9/7/2013, Julian Assange, The Guardian, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Julian Assange |
O
que começou como meio para preservar a liberdade individual pode agora ser usado
por estados menores, para frustrar as ambições dos maiores.
O cypherpunks [1] originais eram, na maioria,
californianos libertaristas. [2] Eu vinha de tradição diferente,
mas todos nós buscávamos proteger a liberdade individual contra a tirania do
Estado. Nossa arma secreta era a criptografia. Já se esqueceu o quanto isso foi
subversivo. A criptografia, então, era propriedade exclusiva dos Estados, para
uso em suas muitas guerras. Ao escrever nossos próprios programas e
distribuí-los o mais amplamente possível, liberamos a criptografia, a
democratizamos e a espalhamos pelas fronteiras da nova internet.
A
reação contra, sob várias leis “de tráfico de armas”, falhou. A criptografia se
difundiu nos browsers da rede e em outros programas que, hoje, as pessoas
usam diariamente. Criptografia forte é ferramenta vital na luta contra a
opressão pelo Estado. Essa é a mensagem do meu livro Cypherpunks. Mas o
movimento para disponibilizar universalmente uma criptografia forte tem de
trabalhar para obter mais do que isso. Nosso futuro não está apenas na liberdade
para os indivíduos.
Nosso
trabalho em WikiLeaks implica compreensão semelhante da dinâmica da ordem
internacional e da lógica do império. Durante o período de formação de
WikiLeaks, encontramos evidências de pequenos países abusados e dominados por
países maiores, ou infiltrados por empresas de fora, forçados agir contra eles
próprios. Vimos o desejo popular ao qual não se dava voz e expressão, eleições
compradas e vendidas, e países ricos, como o Quênia, assaltados e leiloados por
plutocratas em Londres e em New York.
A
luta pela autodeterminação latino-americana é importante para muito mais gente
do que os que vivem na América Latina, porque mostra ao resto do mundo o que
pode ser feito. Mas a independência da América Latina ainda engatinha.
Tentativas para subverter a democracia latino-americana ainda acontecem,
inclusive recentemente, em Honduras, Paraguai, Haiti,
Equador e Venezuela.
Por
isso a mensagem dos cypherpunks tem importância especial para os
públicos latino-americanos. A vigilância em massa não é só problema para a
governança e a democracia – é uma questão geopolítica. Se a população de um país
inteiro é vigiada por país estrangeiro, há ameaça contra a soberania.
Intervenção após intervenção nos assuntos da democracia na América Latina
ensinaram-nos a ser realistas. Sabemos que os velhos poderes ainda explorarão,
para benefício deles, qualquer possibilidade de retardar ou suprimir a eclosão
da independência latino-americana.
Considere-se
a simples geografia. Todos sabem que os recursos em petróleo regem a geopolítica
global. O fluxo do petróleo determina quem é dominante, quem é invadido, quem é
posto em ostracismo fora da comunidade global. O controle físico sobre um
segmento de oleoduto define maior poder geopolítico. Governos que se ponham
nessa posição podem obter concessões gigantescas. Num golpe, o Kremlin pode
condenar a Europa Oriental e a Alemanha a um inverso sem calefação. E até a
possibilidade de Teerã controlar um oleoduto para o leste, até Índia e China, é
pretexto para a lógica belicosa de Washington.
Mas
o novo grande jogo não é a guerra por oleodutos. É a guerra pelos dutos pelos
quais viaja a informação: o controle sobre as vias de cabos de fibras óticas que
se espalham pela terra e pelo fundo dos mares. O novo tesouro global é o
controle do fluxo gigante de dados que conecta todos os continentes e
civilizações, conectando as comunicações de bilhões de pessoas e empresas.
Não
é segredo que, na Internet e no telefone, todas as rotas que entram e saem da
América Latina passam pelos EUA. A infraestrutura da Internet dirige 99% do
tráfego que entra e que sai da América do Sul por linhas de fibras óticas que
atravessam fisicamente fronteiras dos EUA. O governo dos EUA não mostrou
qualquer escrúpulo quanto a quebrar sua própria lei e plantar escutas
clandestinas nessas linhas e espionar os seus próprios cidadãos. Todos os dias,
centenas de milhões de mensagens de todo o continente latino-americano são
devoradas por agências de espionagem dos EUA, e armazenadas para sempre em
armazéns do tamanho de pequenas cidades. Os fatos geográficos sobre a
infraestrutura da Internet, portanto, têm consequências sobre a independência e
a soberania da América Latina.
O
problema também transcende a geografia. Muitos governos e militares
latino-americanos protegem seus segredos com maquinário de criptografia. São
caixas e programas que “desmontam” as mensagens na origem e as “remontam” no
destino. Os governos compram essas máquinas e programas para proteger seus
segredos – quase sempre o próprio povo paga (caro) – porque temem, corretamente,
que suas comunicações sejam interceptadas.
Exemplo de e-mail criptografado |
Mas
as empresas que vendem esses equipamentos e programas caros mantêm laços
estreitos com a comunidade de inteligência dos EUA. Seus presidentes e altos
executivos são quase sempre matemáticos e engenheiros da Agência Nacional de
Segurança dos EUA (NSA) capitalizando as invenções que eles mesmos
criaram para o Estado de Vigilância. Não raras vezes, as máquinas que vendem são
quebradas: quebradas propositalmente, por uma razão. Não importa quem as use ou
como as usem – as agências dos EUA conseguem “remontar” os sinais e leem as
mensagens.
Esse
equipamento é vendido para a América Latina e outros países como útil para
proteger os segredos do comprador, mas são, de fato, máquinas para roubar
aqueles segredos.
Enquanto
isso, os EUA aceleram a próxima grande corrida armamentista. A descoberta do
vírus Stuxnet vírus – e depois dos vírus Duqu e Flame – marca o início de uma
nova era de programas complexos usados como arma, que estados poderosos fabricam
para atacar estados mais fracos. A primeira ação agressiva contra o Irã visou a
minar os esforços daquele país com vistas a defender sua soberania – ideia que é
anátema para os interesses de EUA e de Israel na região.
Longe
vai o tempo em que usar vírus de computador como arma de ataque era peripécia de
romance de ficção científica. Agora, é realidade global, que se espalha graças
ao comportamento leviano do governo de Barack Obama, em violação da lei
internacional. Outros estados agora por-se-ão na mesma trilha, aumentando a
própria capacidade de ataque.
A China fornece equipamentos de telecomunicações para Uganda |
Os
EUA não são os únicos culpados. Em anos recentes, a infraestrutura de Internet
de países como Uganda tem recebido grandes investimentos chineses. Gordos
empréstimos chegam, em troca de contratos africanos para que empresas chinesas
construam a espinha dorsal da infraestrutura de Internet ligando escolas,
ministérios do governo e comunidades ao sistema global de fibra ótica.
A
África vai-se conectando online, mas com máquinas vendidas por potência
estrangeira aspirante ao status de superpotência. A Internet africana será o
meio pelo qual o continente continuará subjugado no século 21?
Essas
são algumas das importantes vias pelas quais a mensagem dos cypherpunks
vai além da luta pela liberdade individual. A criptografia pode proteger não só
as liberdades civis e os direitos individuais, mas a soberania e a independência
de países inteiros, a solidariedade entre grupos que lutem por causa comum, e o
projeto da emancipação global. Pode ser usada para enfrentar não só a tirania do
estado contra o indivíduo, mas a tirania do império contra estados menores.
O grande trabalho dos
cypherpunks ainda está por fazer. Junte-se a nós.
Notas
dos tradutores
[1]
Sobre cypherpunks, ver também:
-
13/11/2011, redecastorphoto, em: “30 anos de hacking político” com Sabine Blanc e Ophelia Noor entrevistando Andy Muller-Maguhn.
-
6/6/2012, redecastorphoto, em: Assange entrevista n. 8: os “Cypherpunks” (parte 1)
-
13/6/2012, redecastorphoto, em: Assange entrevista No. 9: “Cypherpunks” (Parte 2)
[2] Orig.
“libertarian”. Nos EUA, são liberais conservadores, que combatem,
sobretudo o Estado, sem qualquer associação ou conotação com comunistas
anarquistas. O movimento Tea Party,
por exemplo, é dito libertarian. Dadas as conotações comunistas
anarquistas do adjetivo (port.) “libertário”, que aqui absolutamente NÃO CABEM,
optamos pela neologia “libertarista”. É solução tentativa, há outras
possibilidades, e todos os comentários e correções são bem-vindos.
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