quarta-feira, 9 de abril de 2025

O carro de boi , paradigma do vínculo social entre a solidariedade e a tecnologia

Lembrança do carro de boi, paradigma do vínculo social entre a solidariedade e a tecnologia, vínculo que se perdeu com a chegada da modernidade. O mundo do carro de boi — e da vida que se moveu em torno dele nos mais de quatro séculos de história do Brasil, período em que foi o principal meio de transporte terrestre — tudo isso adormeceu na história. Convém evocá-lo para se sopesar, no balanço das equivalências, o caráter das interações sociais, afetivas e culturais associadas a ele. Com o carro de boi, não se foi um meio de transporte, apenas. O carro de boi era mais que um veículo de carga. Era, entre outros modos de ser, para quem o ouvia passar ao longe, um “instrumento musical de transporte”, como o definiu o jornalista Décio Bar. Estudante em colégio interno, durante seis anos, sempre na mesma sala de aula, em dias de tempo firme eu o ouvia aproximar-se lentamente e passar a quinze metros de minha janela,frente a uma rua de terra, à entrada e saída da cidade. Com seu canto — nhéeeemmm — produzido pelo atrito das rodas de madeira girando sobre o eixo de madeira, podia saber-se quem era o dono do carro, a que distância estava, se o carro ia vazio ou carregado, se era velho ou novo, quanto tempo levaria para chegar até à cidade e coisas mais. Para o carreiro, o canto servia para animar os bois que puxavam o carro e pôr cadência no seu passo; advertir algum carreiro que viesse em sentido contrário, para desviar-se do caminho; avisar a esposa em casa de que era hora de botar a comida no fogo; saudar a vizinhança à sua passagem, alertar um doente de que estava próxima a hora de levá-lo ao médico e, principalmente, fazer o mundo saber que o canto de seu carro era o mais belo de todos. Muitas eram as variedades de canto do carro — e sua sonoridade dependia do tipo de madeira utilizada nas cantadeiras, pedaços de madeira afixados entre o eixo e a roda, e também da qualidade da madeira do eixo e do perfeito acoplamento das peças, ou do rodado, como se dizia. No Norte,a preferência era por madeiras que, além de resistentes, produzissem um som agradável — eram elas a sucupira, a moreira, o pau d’arco, o pau-de-viola, o pau pombo; no Sul, o óleo vermelho, o bálsamo ou cabreúva, o faveiro, a aroeira, o ipê e a sucupira. ] Longe a ideia de querer confundir-se canto com ronco. Ronco era coisa de carro mal feito. Carro que se preza canta de verdade, canta de prima, estridente como as cigarras; canta de bordão, como um gemido; canta de meio, canta estradeiro, de assobio, gaitado, fino e baixão e de muitos outros jeitos imaginados já no momento de se escolher a madeira para a construção do eixo e das rodas e do dia certo de cortá-la, para evitar um canto aguado, de pau cortado em tempo de chuva. E lá se foi o canto do carro de boi e com ele o canto do carreiro, que alegrava a viagem e que quase sempre terminava com uma interpelação direta ao boi que retardava a marcha. “E o carro saía gemendo, esse gemido sem fim das coisa qui nada sente... das coisa qui num tem fala mas fala à alma da gente...” (José Martins, do livro Luzes da Canana, poemeto “Mestre João Carreiro”, in Bernardino José de Souza, Ciclo do carro de bois no Brasil, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1958) E quem saberia hoje dar nome aos bois? Que boi de carro tem nome! Dentre toda a boiada, é o único que pega no pesado; em compensação tem nome, mesmo quando muda de dono, porque o nome é a sua personalidade. Nome inspirado na cor da pelagem — Araçá, Azeitão, Fubá, Dourado, Fumaça ou Laranjo; nome inspirado na disposição dos chifres — Cambuco, Corneta, Gaiolo ou Galheiro; nome inspirado nos sinais do corpo — Cara-suja, Estrela, Espadilha e Silveiro; nome inspirado na conformação e beleza — Bela-chita, Figurão, Galante, Seda-fina, Redondinho; nome inspirado nas manhas — Batedor, Genioso, Matreiro, Moroso, Sabido, Teimoso, Zunzum; nome inspirado em políticos — Moreira César, Carlos Teles; nome inspirado em batalhas — Riachuelo, Marengo, Tuiuti, Guararapes; nome inspirado na flora — Cravo, Cambaru, Figueira, Alecrim, Araçá; nome inspirado na fauna — Andorinha, Azulão, Bacurau, Sabiá, Surubim, Tigre, Tucano, Macuco; nome inspirado no reino mineral — Brilhante, Carbonato, Cristal, Diamante, Safira; e por aí vai. Com o fim do canto do carro e do nome dos bois, perderam-se também inspirações da fantasia, o olhar capaz de enxergar personalidades em bois, o carreiro e seu guia, uma profissão que não era para qualquer um. O candidato precisava começar o aprendizado cedo, aos 12 a 18 anos. Mas anos no trato com o carro e com os bois não era garantia de profissão de carreiro. Começava por chamar os bois pelo nome e, ao final, tinha de saber amansar um boi de carro e adivinhar a melhor posição para ele nas juntas, de acordo com seu temperamento e habilidades e os de seu vizinho de junta, dos bois que vinham antes e dos que vinham depois; formar a fiação de tração, atrelá-los e desatrelá-los na junta e no carro; tanger os animais sem violência, zelar pela conservação do carro e evitar acidentes na jornada com a carga, o auxiliar e os bois de tração. Mais que isso, exigia-se a perfeição de um Mestre Banguela, um carreiro pernambucano que sabia curar bicheiras sem mercúrio ou tinhorão e converter boi bravio em cordeiro, a um simples aboio ou aceno de braços. Ou a habilidade de um outro que podia conduzir até doze parelhas (24 bois atrelados), ficando, nesse caso, no comando dos bois e de outros carreiros auxiliares. Desatolar o carro, transpor um rio que não dá vau, não bater em cancelas ou porteiras, fazer recuar o carro e contê-lo em descidas e ladeiras eram outras tantas competências requeridas a um aprendiz, para merecer o nome de carreiro. Com o carreiro, foram-se também seus instrumentos de trabalho, entre eles a vara de ferrão, uma vara de madeira de até quatro metros de comprimento, com um ferrão de metal na ponta aguçada, que servia para apontar a direção da marcha e para outras manobras e também para tanger a boiada, quando era necessário um esforço maior. Nos estados do Sul e Sudeste, de São Paulo ao Rio Grande do Sul, os carreiros penduravam ao ferrão, à moda de guizos e chocalhos, argolas de metal ou peças de latão que tilintavam, servindo para alertar os animais, e os obedientes tinham assim a chance de livrar-se da ferroada. E da perícia dos artesãos, que sabiam da melhor madeira para fazer a mesa, o rodeiro, a canga, o jugo, o canzil, o cambão, a chavelha, o torno e o cambito — cada uma das peças exigentes, para o seu melhor desempenho, de madeiras diferentes — restam lembranças registradas nos livros. Mas o mundo do carro de boi — e da vida que se moveu em torno dele nos mais de quatro séculos de história do Brasil, período em que foi o principal meio de transporte — tudo isso adormeceu na história. Nota 1 - O texto iniciado pelo jornalista Décio Bar foi deixado a meio caminho em razão de seu falecimento, de modo que tive de retomá-lo e leva-lo à conclusão. Assim, assina como coautor o saudoso Décio Bar. Nota 2 - O livro de Bernardino José de Souza (Ciclo do carro de bois no Brasil, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1958), sobre o qual nos apoiamos para realizar essa crônica, é uma obra-prima da produção documental, de escrita escorreita e sóbria, enriquecido com uma iconografia precisa, enxuta e bela. Nada falta à obra de Bernardino sobre a civilização do boi de carro e do carro de boi. A atenção para com os cuidados com que foi elaborado sugere que se trata de rabalho de décadas, considerando-se a diversidade de fontes esparsas, de acesso dificultoso em passado anterior às facilidades atuais da internet. Nivaldo Manzano

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