segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Circunstância Ortega y Gasset sobre

https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/2178-4582.2009v43n2p331/12438 A noção de circunstância é essencial para o entendimento da ontologiaorteguiana e para perceber as diferenças em relação a filósofos importantes doseu tempo como Martin Heidegger e Edmund Husserl. Neste trabalho vamosexaminar o conceito de circunstância desenvolvido nos oito livros de El es-pectador (vol. II das Obras completas, 1998). Os ensaios reunidos em Elespectador foram publicados entre 1916 e 1934, eles fazem parte da transiçãopara a fase madura da meditação orteguiana. O texto tem o caráter de obraíntima de reflexão pessoal sobre diversos assuntos.O conceito circunstância foi amadurecido e ampliado nos ensaios de Elespectador. Ele aparece pela primeira vez na introdução de Meditações doQuixote (1914). Naquele livro o conceito representa o entorno do corpo, coe-rente com a descoberta da ciência biológica que no seu tempo estuda o orga-nismo num meio particular. Desde que publicou as Meditações do QuixoteOrtega y Gasset entende circunstância como parte da realidade pessoal. Noslivros de El espectador amadurece o conceito de circunstância que usará nosúltimos trabalhos das décadas de quarenta e cinquenta. A mudança significa aampliação do sentido para além das sugestões da Biologia. O conceito alargadonos livros de El espectador inclui o entorno ao eu, isto é, o meio exterior e ascaracterísticas do organismo: tanto físicas quanto psicológicas que envolvem oeu. Circunstância passa a ser tudo o que rodeia o eu: a realidade cósmica, acorporalidade, a vida psíquica, a cultura em que se vive, nela incluída tambémas experiências acumuladas no tempo3. Ortega y Gasset denominará habita-ção a circunstância que o eu reconhece como seu ambiente familiar. EdmundHusserl já denominara Uexküll a este entorno reconhecido pelo eu, mas parao alemão o entorno tinha um caráter restrito ao temporal. Apesar de próximodo proposto por Husserl, o conceito orteguiano é mais amplo.O núcleo da metafísica orteguianaÉ importante entender o que significa circunstância para se chegar aoobjeto central da filosofia orteguiana: a vida. A vida é única e não se confundecom circunstância, pois ela não é pura recepção do que se passa em volta doeu, explica Ortega y Gasset em Temas de viaje (1922). A vida é o que cadapessoa faz com a circunstância como já comentamos (CARVALHO, 2002, p. 71) “[...] mesmo que fossem iguais os elementos da habitação, não seriam iguais asvidas de dois gêmeos univitelinos que vivessem juntos no mesmo local”. Ditode outro modo, vida é realidade radical que aproxima eu e circunstância.A conhecida passagem orteguiana eu sou eu e minha circunstânciaencontrada nas Meditações do Quixote une o eu e a circunstância de modoinseparável. A realidade vital é a vida, eu estou aqui no meio de muitas coisas:sentimentos, ideias, valores, época, sociedade, com as quais permaneço em rela-ção enquanto vivo. Eu e circunstância interagem e se completam. A vida é oresultado desta relação, mas não se confunde com ela, eu e circunstância só sedeixam ver de verdade na vida que é a realidade concreta e real. O principalestudioso da filosofia orteguiana precisa este núcleo do seguinte modo:Encontro-me, pois, desde logo, na vida, encontro-me vivendo, na vida encontro as coisas e me en-contro a mim mesmo; isto é, a vida é o primário, éanterior as coisas e a mim, me é dada, sem suma, etanto o eu como as coisas são secundárias a ela,ingredientes seus, realidades derivadas, ou, se seprefere, realidades radicadas nela, que é, ao contrá-rio, a realidade radical (MARÍAS, 1991; p. 27).Considerar a vida como o núcleo da metafísica orteguiana exige que aconsideremos como algo maior do que um fenômeno biológico, exige enxergá-la como expressão de valores: “apontar a vida como o grande problema a serinvestigado não significa mergulhar numa forma de viver primitiva, anterior àestruturação da cultura e seus valores” (CARVALHO, 2004; p. 69). E diría-mos ainda mais. Segundo Ortega y Gasset a situação concreta, nuclear e vitaldo sujeito é o ponto de onde se parte para pensar toda a realidade: “o filósofoolha a vida como um princípio, e um princípio é de natureza racional, é umaforma de esclarecimento da razão” (idem, p. 69).Circunstância em “El espectador”, o entorno ao euPartimos do seguinte: circunstância é um conceito fundamental para se en-tender o raciovitalismo orteguiano. Não é um exagero o que escreveu uma estu-diosa de Ortega y Gasset (AMOEDO, 2002; p. 224/5): “circunstância – comtudo que ela implica – representa a intuição fundamental de Ortega, o que determinaa diferença específica de seu filosofar e a raiz que explica todas as suas atividades”.Nos diversos ensaios de El espectador o problema do que envolve o euaparece e é investigado. Em Verdad y Perspectiva (1916), o filósofo associaser espectador com buscar a verdade. Desde a Antiga Grécia os filósofosaceitaram o desafio de buscar a verdade e este é um problema para a multidãode pensadores que se inserem na tradição filosófic Espectador é o homem que contemplao mundo com o propósito de entendê-lo e o olha buscando compreender o queele é fundamentalmente? Em nosso tempo o tema que pede esclarecimento é avida. E o espectador a contempla como uma subjetividade singular, um eu con-creto e não como uma razão abstrata ou uma consciência universal. Esta con-clusão tem implicações importantes. Cada um é um eu particular, a verdade seapresenta para ele de modo singular como esclarece Ortega y Gasset: “cadahomem tem uma missão de verdade. Donde está minha pupila não está outra, oque da realidade vê minha pupila não o vê outra” (idem, p. 19). Portanto, averdade se apresenta a cada um segundo uma perspectiva.O olhar, ou melhor, os sentidos e a consciência do indivíduo se dirigempara o seu entorno imediato, não para algo distante e abstrato. Assim, é o olhardirigido à mulher que toma um bonde onde alguém está. O que contempla oobservador? A beleza dela. Seria a beleza expressão de uma forma pré-exis-tente ou uma ideia pura de beleza, como dizia Platão, com a qual comparamosaquela mulher concreta? Não, responde o filósofo em Estética em el tranvia(1916). “não há um modelo único e geral a que imitam as coisas reais” (p. 34).Cada mulher é única em sua beleza e, por sua vez, cada homem é capaz de vê-la de um modo distinto, igualmente singular. Esta atitude de olhar e avaliar abeleza à volta, num fenômeno que Ortega y Gasset chama de cálculo da belezafeminina, é atitude fundamental de avaliação do entorno. Esta atitude não seaplica só a esta situação, mas a todas nas quais o eu é desafiado a contemplare estimar. Ele esclarece: “o cálculo da beleza feminina uma vez realizado servede chave para todos os demais reinos de valorização” (idem, p. 38).O que o homem avalia? Tudo o que lhe aparece, tudo que está diantedele e lhe oferece resistência. Diz o filósofo no ensaio Tierras de Castilla(1911): “as coisas estão aí, diante de nós, oferecendo-se ou servindo-nos” (p. 43).A mesma atitude se espera quando a pessoa está diante de ideias e não defatos, complementa em O gênio da Guerra (1916). No caso são as ideias queestão aí diante de nós e que devem ser examinadas com objetividade, comoele diz: “não interessa desvirtuar as ideias alheias em proveito das próprias. Ao contrário, o empenho é extrair - a maior quantidade possível de bom sentido”(p. 218). Portanto, em relação a fato ou ideia, o espectador da circunstânciabusca a verdade ou o bom sentido. Bom sentido é o que nasce da descriçãocuidadosa do entorno, da paisagem que envolve o eu enquanto se movimenta oudas ideias que estão diante dele. A paisagem surge numa mirada singular, elapode ser compartilhada e reconhecida pelos outros, embora seja única em suagênese. Trata-se de atividade que exige tempo e cuidado, explica Ortega y Gas-set no ensaio De Madrid e Asturia o los dos paisages (1915) que está noEspectador III: “Esse tempo e outro são insuficientes para conhecer o corpo e aalma de uma comarca, ainda que se dedicando por inteiro a seu estudo” (p. 251).Além da perspectiva distinta, a paisagem muda também com o tempo. A descri-ção da paisagem vista da janela do trem tem semelhança com outras situações denossa vida. O entorno se transforma à nossa volta, as coisas mudam, temoshistória. Desde a infância o que está a nossa volta se altera diz o filósofo: “Notempo que dizemos já vem, já vem, a esta paisagem, a esta amizade, a esteacontecimento temos que ir preparando os lábios para dizer já se vão, já se vão”(idem, p. 247). E este contorno do eu integra a vida de todos nós, somos um eu euma circunstância inseparáveis, e um eu histórico, envolvido numa circunstân-cia também histórica. No ensaio Elogio del Murciélago (1921), texto de Es-pectador IV, Ortega y Gasset fala que a paisagem que envolve o eu funcionacomo pano de fundo da vida do homem e se explica junto com ela. Este cenárionão se separa do eu e se torna, por tal vínculo, algo diverso do que ele é por elemesmo. Nas palavras do filósofo: “A paisagem tem o destino de ser fundo de algoque não é ele e servir de cenário a uma cena vital” (p. 338). O entorno só fazsentido associado a um eu e este reconhecimento de que não é possível separaro homem do mundo, ou o eu da circunstância que o envolve, explicita-se aindamais em Conversación em el Golf o la Idea del Dharma (1925), onde afirma:“Se não existe alguém que ateste a existência das demais coisas, esta seria comonula” (p. 405). Portanto, apesar das diferenças que indicaremos adiante, o racio-vitalismo incorpora o que há de essencial na fenomenologia.O conceito de circunstância contempla o entorno que não se resume àpaisagem representada pelo ambiente social ou o nós. Este ponto é marcanteno raciovitalismo, o entorno ao eu inclui a intimidade representada pelos meca-nismos fisiológicos da vida, das leis que regem a alma e pelas expressões dopensamento ou espírito, tudo isto histórico e escondido em cada homem. Diz ofilósofo em Sobre la expresión fenômeno cósmico (1925): “A diferença detodas as demais realidades do universo, a vida é constitutiva e irremediavel-mente uma realidade oculta, inespacial, um arcano, um segredo!” (p. 578).A intimidade ou o lado de dentro que representa a parcela oculta da vidatambém circunscreve o eu, como também o envolve a situação exterior, arealidade social, econômica, política, temporal, em resumo cultural onde vivemos.

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