sexta-feira, 12 de julho de 2024

Mito e realidade mircea eliade livro todo

Mito e realidade mircea eliade livro todo chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://portalbiblioteca.ufra.edu.br/images/Ebook/letrasportugues/mitoerealidadelivro.pdf ..... Tentativa de definição do mito Seria difícil encontrar uma definição do mito que fosse aceita por todos os eruditos e, ao mesmo tempo, acessível aos não-especialistas. Por outro lado, será realmente possível encontrar uma única definição capaz de cobrir todos os tipos e todas as funções dos mitos, em todas as sociedades arcaicas e tradicionais? O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares. A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio". Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos "primórdios". Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a "sobrenaturalidade") de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do "sobrenatural") no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. Teremos ocasião de ampliar e completar essas poucas indicações preliminares, mas é importante frisar, desde já, um fato que nos parece essencial: o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma "história verdadeira", porque sempre se refere a realidades. O mito cosmogonico é "verdadeiro" porque a existência do Mundo aí está para prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente "verdadeiro" porque é provado pela mortalidade do homem, e assim por diante. Pelo fato de relatar as gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestação de seus poderes sagrados, o mito se torna o modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas. Quando o missionário e etnólogo C. Strehlow perguntava aos Arunta australianos a razão por que celebravam determinadas cerimônias, obtinha invariavelmente a mesma resposta: "Porque os ancestrais assim o prescreveram".1 Os Kai da Nova Guiné recusaram-se a modificar o seu modo de vida e de trabalho, explicando: "Foi assim que fizeram os Nemu (os Ancestrais míticos) e fazemos como eles".2 Inquirido sobre a razão de determinado detalhe numa cerimônia, o cantor Navajo respondeu: "Porque foi assim que fez o Povo Santo da primeira vez".3 Encontramos exatamente a mesma explicação para a prece que acompanha um primitivo ritual tibetano: "Como foi transmitido desde o início da criação da terra, assim devemos sacrificar... Como fizeram os nossos ancestrais na antigüidade, assim fazemos hoje".4 Essa é também a justificação invocada pelos teólogos e ritualistas hindus. "Devemos fazer o que os deuses fizeram no princípio" (Satapatha Brâhmana, VII, 2, 1, 4). "Assim fizeram os deuses; assim fazem os homens" (Taittirya Brâhmana, 1, 5, 9, 4).5 Como já demonstramos em outra parte,6 mesmo a conduta e as atividades profanas do homem têm por modelo as façanhas dos Entes Sobrenaturais. Entre os Navajos, "as mulheres devem sentar-se sobre as pernas, que estarão voltadas para um lado, e os homens com as pernas cruzadas à sua frente, porque foi dito que, no princípio, a Mulher Cambiante e o Matador de Monstros se sentaram nessas posições".7 Segundo as tradições míticas de uma tribo australiana, os Karadjeri, todos os seus costumes e sua conduta foram estabelecidos nos "Tempos do Sonho" por dois Entes Sobrenaturais, os Bagadjimbiri (a maneira, por exemplo, de cozer um certo cereal ou caçar um animal com o auxílio de um cajado, a posição especial a ser adotada ao urinar, etc.).8 É inútil multiplicar os exemplos. Como já demonstramos em Le Mythe de l'Eternel Retour, e corno veremos a seguir com ainda maior clareza, a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria. Essa concepção não é destituída de 1C. Strehlow, Die Aranda-und Loritja-Stamme in Zentral-Australien, vol. III, pág. 1; cf. Lucien Lévy-Bruhl, La mythologie primitive (Paris, 1935), pág. 123. V. também T. G. H. Strehlow, Aranda Traditions (Melbourne University Press, 1947), pág. 6. 2 C. Keysser, citado por Richard Thurnwald, Die Engeborenen Australiens und der Südseeinsels (Religionsgeschichtliches Lesebuch, 8, Tübingen, 1927), pág. 28. 3Clyde Kluckhohn, "Myths and Rituais: A General Theory", Harvard Theological Review, vol. XXXV (1942), pág. 66. Cf. ibid. para outros exemplos. 4Matthias Hermanns, The Indo-Tibetans (Bombaim, 1954), págs. 66 ss. 5Vide M. Eliade, Le Mythe de l'Éternel Retour (Paris, 1949), págs. 44 ss. 6Le Mythe de l'Éternel R etour, págs. 53 ss. 7Clyde Kluckhohn, op. cit., citando W. W. Hill, The Agricultural and Hunting Methods of the Naváho Indians (New Haven, 1938), pág. 179. 8Cf. M. Eliade, Mythes, rêves et mystères (Paris, 1957), págs. 255-56. importância para a compreensão do homem das sociedades arcaicas e tradicionais, e a ela retornaremos mais adiante.

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