quarta-feira, 9 de abril de 2025

A necessidade do supérfluo pau brasil

A necessidade do supérfluo . ou a ilusão da escassez* Por mais que se privilegie a reprodução das condições materiais da existência social como motor explicativo da História, o fato é que ninguém sai de casa em busca de comida antes de se dar as razões do que pretende fazer tão logo esteja de barriga cheia. O desejo fundamental do ser humano está para além da mera sobrevivência — ainda que dela não prescinda —, tanto assim que se deixa exaurir no sacrifício em nome de um ideal, de um sonho, de um novo amor. E não só o ser humano: o albatroz também falece de exaustão ao voar para longas, longuíssimas distâncias, em busca de comida para alimentar a prole, como evoca Niestzsche no último aforisma de seu livro “Aurora”. “Teríamos encalhado no infinito?", conclui ele. Diante dessa evidência, assume-se que a busca da reprodução material da existência social é indissociável do desejo de se comprazer na existência. Se assim for, é preciso reconhecer que a necessidade orgânica põe o mundo em movimento tanto quanto os sonhos que os seres humanos alimentam (e que, reciprocamente, os alimentam). A necessidade orgânica não se faz presente em nós mecanicamente, e sim como interpretação cujo sentido inscreve-se no âmbito da cultura. Ao contrário da satisfação das necessidades básicas, que se mede em calorias, os sonhos não têm limites, o que talvez explique por que o ser humano arrisca a pele lançando-se à conquista do infinito e do ilimitado. Partindo-se desse axioma, é plausível vislumbrar a expansão ultramarina dos povos europeus, os portugueses à frente, como fruto de uma aventura árdua e arriscada, que, além de prazerosa, era devotada ao excesso, ao supérfluo, ao gasto perdulário, ao prazer da mesa e da cama, ao luxo, à dilapidação suntuária, à afirmação, à ostentação e à exaltação do poder, da vaidade e da glória, valores mundanos, à época veladamente indissociáveis da propagação da fé cristã. E embora não tenham sido os marujos e grumetes os eleitos para desfrutar da empreitada, é certo que foram eles também que se lançaram por mares nunca dantes navegados, ao lado de mercenários, numa aventura temerária, que os desafiava a irem além de si mesmos, temática de Ernest Hemingway, em sua novela “O velho e o mar”, e de outros ficcionistas. A evocação de tais suposições, e dos valores a elas associados, num livro sobre a pedagogia da incompletude, parece tanto mais necessária quanto mais a utilidade racional tem sido exaltada como um valor natural e como única alavanca da existência, em desfavor dos demais valores, considerados ilusórios, porque inúteis, tais como a poesia e o galanteio. Que utilidade efetiva poderia ter o vermelho, a cor do luxo e da luxúria? Que utilidade poderiam ter as peças de tecido púrpura comercializadas pelos navegadores fenícios nas costas do Mediterrâneo, por cuja conquista se expunham a riscos e privações e a eventuais refregas sangrentas? O caráter excludente do valor atribuído à utilidade cumpre uma dupla função ideológica: suprime o lugar de direito ocupado na História pelo devaneio e escamoteia a sua compreensão, ao fazer supor que todo o espaço da existência esteja adequadamente preenchido pela figura caricata do Prometeu capitalista e daquele que o sustenta o homo faber. Invenção antropológica, contemporânea da Revolução Industrial, o homo faber é o sujeito impessoal que se caracteriza por agir supostamente de modo racional, subordinando o tempo presente a um futuro que nunca chega, em nome do qual sacrifica o gozo imediato. Ao proceder dessa maneira, a racionalidade do homo faber destitui de seu valor intrínseco o presente, momento da fruição, para convertê-lo numa ponte abstrata a ligar o antes, que já não existe, e o depois, que não virá, como adverte Raoul Vaneigem, parceiro de Guy Débord na convocação para o levante estudantil na França de maio de 1968. Terá sido assim alguma vez? Será verdade que a Europa, ao se enriquecer com o botim obtido na conquista do Novo Mundo, buscava reunir condições para inaugurar uma nova era, a da acumulação e reprodução do capital, votada à produção e ao suor no trabalho, desdenhosa do prazer? É somente no contexto da unidade indissociável dos móveis da ação humana que se pode enxergar e compreender o sentido da exploração do pau-brasil — o primeiro e o mais longo ciclo econômico da história do Brasil. Entender a sanha e a intensidade predatórias a que se entregaram os exploradores das maiores potências comerciais de então — portugueses, franceses, holandeses e ingleses, entre outros — exige, como sugere o historiador alemão Werner Sombart (1863 - 1941), em seu livro "Luxo e Capitalismo", a propósito do advento do capitalismo, que se reconstitua metodologicamente o seu ambiente cultural. É preciso explicar no botim a presença seletiva dos panos, das sedas, das especiarias, das tinturas, dos perfumes, da roupa branca, das vasilhas de prata, do vinho, dos destilados, do tabaco, dos objetos do mobiliário, dos candelabros — quase nada do que é indispensável ou necessário à subsistência física. Se, vez por outra, armas e mulheres também podiam ser encontradas no cesto do comércio, da pilhagem e da conquista, é porque elas infundiam segurança ou prazer na aventura de se perseguir e justificar o consumo do supérfluo — e a conquista do infinito. Tais objetos, considerados em si mesmos e fora de qualquer contexto, são meros suportes materiais sem sentido, despidos de qualquer valor cultural; incapazes, portanto de inspirar um desejo ou estimular uma ação. É somente depois de inscritos na fantasia e no imaginário que se pode divisar neles os coeficientes de valor cultural, graças aos quais se hierarquizam, de acordo com a variação do tempo e do lugar. É preciso, pois, começar por investigar que elementos teriam constituído o imaginário daqueles “descobridores” e exploradores europeus que, com suas caravelas e naus, vieram dar no Novo Mundo, desembarcando na “terra do brasil”. Embora tal hipótese seja repelida pela historiografia de viés utilitarista e funcionalista, trata-se de um procedimento recomendado por todos aqueles que não confundem a História com o deslocamento de um pistão no cilindro de um motor a combustão. Ao contrário do que nos quer impingir a ideologia liberal, nada na História é resultado de uma necessidade inelutável — e tudo poderia ter sido diferente do que foi, ainda que os mesmos elementos dela tenham participado. Na diversidade dos produtos que são objeto do saque colonial pode observar-se que o pau-brasil — como matéria-prima para a indústria do mobiliário e, principalmente, como tintura na indústria têxtil — insere-se na ampla gama das cadeias de comércio orientadas para o consumo suntuário, origem e razão de ser das rotas comerciais que ligavam os portos da Europa aos portos da Ásia Menor, da África e do Extremo Oriente. Rotas cujo bloqueio por terra haveria de estimular a expansão ultramarina dos portugueses. A cadeia comercial do pau-brasil é, pois, uma entre muitas — todas entrelaçadas num contexto unitário que lhes dá direção e significado. É preciso investigar que significado é esse. Em 1501, quando D. Manuel, na plenitude de seus 30 anos de idade, declara o pau-brasil monopólio da Coroa portuguesa, o jovem Francisco I, de apenas sete, preparava-se para, dali a quatorze, assumir o reino da França e consagrar definitivamente um novo estilo de vida pública, que iria se irradiar por toda a Europa: a sociedade cortesã, fenômeno cultural que havia sido estimulado pelo papado em Avignon, 200 anos antes e que, logo a seguir, ainda no início do século XIV, seria copiado pelo Grão-Duque de Borgonha. Localizada ao lado do porto de Marselha, Avignon foi berço da primeira corte moderna, ao congregar, pela primeira vez na história europeia, de modo estável, nobres sem outra missão que não a de servir, em benefício próprio, os interesses da corte e beldades cobiçadas por amores ilícitos, que se encarregaram de imprimir sua marca peculiar à vida e ao trato social — eis a courtoisie. Reúnem-se em Avignon os mais altos senhores da ordem eclesiástica, dispostos a celebrar e enaltecer um modelo inaugural de livre trato, de magnificência, de fausto e de brilho cortesão. Lembra-se que, dentre os dignatários ali reunidos, todos tinham o costume de se vestir de vermelho. Clemente V, o primeiro papa a se instalar em Avignon, soube fazer uso de seu pendor hedonista para externar de forma hiperbólica o sentido do usufruto privado e doentio do poder: durante os nove anos que pontificou, de 1305 a 1314, fez cardeais cinco membros de sua família. Justificou o nepotismo, argumentando que não era culpa sua que seus “predecessores não tenham sabido ser papas”, pois “um papa devia fazer felizes os seus súditos”. Embora criticada por cristãos de mente franciscana, votados à imitação da pobreza de Cristo, a largueza complacente do estilo de vida de Avignon seria ainda mais amplificada anos mais tarde pelos grandes Luíses da França, na esteira do que havia ocorrido anteriormente nas cortes de Milão, Ferrara e Nápoles (continua). *Este artigo( reelaborado) é parte do capítulo sobre a economia do pau-brasil, de minha autoria, extraído do livro Pau-Brasil - H

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