais da situação ideal de fala que eliminarão as posições que não podem ser aceitas pelos participantes do “discurso” moral. Como relembrado por Benhabib, as características de tal discurso são as seguintes: “(1) a participação em tal deliberação é governada pelas normas de igualdade e simetria; todos têm as mesmas chances de iniciar atos de fala, para questionar, interrogar e abrir o debate; (2) todos têm o direito de questionar os tópicos definidos da conversação e (3) todos têm o direito de iniciar argumentos reflexivos sobre as próprias regras do procedimento discursivo e o modo pelo qual são aplicadas e implementadas. Não há regras que em princípio limitem a agenda da conversação ou a identidade dos participantes, desde que qualquer pessoa ou grupo excluído possa demonstrar justificadamente que são afetados de modo relevante pela norma proposta em questão” (BENHABIB, 1996, p. 70). Nos termos dessa perspectiva, a base de legitimidade das instituições democráticas deriva do fato de que as instâncias que afirmam um poder coercitivo fazem-no sob a presunção de que suas decisões representam um ponto de vista imparcial, que se situa na conjunção do interesse igual de todos. Cohen, depois de enunciar que a legitimidade democrática decorre de decisões coletivas entre membros iguais, declara: “De acordo com uma concepção deliberativa, uma decisão é coletiva apenas no caso em que emerge das disposições de escolhas coletivas exigíveis que estabelecem as condições para o raciocínio público livre entre iguais que são governados pelas decisões” (COHEN, 1998, p. 186). Nessa óptica, não seria suficiente que um procedimento democrático levasse em consideração os interesses de todos e alcançasse um compromisso capaz de estabelecer um modus vivendi. O propósito é o de gerar “poder comunicativo” e isso requer o estabelecimento de condições para o livre consentimento de todos os envolvidos – daí a importância de encontrarem-se procedimentos que garantiriam a imparcialidade moral. Apenas aí se pode ter certeza de que o consenso obtido é racional e não um mero acordo. Essa é a razão pela qual a ênfase é colocada na natureza do procedimento deliberativo, bem como nos tipos de razão que são tidos como aceitáveis para participantes competentes. Benhabib expõe-no da maneira seguinte: “De acordo com o modelo deliberativo de democracia, é condição necessária para a obtenção de legitimidade e racionalidade com relação ao processo de tomada de decisão coletiva em uma unidade política que as instituições dessa unidade política arranjem-se, de tal modo que aquilo que é considerado no interesse comum de todos resulte de um processo de deliberação coletiva conduzido racional e eqüitativamente entre indivíduos livres e iguais” (BENHABIB, 1996, p. 69). Para os habermasianos, o processo de deliberação tem resultados razoáveis assegurados, na medida em que se estabeleçam as condições do “discurso ideal”: quanto mais igual e imparcial, mais aberto será o processo; quanto menos os participantes são coagidos e prontos para serem guiados pela força do melhor argumento, mais os interesses verdadeiramente generalizáveis poderão ser aceitos por todos os afetados de modo relevante. Habermas e seus seguidores não negam que haja obstáculos para a realização do discurso ideal, mas os mesmos são entendidos como tendo natureza empírica. Tais obstáculos devem-se ao fato de que é improvável, dadas as limitações práticas e empíricas da vida social, que possamos deixar de lado completamente todos os nossos interesses particulares a ponto de que nossos interesses venham a coincidir com nosso “si-mesmo” [self] racional universal. Esse é o motivo pelo qual a situação ideal de fala é apresentada como “ideal regulativo”. Além disso, Habermas agora aceita que haja questões que devam permanecer alheias às práticas de debate público racional, como questões existenciais que dizem respeito não a questões de justiça, mas à vida digna – este seria em sua visão o domínio da ética –, ou, ainda, conflitos entre grupos de interesse que só possam ser resolvidos por via de compromisso. Contudo, ele considera que “essa diferenciação, dentro do campo de questões que requerem decisões políticas, não nega a importância central de considerações morais, nem a praticidade do debate racional como a forma mesma de comunicação política” (HABERMAS, 1991, p. 448). Em sua perspectiva, questões plíticas fundamentais pertencem à mesma categoria que questões morais e podem ser decididas racionalmente. Ao contrário das questões éticas, elas não podem depender de seu contexto. A validade de suas respostas vem de uma fonte independente e tem um alcance universal. Ele permanece inflexível quanto à afirmação de que a troca de argumentos e contra-argumentos, como verificada em sua abordagem, é o procedimento mais adequado para o alcance da formação racional da vontade de onde o interesse geral surgirá. A democracia deliberativa, nas duas versões consideradas aqui, em benefício da perspectiva agregativa, admite que nas condições modernas uma pluralidade de valores e interesses precisa ser reconhecida e que o consenso sobre o que Rawls chama de visões “abrangentes” [comprehensive] de natureza religiosa, moral e filosófica deve ser abandonado. Seus defensores, porém, não aceitam que isso leve à impossibilidade de um consenso racional sobre decisões políticas – entendendo-se por isso não um simples modus vivendi, mas um tipo moral de acordo, resultado do raciocínio moral livre entre iguais. Dado que os procedimentos de deliberação assegurem imparcialidade, igualdade, abertura e ausência de coerção, eles guiarão a deliberação em direção a interesses generalizados que possam ser subscritos por todos os participantes, conseqüentemente produzindo resultados legítimos. A questão da legitimidade é mais fortemente enfatizada pelos habermasianos, mas não há diferenças fundamentais entre Habermas e Rawls nesse ponto. De fato, Rawls define o princípio liberal de legitimidade de um modo congruente com a visão de Habermas: “Nosso exercício do poder político é adequado e logo justificável apenas quando ocorre de acordo com uma constituição por cujos elementos essenciais espera-se razoavelmente o apoio de todos os cidadãos, conforme princípios e ideais aceitáveis para eles como razoáveis e racionais” (RAWLS, 1993, p. 217). Essa força normativa, devido ao princípio de justificação geral, sintoniza-se com a ética do discurso de Habermas e essa é a razão por que se pode argüir a possibilidade de reformulação do construtivismo político rawlsiano na língua da ética do discurso3. Na verdade, isso é o que o próprio Cohen, de certo modo, faz; isso também mostra como esse autor fornece um bom exemplo da compatibilidade entre as duas abordagens. Particularmente, Cohen destaca o processo deliberativo e afirma que a democracia requer que os participantes não apenas sejam livres e iguais, mas também “razoáveis” – a democracia entendida como um sistema de arranjos sociais e políticos, capaz de ligar o exercício do poder ao livre exercício da razão entre iguais. Por “razoáveis” quer dizer que “eles [os participantes] procuram defender e criticar instituições e programas nos termos de considerações que outros, como livres e iguais, têm razão para aceitar, dado o fato do pluralismo razoável” (COHEN, 1998, p. 194). III. FUGINDO DO PLURALISMO Após ter delineado as idéias principais da democracia deliberativa, examinarei agora em maior detalhe alguns pontos do debate estabelecido entre Rawls e Habermas, com o objetivo de trazer a lume os defeitos cruciais da perspectiva deliberativa. Dois pontos, a partir daí, assumem particular relevância. O primeiro refere-se a uma das pretensões centrais do “liberalismo político” defendido por Rawls: um liberalismo político não-metafísico e livre de visões abrangentes. Estabelece-se uma separação clara entre o reino privado – em que uma pluralidade de diferentes e irreconciliáveis visões abrangentes coexistem – e o reino público, em que um consenso sobreposto pode ser estabelecido sobre uma concepção compartilhada de justiça. Habermas contesta que Rawls não pode ter êxito nessa estratégia de evitar questões filosóficas controversas, porque seria impossível desenvolver sua teoria no modo independente como ele anuncia. De fato, sua idéia de “razoável”, assim como sua concepção de “pessoa”, necessariamente o envolve em questões pertinentes aos conceitos de racionalidade e verdade que pretende ultrapassar (HABERMAS, 1995, p. 126). Além disso, Habermas declara que sua própria abordagem é superior à de Rawls, em função de seu caráter estritamente procedimental, que lhe permite “deixar mais questões abertas porque deposita mais confiança no processo de constituição da opinião e da vontade racionais” (idem, p. 131). Por não delimitar uma separação forte entre o público e o privado, seria uma perspectiva mais bem talhada para acomodar a amplitude de deliberação que decorre da democracia. A isso, Rawls replica que 3 Tal argumento é apresentado por Rainer Forst em sua resenha de Liberalismo político (FORST, 1994, p. 169). 16 POR UM MODELO AGONÍSTICO DE DEMOCRACIA a perspectiva de Habermas não pode ser tão estritamente procedimental como ele gostaria, pois deve incluir uma dimensão substantiva, dado que questões relativas ao resultado dos procedimentos não podem ser excluídas das escolhas que levam a eles (RAWLS, 1995, p. 170-174). Ambos estão corretos em suas críticas mútuas. Realmente, a concepção de Rawls não é tão independente de visões abrangentes como ele acredita e Habermas não pode ser tão procedimentalista como pretende. Que ambos sejam incapazes de separar o público do privado, ou o procedimental do substancial, como declaram, é revelador. O que isso revela é a impossibilidade de conseguir-se o que cada um deles, apesar de por diferentes caminhos, está realmente perseguindo, ou seja, circunscrever um domínio que não seria sujeito ao pluralismo de valores e em que um consenso sem exclusão poderia ser instaurado. Com efeito, ao evitar doutrinas abrangentes, Rawls está motivado por sua crença de que nenhum acordo racional é possível nesse campo. Eis a razão por que, com o fim de tornar as instituições liberais aceitáveis para pessoas de diferentes visões morais, filosóficas e religiosas, precisam ser neutras em relação a visões abrangentes. Por isso, a clara separação que tenta instituir entre o reino privado – com seu pluralismo de valores irreconciliáveis – e o reino público, em que um acordo político sobre concepções liberais de justiça seria assegurado por meio da criação de um consenso sobreposto em termos de justiça. No caso de Habermas, uma tentativa similar de escapar das implicações do pluralismo de valores é feita por intermédio da distinção entre ética – um domínio que permite concepções sobre o bem que competem entre si – e moralidade – em que um procedimentalismo estrito pode ser implementado e a imparcialidade alcança condição de liderança na formulação de princípios universais. Rawls e Habermas querem fundamentar a adesão à democracia liberal com um tipo de acordo racional que fecharia as portas para a possibilidade de contestação. Eles precisam, por esse motivo, relegar o pluralismo para um domínio nãopúblico, isolando a política de suas conseqüências. O fato de que sejam incapazes de manter a separação rígida que advogam tem implicações muito importantes para a política democrática. Ressalta-se aí que o domínio da política – mesmo quando questões básicas como justiça ou princípios fundamentais estão envolvidos – não é um terreno neutro que poderia ser isolado do pluralismo de valores ou em que soluções racionais e universais poderiam ser formuladas. O segundo ponto é outra questão concernente à relação entre autonomia privada e autonomia pública. Como vimos, ambos os autores procuram conciliar as “liberdades dos antigos” com as “liberdades dos modernos” e argumentam que os dois tipos de autonomia necessariamente caminham juntos. Contudo, Habermas considera que apenas sua abordagem consegue estabelecer a cooriginalidade de direitos individuais e participação democrática. Afirma que Rawls subordina a soberania democrática aos direitos liberais porque ele concebe a autonomia pública como um meio para autorizar a autonomia privada. Habermas, por seu turno, como Charles Larmore apontou, privilegia o aspecto democrático, dado que assevera que a importância dos direitos individuais subsiste em sua capacidade de tornar possível o autogoverno democrático (LARMORE, 1996, p. 217). Então, mais uma vez, temos de concluir que nenhum deles é capaz de cumprir o que anunciam. O que querem negar é o caráter paradoxal da democracia moderna e a tensão fundamental entre a lógica da democracia e a lógica do liberalismo. São incapazes de reconhecer que, ao passo que realmente direitos individuais e autogoverno democrático são constitutivos da democracia liberal – cuja novidade reside precisamente na articulação dessas tais duas tradições – também existe uma tensão entre suas “gramáticas” respectivas que nunca poderá ser eliminada. Certamente, ao contrário do que alguns de seus adversários, como Carl Schmitt, argumentaram, isso não significa que a democracia liberal é um regime fadado ao insucesso. Tal tensão, apesar de inerradicável, pode ser negociada de diferentes maneiras. De fato, uma grande parte da política democrática dá-se precisamente em torno da negociação de tal paradoxo e da articulação de soluções precárias4. O que é descabida é a procura de uma solução racional final. Não apenas infrutífera, essa empreitada carrega constrangimentos indevidos ao debate político. Tal procura deveria ser reconhecida pelo que realmente é – outra ten4 Desenvolvi esse argumento em meu artigo “Carl Schmitt and the Paradox of Liberal Democracy” (MOUFFE, 1999). 17 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 11-23 NOV. 2005 tativa de insular a política dos efeitos do pluralismo de valores, desta vez tentando fixar terminantemente todo o sentido e a hierarquia dos valores liberal-democráticos fundamentais. A teoria democrática deveria renunciar a essas formas de escapismo e enfrentar o desafio que decorre do reconhecimento do pluralismo de valores. Isso não significa aceitar um pluralismo total – alguns limites precisam ser estabelecidos com relação ao tipo de confrontação que será vista como legítima na esfera pública. Mas a natureza política dos limites deve ser reconhecida, em lugar da apresentação de tais limites como exigências da moralidade e da racionalidade. IV. QUE LEALDADE PARA A DEMOCRACIA? Se tanto Rawls como Habermas, embora de diferentes maneiras, buscam alcançar uma forma de consenso racional ao invés de um “simples modus vivendi” ou um “mero acordo” é porque acreditam que, ao obterem bases estáveis para a democracia liberal, esse consenso contribuirá para assegurar o futuro das instituições liberal-democráticas. Como vimos, enquanto Rawls considera que a questão-chave é a justiça, para Habermas ela envolve a questão da legitimidade. De acordo com Rawls, uma sociedade bem-ordenada é aquela que funciona conforme princípios estabelecidos por uma concepção compartilhada de justiça. É isso que produz estabilidade e a aceitação das instituições por parte dos cidadãos. Para Habermas, uma democracia estável e funcional requer a criação de uma unidade política integrada por meio de discernimento racional em direção à legitimidade. Essa é a razão de os habermasianos entenderem que a questão crucial descansa na busca de um caminho capaz de garantir que decisões tomadas por instituições democráticas representem um ponto de vista imparcial, expressando igualmente os interesses de todos, o que requer estabelecer procedimentos aptos a propiciar resultados racionais mediante a participação democrática. Como expresso por Seyla Benhabib, “a legitimidade em sociedades complexas deve ser pensada como resultante da livre e desimpedida deliberação pública de todos, sobre matérias de interesse comum” (BENHABIB, 1996, p. 68). Em seu desejo de mostrar as limitações do consenso democrático como vislumbrado pelo modelo agregativo – apenas preocupado com a racionalidade instrumental e a promoção do autointeresse –, os democratas deliberativos insistem na importância de um outro tipo de racionalidade, a racionalidade em marcha na ação comunicativa e na razão pública livre. Querem fazê-la a força central de movimento dos cidadãos democráticos e a base de sua fidelidade em relação a suas instituições comuns. A preocupação de Habermas e Rawls com o atual estado das instituições democráticas é uma que compartilho, mas considero as suas respostas extremamente inadequadas. A solução para nossos graves problemas contemporâneos não se resume a substituir a “racionalidade de meios-fins” dominante por uma nova forma de racionalidade, agora “deliberativa” ou “comunicativa”. De fato, há espaço para entendimentos diferentes da razão e é importante tornar mais complexo o quadro oferecido pelos detentores da visão instrumentalista. No entanto, simplesmente substituir um tipo de racionalidade por outro não nos ajudará a alcançar o problema real que a questão da lealdade política [allegiance] expõe. Como Michael Oakeshott relembrou-nos, a autoridade das instituições políticas não é uma questão de consentimento, mas de contínua adesão dos cives que reconhecem suas obrigações de obedecer às condições prescritas pela res publica (OAKESHOTT, 1975, p. 149-158). Seguindo essa linha de pensamento, podemos dar-nos conta de que o que realmente está em jogo na fidelidade a instituições democráticas é a constituição de um conjunto de práticas que façam possível a criação de cidadãos democráticos. Essa não é uma questão de justificação racional, mas de disponibilidade de formas democráticas de individualidade e subjetividade. Ao privilegiar a racionalidade, tanto a perspectiva deliberativa como a agregativa deixam de lado um elemento central, que é o papel crucial desempenhado por paixões e afetos na garantia da fidelidade a valores democráticos. Isso não pode ser ignorado, do que decorre avaliar a questão da cidadania democrática de modo bem diferente. O fracasso da teoria democrática contemporânea em atacar a questão da cidadania é a conseqüência de seu funcionamento com uma concepção de sujeito que vê os indivíduos como anteriores à sociedade, portadores de direitos naturais, e tanto agentes da maximização dos benefícios como sujeitos racionais. Em todos os casos estão abstraídos das relações sociais e de poder, linguagem, cultura e todo o conjunto de práticas que tornam a ação [agency] possível. O que falta a essas abordagens racionalistas é a própria ques- 18 POR UM MODELO AGONÍSTICO DE DEMOCRACIA tão de quais são as condições de existência do sujeito democrático. Pretendo desenvolver a visão segundo a qual não é com a construção de argumentos sobre a racionalidade incorporada em instituições liberaldemocráticas que se contribui para a criação de cidadãos da democracia. Indivíduos da democracia só serão possíveis com a multiplicação de instituições, discursos, formas de vida que fomentem a identificação com valores democráticos. Eis a razão por que, apesar de concordar com os democratas deliberativos sobre a necessidade de um conceito diferente de democracia, vejo suas propostas como contraproducentes. Em rigor, precisamos formular uma alternativa ao modelo agregativo e à concepção instrumental da política que esse modelo fomenta. Está claro que ao desencorajarem o envolvimento ativo dos cidadãos no funcionamento da unidade política e ao encorajarem a privatização da vida, eles não asseguraram a estabilidade que anunciaram. Formas extremas de individualismo espalharam-se amplamente, ameaçando a própria “fábrica social” [the very social fabric]. De outro modo, desprovidos da possibilidade de identificarem-se com concepções preciosas de cidadania, muitas pessoas estão, em um crescendo, procurando formas de identificação que podem muito freqüentemente colocar em risco o laço cívico que deveria unir a associação político-democrática. O crescimento de várias religiões, bem como de fundamentalismos morais e étnicos, é a meu ver a conseqüência direta do déficit democrático que caracteriza a maior parte das sociedades liberal-democráticas. Para enfrentar seriamente tais problemas, o único caminho é vislumbrar a cidadania democrática de uma perspectiva diferente, de modo a colocar ênfase nos tipos de práticas e não nas formas de argumentação. Em The Return of the Political (MOUFFE, 1993), argumentei que as reflexões sobre associação civil, desenvolvidas por Michael Oakeshott em On Human Conduct, são muito pertinentes para a concepção de formas modernas de comunidade política e o tipo de laço unindo cidadãos democráticos, i. e., a linguagem específica do intercâmbio civil que ele chama de res publica (idem, cap. 4). Também podemos, porém, inspirar-nos em Wittgenstein que, como demonstrei (MOUFFE, 2000), fornece insights muito importantes para uma crítica do racionalismo. Com efeito, em seu trabalho tardio, sublinhou o fato de que, para alcançarem-se acordos de opinião, deve haver acordo sobre formas de vida. Em sua ótica, concordar com a definição de um termo não é suficiente e precisamos de acordo sobre o modo que a utilizamos. Isso significa que os procedimentos devem ser entendidos como conjuntos de práticas. É porque estão inscritos em formas de vida compartilhadas e em acordos sobre juízos que os procedimentos podem ser aceitos e seguidos. Eles não podem ser vistos como regras que são criadas com base em princípios e então aplicadas a casos específicos. Regras para Wittgenstein são sempre abreviações de práticas, são inseparáveis de suas formas de vida específicas. Isso indica que uma distinção estrita entre “procedimental” e “substancial” ou entre “moral” e “ética” – distinções que são fundamentais para a abordagem habermasiana – não podem ser sustentadas. Procedimentos sempre envolvem compromissos éticos substanciais e não pode nunca haver procedimentos puramente neutros. Vistos de um tal ponto de partida, a lealdade à democracia e a crença no valor de suas instituições não dependem em dar-lhes uma fundação intelectual. Pertencem mais ao âmbito do que Wittgenstein comparou a um “compromisso apaixonado a um sistema de referência. Logo, apesar de ser crença, é realmente um modo de viver ou de avaliar-se uma vida” (WITTGENSTEIN, 1980, p. 85e). Ao contrário da democracia deliberativa, tal perspectiva também implica reconhecer os limites do consenso: “Onde dois princípios que não podem ser reconciliados realmente se encontram, cada homem declara o outro um tolo e um herético. Eu disse que ‘combateria’ o outro homem – mas não lhe daria razões? Certamente; mas quão longe iriam? Ao fim das razões, vem a persuasão” (WITTGENSTEIN, 1969, p. 81e). Ver as coisas dessa maneira deveria permitirnos perceber que levar o pluralismo a sério requer que se abra mão do sonho de um consenso racional que acarreta a fantasia de que poderíamos escapar de nossa forma de vida humana. Em nosso desejo de uma compreensão total, diz Wittgenstein, “aportamos sobre o gelo escorregadio onde não há fricção e, então, de certo modo, as condições são ideais, mas, também exatamente por isso, somos incapazes de andar: então precisamos de fricção. De volta ao terreno tosco” (WITTGENSTEIN, 1958, p. 46e). “De volta ao terreno tosco” aqui significa compreender o fato de que, longe de serem meram De volta ao terreno tosco” aqui significa compreender o fato de que, longe de serem meramen- 19 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 11-23 NOV. 2005 te empíricos ou epistemológicos, os obstáculos aos artifícios racionalistas são ontológicos. De fato, a deliberação pública livre e desimpedida de todos sobre matérias de interesse comum é uma impossibilidade conceitual, dado que formas particulares de vida que são apresentadas como seus “empecilhos” são sua própria condição de possibilidade. Sem elas, a comunicação ou a deliberação jamais adviriam. Não há justificação alguma para atribuir privilégio ao chamado “ponto de vista moral” governado pela racionalidade e pela imparcialidade e em que um consenso racional universal poderia ser alcançado. V. UM MODELO “AGONÍSTICO” DE DEMOCRACIA Além de dar ênfase às práticas e aos jogos de linguagem, uma alternativa ao quadro conceitual racionalista também requer entender o fato de que o poder é constitutivo das relações sociais. Um dos defeitos da abordagem deliberativa é que, ao postular a disponibilidade de uma esfera pública em que o poder teria sido eliminado e onde um consenso racional poderia ser produzido, este modelo de política democrática é incapaz de reconhecer a dimensão do antagonismo e seu caráter inerradicável, que decorre do pluralismo de valores. Eis o motivo por que esse modelo está fadado a menosprezar a especificidade do político, vislumbrado assim como um domínio particular da moralidade. A democracia deliberativa provê uma boa ilustração do que Schmitt expressou sobre o pensamento liberal: “De um modo muito sistemático, o pensamento liberal evade ou ignora o Estado e a política e manifesta-se, ao invés disso, em termos de uma típica e sempre recorrente polaridade de duas esferas heterogêneas, sabidamente a ética e a economia” (SCHMITT, 1976, p. 70). De fato, ao modelo agregativo, inspirado pela economia, a única alternativa que os democratas deliberativos podem opor é uma que reduz a política à ética. De maneira a remediar essa séria deficiência, precisamos de um modelo democrático capaz de apreender a natureza do político. Isso requer o desenvolvimento de uma abordagem que inscreve a questão do poder e do antagonismo em seu próprio centro. É tal perspectiva que advogo, cujas bases teóricas foram delineadas em Hegemony and Socialist Strategy (LACLAU & MOUFFE, 1985). A tese central do livro é a de que a objetividade social é constituída por meio de atos de poder. Isso implica que qualquer objetividade social é em última instância política e que ela tem de mostrar os traços de exclusão que governam a sua constituição. Esse ponto de convergência – ou de arruinamento mútuo – entre a objetividade e o poder é o que nós queremos dizer com “hegemonia”. Esse modo de apresentar o problema indica que o poder não deve ser concebido como uma relação externa acontecendo entre duas identidades préconstituídas, mas sim como constituindo as identidades elas mesmas. Considerando-se que qualquer ordem política é a expressão de uma hegemonia, de um padrão específico de relações de poder, a prática política não pode ser entendida como simplesmente representando os interesses de identidades pré-constituídas, mas como constituindo essas próprias identidades em um terreno precário e sempre vulnerável. Asseverar a natureza hegemônica de qualquer tipo de ordem social significa operar um deslocamento das relações tradicionais entre democracia e poder. De acordo com a abordagem deliberativa, quanto mais democrática uma sociedade, menos o poder será constitutivo das relações sociais. Se aceitarmos, contudo, que as relações de poder são constitutivas do social, então a questão principal para a política democrática não é como eliminar o poder, mas como constituir formas de poder mais compatíveis com valores democráticos. Compreender a natureza constitutiva do poder implica abandonar o ideal de uma sociedade democrática como a realização de perfeitas harmonia ou transparência. O caráter democrático de uma sociedade só pode ser dado na hipótese em que nenhum ator social limitado possa atribuir-se a representação da totalidade ou pretenda ter controle absoluto sobre a sua fundação. A democracia requer, portanto, que a natureza puramente construída das relações sociais encontre seu complemento nos fundamentos puramente pragmáticos das pretensões de legitimidade do poder. Isso implica que não haja nenhuma lacuna insuperável entre poder e legitimidade – obviamente não no sentido de que todo poder seja automaticamente legítimo, mas no sentido de que a) se qualquer poder é capaz de se impor, é porque foi reconhecido como legítimo em algumas partes e b) se a legitimidade não se baseia em um fundamento apriorístico, é porque se baseia em alguma forma de poder bem-sucedido. Essa conexão entre poder e legitimidade e a ordem hegemônica 20 POR UM MODELO AGONÍSTICO DE DEMOCRACIA que ela acarreta é precisamente o que a abordagem deliberativa renega ao estabelecer a possibilidade de um tipo racional de argumentação em que o poder foi eliminado e em que a legitimidade é fundada na racionalidade pura. Uma vez delimitado o terreno teórico, podemos começar a formular uma alternativa tanto ao modelo agregativo quanto ao modelo deliberativo – um modelo que proponho chamar de “pluralismo agonístico”5. Uma primeira distinção é necessária para esclarecer a nova perspectiva que estou formulando, a distinção entre “política” [politics] e “o político” [the political]. Por “o político” refiro-me à dimensão do antagonismo inerente às relações humanas, um antagonismo que pode tomar muitas formas e emergir em diferentes tipos de relações sociais. A “política”, por outro lado, indica o conjunto de práticas, discursos e instituições que procuram estabelecer uma certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que são sempre conflituais porque são sempre afetadas pela dimensão do “político”. Considero que é apenas quando reconhecermos a dimensão do “político” e entendemos que a “política” consiste em domesticar a hostilidade e em tentar conter o potencial antagonismo que existe nas relações humanas que seremos capazes de formular o que considero ser a questão central para a política democrática. Essa questão, vênia aos racionalistas, não é a de como tentar chegar a um consenso sem exclusão, dado que isso acarretaria a erradicação do político. A política busca a criação da unidade em um contexto de conflitos e diversidade; está sempre ligada à criação de um “nós” em oposição a um “eles”. A novidade da política democrática não é a superação dessa oposição nós-eles – que é uma impossibilidade –, mas o caminho diferente em que ela é estabelecida. O ponto crucial é estabelecer essa discriminação nóseles de um modo compatível com a democracia. Vislumbrada a partir da óptica do “pluralismo agonístico”, o propósito da política democrática é construir o “eles” de tal modo que não sejam percebidos como inimigos a serem destruídos, mas como adversários, ou seja, pessoas cujas idéias são combatidas, mas cujo direito de defender tais idéias não é colocado em questão. Esse é o verdadeiro sentido da tolerância liberal-democrática, a qual não requer a condescendência para com idéias que opomos, ou indiferença diante de pontos de vista com os quais discordamos, mas requer, sim, que tratemos aqueles que os defendem como opositores legítimos. A categoria de “adversário”, todavia, não elimina o antagonismo e ela deve ser distinguida da noção liberal do competidor com que ela é identificada algumas vezes. Um adversário é um inimigo, mas um inimigo legítimo, com quem temos alguma base comum, em virtude de termos uma adesão compartilhada aos princípios ético-políticos da democracia liberal: liberdade e igualdade. Discordamos, porém, em relação ao sentido e à implementação dos princípios e não se pode resolver tal desacordo por meio de deliberação ou de discussão racional. De fato, dado o pluralismo inerradicável de valores, não há solução racional para o conflito – daí a sua dimensão antagonística6. Isso não significa, obviamente, que adversários não possam cessar de discordar, mas isso não prova que o antagonismo foi erradicado. Aceitar a visão do adversário significa passar por uma mudança radical de identidades políticas. É mais uma espécie de conversão do que um processo de persuasão racional (do mesmo modo que Thomas Kuhn argumentou que a adesão a um novo paradigma científico é uma conversão). Pactos [compromises] certamente são também possíveis; eles são parte integrante do cotidiano da política, mas deveriam ser vistos como interrupções temporárias de uma confrontação contínua. 6 Essa dimensão antagonística, que não pode nunca ser completamente eliminada mas apenas “domada” ou “sublimada” ao ser, por assim dizer, “exaurida” de um modo agonístico, é o que, em minha perspectiva, distingue meu entendimento de agonismo daquele formulado por outros “teóricos agonísticos”, os que são influenciados por Nietzsche ou Hannah Arendt, como William Connolly ou Bonnie Honig. Parece-me que suas concepções deixam aberta a possibilidade de que o político, sob algumas condições, torne-se absolutamente congruente com o ético – otimismo de que não compartilho. 5 O “pluralismo agonístico” como definido aqui é uma tentativa de operar o que Richard Rorty chamaria de “redescrição” do auto-entendimento básico do regime liberal-democrático, que enfatiza a importância de reconhecerse a sua dimensão conflitual. Deve ser portanto distinguido do modo pelo qual o mesmo termo é usado por John Gray para referir-se à rivalidade mais larga entre formas de vida inteiras, as quais ele vê como “a verdade mais profunda da qual o agonismo liberal é apenas um exemplo” (GRAY, 1995, p. 84). 21 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 11-23 NOV. 2005 Introduzir a categoria do “adversário” requer tornar complexa a noção de antagonismo e a distinção de duas formas diferentes mediante as quais ela pode emergir: o antagonismo propriamente dito e o agonismo. O antagonismo é a luta entre inimigos, enquanto o agonismo representa a luta entre adversários. Podemos, portanto, reformular nosso problema dizendo que, desde a perspectiva do “pluralismo agonístico”, o propósito da política democrática é transformar antagonismo em agonismo. Isso demanda oferecer canais por meio dos quais às paixões coletivas serão dados mecanismos de expressarem-se sobre questões que, ainda que permitindo possibilidade suficiente de identificação, não construirão o opositor como inimigo, mas como adversário. Uma diferença importante em relação ao modelo da democracia deliberativa é que, para o “pluralismo agonístico”, a tarefa primordial da política democrática não é eliminar as paixões da esfera do público, de modo a tornar possível um consenso racional, mas mobilizar tais paixões em prol de desígnios democráticos. Uma das chaves para a tese do pluralismo agonístico é que, longe de pôr em risco a democracia, a confrontação agonística é, de fato, sua condição de existência. A especificidade da democracia moderna reside no reconhecimento e na legitimação do conflito e na recusa de suprimi-lo pela imposição de uma ordem autoritária. Rompendo com a representação simbólica da sociedade como um corpo orgânico – que era característica do modo holístico de organização social –, uma sociedade democrática reconhece o pluralismo de valores, o “desencantamento do mundo” diagnosticado por Max Weber e os conflitos inevitáveis que dele decorrem. Concordo com aqueles que afirmam que uma democracia pluralista exige um certo volume de consenso e que ela requer a lealdade aos valores que constituem seus “princípios ético-políticos”. Entretanto, dado que tais princípios ético-políticos só podem existir por meio de muitas interpretações diferentes e conflitantes, esse consenso está fadado a ser um “consenso conflituoso”. Esse é, com efeito, o terreno privilegiado de confrontação agonística entre adversários. Idealmente, tal confrontação deveria ser observada em torno das diversas concepções de cidadania que correspondem às diferentes interpretações dos princípios ético-políticos: liberal-conservadora, social-democrata, neoliberal, radical-democrática e assim por diante. Cada uma delas propõe a sua própria interpretação do “bem comum” e tenta implementar uma forma diferente de hegemonia. Para alimentar a lealdade a suas instituições, o sistema democrático requer a disponibilidade daquelas formas de identificação com a cidadania em disputa. Elas provêem o terreno em que as paixões podem ser mobilizadas em torno de objetivos democráticos e o antagonismo transformado em agonismo. Uma democracia em bom funcionamento demanda um embate intenso de posições políticas. Se faltar isso, há o perigo de que a confrontação democrática seja substituída por uma confrontação dentre outras formas de identificação coletiva, como é o caso da política da identidade. Muita ênfase no consenso e a recusa de confrontação levam à apatia e ao desapreço pela participação política. Ainda pior, o resultado pode ser a cristalização de paixões coletivas em torno de questões que não podem ser manejadas [managed] pelo processo democrático e uma explosão de antagonismo que pode desfiar os próprios fundamentos da civilidade. É por essa razão que o ideal de uma democracia pluralista não pode ser alcançar um consenso racional na esfera pública. Esse consenso não pode existir. Devemos aceitar que cada consenso existe como resultado temporário de uma hegemonia provisória, como estabilização do poder e que ele sempre acarreta alguma forma de exclusão. Idéias de que o poder poderia ser dissolvido por meio de um debate racional e de que a legitimidade poderia ser baseada na racionalidade pura são ilusões que podem colocar em risco as instituições democráticas. O que o modelo da democracia deliberativa está denegando é a dimensão da “indecisibilidade” e da indefectibilidade do antagonismo, que são constitutivas do político. Ao postularem a disponibilidade de uma esfera pública não-exclusiva de deliberação em que se poderia obter um consenso racional, os autores que defendem tal modelo negam o caráter inerentemente conflitual do pluralismo moderno. Eles são incapazes de reconhecer que pôr fim à deliberação sempre resulta de uma decisão que exclui outras possibilidades e pela qual não se deve deixar de assumir responsabilidade com o apelo a comandos de regras gerais ou princípios. Eis porque uma perspectiva como o “pluralismo agonista”, que revela a impossibil dade de estabelecer um consenso sem exclusão, é de fundamental importância para a política democrática. Ao precaver-nos contra a ilusão de que uma democracia perfeitamente bem-sucedida possa ser alcançada, força-nos a manter viva a contestação democrática. Abrir caminho para o dissenso e promover as instituições em que possa ser manifestado é vital para uma democracia pluralista e deve-se abandonar a própria idéia segundo a qual poderia haver um tempo em que pudesse deixar de ser necessário, pois que a sociedade seria a tal ponto bem-ordenada. Uma abordagem “agonística” reconhece os limites reais de tais fronteiras e as formas de exclusão que delas decorrem, ao invés de tentar disfarçá-los sob o véu da racionalidade e da moralidade. Compreendendo a natureza hegemônica das relações sociais e identidades, nossa abordagem pode contribuir para subverter a sempre presente tentação existente nas sociedades democráticas de naturalizar suas fronteiras e “essencializar” as suas identidades. Por essa razão, ele é muito mais receptivo do que o modelo deliberativo à multiplicidade de vozes que as sociedades pluralistas contemporâneas abarcam e à complexidade de sua estrutura de poder. Chantal Mouffe (mouffec@wmin.ac.uk) é Professora de Teoria Política na Universidade de Westminster (Inglaterra) e cientista política formada pelas universidades de Louvain, Paris e Essex. Lecionou em diversas universidades da Europa, América do Norte e América Latina; organizou os livros Gramsci and Marxist Theory, Dimensions of Radical Democracy, Deconstruction and Pragmatism e The Challenge of Carl Schmitt; é co-autora (com Ernesto Laclau) de Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics (1985) e autora de The Return of the Political (1993), The Democratic Paradox (2000) e On the Political (2005). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENHABIB, S. 1996. Toward a Deliberative Model of Democratic Legitimacy. In : _____. (ed.). Democracy and Difference. Princeton : Princeton University. COHEN, J. 1998. Democracy and Liberty. In : ELSTER, J. (ed.). Deliberative Democracy. Cambridge, Mass. : Cambridge University. DOWNS, A. 1957. An Economic Theory of Democracy. New York : Harper & Row. GRAY, J. 1995. Enlightenment’s Wake : Politics and Culture at the Close of the Modern Age. London : Routledge. HABERMAS, J. 1991. Further Reflections on the Public Sphere. 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