Não foi apenas o mercado financeiro que entrou em crise, mas sim o capitalismo que está entranhado em nossas vidas
Por Bruno Cava
Fala-se muito em crise do capitalismo financeiro. A narrativa é mais ou menos assim:
Os culpados principais da crise foram bancos internacionais e grupos de investimento, os grandes players que
jogam com a riqueza mundial. Ao longo da última década, extrapolaram
todos os limites da cobiça para realizar uma falsa multiplicação dos
pães. Mirabolaram produtos financeiros, os derivativos, com o
que criaram valor onde não havia nada. Como esse ouro de tolos, incharam
bolhas especulativas, descoladas da economia real — fantasiosas e
insustentáveis. Sem ser eleitos por ninguém, jogaram muito alto e sem
nenhuma garantia com o dinheiro alheio. Aproveitaram-se da
desregulamentação do setor e fizeram refém os governos nacionais,
incapazes de conter a luxúria por lucros fabulosos — ou talvez cúmplices
da brincadeira. Banqueiros, financistas, acionistas e executivos
deitaram e rolaram em cima da economia mundial por anos e agora todos
pagamos o pato, enquanto os verdadeiros culpados são salvos com o
dinheiro público e ainda posam de popstar. Não admira que o movimento Occupy nos Estados Unidos tenha começado por Wall Street.
É o que temos ouvido todos os dias, mas não é bem assim.
Boa parte das
críticas se fundamenta numa superficial separação entre finanças e
economia real. Como se a dimensão financeira fosse um a-mais ao
aspecto real da produção. Como se existissem capitalistas que realmente
organizam e comandam a produção de coisas; e os meramente financeiros,
que se limitam a atuar na realidade virtual dos mercados e bolsas de
valores. Os bons e velhos patrões empreendedores versus os especuladores yuppies.
Essa interpretação aparece à esquerda e à direita do espectro político-ideológico.
Ambos os lados
acusam o capitalismo financeiro de exagerar na dose de capital fictício
em proporção ao capital real. Para um e outro, não dá pra continuar
apostando na ideologia da mão invisível que vai de Adam Smith a Alan
Greenspan — nessa mistificada racionalidade “autônoma” dos mercados e
agentes financeiros. Portanto, é preciso aplicar políticas regulativas
para controlar o funcionamento do sistema. É preciso punir e
criminalizar condutas gananciosas e irresponsáveis. É preciso repensar
um novo marco monetário internacional, como o antigo Bretton
Woods (1944-72). É preciso resgatar a esfera pública contra o alto clero
da econometria.
A direita propugna por uma aliança entre trabalhadores de bem e capitalistas de bem, num novo pacto produtivo, em nome dos valores do trabalho — um novo New Deal. É a posição do Tea Party.
A esquerda aproveita para novamente dar vivas ao estado nacional como
gestor do capital coletivo, capaz não só de controlar o mercado
financeiro como distribuir os seus ganhos. É o discurso do
desenvolvimento com inclusão social do governo brasileiro e sua nomenklatura economista. Os dois campos concordam que, assim, se poderão gerar empregos, alimentar a demanda interna e retomar o crescimento.
Há uma limitação séria nessas interpretações, apesar de predominar nas revistas, jornais e sites,
especializados ou não. Serão as finanças algo acoplado à economia dita
real, que teriam pervertido o capitalismo original, tornando-o mais
injusto? É possível salvar o capitalismo de antes da financeirização?
Há uma linha crítica, que vem desde Marx, que acha que não. Me refiro especialmente ao economista Christian Marazzi, de quem resenhei um livro ano passado. Este ano, li mais artigos e outros dois livros dele: A violência do capitalismo financeiro [2010, SemioTexte, em inglês] e O comunismo do capital:financeirização, biopolítica do trabalho e crise global [2010, ombre corte, em italiano]. Descendente da Escola da Regulação Francesa (Michel Aglietta, Robert Boyer, Alain Lipietz etc) e do pós-operaísmo italiano (Antonio
Negri), o autor tem o mérito de nunca deixar de reportar as crises à
sua dimensão política e social. Quer dizer, não analisa a crise pela
ótica de condições objetivas, mas da própria dinâmica de produção de
sujeitos sociais, antagonistas ou não.
Para ele, a financeirização é
unha e carne com o capitalismo. Não há processo do capital sem crédito —
o que Marx desenvolve principalmente no Livro III de O Capital. A crise global é do capitalismo tout court.
Pode-se qualificá-la como financeira apenas na medida em que é a
presente forma de organização do capitalismo. Mas nunca no sentido
dominante, que se poderia salvar algum capitalismo bom do capitalismo
financeiro mau. O que faz toda a diferença. Não adianta tentar
solucionar a crise do capitalismo financeiro corrigindo o financeiro —
quando este é apenas uma consequência daquele. O capitalismo é a
crise. Tentar sair da crise melhorando o capitalismo já é repetir a
própria lógica de desenvolvimento do sistema, como aconteceu ao longo
das crises sistêmicas desde o século 19. Pode-se trabalhar e lutar para
outra resposta, afirma Marazzi.
Para ele, as
finanças estão imbricadas no processo produtivo como um todo, da
produção à circulação, da distribuição ao consumo. De um modo ou de
outro, as operações econômicas passam pelos bancos, operadoras de
crédito, financiamentos ou investimentos a curto, médio e longo prazos.
Tente sobreviver sem uma conta no banco… Cada vez que o sujeito realiza
um ato econômico — que produz, circula, troca, consome etc. — já está
inscrito nos inúmeros circuitos financeiros. E aí é explorado, pelo fato
mesmo de submeter-se a uma métrica de valor, a uma partição de lucros e
riscos embutida em juros, taxas e rendimentos. Essa métrica e suas
cotações são decididas bem longe dos cidadãos, pelas bolsas de valores,
políticas monetárias, agências de classificação de risco e sistema
bancário. O cidadão fica à mercê de um mundo cujas leis tudo faz crer
alienígenas — tão distante de nosso cotidiano quanto as páginas de
economia dos jornais diários. Enquanto isso, a cauda longa da
produtividade social vai sendo vampirizada através do valor-finança, dessa lógica de medir e extrair valor, desde os atos mais prosaicos da economia.
Um ponto de Marazzi é que as finanças existem por razões estruturais do sistema. A
crise das finanças constitui uma crise histórica, sintética de todas as
contradições e limitações que o desenvolvimento do capitalismo acumulou
ao longo dos séculos. Demais, a financeirização não é somente da
economia, masda vida. Por isso, desdobrando um conceito de Michel Foucault, ele fala em biocapitalismo. O biocapitalismo, que é o capitalismo financeirizado, opera em níveis múltiplos e articulados, grosso modo: 1) como cimentador do capitalismo global, 2) como modo de regulação da economia política, 3) como forma de governança social.
1) Nada
parece ser mais central para os governos nacionais do que as políticas
monetárias e os bancos centrais, que tentam disciplinar a repartição da
riqueza entre devedores e rentistas. A política monetária é a primeira a
sofrer a ingerência das instituições internacionais, especialmente nas
crises. A globalização não só passa pelas finanças, mas nela se articula
política e economicamente. É necessário que estados nacionais e
políticas monetárias se integrem ao sistema financeiro. Seu
funcionamento globalizado é administrado por uma aristocracia de
instituições internacionais, gigantescos bancos de investimento e outros
grandes players. Marazzi chama de “comunismo do capital” essa
cooperação de capitalistas em organismos e fóruns como Davos, e a sua
codificação linguística é sempre financeira. Com ela, permitem mensurar e
organizar os fluxos de capital, fabricar consensos políticos e exercer
comando sobre os governos nacionais.
2) Como modo de regulação, refere-se ao papel da financeirização para a demanda solvente. Ou seja, dinheiro para gastar + desejo (o
núcleo de toda a produção). Sem a demanda solvente, o capitalista não
realiza o lucro. É que, para se reproduzir, toda produção precisa
concluir o ciclo com um suplemento de valor, que então é reinvestido. É o
chamado regime de acumulação e varia em função da época. Hoje, disseminar crédito em toda a sociedade se torna uma estratégia para mover a economia. Em
consequência, o acesso à moradia, educação, bens duráveis, pequenos
negócios — tudo isso se torna possível graças à facilitação do crédito.
Ao longo das últimas décadas, um conjunto de medidas nacionais e
internacionais favoreceu o endividamento generalizado das pessoas,
mormente na Europa e EUA. Tornou-se normal assumir hipotecas, financiar
carros, investir em bolsas universitárias, aplicar na previdência
privada etc. O que antes era função do estado de bem estar (emprego e
seguridade social), agora se viabiliza com as finanças. Não à toa somos
incentivados a usar e abusar do cartão de crédito, que chegam aos cachos
pelo correio. Daí a multiplicação de recursos creditícios à população.
Que é acompanhada pela mirabolação dos produtos financeiros “derivados”
(refinanciamentos, colateralização de riscos, créditos swaps, mercado futuro etc), superdimensionando a base monetária.
3) Mas não é só isso. No capitalismo contemporâneo, a financeirização da vidaatua também como modo de governar as populações. Nos tempos em que se estruturava no welfare,
acontecia enquadrando as pessoas na tríade emprego, nação e família.
Hoje, noutro modelo, a pessoa fica condicionada pelas finanças. Tem de
planejar-se a longo prazo: como vai investir em moradia, em previdência
(fundos de pensão), em educação, enfim, em como estruturar a sua vida
mediante as estratégias de investimento, retorno e juros, em total
dependência do sistema financeiro. A própria família se torna um
investimento estratégico, visto que o estado não garante mais nada. A
governança opera flexível e difusa, a sociedade precisa aprender a gerir
os riscos e oportunidades. Não precisa mais disciplinar o sujeito
estritamente nos moldes do trabalhador empregado (pleno emprego),
cidadão de bem (nação) e homem/mulher de família. Reestruturam-se formas
mais versáteis: empregabilidade (workfare), cidadão
cosmopolita (globalização) e relacionamentos líquidos. Por isso, na
financeirização, está em jogo também a produção de certa subjetividade
do homem moderno — numa dimensão antropológica que às vezes passa
despercebida, mesmo em tempos de crise.
No cômputo de seus fatores, a financeirização da vida tem
possibilitado não apenas uma transferência brutal da massa endividada
(99%) aos rentistas (1%), mas também tem fabricado governamentalidade
das populações em escala global.
Mais do que se
pautar pelas estratégias florentinas e teorias conspiratórias dos
tubarões, como num filme de Oliver Stone, o sistema capitalista global
está entranhado no cotidiano e nas formas de vida contemporâneas. É como
se fosse uma argamassa social e todos estamos incluídos em sua
dinâmica. O mundo das finanças é a culminância de uma abstração que
atinge proporções planetárias, e à qual ainda rendemos a nossa servidão
voluntária. Nessa perspectiva biocapitalista, o sistema precisa investir
a vida de todos, incluir a todos nas dinâmicas de crédito e
capitalização das esperanças (investimentos) e medos (securitização) —
mas ao mesmo tempo nos inclui como excluídos do rentismo. Eis aí a
contradição esgarçada pela crise: entre as forças produtivas (multidão
de endividados) e as relações de produção (a financeirização, que
concentra a riqueza).
Esse processo não pode ser separado do capitalismo — ele é o seu próprio modo de funcionamento,
radicalizado a partir das crises anteriores, nos anos 1970-80. Não há
mais economia real a que pudéssemos regressar. Porque o mundo não é mais
como era em 1950 ou 1960, quando em alguns países do hemisfério norte
havia welfare state. Alguns economistas do campo da esquerda
tupiniquim até hoje sonham com o pleno emprego e a seguridade social da
Suécia de 1970, numa nostalgia do que não vivemos. Porém, não só a
economia não é a mesma: as relações políticas, os sujeitos sociais e o
próprio desejosofreram mutações irreversíveis.
Isso tudo entrou em crise. Qual
seria o caminho além de uma tentativa de sanear o capitalismo ou tentar
voltar ao estado social europeu do pós-guerra? Como entrar na crise,
assumi-la em seu sentido pleno como crise política e social, e acima de
tudo radicalizá-la para tentar superar as limitações e contradições mais
recônditas e simultaneamente óbvias do sistema? Eis aí desafios
enormes, à altura do desejo criativo de uma geração que se revolta pelo
mundo todo. É assunto apaixonante que, com as leituras de Marazzi e
outros pensadores originais, pretendo abordar em próximos artigos.
http://www.outraspalavras.net/2011/12/07/as-financas-causaram-a-crise-global/
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