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quinta-feira, 15 de agosto de 2024
Aristóteles e Marx bbb
https://philarchive.org/archive/LIMEPE
Aristóteles e Marx bbb
RESUMO
Considerando as peculiaridades da formação sócio-econômica antiga,
verifica-se uma germinal e coerente economia política em Aristóteles
que, devido o esforço analítico e a coerência contextual, tornou-se
importante marco teórico para as escolas econômicas modernas,
especialmente para Marx o qual, sem pretender reviver Aristóteles para
adotá-lo sob condições modernas, apreende os preceitos aristotélicos
assumindo-os como ponto de partida fundamental de sua teoria
econômico-filosófica. Apesar de na Grécia antiga a economia não estar
separada da política, Aristóteles trata-a de modo objetivo e coerente,
conforme a importância e os limites epistêmicos da economia naquele
contexto. Na Ética a Nicômacos a análise econômica encontra-se
associada ao tema da justiça devido a necessária distribuição equitativa
dos bens, e para que coisas diferentes sejam trocadas é preciso algo que
possa igualá-las a fim de se manter a comunidade. Aristóteles contempla
como possibilidades o trabalho, o dinheiro e a necessidade para ser o
padrão de comensurabilidade, não obstante, aceita a necessidade mas
apenas de um modo “suficientemente admissível”, resposta ambígua que
desperta polêmica quanto às possíveis implicações metafísicas. Na
Política, preocupado com a influência sobre a ética e política,
Aristóteles busca delimitar o escopo da economia apresentando suas
diferenças com a crematística natural (voltada à aquisição) e a
crematística não-natural (voltada ao ganho), de acordo com suas
diferentes finalidades. Apóia-se também na distinção entre uso próprio
(valor de uso) e uso não-próprio (valor de troca) de cada coisa, e entre
práxis (ação) e poiésis (produção) - baseada na noção de limite e
imanência do fim na ação – para estabelecer os limites entre política,
economia e crematística. O desenvolvimento da troca comercial, com a
prática do monopólio e da usura, promove alterações no comportamento
dos indivíduos, mas a causa principal da confusão quanto à finalidade da
economia é moral: a ganância. Depois de considerar os fatores
econômicos Aristóteles elabora uma constituição com leis e educação
fundamentadas na virtude e, ao mesmo tempo, capaz de conceder, com
restrições, cidadania àqueles envolvidos diretamente no comércio. As
aproximações entre Marx e Aristóteles são verificadas em diferentes
âmbitos e muitos filósofos encontram semelhanças entre os dois
filósofos a partir da ética, antropologia e política, destacando inclusive a
apropriação marxiana dos conceitos aristotélicos de ato e potência.
Realmente Marx apresenta o trabalho sob duas perspectivas que juntam
o que em Aristóteles estavam separados: o trabalho como atividade que dá conta das necessidades básicas do homem, semelhante à poiésis; e o
trabalho que realiza as potencialidades para a emancipação da classe
produtora assalariada, característica da práxis, considerando sempre que
o trabalho é categoria central na economia política de Marx.
Independentemente das semelhanças ou diferenças éticas,
antropológicas e políticas, defendemos que Aristóteles é a pedra
fundamental na filosofia da economia de Marx, é o elemento teórico que
ressalta aquelas diferenças nos modos de produção que confirmariam a
dialética marxiana. Antes de se apropriar de alguns princípios filosóficoeconômicos de Aristóteles, Marx ressalta - por meio de avaliação
histórica descrita tanto em Para a crítica da Economia política, como
nos Grundrisse e em O capital – as singularidades econômicas da
sociedade antiga. Somente depois disso é que Marx analisa os êxitos e
hesitações de Aristóteles na busca do padrão de comensurabilidade, na
distinção entre valor de uso e valor de troca, na delimitação da economia
e em todos os outros conceitos que servem para Marx fundamentar sua
crítica da economia política.
INTRODUÇÃO
É uma prática comum na história da filosofia requerer a guarda
de um grande filósofo. Efetua-se a revisão de seus principais postulados
teóricos com o propósito de apresentar uma alternativa teórica aos atuais
rumos da vida sócio-política a partir da reformulação da ética, da
política e da economia entre outros. Aristóteles está no topo das
preferências e a lista de teóricos modernos e contemporâneos que
sofrem sua influência é bastante extensa e diversificada conforme a
inclinação ideológica do apadrinhado.1
Também Marx continua sendo
um dos grandes inspiradores das inúmeras propostas modernas e
contemporâneas, principalmente aquelas que têm a pretensão de
restabelecer as funções da política a fim de controlar o crescente
domínio da economia sobre os outros âmbitos da vida que se verificou a
partir da Revolução Industrial.2
Na impossibilidade de se adotar integralmente qualquer teoria
filosófica passada, a prática comum na filosofia tem sido um prudente e
ponderado ecletismo, aproveitando de cada filósofo o que há de mais
facilmente assimilável e adaptável às condições atuais. Com isso se
pode “salvar” uma doutrina ou torná-la tão atual quanto imprescindível.
Não foi exatamente isso que Aristóteles e Marx fizeram com seus
predecessores, mas a época dos grandes filósofos há muito tempo foi
esquecida e com razão, pois o grau de autonomia alcançado pela
economia a partir de meados do século XX tornou a atividade filosófica
quase obsoleta.
Contudo, a Grécia Antiga continua sendo parâmetro para a
filosofia, especialmente para política, onde os gregos parecem ser um
celeiro infindável. No que diz respeito à economia política antiga, sua
escassez de dados torna Aristóteles um anteparo privilegiado, tanto para
objetivos historiográficos referentes ao desenvolvimento das relações
humanas do ponto de vista econômico, quanto por questões ideológicas,
que também despertaram especial interesse na modernidade
especialmente a partir dos comentários de Marx. Em meio à crescente
preocupação de alguns filósofos e economistas contemporâneos em
estabelecer uma fundamentação ética para a economia a fim de voltar a subordiná-la à política, têm surgido inúmeras e variadas propostas
alegadamente originadas a partir de Aristóteles, inclusive apregoando
forte aproximação com a teoria da práxis marxiana. Para verificar a
plausibilidade destas propostas teóricas seria preciso analisar antes em
que sentido os fundamentos das concepções econômicas e políticas, e a
inter-relação desses âmbitos nos respectivos filósofos poderiam balizar
propostas teóricas com pretensões de mudanças estruturais, ou mesmo
conjunturais, na contemporaneidade. O que está em jogo é um pretenso
restabelecimento das funções próprias da política a fim de controlar o
crescente domínio, ocorrido especialmente a partir da Revolução
Industrial, da economia sobre vários outros âmbitos da vida. É por isso
que Aristóteles é constantemente requisitado, afinal, é difícil imaginar
algum filósofo que não tenha sofrido sua influência ou que não tenha se
esforçado em negá-lo.
Este trabalho, entretanto, limita-se a investigar primeiro a
existência de uma germinal e coerente economia política em Aristóteles
que, devido seu esforço analítico e a coerência contextual, tornou-se
importante marco teórico para as escolas econômicas modernas.
Segundo - e vinculado propósito - é mostrar que a economia política
aristotélica é o ponto de partida da teoria econômico-filosófica de Marx
e que as influências mais relevantes de Aristóteles sobre Marx são
evidenciadas no âmbito da economia política, ou mais propriamente em
sua crítica à economia política moderna visto que o próprio Marx não se
autodenominava economista, mas um crítico da economia política.
Para se compreender a caracterização de uma economia política
em Aristóteles é preciso não apenas avaliar os elementos estritamente
econômicos (análise de valor, preço, dinheiro, juros e troca comercial)
em seus escritos, como também a relação da economia com a política
(elaboração de uma constituição, leis e educação) e suas preocupações
éticas (a prática da usura e o vício da ganância).
A questão da relação entre Aristóteles e Marx passa pela
identificação de quais elementos da economia política aristotélica são
incorporados por Marx e de que modo isso ocorre. A resposta inclui a
avaliação e interpretação de Marx tanto da economia política antiga
(grau de desenvolvimento econômico, relações de produção, forças
produtivas) quanto, obviamente, daquela dispersamente apresentada por
Aristóteles (coerência entre a avaliação aristotélica e a realidade
econômica antiga).
As principais influências de Marx são inegavelmente a dialética
de Hegel, o materialismo e humanismo de Feuerbach, o socialismo
utópico de Owen, Fourier e Saint-Simon, e a economia política anglo-saxônica, especialmente William Petty, David Ricardo e Adam Smith.
Inicialmente a influência de Aristóteles parece ocorrer de maneira
indireta, servindo geralmente nos momentos em que Marx pretende
ressaltar as diferenças entre os modos de produção antigo e moderno,
fundamentando, assim, a historicidade conceitual da economia política,
especialmente da sua parte central, a teoria do valor. Porém, à medida
que se faz uma revisão mais cuidadosa das passagens dos textos
aristotélicos referentes à temática e os confronta com as obras maduras
de Marx, verifica-se que sua admiração por Aristóteles parece ir muito
além de um simples encantamento com a capacidade intelectual deste
filósofo da Antiguidade que foi capaz, sobretudo, de categorizar de
modo tão peculiar aquele momento histórico importantíssimo para a
história da filosofia e da economia política. A investigação aristotélica
sobre o fenômeno econômico passa a ser um ponto de partida
fundamental na economia política de Marx.
As escassas passagens da obra de Aristóteles referentes à
economia política nunca receberam muita atenção por parte dos grandes
especialistas, na verdade, receberam notoriedade principalmente a partir
de alguns comentários de Marx que, ao mesmo tempo, raramente
demonstra algum interesse naquelas partes propriamente éticas ou
políticas. Em toda sua obra há poucas referências diretas a Aristóteles.
Mesmo sem destaque especial é o filósofo antigo mais citado por Marx,
geralmente para iniciar, ilustrar e fundamentar historicamente algumas
discussões; também para ironizar alguns economistas quando estes
defendem ideias ainda baseadas em situações sociais e econômicas já
superadas sugerindo que, sob vários aspectos, Aristóteles é mais
coerente do que muitos economistas e filósofos modernos.
Embora seja possível verificar vários pontos em comum entre
filósofos pertencentes a correntes teóricas completamente díspares ou
mesmo a momentos históricos muito distantes, não se trata aqui de
elaborar uma mera comparação entre dois modelos econômicofilosóficos para então indicar os pontos positivos ou negativos de cada
um deles. O ponto central do nosso estudo é: primeiro apresentar a
economia política em Aristóteles e em seguida mostrar como Marx,
incorpora as questões elaboradas por Aristóteles acerca do que na
modernidade passou a se denominar economia política, a partir de sua
singular interpretação. Tal incorporação marxiana dos elementos
aristotélicos poderá ser constatada principalmente nas tentativas de
Aristóteles em delimitar o âmbito da economia política a partir da busca
do padrão de comensurabilidade na troca, das distinções entre valor de uso e valor de troca, entre oi)konomikh/ - arte de administrar as coisas
da casa - e xrhmatistikh/ - arte da aquisição ou de enriquecer,3
e
entre ação e produção.
Aristóteles se tornou um ícone da análise filosófica ao insistir
sempre no estabelecimento de critérios para a delimitação das várias
áreas do conhecimento humano, porém o fenômeno da economia,
especialmente as ambiguidades presentes nas relações de troca, parecem
tê-lo deixado sem respostas definitivas. Um bom exemplo é sua
dificuldade para estabelecer os limites entre economia, crematística e
política a partir dos conceitos de pra=cij (ação) e poi/hsij (produção),
dificuldade que Marx parece não ter deixado passar despercebido
quando tenta sintetizá-los no conceito de trabalho, não no que se refere a
questões antropológicas ou éticas, mas na medida em que trabalho é
categoria central na economia política marxiana. Ao longo do nosso
trabalho veremos então como Marx se aproveita destas dificuldades
conceituais do Estagirita para iniciar sua longa e tortuosa trajetória em
busca de fundamentação para sua economia política fortemente
sustentada sobre a teoria do valor-trabalho. Em outros termos, o ponto
de partida para a fundamentação da economia política marxiana são as
investigações e as respectivas oscilações conceituais de Aristóteles
sobre o fenômeno da economia política.
Diferentemente do que muitos filósofos da moral defendem,
veremos que não são as questões antropológicas, morais ou mesmo
políticas que permitem verificar os principais elementos conceituais na
aproximação entre Marx e Aristóteles. Os possíveis princípios morais,
políticos ou antropológicos coincidentes são muito genéricos e quase
sempre pouco relevantes quando isolados dos aspectos econômicos.
Sobre isso é preciso considerar ao menos dois fatores: Primeiro, se foi
na economia política que Marx acreditou ter encontrado o instrumental
conceitual necessário para fundamentar sua crítica ao modo de produção
capitalista, não teria sentido buscar a aproximação com Aristóteles a
partir da moral, da ética ou mesmo das respectivas antropologias, pois se
estes últimos exercem influência significativa devem ocupar lugar
secundário, ao menos nas obras de maturidade como Para a crítica de
economia política, os Grundrisse e O capital. Se isto não for levado em
conta, Marx se torna apenas mais um moralista com preceitos e princípios humanistas muito gerais e passiveis de aplicação em qualquer
formação sócio-econômica.
O segundo fator fortalece o primeiro. Na principal obra de Marx,
O capital, as menções a Aristóteles são sempre em momentos muito
relevantes, mas remetem ao que, na modernidade, chamaríamos de
economia política aristotélica; é isto que interessa a Marx. Certamente
os elementos morais, por exemplo, não estão ausentes, afinal estão
presentes, de um modo ou de outro, na maioria dos filósofos, mas como
para Marx o principal é a constatação das contradições imanentes ao
capitalismo verificadas a partir da análise de causas econômicas, os
elementos éticos ou mesmo políticos de Aristóteles estão presentes
somente na medida em que servem de apoio aos fundamentos de
economia política, especialmente na formulação de um senso crítico
baseado no desenvolvimento histórico das diferentes formações sócioeconômicas. É nesse sentido que as soluções aristotélicas, apesar de
serem morais, em princípio, também têm sua importância enquanto
ilustram a coerência teórica e prática de Aristóteles ao tratar do contexto
social e econômico circundante.
É incontestável a importância da ética, política, lógica e
metafísica aristotélicas para a história da filosofia, porém a economia
parece não ter ocupado muito as reflexões do Estagirita. Inclusive, uma
leitura apressada e isolada das passagens específicas sobre economia
poderia apenas fortalecer a ideia de que estas não são mais do que um
apanhado de recomendações práticas para a melhor gerência do
patrimônio da família ou do Estado, ou ainda, de se tratar de um
conjunto de preconceitos morais acerca das influências “maléficas” do
comércio, do dinheiro ou da ganância. Veremos que na Ética a
Nicômacos, por exemplo, Aristóteles não faz apenas descrição das
condições econômicas em sua época ou recomendações práticas e
morais acerca dos riscos do comércio e da riqueza. Ele não faz análise
das regras e dos mecanismos próprios das práticas comerciais, mas faz
análise no sentido de decompor o objeto até encontrar elemento mais
simples que o fundamenta, até encontrar seu nexo causal que sustenta
esse tipo específico de relação humana, conforme os limites epistêmicos
desse objeto, nesse caso, a economia política. Aristóteles inicia com
uma investigação objetiva sobre qual o padrão de comensurabilidade
que permite às pessoas trocarem seus produtos, ou qual o fundamento da
troca em geral. Isto envolverá a famosa distinção entre valor de uso e
valor de troca, ou nas palavras do Estagirita, uso próprio e uso nãopróprio de cada coisa que, juntamente com as distinções entre práxis
(ação) e poiésis (produção), entre economia, crematística natural e não natural ou a delimitação da propriedade dos meios para produção e
aquisição dos produtos necessários à manutenção da vida – estudados
mais detalhadamente na Política -, formarão aquele ponto de partida
fundamental para se delimitar o âmbito da economia a fim de que ela
contribua para a boa vida na polis. Somente depois disso é que
Aristóteles se permite fazer recomendações éticas e políticas que
estejam de acordo com os elementos constitutivos da economia, tais
como a troca justa, a igualdade, satisfação de necessidades individuais,
sociais, naturais, políticas, entre outras.
Apesar das dificuldades que envolvem a adoção de termos e
conceitos cronologicamente tão distantes, o termo Economia política
pode ser entendido aqui como algo que transcende o âmbito do
patrimônio doméstico constituído pela família e por seus dependentes,
por exemplo, escravos, por isso seu estudo também foi objeto de
interesse do Estagirita. É claro que a formulação e aceitação desse termo
somente seria plausível a partir do momento em que se verifica o
crescimento significativo da economia, ultrapassando o âmbito
doméstico, algo que na Antiguidade não era plenamente imaginável,
inclusive porque a economia não tinha adquirido a autonomia necessária
para estabelecer a distinção entre o que é assunto político – referente a
quem e como governa - e o que é social – referente a quem é governado
– algo que só na modernidade se tornou possível. Assim mesmo o termo
é aceitável na medida em que se pode constatar que Aristóteles já fazia
fortes críticas àqueles que tratavam o Estado como responsável por
facilitar as relações sociais, especialmente as comerciais – que
certamente era um dos focos de problemas de justiça entre os indivíduos
exigindo, por sua vez, a investigação da relação entre economia e
justiça.
Veremos como é possível justificar a limitada dedicação de
Aristóteles à temática econômica não exclusivamente devido ao
desenvolvimento econômico da antiguidade, mas também porque,
apesar de estar atento ao novo panorama social e econômico dos séculos
V e IV a.C. na Grécia, ele acredita que os distúrbios que a economia
promove na organização política podem ser controlados por meio de
uma constituição mista democrático-oligárquica pautada no cultivo das
virtudes, capaz de corrigir o caráter dos indivíduos. A solução de
Aristóteles parece não ser definitiva, mostra como a crematística não
apenas apresenta o ambiente propício aos desvios morais como também
o próprio desenvolvimento da troca, que se torna predominantemente
comercial, assume contornos de um fenômeno com certo grau de
autonomia, acentuando ainda mais o vício da ganância. Depois de estudarmos os passos de Aristóteles para conhecer o
fenômeno econômico e as medidas para controlar suas influências,
veremos que Marx realmente busca e encontra em Aristóteles as
questões de economia política - teoria do valor, distinção entre uso e
aquisição, preocupação com a distribuição da riqueza, delimitação dos
propósitos da economia, entre outros. Não excluindo as influências de
outros teóricos – Hegel, Smith, Ricardo entre outros – facilmente
reconhecíveis, poderemos constatar que Aristóteles é incorporado como
um dos elementos fundantes, marco histórico-filosófico da economia
política de Marx.
Para estudar a insurgente economia política em Aristóteles e sua
complexa relação com Marx estruturamos nosso trabalho do seguinte
modo: o primeiro e segundo capítulos são inteiramente dedicados ao
estudo da economia política em Aristóteles. Inicia com um breve
resumo das condições econômicas na Grécia do século IV a.C. e da
discussão acerca de sua qualificação, se é uma formação social e
econômica completamente distinta ou apenas um capitalismo menos
desenvolvido. Trata da análise econômica efetuada por Aristóteles
principalmente nos livros IV e V da Ética a Nicômacos - para identificar
o padrão de comensurabilidade, valor de uso e valor de troca, e justiça
na troca -; nos livros I e II da Política e livro I dos Econômicos - para a
distinção entre economia e crematística, e a importância dos fatores
econômicos para a elaboração do modelo aristotélico de constituição; no
livro VI da Ética a Nicômacos e livro IX da Metafísica para a distinção
entre ação e produção. Além disso, a Ética a Nicômacos, os Econômicos
e a Política serão estudados em conjunto para entender a ideia geral de
economia política e sua intrínseca relação com temas especialmente
políticos, tais como propriedade, produção, cidadania e constituição.
O terceiro e quarto capítulos também formam um pequeno
conjunto onde é apresentada a distinção feita por Aristóteles entre
pra=cij (ação) e poi/hsij (produção) para, em seguida, apresentar o
conceito de trabalho em Marx e verificar sua relação com os conceitos
aristotélicos. O trabalho é uma categoria central na economia política,
conforme a exposição, respectivamente, nos Manuscritos econômicofilosóficos – onde é enfatizado o conceito de alienação e sua intrínseca
relação com a propriedade -, nos Grundrisse – que se ocupa da
alienação numa forma específica de sociedade - e em O capital – onde a
distinção entre trabalho e força de trabalho permite revelar o duplo
caráter da mercadoria e seu fetichismo. O quarto capítulo apresenta
algumas críticas às tentativas teóricas de aproximação entre os do filósofos a partir das respectivas abordagens éticas, antropológicas e
políticas. Mostra ainda a síntese marxiana entre ação e produção no
conceito de trabalho e como a distinção entre trabalho e força de
trabalho pode ser relacionada com o par conceitual ato e potência,
formulado por Aristóteles, na medida em que esclarece as
potencialidades da política e da economia, moderna e antiga.
Finalmente, no quinto e sexto capítulo é retomada a avaliação da
economia antiga e da respectiva análise aristotélica, porém agora sob a
perspectiva de Marx. No quinto capítulo são ordenados os esparsos
comentários de Marx, efetuados principalmente nos Grundrisse, sobre a
formação sócio-econômica antiga para compreender as condições
históricas vividas por Aristóteles em meio ao desenvolvimento daquelas
forças produtivas potencialmente dissolvedoras das formações sócioeconômicas. O sexto capítulo reúne as várias menções de Marx nas
obras de maturidade - Para a crítica da Economia política, Grundrisse e
O capital - que buscam fundamentar filosófica e historicamente sua
economia política a partir das inserções de Aristóteles nesta área.
Aristóteles é inserido na explicação da forma equivalente da mercadoria
que passa pelas funções do dinheiro, sua diferença com capital, o
conceito de fetichismo germinal e desemboca na polêmica origem do
conceito de valor. As causas dos êxitos e hesitações de Aristóteles na
distinção entre valor de uso e valor de troca, e na identificação do
critério do valor servem a Marx para fundamentar sua longa jornada
histórico-filosófica da economia política.
Para a tradução da Ética a Nicômacos, da Política e dos
Econômicos o texto utilizado foi o de Jean Tricot. As exceções serão
indicadas. O texto grego foi extraído do Thesaurus Linguage Graecae,
University of Califórnia, 2001. A tradução dos textos de língua
estrangeira – espanhol, francês e inglês – é de nossa autoria.
1 VALOR DE USO E VALOR DE TROCA EM ARISTÓTELES
1.1 A ECONOMIA NA GRÉCIA DE ARISTÓTELES
Como quase tudo que há de importante na filosofia já foi
discutido por Platão, em suas investigações não poderiam faltar
investidas também sobre a economia. Ele descreve a origem da polis
com base na ausência de autossuficiência dos seus integrantes que se
reúnem a fim de sanarem suas diferentes necessidades, tais como
alimentação, habitação, vestuário, entre outras. Platão reconhece que a
junção das diferentes habilidades naturais e a respectiva especialização
de cada um em sua tarefa são os grandes responsáveis pela eficiência e
maior produtividade, auxiliando na manutenção da comunidade4
.
Também não deixou de lado a questão da divisão da propriedade e da
distribuição dos bens, entretanto não estabeleceu relações diretas entre,
por exemplo, a organização das atividades produtivas – o que
chamaríamos de divisão do trabalho - e a extensão do mercado de
trocas. Na verdade, assim como boa parte de seus predecessores e
também de seus discípulos, Platão não considerou os aspectos sociais e
econômicos específicos que estariam implicados na ideia de que a troca
nasce da divisão e especialização do trabalho. Além disso, ele não
promoveu uma investigação objetiva dos fatores econômicos, não se
propôs a tratar a economia separada da ética e da política e por isso não
extraiu uma análise objetiva do valor de troca.
Xenofonte também foi um dos poucos gregos que desprendeu
esforços para tratar de questões econômicas, mas apesar de Marx ter
ironizado o “instinto caracteristicamente burguês”5
deste general e
historiador grego que explica as vantagens da divisão do trabalho na
oficina, a verdade é que seus escritos eram estritamente sobre ética,
acentuando as virtudes necessárias para o proprietário gerenciar bem sua
casa (oi)=koj).6
4
O livro II de A República apresenta a gênese da polis e de todos os elementos necessários
para sua manutenção. É nesta parte da obra de Platão que se pode encontrar boa parte das
reflexões dele sobre economia política. Cf. PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da
Rocha Pereira. 8. ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, 369b-374e.
5
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. Regis Barbosa e Flávio R.
Kothe. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Os economistas), p. 287.
6
XENOFONTE. Econômico. Trad. Anna L.A. Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1999, VI, 4
É por isso que, de acordo com vários tratados e manuais de
história da economia política,7
Aristóteles é considerado o primeiro
filósofo a investigar os fatores econômicos de modo objetivo, mesmo
que em seus textos também não seja tão simples separar o conteúdo
ético-político do estritamente econômico, se isso for realmente possível!
Aristóteles foi o primeiro a ressaltar o duplo aspecto da mercadoria,
melhor dizendo, as duas maneiras possíveis de usar um produto: para o
uso propriamente dito, direto, imediato; ou para a permuta por outro
produto. É a partir desta distinção e das várias consequências daí
advindas que tem início uma análise com propósitos econômicos.
Entretanto, para estabelecer a cronologia da ciência econômica seria
preciso enfrentar a dificuldade em se desvincular os fatores econômicos
dos fatores sociais, éticos e políticos, o que, como nos alerta Karl
Polanyi, era algo impensável nas sociedades pré-capitalistas em que a
economia era intrinsecamente integrada às relações sociais, ao contrário
da economia de mercado onde são as relações sociais que estão
embutidas no sistema econômico. Os fatores econômicos não eram
considerados autonomamente, estavam sempre subordinados à
considerações políticas.8
A fim de compreendermos o lugar da
economia na filosofia de Aristóteles a partir de algumas características
centrais da economia antiga, vamos apresentar um breve resumo
daquelas condições econômicas da Grécia, especialmente nos séculos V
e IV a.C., analisadas por alguns estudiosos que se dedicaram, em maior
ou menor grau, às questões das formações sócio-econômicas précapitalistas.9
Desse modo poderemos avaliar melhor a importância que a
economia tem para Aristóteles, bem como, a coerência de sua análise
econômica e de suas propostas político-econômicas para um tipo
determinado de sociedade. Esta breve contextualização servirá ainda
como ponto de partida para compreendermos como Marx interpreta e
7
Dentre eles podemos destacar: MANDEL, Ernest. Tratado de economia marxista. Tomos
I, II e III. 3. ed. México, Ediciones Era, 1989.; SCHUMPETER, Joseph A. História da análise
econômica. Trad. Alfredo Moutinho dos Reis, José Luis Silveira Miranda, Renato Rocha.
Portugal: Editora Fundo Cultura, 1964.; ROLL, Eric. História das doutrinas econômicas.
Trad. Cid Silveira, Richard Paul Neto e Constatino Ianni. 4. ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1977.
8
Esta emancipação do elemento econômico das regras culturais e sociais é denominada por
Polanyi de a grande transformação. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da
nossa época. Trad. Fanny Wrobel. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
9
Dentre vários estudiosos que se dedicaram à economia pré-capitalista, destacamos aqui: Karl
Polanyi, Moses Finley, Michel Austin, Fustel de Coulanges, Jean-Pierre Vernant, Pierre VidalNaquet, Ciro Flamarion Cardoso, Max Weber, Michael Rostovtzeff, Maurice Godelier e
Edward E. Cohe
incorpora a economia política aristotélica a partir de sua própria análise
e qualificação da formação sócio-econômica antiga.
Há um histórico debate iniciado entre o final do século XIX e
início do XX acerca da qualificação da economia antiga Greco-romana,
centrado em dois grupos, os primitivistas – que defendiam a ideia de que
o tipo de desenvolvimento econômico do mundo antigo era
extremamente diferente daquele vigente no mundo moderno – e os
modernistas – defendem a ideia de um capitalismo insurgente, tanto na
Grécia quanto em Roma.10 Conforme o critério adotado, cada grupo
destaca ou uma estrutura social ainda fortemente baseada na economia
agrícola e na produção artesanal circunscritos à satisfação de poucas
necessidades; ou o crescimento das cidades por meio do comércio
exterior ultrapassando e alterando sua rigidez social e política.
De modo geral, aqueles que procuram destacar as diferenças
estruturais entre antiguidade e modernidade afirmam que, apesar da
economia grega do século IV a.C. não se restringir a um modelo de
relações de escambo e também não ter um uso tão restrito da moeda,
certamente o âmbito do aspecto especulativo da troca, tal como o
conhecemos hoje, ainda é muito restrito. As relações de produção
(propriedade dos meios de produção e da força de trabalho) na
antiguidade não aparecem nitidamente separadas das relações sociais,
religiosas ou de parentesco, diferentemente do que ocorre no
capitalismo em que as relações entre capitalistas e trabalhadores
aparecem amplamente independentes de qualquer laço religioso, político
ou familiar. Isso, em parte, se deve à modesta escala da economia
baseada ainda na troca de excedentes daqueles produtos não consumidos
na comunidade, raros eram os produtos visados especialmente para
exportação.
A acumulação de riqueza ainda obedece ao grau de
desenvolvimento das necessidades humanas que durante milênios
praticamente não ultrapassaram o nível dado de desenvolvimento da
capacidade de produção da época11, limitado ao uso imediato ou de
curto prazo. Não significa que as necessidades humanas fossem menores
10 O artigo de Édouard Will é um dos melhores resumos sobre toda a querela entre primitivistas
e modernistas, desde Karl Bucher até Ed. Meyer. WILL, Édouard. Trois quarts de siècle de
recherches sur l'économie grecque antique. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 9
ed. année, n. 1, 1954.
11 A superação do desenvolvimento atrelado às necessidades é produto da economia mercantil
generalizada, o capitalismo. MANDEL, Ernest. A formação do pensamento econômico de
Karl Marx: de 1843 até a redação de O capital. Trad. Carlos Henrique de Escobar. 2. ed. Rio
de Janeiro: Zahar, 1980, p. 167.
do que as de hoje e sim que as forças produtivas eram outras, eram mais
restritas porque não havia concorrência entre trabalhadores e
capitalistas, ou entre os próprios capitalistas, não despertando a ideia de
produtividade progressiva do gênero humano. Os trabalhos eram
limitados pelas necessidades que por sua vez se mantinham dentro do
nível de desenvolvimento das forças produtivas. A principal fonte de
riqueza era a terra que, por não ser considerada mercadoria inclusive,
havia grandes restrições quanto à venda de propriedades porque a terra
era o fator de distinção, estava vinculada à cidadania.12 Moses Finley
defende que boa parte da população do mundo antigo “vivia da
agricultura, de uma forma ou de outra, e que ela própria reconhecia ser a
terra a fonte principal de todo o bem, material e moral.13” A posse e
cultivo da terra estavam atrelados a valores morais. Para os grandes
proprietários representava a ausência de ocupação, portanto, a liberdade;
para os pequenos agricultores significava trabalho constante para dar
conta da subsistência e, ao mesmo tempo, concebido como dever moral,
o meio eficaz para a virtude e a coragem tão ressaltadas por Hesíodo no
poema Os trabalhos e os dias.
Na Grécia Antiga, de acordo com Michel Austin e Pierre VidalNaquet, o mundo do dinheiro sempre manteve certa distância do mundo
da terra, eles coexistem mas não se fundem.14 É verdade que o uso do
dinheiro já é bem difundido, porém ele funciona principalmente como
moeda: “O dinheiro era moeda e nada mais, e a falta de moeda era
crônica, tanto em números totais como na disponibilidade dos tipos ou
denominações preferidas.”15 Os diversos artifícios utilizados pelos
governantes para a aquisição de moedas e assim garantir fundos
financeiros para suas cidades, descritos pelo Pseudo-Aristóteles16
, no
livro II dos Econômicos, parecem confirmar a crônica escassez de
12 AUSTIN, Michel; VIDAL-NAQUET, Pierre. Economia e sociedade na Grécia Antiga.
Trad. António Gonçalves e António Nabarrete. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 100.
13 FINLEY, Moses I. A economia antiga. Trad. Luísa Feijó e Carlos Leite. 2. ed. Porto:
Edições Afrontamento, 1986, p. 134.
14 Ibidem, p. 103.
15 Ibidem, p. 227.
16 Os Econômicos é dividido em três livros e existe uma grande polêmica sobre sua
autenticidade. O livro I, por seu conteúdo e vocabulário, é admitido por muitos estudiosos
como sendo de Aristóteles tendo, inclusive, várias ideias e passagens repetidas quase
literalmente na Política. O livro II é quase unanimemente rejeitado como sendo de Aristóteles
e o texto em grego do livro III nunca foi encontrado, só há traduções latinas medievais.
Considerando estas ressalvas, adotamos o livro I na medida em que ele complemente e
enriqueça as análises de Aristóteles sobre economia, e o livro II, por ser um conjunto de
relatos, será usado mais para ilustrar a situação sócio-econômica da Grécia nos séculos V e
moeda cuja circulação ainda não predomina no comércio e menos ainda
no comércio interno. Vejamos uma dessas passagens:
No tempo de Sosípolis a cidade de Antissa
precisava de moeda. Como seus cidadãos tinham
o costume de celebrar brilhantemente as
Dionisíacas, cuja preparação durava o ano todo e
se faziam grandes gastos e suntuosos sacrifícios,
um ano, pouco antes da festa, Sosípolis os
persuadiu a prometerem a Dionísio duplicarem
suas oferendas no ano seguinte e a venderem o
que haviam recolhido. Assim se juntou a soma
para as necessidades do momento. (Oec. 2,
1347a25-31).
Além da escassez de moeda, as práticas governamentais
utilizadas para suprirem esta carência mostram mecanismos políticos
totalmente estranhos às práticas modernas. Enquanto as políticas
econômicas modernas são pautadas na racionalidade, no cálculo
financeiro necessário para fomentar o mercado e garantir os fundos
estatais, os políticos da antiguidade constantemente recorriam aos
sentimentos religiosos para convencer os cidadãos a contribuírem para
as finanças da cidade, motivo completamente inconcebível hoje.
Um dos principais problemas do uso limitado da moeda é que não
permitia a expansão de crédito - um dos fatores principais (junto com a
expansão permanente do mercado) para a redução do tempo de
circulação17 e, portanto, para a sustentação do capital18 - restringindo
muito as inovações direcionadas para a produção. Scott Meikle explica
que o desenvolvimento do crédito visando a produção é um longo
processo que pressupõe uma formação prévia de várias outras
instituições e condições:
Uma condição necessária é o desenvolvimento do
dinheiro como meio para liquidação das operações
17 Segundo Marx, a circulação não cria valor, apenas proporciona a forma ao valor que é criado
pela força de trabalho. MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la
economia política (Grundrisse) 1857-1858. v. I, II, III. Trad. José Aricó, Miguel Murmis e
Pedro Scaron. 10. ed. México: Siglo Veintiuno Editores, 1997, p. 624.
18 Capital entendido aqui vulgarmente como uma soma de dinheiro a ser investida para
assegurar um retorno, um lucro, não como uma relação de produção específica, típica do modo
de produção capitalista, de acordo com a definição de Marx em: MARX, Karl. O Capital:
crítica da economia política. Livro III. O Processo global da produção capitalista. Trad.
Reginaldo Santana. São Paulo: DIFEL, 1985, p. 936
de crédito, e os gregos não tinham algo
semelhante. Não havia qualquer tipo de
instrumentos de crédito e cada transação
individual era estabelecida sempre por meio de
transferências físicas com a pessoa estando
presente.19
O sistema monetário proporcionava um meio de circulação, não
havia a ideia de liquidez para operações de crédito; a moeda, o ouro ou a
prata serviam apenas como garantia de trocas futuras. Além disso, os
empréstimos eram de curto prazo e geralmente não serviam para fins
produtivos, sim tomados para dar conta do consumo individual, um
pequeno adiantamento para sanar problemas de colheita, catástrofes
naturais, etc.20 Os impostos de modo geral não eram alavancas
econômicas e os impostos diretos incidiam somente sobre os não
cidadãos.21 Não havia barreiras alfandegárias ou proteção à produção
doméstica, a política comercial era restrita às importações essenciais à
cidade. As vantagens comerciais de Atenas, por exemplo, eram tiradas
por meios não econômicos e não por manipulação de preços. Somente
os preços dos alimentos eram regulados devido ao medo da fome.
Raramente os lucros eram reinvestidos nas empresas existentes22
,
geralmente eram gastos em artigos de luxo, em equipamento militar, nas
festas religiosas ou entesourados, por isso o crescimento na produção
era muito lento. O mercado já estava presente, mas sua função era muito
limitada, apenas incidental, era o lugar das trocas de artigos de
sobrevivência em pequenas quantidades e a preços controlados.
Inclusive Aristóteles, para sua polis ideal, defendia a rígida separação da
praça pública, a Ágora, em duas partes: uma para a reunião dos cidadãos
19 MEIKLE, Scott. Aritotle’s economic thought. Oxford University Press, USA, 2002, p. 160.
20 Veremos adiante o posicionamento de Aristóteles perante aos juros cobrados por esses e
outros empréstimos.
21 Avaliando os problemas enfrentados por Atenas para barrar os avanços de Filipe da
Macedônia no século IV a.C. Claude Mossé explica que as reformas financeiras realizadas
pelos governantes no começo do século não conseguiam resolver os problemas das finanças
públicas: “E isto porque o imposto não era ainda uma noção plenamente aceita, o que traduz o
caráter, ainda primitivo, do Estado ateniense.” (MOSSÉ, Claude. Atenas: a história de uma
democracia. Trad. João Batista da Costa, 3. ed. Brasília: UNB, 1997, p. 104). O equilíbrio
orçamentário dependia mesmo era da boa vontade dos proprietários.
22 Sobre barreiras alfandegárias e política comercial, Cf. AUSTIN; VIDAL-NAQUET, op. cit.
p. 119. Sobre os tipos de crédito, empréstimos, bancos e juros, Cf. FINLEY, 1986, op. cit., p
para discussão política e a outra para a troca comercial23, ideia que já
predominava entre os antigos, segundo Polanyi:
A ágora ateniense pode muito bem ter sido o
primeiro mercado no Ocidente que poderia ser
chamado de um ‘mercado da cidade’. No entanto,
essa utilização do termo é um pouco anacrônica,
pois historicamente a ágora não foi
originariamente um mercado local, mas um local
para reuniões.24
Os mercados não eram mais do que um aspecto acessório de uma
estrutura institucional controlada e regulada pela autoridade social.
Se o desempenho da economia seguia tal ritmo, então não havia
mesmo muitos motivos para convencer Aristóteles a se ocupar desse
tema. Porém, talvez o panorama social fosse mais complexo. Algumas
pesquisas parecem mostrar a existência de um avançado grau de
desenvolvimento econômico, especialmente na Atenas do século IV a.C.
e por quase toda a Grécia no período helenístico, o que levou alguns
estudiosos a se valerem de categorias tipicamente modernas – como
burguesia, proletariado, capitalismo, produtividade, etc. – para
expressarem estas sociedades. O caso de Rostovtzeff é paradigmático.
Mesmo reconhecendo a escassez de dados referentes àqueles critérios
necessários para que se possa compreender a vida econômica de uma
sociedade - densidade demográfica e o capital acumulado resultante da
exploração dos recursos naturais25 - este autor não sente o menor receio
em afirmar que:
o desenvolvimento moderno difere do antigo
apenas em quantidade, não em qualidade. O
mundo antigo presenciou a criação de um
comércio mundial e o crescimento de uma
indústria em grande escala; viveu durante um
23 Pol. 1331a30-b3.
24 POLANYI, Karl. Aristotle discovers the economy. In: DALTON, G. (Ed.), Primitive,
Archaic and Modern economies. Garden City. New York: Doubleday & Company, 1968, p.
312.
25 “Entre os pré-requisitos essenciais para se entender a vida econômica de alguma região do
mundo em qualquer período, está o conhecimento, mais ou menos exato, de: por um lado, a
densidade populacional de uma região e de seu incremento ou decréscimo; por outro lado, a
quantidade de capital acumulado por sua população por meio da exploração de suas fontes
naturais de riqueza.” Cf. ROSTOVTZEFF, Michael. A Social and Economic History of the
Hellenistic World. v. I, II. Oxford University Press, USA, 1998, p. 1135.
período de agricultura científica e do
desenvolvimento da luta entre as diferentes
classes da população, entre capital e trabalho.26
Para sustentar sua tese, Rostovtzeff relata vários casos desse
período: no reinado de Alexandre Magno teve cidade que recorreu a um
grupo de capitalistas para drenagem de lagos27; na era Ptolomaica, para
incremento da produtividade das terras, houve um grande projeto de
irrigação no delta do rio Nilo; em várias partes da Grécia houve a
introdução de novas plantas e de novas espécies de animais em menor
ou maior escala, devidamente planejada em conformidade com sua
melhor adaptação28; também houve exploração sistemática de fontes
naturais de riqueza29 (minas e florestas para extração de madeira); havia
ainda importante indústria pesqueira que requeria capital e planejamento
fornecidos pelas próprias cidades e por capitalistas individuais.30 Claro
que tudo isso exigia grande inovação tecnológica que foi implementada
simultaneamente em vários setores da economia (agricultura, pesca,
indústria, etc.).
Interessante notar que, ao mesmo tempo em que defende o
ímpeto capitalista da antiguidade, Rostovtzeff admite que as
informações tanto sobre a agricultura quanto sobre a indústria na era
helenística – período que se tem, segundo o próprio autor, mais
informações sobre sua situação social e econômica do que os períodos
anteriores - são muito escassas, comprometendo assim qualquer
conclusão definitiva sobre qual o papel desempenhado por estes setores
na economia.31 Sua indecisão também se verifica na avaliação dos tipos
de bancos – bancos-templos, das cidades e bancos privados - e do
sistema monetário em geral, tanto de Atenas do século IV a.C. quanto
do período helenístico em seu todo:
26 ROSTOVTZEFF, Michael. História da Grécia. Trad. Edmond Jorge. 3. ed. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1986, p. 32.
27 ROSTOVTZEFF, 1998, op. cit., p. 1161.
28 Ibidem, p. 1162.
29 Ibidem, p. 1170.
30 Ibidem, p. 1179-1180.
31 “Seria interessante saber o papel desempenhado pela indústria na vida econômica do período
helenístico, quais inovações tecnológicas foram introduzidas naqueles métodos previamente
conhecidos e aplicados na Grécia e nas monarquias orientais; em que extensão a produção
industrial foi intensificada pelas novas condições de vida e pelas inovações tecnológicas; se
alguma vez chegou a se assemelhar à moderna produção de massa voltada a um mercado
indefinido [...] Temo que nenhuma resposta conclusiva possa ser dada a qualquer uma destas
questões. A evidência literária sobre o desenvolvimento da indústria é mais escassa que aquela
referente à agricultura.” (Ibidem, p. 1200
Encontramos os negócios bancários, em todas
essas linhas, muito desenvolvidos em muitas
cidades gregas do século IV a.C. O maior centro
bancário era naturalmente Atenas, e temos boa
literatura e evidências epigráficas referentes a
alguns de seus bancos privados.32
Porém, ainda que não queira se contradizer, ele se satisfaz em
dizer que: “Não há dúvida que existiam bancos privados em todas as
grandes cidades helenísticas, embora não sejam frequentemente
mencionados”.33
Sobre a cunhagem de moedas e o mercado monetário,
Rostovtzeff se obriga a admitir que a unidade perseguida por Alexandre
era mantida apenas nas efêmeras ligas comerciais, na verdade em cada
cidade predominava a tendência ao isolamento e a busca da autosuficiência34, enfim: “O pouco que sabemos sugere que o mercado
monetário era desorganizado e instável”.35 Justamente um dos aspectos
que melhor caracterizaria os necessários rudimentos para um
capitalismo grego parece ser muito pouco elucidativo, comprometendo
aqueles fatores essenciais para a estabilidade financeira e o crescimento
ilimitado do mercado.
Tentando evitar as contradições e os exageros ideológicos dos
modernistas da primeira geração36, Edward Cohen, analisando o período
de aproximadamente oito décadas – entre a derrota de Atenas para
Esparta na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) e a morte de Alexandre
Magno (323 a.C.) – também busca demonstrar o grande impulso
econômico e a crescente importância dos bancos na economia ateniense
do século IV, que teriam causado um impacto significativo sobre as
32 Ibidem, p. 1279.
33 Ibidem, p. 1279.
34 Ibidem, p. 1293.
35 Ibidem, p. 1290.
36 De modo análogo a vários modernistas - que na busca alucinada para demonstrar que a
humanidade percorre um ciclo que se encerra no capitalismo, o estágio superior, aplicaram
tendenciosamente as relações de produção capitalistas às outras formações sociais – alguns
marxistas também passam por cima das diferenças qualitativas entre as diversas formações
sócio-econômicas no ímpeto de aplicarem o princípio da luta de classes como motor da história
que atuaria, inexoravelmente, de modo similar em toda e qualquer sociedade. A coletânea de
textos Modos de produção na antiguidade, organizada por Jaime Pinsky, reúne bons exemplos
da ostentação ideológica de ambos os lados. Para maiores detalhes, confira: PINSKY, J.,
Modos de produção na antiguidade. 2. ed. São Paulo: Global, 1984.
finanças e sobre as relações sociais da época. O comércio, ao menos na
Atenas do século IV, era tão desenvolvido que:
Os atenienses exerciam suas funções através de
um processo de mercado entre indivíduos que não
tinham relações de parentesco algum, que
frequentemente estavam somente de passagem na
cidade, às vezes operando a partir do estrangeiro,
buscando lucro monetário por meio da troca
comercial.37
Segundo Cohen, há uma clara mudança da economia de
autossuficiência ainda predominante no século V, para uma economia
de grande escala no século IV, próspera o suficiente para identificar
fortes semelhanças com a economia moderna, ao menos no setor
bancário. Na Atenas do século IV a.C., a economia não era - como
defendem, por exemplo, Finley e Polanyi – uma atividade “embutida”,
intrinsecamente incorporada nas relações familiares e sociais, pelo
contrário, já tinha alcançado certa autonomia a ponto de ser considerada
uma ameaça aos métodos tradicionais de produção e consumo, eram
essas alterações que preocupavam Aristóteles.38
Em Atenas, os bancos não eram raros e não eram apenas casas de
penhores ou de câmbio, eles cumpriam as duas principais atribuições de
um verdadeiro banco, ou seja, aceitar depósitos e fazer empréstimos
comerciais, algo que, apesar das indiscutíveis diferenças consideradas
por Cohen – tecnologia, situação legal e abrangência das operações -,
são compartilhadas pelos bancos modernos.39 O banqueiro
(trapez/i/thj) não era apenas um mero livre-cambista, não exercia
uma atividade marginal que pouco afetasse a sociedade, mas fazia parte
de um novo sistema econômico.40 Além do câmbio, os banqueiros
proporcionavam empréstimos, aceitavam depósitos, aumentaram a
oferta de dinheiro e, ao servirem de intermediários, facilitavam o
comércio, ou seja, exerciam funções que não se originaram nas relações
familiares ou políticas, mas em transações isoladas típicas de um
ambiente de negócios: “Essas atividades, por sua vez, criaram novas
37 COHEN, Edward E. Athenian economy and society: a banking perspective. Princeton
University Press, USA, 1997, p. 4.
38 Ibidem, p. 4.
39 Ibidem, p. 9.
40 Ibidem, p
relações pessoais e familiares transformando ainda mais a sociedade e a
economia.”41
Isto facilmente nos leva a crer que o dinheiro ocupava naquele
momento, na sociedade ateniense e talvez em boa parte da Grécia, lugar
de destaque e que as queixas dos grandes pensadores gregos não
expressavam apenas um conjunto de preocupações morais ou mero
saudosismo de uma classe aristocrática que não se conformava com a
possível perda de privilégios sociais. Daqui para frente a estrutura social
seria outra, com o avanço do comércio o caminho ganha traçado
irreversível. Entretanto, é preciso observar que, mesmo não deixando de
abordar as ocorrências de escravos que se tornaram comerciantes e
grandes banqueiros,42 ou de banqueiros que adquiriram o direito de
propriedade43, Cohen - assim como os defensores de uma economia
antiga nos moldes do capitalismo moderno – não consegue explicar os
motivos para a economia ateniense simplesmente não ter conseguido
alcançar ou manter o grau de desenvolvimento do moderno capitalismo,
apesar de as duas sociedades, segundo sua avaliação, compartilharem
instituições muito semelhantes. Em parte, a resposta pode estar na
displicência crônica que afeta muitos modernistas, impossibilitando-os
de perceber o principal fator limitador da economia antiga: a evidente
ausência de mão de obra assalariada suficiente para criar um mercado de
trabalho livre, capaz de sustentar uma demanda flexível por um tipo
específico de atividade, ao contrário do que ocorre na modernidade.44
A identificação do tipo de mão de obra e de sua distribuição nas
sociedades antigas sempre foi um tema controverso. Finley afirma que
não é possível saber o número de escravos na Grécia numa dada época,
apenas que a escravidão era predominante, principalmente nas grandes
propriedades agrícolas, no artesanato, nas minas e no comércio, mas
também nessa última havia muitos homens livres.45 De modo geral, o
mundo antigo não imaginava um mundo sem escravos e a escravidão é
indicada como um dos principais fatores de retardamento da expansão
do mercado. O trabalho livre e o escravo coexistiam, mas o assalariado
livre era figura rara, pouco importante, era casual e sazonal: “Não se
41 Ibidem, p. 7.
42 Ibidem, p. 63.
43 Ibidem, p. 68.
44 Veremos mais a frente como as distinções entre trabalho escravo e assalariado, e entre
trabalho e força de trabalho auxiliam no entendimento, não apenas das diferentes formações
econômicas (antiga e moderna) como também na percepção que Aristóteles tem do trabalho
como fator econômico e de suas consequências teóricas.
45 FINLEY, 1986, op. cit., p. 107-108.
encontram, pura e simplesmente, empresas que empreguem homens
livres, mesmo numa base semi-permanente.”46 O trabalho não era em
base salarial, sim por contrato, e a divisão do trabalho, ainda que já
tivesse certo grau de desenvolvimento, não visava o aumento da
produção, pois:
O progresso técnico, o desenvolvimento
econômico, a produtividade e mesmo a eficiência
não foram objetivos significativos desde o
princípio dos tempos. Enquanto se podia manter
um estilo de vida aceitável, qualquer que fosse a
sua definição, a cena era dominada por outros
valores.47
Entre as principais características da produção moderna estão a
especialização e a divisão do trabalho, mas no caso da antiguidade
clássica é preciso estar atento para diferenças cruciais. Vernant e VidalNaquet explicam a diferença entre divisão do trabalho e divisão de
tarefas no exercício de um ofício:
A divisão das tarefas não é, portanto, sentida
como uma instituição cujo objetivo seria dar ao
trabalho em geral seu máximo de eficácia
produtiva. É uma necessidade inscrita na natureza
do homem que faz ainda melhor uma coisa porque
faz exclusivamente aquilo.48
O mérito da especialização e divisão de tarefas está na
possibilidade de exercer uma atividade que esteja de acordo com os
talentos individuais para criar obras melhores, não é um meio de
organizar a produção para se obter mais produtos com a mesma
quantidade de trabalho. E nem poderia ser diferente, porque na
Antiguidade o trabalho não tinha valor em si, não havia uma concepção
de força de trabalho impossibilitando, desse modo, uma ideologia do
46 Ibidem, p. 100.
47 Faltam dados sobre a eficácia e rentabilidade da escravidão, mas, segundo Finley, é certo que
se obtinham lucros satisfatórios, embora não houvesse outra realidade para se comparar.
Ibidem, p. 116.
48 VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Trabalho e escravidão na Grécia
antiga. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1989, p. 25.
trabalho ou um programa trabalhista.49 Inclusive a aquisição de riqueza
não era pelo trabalho, se dava principalmente por meios políticos. A
ausência de mercado de trabalho não permitia uma racionalidade
econômica atuando por trás das escolhas profissionais.
Enfim, a produção era de baixa escala e a produtividade também,
pois a mentalidade dominante era aquisitiva, não produtiva, afinal a
força de trabalho não era uma categoria produtiva central. Na linguagem
de Marx prevalecia ainda o valor de uso sobre o valor de troca, assim,
mesmo considerando todos os avanços técnicos nos vários setores e a
razoável difusão do dinheiro, a produção não visava
preponderantemente a troca, mas o consumo interno.
1.2 JUSTIÇA NA TROCA
Mesmo que a economia antiga esteja muito longe da estrutura
mercadológica do capitalismo, veremos que ela surpreendeu e
extrapolou os limites recomendados pelo Estagirita, por isso mereceu
cuidado analítico correspondente à sua importância no quadro social e
político vigente. Mesmo ocupando escasso espaço na obra de
Aristóteles, sua análise econômica nos ajuda a revelar os tipos
predominantes de relações sociais e produtivas especificamente nos
séculos V e IV da Grécia Antiga cujas transformações econômicas e
políticas - marcadas principalmente pela Guerra do Peloponeso (431 a
404 a.C.) e pelo império de Alexandre (336 a 323 a.C.) que deram início
à derrocada da cidade-estado grega (por volta de 146 a.C.) – estão
também refletidas em seus textos proporcionalmente à importância
desse tema no contexto histórico específico. Aristóteles está ciente do
espaço que o fenômeno da economia começa a ocupar no mundo grego,
influenciando alguns valores morais, religiosos e culturais em geral,
constatando, inclusive, que a grande causa dos transtornos políticos é a
distribuição de riqueza e de honrarias entre os cidadãos.
49 Para a concepção de trabalho na antiguidade ver: AUSTIN; VIDAL-NAQUET, op. cit., p.
28-29. Também nesta mesma linha de pensamento, Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion. O
trabalho compulsório na antiguidade: ensaio introdutório e coletânea de fontes primárias. 3.
ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003, p. 61. Rostovtzeff prefere ignorar estas distinções
sobre o trabalho e afirma categoricamente que “O progresso econômico foi poderosamente
auxiliado pela ciência grega que voltou sua atenção para melhoramentos técnicos.” Estes
melhoramentos, juntamente com o trabalho altamente especializado, se refletiram tanto na
agricultura quanto na atividade industrial, embora: “Na verdade, o sistema de fábrica nunca foi
adotado; já observei como era difícil o desenvolvimento de um sistema capitalista sólido nas
cidades gregas.” (ROSTOVTZEFF, 1986, op. cit., p. 221)
Tendo já uma ideia do contexto sócio-econômico em que
Aristóteles está envolvido, vamos a partir de agora entrar diretamente
em sua investigação sobre o que afinal é a economia, seu escopo e sua
relação com a política. Vamos tentar decifrar as preocupações que
levam o Estagirita a se ocupar da reciprocidade proporcional, da
igualização na troca de bens e serviços, das funções do dinheiro, da
equivalência quantitativa e qualitativa, dos possíveis usos de um produto
e, principalmente, da diferenciação entre economia e crematística tão
necessária para se estabelecer os limites da riqueza.
O que poderíamos denominar de economia política em
Aristóteles tem início, textualmente, no livro V da Ética a Nicômacos,
dedicado especificamente à justiça, lugar em que são listados os
diferentes tipos de justiça conforme a motivação. Um dos motivos que
leva o Estagirita a se ocupar da economia é sua relação com a
distribuição equitativa dos bens (produtos, instrumentos de produção,
propriedade, etc.) o que remete, necessariamente, à discussão sobre a
justiça. Por outro lado, justiça e virtude caminham juntas em sua
filosofia. Aristóteles define a virtude como:
uma disposição da alma relacionada com a
escolha de ações e emoções, disposição esta
consistente num meio termo (o meio termo
relativo a nós) determinado pela razão (a razão
graças à qual um homem provido de
discernimento o determinaria). (EN, 2, 1105b11-
14).
A virtude é a disposição que torna o homem bom, que o leva a
desempenhar bem sua função que é o agir racionalmente visando a
melhor finalidade, o melhor bem possível. A virtude, apesar de ser
posterior às coisas que são por natureza, pode e deve imitar a natureza,
porque nesta impera a ordem. Virtude é sempre um meio termo, a
mediania entre uma paixão, sua finalidade é o bem. As virtudes são
meios para um fim: a felicidade. O fim é o que desejamos e o meio é o
que deliberamos e escolhemos, por isso as ações referentes ao meio
devem estar de acordo com a escolha e a voluntariedade.
Quanto à justiça, Aristóteles a define como a forma mais elevada
da virtude “porque ela é a prática da virtude perfeita. Ela é perfeita
porque o homem que a possui é capaz de praticá-la em relação aos
outros e não somente a si mesmo.” (EN, 5, 1129b30-32). Justiça não é
apenas uma disposição irrestrita da alma para a prática de boas ações,
mas é a própria prática destas ações, de ações específicas relacionadas
aos outros.
Em Aristóteles a justiça/injustiça tem dois sentidos. O primeiro é
a justiça universal, tem um sentido amplo, trata de todas as coisas que
envolvem as ações humanas, remete sempre à relação com o outro.
Como explica Máynez, a justiça nesse sentido “não é a harmonia das
partes da alma e suas virtudes correspondentes, como afirmava Platão,
mas é a excelência do guardião da lei, o cumpridor da lei”50, é o
exercício da própria virtude. O segundo sentido é a justiça particular, faz
parte da justiça universal, mas tem um sentido estrito, trata das situações
específicas, remete à prática de uma ação virtuosa específica (coragem
na guerra) ou de um vício, como a ganância (pleoneci/a), que
proporciona determinado prazer oriundo do ganho material. Fred Miller
esclarece ainda que do mesmo modo que a injustiça universal e
particular são ações que resultam em prejuízos à comunidade, a justiça
universal e particular promovem o bem dos outros indivíduos: “Tanto a
justiça universal como a particular se preocupam com as coisas comuns
aos homens ou com o que forma uma comunidade.”51
A justiça particular se divide ainda em Distributiva e Corretiva.
A distributiva trata da distribuição de cargos, de dinheiro e dos
benefícios públicos entre os cidadãos, considerando suas desigualdades
naturais, ou seja, pessoas desiguais receberão partes desiguais conforme
o mérito dos indivíduos e se efetua o cálculo em uma fórmula com base
na proporção geométrica. Máynez explica que a justiça distributiva
pressupõe:
A existência de algo a ser repartido entre os
membros da comunidade. De uma instância
encarregada de fazer a repartição. De um critério
que, ao ser observado, determinará a retidão do
ato distributivo.52
A justiça corretiva retifica as partes envolvidas numa relação
voluntária (compra, venda, aluguel, contrato) ou involuntária (roubo,
assalto, assassinato), abstraindo as desigualdades e méritos pessoais,
50 MÁYNEZ, Eduardo García. Doctrina aristotélica de la justicia. Estudio, selección y
traducción de textos. Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de investigaciones
filosóficas, 1973, p. 64-65.
51 MILLER JUNIOR, Fred D. Nature, Justice, and Rights in Aristotle's Politics. Oxford
University Press, USA, 1995, p. 69.
52 MÁYNEZ, op. cit., p. 75.
buscando um meio termo aritmético entre comprador e vendedor na
relação voluntária; entre quem prejudicou e foi prejudicado numa
relação involuntária. (EN, 5, 1131a2-8).
Depois desta distinção Aristóteles, estranhamente, esboça um
caso específico de justiça, a da Reciprocidade Proporcional, que se
refere também à troca, mas não se incluiria na corretiva de modo
irrestrito:
pois em muitos casos a reciprocidade e a justiça
corretiva divergem [...] mas nas relações de troca
é esta espécie de justiça que mantêm os homens
unidos, a reciprocidade conforme a
proporcionalidade e não na base de igualdade.
Pois é a reciprocidade proporcional que mantém a
cidade unida. (EN, 5, 1132b26-34).53
Aqui estão em jogo questões de natureza contratual que, entre
outras coisas, envolveriam a equivalência econômica entre prestação e
pagamento por um serviço. A inclusão repentina de situações que,
segundo Aristóteles, não poderiam ser resolvidas pela justiça
distributiva – que adota o princípio geométrico - nem pela corretiva –
que adota o princípio aritmético -, suscitou grande debate em torno da
existência ou não de um terceiro tipo de justiça que recebeu várias
denominações: justiça recíproca, retributiva, comutativa ou da troca
justa. Eduardo Máynez explica que para tratar de problemas de relações
interpessoais voluntárias em que se exija equivalência econômica entre
prestações de serviços, é preciso, antes de tudo, considerar o princípio
geral em que se baseia a doutrina aristotélica sobre a justiça particular:
os iguais devem receber coisas iguais e os desiguais coisas desiguais,
proporcionalmente a sua desigualdade. Este é o princípio que permeia
toda questão da justiça:
Por isso, mais do que três tipos de justiça –
distributiva, corretiva e retributiva – deve-se falar
em três formas de aplicação daquele princípio ou,
de outro modo, de três diferentes funções d
Desse modo, a justiça distributiva deve ser aplicada ao que é
distribuível entre os membros da comunidade de acordo com seu mérito
ou demérito; a corretiva nas relações em que uma das partes causa e a
outra sofre um prejuízo indevido. A justiça retributiva ou da
reciprocidade seria aplicada nas questões de prestações de serviços que
são objeto de intercâmbio voluntário ou de prejuízo resultante de um
fato delituoso.55
A diferença entre a justiça corretiva e a da reciprocidade pode
ficar mais clara no seguinte exemplo: se um comprador afirma ter sido
lesado ao pagar por um produto mais do que ele pensa que deveria,
então um juiz intervém e determina uma nova quantia capaz de
restabelecer a igualdade entre comprador e vendedor. O juiz toma
daquele que estava com um excedente porque, na verdade, recebeu
injustamente de outro indivíduo. Houve ganho do indivíduo A devido a
perda involuntária por parte do indivíduo B e nesse caso a justiça
corretiva deve repor a perda de alguém no momento da troca para
corrigir a distribuição.
Na justiça da reciprocidade (a)ntipoie/w) proporcional a
situação é bem mais complicada. Neste caso os dois indivíduos devem
chegar a um acordo para que a troca seja justa, mas sem a intermediação
de um juiz formal, um terceiro elemento para intervir e restabelecer as
condições entre os lados da relação, como é requisitado na justiça
corretiva. A troca deve respeitar a proporcionalidade (a)nalogi/a), uma
medida proporcional a algo e esse algo é um padrão de justeza
fundamental para que a polis se mantenha unida. Por um lado a justiça
corretiva estrita, baseada no modelo aritmético, é quantitativamente
formal, serve apenas em situações em que há um contrato, mas não dá
conta de julgar e igualar indivíduos e seus produtos totalmente diversos
e desiguais respectivamente. Por outro lado, o princípio da
proporcionalidade geométrica que sustenta a justiça distributiva também
é constitutivo da reciprocidade. Ou seja, a justiça da reciprocidade
guarda elementos dos dois outros tipos de justiça, mas não se identifica
plenamente com nenhuma delas porque não adota o princípio
geométrico nem o aritmético, sim o da reciprocidade proporcional.
Com relação ao objeto central de nosso trabalho esta discussão é
relevante na medida em que a justiça envolve fatores econômicos em
pelo menos três sentidos inter-relacionados. Primeiro, o vício da
ganância é citado como uma das possíveis causas dos desvios
55 Enquanto a justiça corretiva corrige uma troca que foi injusta de antemão, a justiça da
reciprocidade é o que torna uma troca justa (MILLER JUNIOR, op. cit., p. 73).
econômicos e, portanto, de várias querelas que interferem na
manutenção da vida boa na polis o que envolve, naturalmente, a virtude
da justiça. A ganância claramente viola a justiça porque representa o
ganho de alguém a partir do prejuízo de outro. Aristóteles não defende a
justiça como sinônimo de igualdade estrita, sem qualificação. Como
explica Richard Kraut, certamente é um tipo de igualdade e de
desigualdade, afinal: “A pessoa injusta é, num sentido, ilegal; em outro,
é desigual. Correspondentemente, a pessoa justa é, num sentido, legal;
em outro, igual.” Porém Aristóteles se preocupa em demarcar as
diferenças e a simultânea interconexão entre justiça e igualdade:
A pessoa injusta é aquela que não está satisfeita
com a parcela da igualdade que lhe cabe, ela
deseja mais e sua vontade deixa os outros com
menos. Isto mostra que a pessoa justa é aquela que
se satisfaz com a partilha equânime, escolhe algo
entre aquilo que a pessoa injusta reserva para si (o
excesso) e o que deixa para os outros (o pouco).56
A justiça consiste na igualdade e é o meio entre dois extremos
indesejáveis, o excesso e a carência. O injusto contraria a fórmula da
mediania, o princípio da justiça aristotélica. Assim é compreensível a
associação entre o injusto e o ambicioso, entre justiça e economia. O
injusto viola não somente as leis escritas, mas um conjunto de costumes
e normas sociais aceitos e que proporcionam a existência da
comunidade57, uma existência estável. A ganância, a ambição, não é
apenas um desejo excessivo por ganho monetário, também é por
honrarias, por reconhecimento social, por maior segurança ou por outros
bens. (EN, 5, 1130b10-14). É violação do princípio da mediania porque
para obter mais o ambicioso não se detém ao saber que o outro obterá
menos, pelo contrário, acredita que ele merece muito mais que os
outros. Richard Kraut é muito perspicaz ao observar que:
quando alguém exerce o vício da pleoneci/a,
não está violando uma lei ou regra que é
56 KRAUT, Richard. Aristotle Political Philosophy: Founders of Modern Political and Social
Thought. Oxford University Press, USA, 2002, p. 102.
57 Justiça não são somente os códigos escritos pelos legisladores de uma comunidade, é um
amplo conjunto de normas que governam os membros dessa comunidade. Por isso: “a pessoa
injusta é caracterizada não somente pela violação dos códigos escritos, mas de modo mais
amplo, pela transgressão daquelas regras aceitas pela sociedade em que ela vive.” (Ibidem, p
geralmente respeitada em sua comunidade. Ele
considera tais regras como restrições ilegítimas ao
seu comportamento. Ele não admira aqueles
cidadãos que seguem as leis, pelo contrário,
considera-os tolos e fracos.58
A injustiça do ganancioso é a expressão de seu pretenso senso de
superioridade e seu prazer não é derivado apenas do ganho excessivo,
mas da satisfação de ganhar o que o outro perdeu por esse último ser
inferior, ser um tolo e fraco. Voltaremos ao problema da ganância para
decifrar a causa da confusão quanto ao objeto da economia, no momento
basta perceber que a busca pelo ganho material, pela riqueza, estabelece
uma relação direta entre as atividades econômicas e a observância da
justiça na comunidade, na polis.
Num segundo sentido, a justiça envolve fatores econômicos na
medida em que a manutenção da justiça é essencial para a formulação
de uma constituição capaz de estabelecer critérios para a troca
(comercial ou não) e para a distribuição dos bens e das funções dos
cidadãos na comunidade. Fred Miller esclarece que a constituição além
de incorporar a justiça em seus vários sentidos (universal e particular),
também exemplifica suas formas particulares (corretiva, distributiva e
da reciprocidade):
A justiça distributiva guiará legisladores e outros
políticos preocupados com a distribuição de
cargos e propriedades entre cidadãos, e ainda as
atribuições de encargos (impostos, obrigações
militares e serviços públicos). A justiça corretiva
será exercida pelos jurados e pelos magistrados
encarregados de retificarem as injustiças já
cometidas. A justiça da reciprocidade é para
orientar os magistrados na regulação do mercado
de trocas e também os cidadãos à medida que
ocupam cargos públicos.59
Um dos problemas centrais de qualquer constituição é definir não
apenas o que distribuir, corrigir ou retribuir conforme a igualdade e a
justiça, mas qual o critério para o cumprimento da justiça equânime para
que se promova o bem tanto dos ricos quanto dos pobres. A formulação
58 Ibidem, p. 138.
59 MILLER JUNIOR, op. cit., p. 80
do tipo de constituição envolve problemas como distribuição da
propriedade, dos encargos financeiros, dos cargos públicos, dos tipos de
leis e de educação conforme o propósito da própria constituição – se
será mais voltada à aquisição de bens e de honrarias ou ao cultivo das
virtudes.60
Finalmente, a justiça envolve fatores econômicos no sentido em
que na justiça da reciprocidade proporcional não há um terceiro
elemento para resolver questões de intercâmbio, os próprios sujeitos
encontram um critério para efetuarem a troca e é a partir daí que tem
início a investigação sobre o padrão de troca, um dos problemas centrais
na história do pensamento econômico. Desse modo, veremos que, se por
um lado Aristóteles condena os vícios, altamente permissíveis ao bem
comum, por outro, ele está profundamente preocupado em encontrar um
ponto equidistante para que a relação de troca seja efetuada conforme os
princípios da justiça.
1.2.1 Significado da troca
Visto que na antiguidade a economia não alcançou a autonomia
típica da economia na modernidade, sua análise está sempre permeada
por outros fatores éticos, religiosos e jurídicos, entre outros. De qualquer
modo, é a partir da classificação dos tipos de justiça e de injustiça,
elaborada por Aristóteles, que surgem os principais problemas que
historicamente suscitaram os primeiros passos da análise econômica,
afinal, qual é o padrão que servirá para o julgamento conforme a justiça
de reciprocidade proporcional? Ao buscar um padrão a pesquisa
aristotélica parece guardar fortes conotações de análise econômica,
suscitando em algumas correntes teóricas modernas um grande
interesse, pois tudo indica que o instrumento metodológico utilizado
para medir a troca de equivalentes é matemático. Essa discussão é muito
complexa e abrangente, é sobre um padrão para a troca que, de alguma
forma, envolve todas as outras trocas anteriores. Se o padrão for, por
exemplo, a virtude (a)reth/), então a justiça de reciprocidade seria
apenas uma derivação da justiça distributiva e a questão seria sobre o
critério do mérito conforme a riqueza, a virtude, a liberdade, etc. Assim,
talvez os problemas pudessem ser resolvidos politicamente a partir da
intervenção direta do Estado, porém apesar da sua incontestável
importância, nesse momento o Estado não é requisitado, ao menos não
antes de encontrar tal padrão.
60 No próximo capítulo trataremos com mais detalhes a relação entre economia e constituiç
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