CELSO AMORIM
O Brasil tem que se defender de ameaças e de efeitos de conflitos alheios. Tais riscos não estão sempre distantes, como por vezes pensamos
A cidade de Santos prestou, no último dia 13 de junho, uma bela homenagem aos 250 anos de nascimento do maior de seus filhos, o patriarca da Independência José Bonifácio de Andrada e Silva. A figura desse extraordinário brasileiro não admite simplificações.
Havia nele um compromisso humanista com o fortalecimento da justiça e das virtudes cívicas no Brasil. Considerava a escravidão a raiz dos maus costumes e da ausência de uma ética do trabalho no país. Ansiava pela conversão dos escravos em "cidadãos ativos".
Em um Brasil que só hoje, quase dois séculos mais tarde, erradica a miséria extrema, a inconformidade frente à desigualdade social e às suas funestas consequências empresta ao legado de José Bonifácio a força premente da atualidade.
Suas inquietações se estendiam à reforma agrária, à assimilação das populações indígenas e ao uso racional dos recursos naturais. Integrava em um coerente projeto nacional a abordagem dos desafios que se apresentavam na hora histórica da construção do Estado.
Sem a sólida base de uma sociedade justa e desenvolvida, não se poderia constituir um país verdadeiramente independente. Para o patriarca, as políticas externa e de defesa tinham papéis fundamentais, e inter-relacionados, a desempenhar no processo de emancipação.
Em instruções que remeteu antes mesmo do Sete de Setembro para o cônsul brasileiro em Buenos Aires (na verdade enviado diplomático), já demonstrava o interesse em buscar alianças na América do Sul. Afirmava: "O Brasil não pode deixar de fraternizar-se sinceramente com seus vizinhos". Concebia o país como "potência transatlântica", o que evoca sua projeção global e prenuncia o estreitamento de seus contatos com os parceiros africanos da outra margem do Atlântico Sul.
A assinatura de tratados desiguais entre o Brasil e as grandes potências após a Independência, com prejuízo da soberania e do bem-estar nacionais, mereceu-lhe sérias críticas. Dizia José Bonifácio: "Que venham, pois, todos aqui comerciar; (...) porém em pé de perfeita igualdade, sem outra proteção além do direito das gentes e com a condição expressa de não se envolverem, seja como for, em negócios do império". A advertência ainda é válida para os dias que correm.
Recordo essas palavras exemplares que proferiu ainda em junho de 1822: "O Brasil é uma nação e tomará o seu lugar como tal, sem esperar ou solicitar o reconhecimento das outras potências".
Contudo, uma sociedade díspar e fraturada não poderia se proteger contra múltiplas ameaças externas. "Sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos", dizia em 1823, o país "nunca formará, como imperiosamente o deve, um exército brioso e uma marinha florescente".
Esse nexo entre justiça social e defesa nacional segue relevante. Um país democrático com as dimensões do Brasil, que cresce, inclui socialmente e se projeta pacificamente na cena mundial, não pode prescindir dos meios para a própria defesa.
Temos que estar prontos para defender nossos interesses contra ameaças provenientes de qualquer quadrante, ou contra os efeitos de conflitos entre terceiros. Tais confrontações não estão sempre distantes, como por vezes pensamos. É significativa a inclusão, em fala recente do ministro da Defesa francês, Jean-Yves Le Drian, da Guiné Bissau, país de que somos muito próximos, como um dos vértices de um arco de instabilidade na África, que se estenderia até a Somália.
A aguda preocupação com a independência do Brasil se traduzia, em José Bonifácio, no estímulo a uma política externa altiva e a uma política de defesa robusta. Ambas integram-se no que se poderia denominar, com palavras de hoje, em uma grande estratégia de inserção internacional pacífica e soberana.
Esse homem de razão era também um apaixonado por sua terra. Suas belas palavras sobre o futuro do Brasil em uma ode de 1825 continuam nos inspirando: "Liberdade, paz, justiça / Serão nervos do Estado".
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