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sexta-feira, 23 de junho de 2023
Marx e Vera Zasulitch,
Vera Zasulitch,
Marx: a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da Revolução
Marx: a russian peasant commune and the marxian theory of the Revolution
Nilo Sérgio Silva Aragão
Resumo: Durante os anos 1872 e 1883 – ano de sua morte –, Karl Marx aprendeu russo para se dedicar a um estudo de grande fôlego sobre as possibilidades de transformação social da Rússia, particularmente sobre o papel que a comuna rural russa poderia desempenhar em uma transição ao socialismo. Torna-se cada vez mais clara nesses estudos, cartas, textos, prefácios, uma concepção nãolinear e não-determinista de história. Essa abertura a uma pluralidade de formas da transição ao socialismo tem uma enorme importância no debate sobre a revolução na Rússia e nos países atrasados, nas vicissitudes dos bolcheviques no poder e do papel das classes populares nos processos revolucionários. Essa concepção da história como totalização aberta, como processo de disputa que é feito e refeito na transformação da realidade, posiciona Marx como um autor que propõe uma antifilosofia e, assim, confronta toda a tradição que isolou a filosofia da vida, das dores e mudanças do mundo.
Palavras-chave: Marx e Marxismo. Comuna Russa. Revolução. Transição Socialista.
Abstract: During the years 1872 and 1883 - the year of his death -, Karl Marx learned Russian in order to dedicate himself to a great study about the possibilities of social transformation of this country, particularly on the role that the rural Russian commune could perform in the transition to the socialism. In these studies, letters, texts, prefaces, a non-linear and non-deterministic conception of history becomes increasingly clear. This openning to a plurality of forms of the transition to socialism is of great importance to the debate about the revolution in Russia and in back countries, in vicissitudes of the Bolsheviks in power and in the role of the popular classes in the revolutionary processes. This conception of history as open totalization, as a process of dispute that is made and remade in the transformation of reality, positions Marx as an author who proposes an antiphilosophy and, thus, confronts the whole tradition that isolated of life and pains and world changes the philosophy.
Keywords: Marx and Marxism. Russian Commune. Revolution. Socialist Transition.
Este artigo busca iniciar um processo de mapeamento das concepções de Marx, sobretudo, e Engels, sobre as possibilidades revolucionárias na Rússia a partir do final do século XIX, entrecruzando-se com as suas considerações a respeito do processo histórico desigual e combinado do capitalismo. Se como afirma Étienne Balibar, Marx é “antifilósofo” ao propor uma não-filosofia, é legítimo imaginar que está, assim, lançado um desafio que exige da filosofia sua reaproximação transformadora da realidade, como Marx declara na décima primeira das Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, imposta é transformá-lo” (MARX, 2007, p. 613).
Assim, teremos em Marx uma “crítica do progresso”, não como abstração, mas como resultado concreto da análise histórica, que só pode efetivar-se em um programa de transformação radical da vida social, das relações de produção e propriedade que compreende as contradições presentes neste procedimento. O filósofo Daniel Bensaid esclarece que não temos uma proposição do tipo “filosofia da história em seu sentido único”. A ambição é outra, mais profunda e impactante: simplesmente “uma nova escrita da história” (BENSAID, 1999, p. 13). Em sua avaliação, o alfabeto dessa nova escrita,
[...] já vem proposto nos Grundrisse. O Capital, portanto, põe em ação uma nova representação da história e uma organização conceitual do tempo como relação social: ciclos e rotações, ritmos e crises, momentos e contratempos estratégicos. A antiga filosofia da história extingue-se, por um lado, na crítica do fetichismo mercantil e, por outro, na subversão política da ordem estabelecida. (BENSAID, 1999, p. 13).
É, desse modo, que a crítica da razão histórica impõe uma dimensão mais ampla e incerta, que exige novos meios para poder desvendar a processualidade do real e contribuir com sua superação. Se O Capital é um momento ímpar nessa nova escrita a exigir um novo alfabeto, se, como propõe Bensaid, esse procedimento inovador já se encontra nos Grundrisse e se desenvolve na obra mais significativa de Marx, ele não termina aí. Não isento de tensões teleológicas e ainda presas às “ideologias do progresso”, é no debate sobre as condições russas que Marx e Engels afinam suas concepções sobre o papel das determinações históricas. Daí sua relevância e a necessidade de seu estudo.
Em 1911, David Riazanov, militante marxista e revolucionário ucraniano, encontra entre os papéis de Paul Lafargue – militante socialista e um dos testamenteiros de Marx – esboços de uma carta de K. Marx. Sua destinatária era a revolucionária russa Vera Zasulitch, que pertencia a uma fração dissidente do movimento narodiniki – os chamados “populistas” russos. O movimento narodiniki havia surgido em meados do século XIX como uma opção política para a intelligentsia russa diante dos impasses e possibilidades do futuro do país: era necessário “ir ao povo” – povo concebido como o camponês russo – em que sobreviveria um espírito e uma prática comunitária em decorrência da sobrevivência da propriedade camponesa coletiva. O encontro entre a intelligentsia e o mujique permitiria criar uma solução russa para o problema do progresso do país. Assim
A “campanha ‘Ir ao Povo’ em 1873-1874, mobilizou milhares de jovens universitários que abandonaram os bancos escolares e foram para o campo viver, trabalhar, comer e vestir como os camponeses, e organizá-los para a revolução” (FERNANDES, 1982, p. 31).
Esse poderoso movimento foi levado a um impasse pelo seu próprio sucesso, pois instalou-se uma forte repressão por parte do governo czarista. E por isso, na busca de viabilizar a atividade prático-política interditada pela violência policial, as prisões, os exílios siberianos, a organização mais forte entre os narodinikis, o “Terra e Liberdade”, adota uma postura de ação direta: a violência estatal deveria ser respondida com a violência popular. E o principal alvo deveria ser a fonte original dessa violência, no caso do hipercentralizado Estado russo, o próprio czar; objetivo que alcançam em 13 de março de 1881 – um bem-sucedido atentado a dinamite mata o czar Alexandre II.
Sobre o movimento pesou, então, uma ainda mais brutal repressão que destrói a liderança da organização Terra e Liberdade. O grupo A Vontade do Povo assume a continuidade dessa tarefa política revolucionária. Entretanto, uma organização minoritária que havia defendido a manutenção dos objetivos originais do movimento narodiniki, intitulada Partilha Negra, já emigrada para o Ocidente e radicada em Genebra, desviando-se da tradição narodiniki, aproximava-se da obra de Marx e Engels através da leitura de sua obra maior, O Capital. Faziam parte desse grupo, que em 1883 fundaria A Emancipação do Trabalho, a primeira organização marxista da Rússia, nomes como Georgi Plekhanov, Vera Zasulitch e Pavel Axelrod – futuros líderes da fração menchevique do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR).
É em nome desse grupo de exilados que refletiam sobre a derrota da fração majoritária do “populismo” russo que Vera escreve a Marx em fevereiro de 1881. Zasulich, além de fazer parte do grupo dirigente da Partilha Negra, tinha ficado bastante conhecida por atirar “no governador de São Petersburgo, Trepov, por açoitar um prisioneiro”. Julgada, é inocentada, em um grande e rumoroso julgamento político (SANDERS, 2017, p. 254).
Em sua carta, Zasulich comunica a Marx o sucesso de sua obra – apesar do confisco ordenado pelo governo. Segundo ela “as poucas cópias remanescentes foram lidas e relidas pela massa de pessoas mais ou menos instruídas de nosso país; homens sérios o estudaram” (ZASULITCH, 2017, p.146). Zasulitch aponta, ainda, que a obra desempenha um papel central no debate sobre a questão agrária russa – um tema absolutamente decisivo para o movimento narodiniki. Para ela, essa questão é “de vida ou morte, sobretudo para nosso partido socialista” e é expressa na forma de duas, e somente duas, possibilidades: a primeira, que a comuna rural, libertando-se da opressão estatal e da nobreza, na forma de impostos e má administração, seja capaz de organizar a “produção e distribuição em bases coletivistas” (Ibid, p.146/147). Caso isso ocorresse, a via socialista na Rússia passaria necessariamente pela comuna camponesa e seria a obrigação do movimento socialista investir suas forças “em prol da liberação e do desenvolvimento da comuna”. Contudo, e aqui temos a segunda possibilidade, se “a comuna está destinada a perecer” todo o trabalho socialista entre o campesinato é esforço destinado ao fracasso. A atividade política socialista deveria “conduzir a propaganda apenas entre os trabalhadores das cidades, que serão continuamente inundados pela massa camponesa que, com a dissolução da comuna, será jogada nas ruas, em busca de um salário” (Ibid, p.146/147). Apresentado o dilema, Zasulitch solicita ao Cidadão Marx uma opinião:
Você estaria nos fazendo um grande favor se apresentasse suas ideias sobre o possível destino de nossa comuna rural e sobre a teoria de que é historicamente necessário que cada país do mundo passe por todas as etapas do desenvolvimento capitalista. Por fim, propõe ao menos uma carta a ser publicada por ela e seus amigos na Rússia (Ibid, p. 147-148).
As simpatias do grupo Partilha Negra estavam com a segunda hipótese. Sua leitura de O Capital era feita de um ponto de vista determinista: a destruição da comunidade camponesa seria inevitável, e desejável, posto que era parte da passagem do feudalismo ao capitalismo. Sem o pleno desenvolvimento do capitalismo, não haveria possibilidade para ao socialismo. E o apelo à autoridade de Marx – e, por outro caminho, de Engels – era uma convergência de interesses com estudos que ambos já desenvolviam sobre a Rússia. Engels, em 1875, expõe assim as causas do olhar atento que o movimento operário e revolucionário alemão deveria ter sobre o império czarista:
A evolução dos eventos na Rússia se reveste da maior importância para a classe trabalhadora alemã. O Império Russo que aí está constitui o último grande esteio de todo reacionarismo europeu ocidental [...]. Nenhuma revolução poderá obter a vitória definitiva na Europa ocidental enquanto ao seu lado ainda existir o Estado russo [...]. A derrubada do Estado czarista russo e a destituição de seu império, constituem, portanto, uma das primeiras condições para a vitória definitiva do proletariado alemão (ENGELS, 2013, p. 34).
Podemos constatar que Engels tem sobre a situação da vida camponesa russa uma avaliação negativa: o polo revolucionário se encontra na Europa ocidental, sendo o czarismo russo e seus exércitos a última e mais formidável reserva da contrarrevolução. Apesar de reconhecer que existiam elementos internos ao império que atuavam para derrubá-lo, sendo destacado o papel dos poloneses, Engels tem uma visão bastante negativa da realidade do campesinato russo.
O fato é que a massa do povo russo, os camponeses, há séculos vegeta, de geração em geração, numa espécie de pântano a-histórico; e a única variação que talvez tenha interrompido esse estado letárgico foram algumas revoltas infrutíferas, que só levaram a novas opressões por parte da nobreza e do governo (Ibid, p. 35-36).
Porém, Engels alerta que abolição da servidão (1861), ainda que obra do Estado czarista, iria impelir os camponeses ao “movimento histórico”. O aumento da miséria devido a “esperteza” da medida czarista geraria mais insatisfação e essa insatisfação camponesa “já é um fato que tem de ser levado em conta tanto pelo governo quanto por todos os insatisfeitos, incluindo os partidos de oposição” (Ibid, 2013, p. 35-36).
O trecho acima citado é uma apresentação a um conjunto de textos intitulada “Literatura de Refugiados”, escrita e publicada entre 1874 e 1875. Especificamente o caso russo é tratado nos artigos 3, 4 e 5, tendo caráter de polêmica com os narodinikis – ainda que com visões diferentes do processo político russo – P. Lavrov e P. Tkatchov. O interesse de Marx e Engels sobre a Rússia os levou a estudo da língua e à leitura de uma grande quantidade de livros sobre o país. É adequado lembrar que O Capital foi traduzido pela primeira vez para o russo, já em 1872, pelo narodiniki N. Danielson, após traduções não-concluídas de G. Lopatin e M. Bakunin.
É em 1877, contudo, que a posição de Marx sobre a Rússia recebe uma clara nova inflexão. Como já vimos, a obra de Marx despertara grande interesse na Rússia. Um historiador comunista inglês afirma que, na Europa oriental, “nenhuma outra explicação do fenômeno que transformou o século XIX em modernidade podia competir com o marxismo, cuja influência tornou-se correspondentemente profunda” – o que não seria o caso da Europa ocidental. Além disso, na Rússia “terra de um estrato social desajustado, a ‘intelligentsia’ crítica, produziu leitores devotados de O Capital antes de qualquer outro país”. (HOBSBAWN, 2011, p. 203). Nesses intensos debates, o economista J. Jukovski publica no influente periódico O Contemporâneo uma dura crítica à obra de Marx. Em defesa do autor alemão vem N. Mikhailovsky. Em sua revista Notas Patrióticas publica o artigo K. Marx sob o julgamento do Sr. J. Jukovski. Ainda que muitos contemporâneos russos de Mikhailovsky vissem em seu texto uma defesa um tanto irônica da obra de Marx, ele próprio não entendeu assim e, como veremos, apressou-se em responder-lhe.
Mikhailovsky afirma que na sétima seção de O Capital, o capítulo intitulado A assim chamada acumulação primitiva, teria pretendido “traçar aí um esboço histórico dos primórdios do modo de produção capitalista”, mas teria ido muito além pois “traçou toda uma teoria histórico-filosófica”. (MIKHAILOVSKY, 1982, p. 159). Mikhailovsky avança na descrição do processo de separação dos meios de produção dos produtores, indicando a necessidade desse processo para a criação de uma classe de trabalhadores apta a vender livremente sua força de trabalho, que seria encontrado em toda realidade capitalista. Sua leitura de Marx leva até a afirmar que o processo da acumulação primitiva “foi difícil, penoso e longo, com séculos de duração, mas, sem dúvidas, necessário” (Ibid, 1982, p. 160). Sem deixar de elogiar a cientificidade e a capacidade de rigor lógico da análise marxiana, Mikhailovsky conclui que para o leitor russo, essa bela exposição traria mais problemas que soluções. Um deles: o processo de expropriação servil/camponesa não teria avançado tanto na Rússia quanto na Europa. Assim, Mikhailovsky conclui que, aqueles que se apoiassem nas ideias de Marx para interpretar a Rússia se veriam no dilema de afirmar que “deveríamos percorrer aquele mesmo processo descrito e elevado ao status de uma teoria histórico-filosófica por Marx” (Ibid, 1982, p. 162). Diz mais: citando uma passagem em que Marx aponta as tragédias que acompanham o processo da acumulação primitiva de forma “cáustica”, saca da leitura do texto marxiano a conclusão da inevitabilidade bem-vinda da acumulação primitiva, pois:
[...] do ponto de vista da teoria histórica de Marx, nós não deveríamos protestar contra elas, pois isto seria o equivalente a agir contra os nossos interesses; e mais, deveríamos saudá-las com alegria como degraus necessários, ainda que árduos, na subida em direção ao templo da felicidade. (Ibid, p. 163).
A visão de Marx como um determinista defensor da inevitabilidade dos violentos e cruéis processos da acumulação primitiva capitalista, de produtor de uma filosofia da história regida pela teleologia da necessidade histórica, leva Marx a escrever para a revista uma resposta. Não a enviou, entretanto. Engels desconhecia a razão do não envio e só tomou conhecimento dela depois da morte de Marx em março de 1883. Em março de 1884 a carta de Marx é enviada para Genebra ao grupo “Emancipação do Trabalho”, aos cuidados de Vera Zasulitch. Porém, os jovens convertidos ao marxismo não a publicam (FERNANDES, 1982, p. 158). Será publicada pela revista O Mensageiro da Vontade do Povo, fora da Rússia, em 1886. Duas publicações anteriores feitas na Rússia haviam quase que totalmente caído nas mãos da polícia russa. Em 1888, com tradução de N. Danielson ocorre a primeira publicação em veículo legal dessa carta de Marx. (MARX & ENGELS, 2013, p. 60-61).
A resposta de Marx primeiramente enfrenta as acusações de ser um detrator do pensamento de A. Herzen. Essa pequena passagem, publicada como apêndice de O Capital – e retirada na segunda edição revista e corrigida do primeiro volume, publicada na cidade de Hamburgo em 1872 – não está no cerne da avaliação de Marx, como ele mesmo afirma em carta ao redator da publicação Notas Patrióticas. Ao contrário,
Minha apreciação desse escritor pode ser justa ou pode ser falsa, mas em nenhum caso ela fornecerá a chave da minha visão sobre os esforços ‘dos homens russos para encontrar o caminho do desenvolvimento para sua pátria, diferente daquele que foi e é trilhado pela Europa ocidental’ (MARX, 2013, p. 65).
A comprovação de seu argumento – contrário tanto a Jukovski quanto a Mikhailovsky – é seu elogio a N. Tchernichevski. Sendo o grande autor russo favorável a comuna rural preservada e desenvolvida, poderia servir de base a um processo histórico que não passasse pelas “torturas” da acumulação primitiva. Tendo assim afirmado sua concordância com Tchernichevski, reafirma, a fim de evitar deixar algo “para ser adivinhado”, sua dedicação à língua russa e ao estudo de suas realidades econômicas e esclarece que o resultado alcançado por anos de estudo foi que “se a Rússia prosseguir no rumo tomado depois de 1861, ela perderá a melhor chance que a história já ofereceu a um povo, para, em vez disso, suportar todas as vicissitudes fatais do regime capitalista. (Ibid p. 66). Para Michael Löwy, esse pequeno documento é de grande importância, pois impede qualquer leitura
unilinear, evolucionista, ‘etapista’ e eurocêntrica do materialismo histórico. A partir de 1877, eles sugerem que ainda que não de forma desenvolvida, uma perspectiva dialética, policêntrica, que admite uma multiplicidade de formas de transformação histórica, e, sobretudo, a possibilidade que as revoluções sociais modernas comecem na periferia do sistema capitalista [...] (LÖWY, 2013, p. 9).
Assim, a carta que Vera Zasulitch envia a Marx lhe dá margem para pensar e clarear suas opiniões e análises sobre o desenvolvimento econômico e social da Rússia e as possibilidades revolucionárias daí decorrentes, para além do que havia feito em seu debate com Mikhailoski. Seu interesse é crescente pela Rússia, após finalizar a redação do primeiro volume de O Capital, publicado em 1867. Segundo Teodor Shanin, na década final de vida de Marx entre 1872 e 1882, “houve uma crescente interdependência entre suas análises das realidades da Rússia e o movimento revolucionário russo”, ou seja, o movimento narodiniki (SHANIN, 2017, P. 26). Talvez por isso, sua hesitação em responder a carta, pois produz quatro rascunhos antes de encontrar uma forma final. Seu papel na nova escrita da história que Marx teria iniciado em “O Capital”, como afirma um filósofo marxista francês:
Se Marx retomasse por sua conta a teodiceia hegeliana do Espírito, o encadeamento mecânico dos modos de produção para o comunismo desfiaria simplesmente as etapas de uma marcha inexorável para o paraíso recuperado. Suas célebres cartas a Vera Zassulich sobre a Rússia desmentem categoricamente tal possibilidade (BENSAID, 1999, p 50-51).
Quais são os argumentos de Marx, quais conceitos desenvolve ao buscar a conexão entre o desenvolvimento histórico-econômico da Rússia, a luta de classes e as possibilidades revolucionárias neste país? E por qual razão foram necessários quatro rascunhos, posto que o tema da comuna rural russa e seu possível papel na transição ao socialismo não era novo para Marx?
A segunda questão recebeu uma multiplicidade de respostas. Rubens César Fernandes, um pioneiro do estudo desses documentos e temas no marxismo brasileiro, aponta várias razões: a variedade de tendências narodinikis existentes e, em particular, a estranha tendência chamada de marxismo legal – que usava as teorias de Marx para defender a necessidade de desenvolver o capitalismo na Rússia; a preocupação em atender a dois grupos diferentes, pois, a carta de Zasulitch representava a busca da chancela de Marx às teses da Partilha Negra e o comitê executivo de A Vontade do Povo solicitara a Marx uma brochura sobre o mesmo tema – o que Marx teria prometido, mas não cumprido. Para Fernandes, diante da situação “Marx primou pelo cuidado: escreveu três longos rascunhos, detalhadamente corrigidos, que afinal foram guardados e substituídos por uma carta de duas páginas” (FERNANDES, 1982, p. 169170). Assim, para Fernandes, a razão fundamental para os três rascunhos – maiores que a carta final – estava em seu extremo cuidado no trato do tema, diante da possibilidade de apropriação política indevida, no quadro de repressão e censura vivido na Rússia.
Foi David Riazanov quem encontrou os rascunhos da carta entre os papeis de Marx que se encontravam com seu genro, Paul Lafargue. Cabe lembrar que Riazanov se comunica imediatamente após o encontro dos rascunhos com G. Plekhanov, que nega o conhecimento da carta. Entretanto, a memória do próprio Riazanov registrava um evento ligado às cartas e aos líderes mencheviques:
eu me lembrava de ter ouvido, durante minha estadia na Suíça em 1883, uma narrativa por vezes fantástica sobre uma troca de correspondências entre o grupo Emancipação do Trabalho e Marx sobre a comuna camponesa russa. Circulavam até mesmo anedotas muito inverossímeis sobre um embate pessoal entre Plekhanov, que nega a propriedade comunal, e Marx, que a teria defendido (RIAZANOV, 2013, p. 71).
Entretanto, em 1923, o pesquisador B. Nicolaievski encontra nos arquivos de P. Axelrod, outro líder da Partilha Negra e fundador do grupo A Emancipação do Trabalho, uma carta de Marx que era a reprodução reduzida de um dos esboços. Segundo Riazanov, Nicolaievski era da opinião “de que a insatisfação de Marx com o grupo Partilha Negra fez com que ele tivesse deixado de escrever algo franco e detalhado” (Ibid, 2013, p. 71). Para Riazanov duas razões se impõe a uma carta tão mais curta que os rascunhos e mesmo para tantos rascunhos: “a única coisa que o impediu de responder tão extensamente como havia planejado foi sua própria capacidade de trabalho, já solapada, cujas marcas se percebem nos esboços”. Além disso, cita com aprovação a tese de E. Bernstein que o ceticismo de Marx diante das possibilidades da transição socialista se basear na comuna camponesa russa não era claramente expresso a fim de não “decepcionar demais” os revolucionários russos
(Ibid, p. 73-74).
Polêmica antiga, como se vê, dentro dos próprios círculos revolucionários russos. Para Teodor Shanin, a questão é muito maior que a preocupação com o ânimo dos revolucionários russos ou um eventual declínio intelectual. Para ele, Marx havia desenvolvido “uma consciência crescente a respeito de um novo problema fundamental”. A escrita de quatro rascunhos “atestam o tamanho do trabalho e do pensamento que lhe dão base – como se toda uma década de estudos de Marx com suas 30 mil páginas de notas, embora sem nenhum texto finalizado, viesse junto” (SHANIN, 2017, P. 42). Assim, os esboços e a carta a Vera Zasulitch e ao grupo Partilha Negra – que não a publicaram ou divulgaram – seria um ponto decisivo nos estudos de Marx sobre a Rússia e um desdobramentos de seus estudos históricos já presentes nos Grundrisse sobre as formações econômicas pré-capitalistas.
Jean Tible lembra que Marx havia lido e comentado, entre 1874 e 1875, o livro de M. Bakunin, Anarquismo e Estatismo e que, apesar dos comentários nada simpáticos de Marx, as críticas de Bakunin às “características primitivas” da comunidade rural russa, teriam exercido certa influência sobre as análises de Marx (TIBLE, 2017, p. 79). Éttienne Balibar considera que as críticas de Marx a Bakunin e ao Programa de Gotha, em 1875, repõem a questão do “enfraquecimento do Estado na transição para o comunismo”. Há uma “abertura comparável” na correspondência russa de Marx (BALIBAR, 1995, p. 126-127). Considerando que o tema não era novo para Marx, o filósofo francês propõe outra solução para as hesitações presentes na redação de quatro rascunhos e numa resposta final excessivamente tímida. Para ele, Marx teria dificuldade em assumir claramente a formulação nova de sua ideia, pois “o que é proposto nesses textos, portanto, é a ideia da multiplicidade concreta de vias de desenvolvimento histórico”. Mais ainda,
através de uma surpreendente reviravolta da situação, sob pressão de uma questão vinda do exterior (e com certeza também das dúvidas suscitadas nele quanto a exatidão de algumas de suas próprias formulações, pela aplicação que lhe propõe então os ‘marxistas’) o economismo de Marx dá à luz o seu contrário: um conjunto de hipóteses antievolucionistas. (BALIBAR, 1995, p. 128).
No prefácio à primeira edição de O Capital, logo após reconhecer que seus estudos se centram na Inglaterra e citar, especificamente, que nada serviria aos alemães imaginarem que não se falava deles, pois então Marx teria de gritar-lhes “A fábula fala de ti!”, anuncia que “O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro” (MARX, 2017, p. 77). A leitura de O Capital como um texto evolucionista não foi feita apenas pelos russos. Saudando a Revolução de 1917, A. Gramsci, jovem redator do jornal socialista Avanti, propõe ser ela uma “uma revolução contra O Capital de Karl Marx”. E argumenta que
O Capital de Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais do que dos proletários (...) Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos dentro dos quais a história da Rússia deveria se desenvolver segundo os cânones do materialismo histórico. Os bolcheviques renegam Karl Marx: afirmam – e com o testemunho da ação explicitada, das conquistas realizadas – que os cânones do materialismo histórico não são tão férreos como se poderia pensar e se pensou. (GRAMSCI, 2011, p.62).
Quais são, então, os centros teóricos e seus desdobramentos práticos presentes nesses rascunhos durante tanto tempo esquecidos, nessa carta-documento solicitada para arbitrar divergências e proclamar um lado como correto, que termina por ser suprimida e retornar como um fantasma ao debate, após a tão ansiada revolução ter sido vitoriosa em 1917 e muitas vezes mais depois?
1. O primeiro esboço
Em seu primeiro esboço, não datado, Marx desenvolve um primeiro argumento. O processo por ele descrito no capítulo sobre a acumulação primitiva de capital falava do processo histórico inglês e apontava sua generalização pela Europa ocidental. Para demonstrar sua posição, cita a passagem de O Capital em havia escrito que a história dessa expropriação
[...] assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássica (MARX, 2017, p. 787-788)
para logo depois reafirmar a generalidade cheia de diversidade desse desenvolvimento para a Europa ocidental. Destaca, com outra citação de O Capital, que o processo inglês que antecipa de forma não-linear eventos europeus ocidentais de expropriação, são do tipo em que “propriedades nanicas de muitos em propriedade gigantesca de poucos” (Ibid, p. 831). A partir daí, aponta que
ocorre a transformação de uma forma de propriedade privada em outra forma de propriedade privada. A terra nas mãos dos camponeses russos jamais foi a a sua propriedade privada; então como se aplicaria esse desenvolvimento? (MARX, 2013, p. 89).
Argumento que é histórico e também lógico, como se vê.
Seu segundo argumento enfrenta os defensores da “dissolução fatal”: considerando que a comuna rural camponesa não é uma exclusividade russa. E sim “um tipo mais ou menos arcaico de propriedade comum” que “se encontra em toda parte da Europa ocidental” e que “desapareceu completamente” porque acreditar na Rússia seria diferente? A resposta de Marx é singela e cortante: um conjunto único de características históricas tinha preservado a comuna rural russa em escala nacional. Sua “contemporaneidade da produção capitalista” possibilitaria uma superação de suas características primitivas – já criticadas por Bakunin em artigo lido e comentado por Marx – e “se apropriar das conquistas positivas” do capitalismo, sem passar por suas terríveis provações (MARX, 2013, p.89). Para reafirmar seu ponto de vista, Marx apresenta um exemplo do “desenvolvimento desigual e combinado” da sociedade capitalista: a Rússia, “para explorar máquinas, os barcos a vapor, as ferrovias, ...” não teria precisado passar “por um longo período de incubação da indústria mecânica”, que atravessou o Ocidente em séculos (Ibid, p. 90). Assim, o argumento dialético das vantagens do atraso – o salto tecnológico e social possível graças a convivência no amplo quadro das sociedades capitalistas de tempos históricos, formas de propriedade e relações sociais de produção diferentes – é apresentado com bastante clareza. A conclusão – cheia de ousadia de Marx – citando um “autor americano nem um pouco suspeito de tendências revolucionárias” – é que o arcaísmo do comuna russa não é problema, pois as formas superiores são renascimentos mais desenvolvidos de formas anteriores (Ibid, p. 91). Através de um excurso histórico que começa com as fontes romanas de Tácito e Júlio Cesar, Marx esclarece que a comuna russa é “o tipo mais
recente da formação arcaica”, que transitou na Europa ocidental da “propriedade comum para a propriedade privada”. Mas imediatamente afirma que “sua forma constitutiva admite a seguinte alternativa: ou o elemento de propriedade privada implicado nela prevalecerá sobre o elemento coletivo ou este último prevalecerá sobre o primeiro”. Não há fatalismo, “Tudo depende do ambiente histórico em que a comuna se encontra localizada”. E se falamos na concepção da história em Marx, falamos em lutas sociais, falamos em luta de classe (Ibid, p. 93). Marx desenvolve ainda mais o argumento da contemporaneidade entre a comuna (arcaica) e o presente (capitalista) em âmbito mundial. Para não deixar qualquer dúvida a respeito de sua posição, afirma que a comuna rural russa “pode tornar-se um ponto de partida direto do sistema econômico para o qual tende a sociedade moderna; ela pode trocar de pele sem se suicidar” (Ibid, 2013, p.96). Para isso, todavia, há que se “descer da teoria pura à realidade russa”. Como afirma o filósofo francês Daniel Bensaid a respeito da formação da concepção histórica de Karl Marx e suas implicações, não há
qualquer necessidade de postular uma causalidade implacável ou um juízo ultimo para considerar que aquilo que se segue constitua um progresso em relação a algo imediatamente precedente. O critério pode permanecer sobriamente comparativo. (BENSAID, 1999, 56).
Assim também, a análise histórica que os revolucionários devem realizar – pois não se trata de um debate acadêmico – parte da vida social e econômica russa em direção à teoria; e não ao contrário, para o revolucionário alemão, a teoria não é uma camisa de força em que se espreme a realidade.
O terceiro argumento de Marx é que não se deve cultivar ilusões. Desde o decreto imperial que suprimiu a servidão, em 1861, a comuna rural russa estaria sobre ataque. Usurários, comerciantes, o fisco e grandes proprietários avançam sobre ela e seu colapso econômico é uma possibilidade. Estando em conexão com as transformações mais gerais do mercado mundial em geral e da Rússia em particular, as fontes de suas possibilidades positivas – a superação em direção a uma organização social superior – e negativas - seu desaparecimento na transição capitalista – não estão decididas por uma fatalidade histórica qualquer, pela necessidade de lutar “com uma potente reação” contra “as influências destrutivas” que pesam sobre ela (Ibid, 2013, p. 102). A dialética da comuna rural está sempre presente na resposta de Marx. As possibilidades mudam a cada evento, a cada ação das forças de superação positiva – em direção ao socialismo ou destrutivas, que só tem a oferecer o tenebroso quadro descrito por Marx em O Capital. A dinâmica histórica, sem fatalismos. É regida por possibilidades, que, entretanto, não são eternas, pois o conflito social é sempre presente, ainda que nem sempre visível. Forças diversas, interesses de classe, ações governamentais, dinâmicas econômicas mundiais, inovações tecnológicas se conjugam e se entrechocam na tessitura da realidade. Para Bensaid é essa complexidade, “essa dialética do necessário e do possível [que] permanece incompreensível para os detratores de um Marx rasamente determinista, aferrados a imputar-lhe um conceito mecânico de necessidade” (BENSAID, 1999, p. 386). Marx se desvincula claramente desses que chama, no primeiro rascunho, ironicamente de “porta-vozes dos ‘novos pilares sociais’” (MARX, 2013, p.102).
Seu quarto argumento ressalta que, apesar das dificuldades da pesquisa histórica sobre o tema, que ainda estava engatinhando em 1881, Marx garante que é possível afirmar que a comuna rural euro-russa é dotada de enorme vitalidade – historicamente mais duradoura que a própria sociedade capitalista! – e que os fatores limitantes endógenos que as levaram ao desaparecimento não pesam mais sobre a comuna russa historicamente existente no momento em que ele escreve (Ibid, p. 101). Sua recomendação, também, se dá em relação ao trato das fontes. A historiografia burguesa é comprometida; historiadores, sociólogos, economistas, filósofos, não são neutros.
Seu quinto argumento não traz ideias que já não tenham sido apresentadas anteriormente, mas é mais duro com aqueles “lacaios literários dos ‘novos pilares da sociedade’” que, ao “tempo em que se sangra e tortura a comuna”, apresentam esse procedimento “como sintomas de sua decrepitude espontânea”. A estes, nenhuma trégua: “Aqui não se trata mais de um problema a resolver; trata-se de um inimigo a derrotar” (Ibid, 102). Uma dissociação política e teórica de tais interpretes de O Capital não poderia ser mais incisiva.
2. O segundo esboço
Segue, inicialmente, o roteiro do primeiro esboço, com Marx numerando seus pontos centrais. Recorre aos mesmo trechos de O Capital, mas, ao falar da propriedade comunal, reforça seu caráter comunista. Torna claro que a destruição da propriedade comunal é um desejo dos liberais russos e, no ponto dois, em que rispidamente afirma: “Os ‘marxistas’ de que me falais me são desconhecidos. Os russos com quais tenho relações pessoais, ao que eu saiba, têm pontos de vistas totalmente opostos” (Ibid, p. 104). Se, no primeiro esboço, o enfrentamento com os defensores do ponto de vista fatalista da dissolução inevitável, em nome da opus magna de Marx, demoraram a ser enfrentados, sua confrontação avança para o começo do segundo esboço. No seu terceiro argumento, Marx destaca que
[...] a morte da propriedade comunal e o nascimento da produção capitalista estão separados por um intervalo de tempo imenso, abrangendo toda uma série de revoluções e sucessivas evoluções econômicas, das quais a produção capitalista é apenas a mais recente. (Ibid, p. 104).
As “vantagens do atraso” da Rússia continuam sendo lembradas, e, portanto, não há impedimento que a Rússia trilhe um caminho diferente do ocidente europeu em seu desenvolvimento em direção à produção cooperativa e a “propriedade comunista”.
O quarto argumento deixa mais nítido o papel negativo do Estado na preservação e superação, por parte da comunidade rural russa de seu atraso em direção a formas superiores de produção. E no quinto argumento. A “discordância de tempos” na formação social russa é indicada com firmeza, pois assim como as camadas geológicas mostram “suas diversas idades” sobrepostas umas às outras, “a formação arcaica da sociedade nos revela uma série de tipos diferentes, marcando as épocas progressivas. A Comuna rural russa pertence ao tipo mais recente dessa corrente”
(Ibid, p. 105).
E tendo ressaltado os riscos e entraves que ameaçavam a valoração socialista positiva da comuna, Marx chega ao seu quinto argumento, em que alerta contra as forças que se erguem contra a comuna camponesa: “Certo gênero de capitalismo, nutrido às expensas dos camponeses por intermédio do Estado”, associados aos grandes proprietários rurais, a quem interessa o “trabalho barato” que se tornaria disponível com a destruição da Comuna (Ibid, p. 107).
3. O quarto esboço
O terceiro esboço Estando dividido em, basicamente, duas partes, Marx rearranja os argumentos dos esboços anteriores, alcançando uma forma de redação um pouco mais coesa. Porém, o esboço se encontra interrompido, ou seja, foi abandonado.
Já no quarto esboço, muito menor do que os demais, Marx desculpa-se afirmando estar acometido de “uma doença nervosa”. Avisa a missivista que havia prometido ao “Comitê de São Petersburgo” “um escrito sobre o mesmo assunto”. O tom seco, extremamente sintético, que termina por ser apenas um pouco mais extenso na carta enfim enviada em 8 de março de 1881 – mesma data do esboço -, a referência ao Comitê de São Petersburgo que receberia um texto mais longo e completo e uma leve ironia na resposta – “Espero (...) que algumas linhas sejam suficientes para livrar-nos sobre o mal-entendido acerca da minha assim chamada teoria” – nos levam a crer que algo mudou na abordagem e na consideração que Marx faz a sua interlocutora e destinatária. Primeiramente, afirma que em O Capital não há argumentos
nem a favor nem contra a vitalidade da comuna russa”. Em seguida, assertivo, afirma que “Os estudos especiais que fiz, para os quais pesquisei em fontes originais, convenceram-me que essa comuna é a alavanca natural da regeneração social da Rússia. (Ibid, p. 113).
A carta enviada nunca foi publicada, apesar da permissão de Marx para que isso fosse feito. Em 1883, com Marx já morto, o grupo representado por Zasulitch já havia rompido com o movimento narodiniki – ruptura acelerada pelo intenso debate causado pela carta de Marx sobre Jukovski e Mikhailovsky finalmente publicada. Assumem-se, sob a liderança de G. Plekhanov, como os primeiros marxistas da Rússia e não queriam sofrer com a discordância do “mestre”.
4. À guisa de conclusão
O que dizer desse debate travado de forma epistolar, travado nas sombras de gabinetes e quartos de revolucionários exilados, tendo em vista os destinos do desenvolvimento econômico e da revolução no país mais extenso do mundo, no Império que havia sido desde o Congresso de Viena (1815) a reserva sagrada da revolução europeia? Sua importância, assim apresentada, deveria ser evidente: a revolução na Rússia teria impacto em toda a Europa, possibilitando uma mudança na correlação de forças em âmbito continental. A transição que se discute no tocante à Comuna russa é mais amplo que o país dos czares, podendo ser exemplar para os países retardatários do capitalismo? Se a Rússia poderia saltar, ou atravessar de forma completamente diferente, a etapa capitalista conforme seu desdobramento europeuocidental, chega-se a uma problemática central da filosofia – ou antifilosofia – de Marx: quem seria nessa hipótese o “sujeito histórico revolucionário”? A resposta clássica para o ocidente era a classe trabalhadora industrial. Mas essa resposta não deveria ser a mesma para a Rússia, caso a Comuna servisse de ponto de partida para uma radical transformação da vida social e econômica russa. Verdade que em seus esboços Marx alerta para a necessidade de passar da teoria à prática – o conceito de práxis – pois a resolução dessas questões será tarefa da vida real, obra de homens e mulheres reais, pois a filosofia só é de valor quando colabora à transformação do mundo.
Referências
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BENSAID, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX). Tradução: Luiz Cavalcanti de Menezes Guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
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Recebido em: 10 de jul. 2020
Aceito em: 13 de ago. 2020
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