segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Arisca e soberana, a realidade não se deixa controlar

Arisca e soberana, a realidade não se deixa controlar

Nivaldo T. Manzano 

Como nasce a democracia na Grécia Antiga:

Hesíodo (entre 750 e 650 A.C.) observa que toda rivalidade supõe relações de igualdade: a concorrência jamais pode existir senão entre iguais (Os trabalhos e os dias, 25-6).

“Esse espirito igualitário é um dos traços que marca a mentalidade da aristocracia guerreira da Grécia e que contribui para dar à noção de poder um conteúdo novo. A política converte-se numa disputa oratória, um combate de argumentos cujo teatro é a praça pública, lugar de reunião antes de ser um mercado. Trata-se de uma prova de forças, palavra contra palavra num torneio sujeito a regras, comparável ao que põe em combate os atletas no curso dos Jogos. Assim, o comando não poderia mais ser a propriedade exclusiva de quem quer que seja. O Estado é precisamente o que se despojou de todo caráter privado, particular, que, escapando à alçada das famílias guerreiras, aparece como a questão de todos (...).

“Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores e as técnicas mentais são levados à praça pública, sujeitos à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados como garantia de poder, no recesso das tradições familiares; sua publicação motivará exegeses, interpretações diversas, oposições, debates apaixonados. A discussão, a argumentação e a polêmica tornam-se as regras do jogo intelectual e do jogo político, decidido pelo controle que a comunidade exerce sobre as criações do espírito e sobre a magistratura (...).

“Surge a exigência da redação das leis. Ao escrevê-las, busca-se assegurar-lhes a permanência e a fixidez, subtraindo-as da autoridade privada do sacerdote, cuja função era “dizer” o direito. Agora, tornam-se bem comum, regra geral, susceptível de ser aplicada a todos da mesma maneira. Nesse momento, a cidade passa a rejeitar as atitudes tradicionais da aristocracia guerreira, tendentes a exaltar o prestígio, a reforçar o poder dos indivíduos e das famílias guerreiras, e elevá-la acima do comum. São assim condenados como descomedimento o furor guerreiro e a busca no combate de uma glória particular, a ostentação da riqueza, o luxo das vestimentas, a suntuosidade dos funerais, as manifestações excessivas da dor no caso do luto, um comportamento muito ostensivo das mulheres ou o comportamento demasiado seguro e audacioso da juventude nobre. Essas práticas são rejeitadas porque, acusando as desigualdades sociais e o sentimento de distância entre os indivíduos, criam dissonâncias no grupo, põem em perigo seu equilíbrio, sua unidade, dividindo a cidade contra si mesma” (Vernant, J-P.,1973)

Em Esparta — rival de Atenas —, essa tendência, levada ao extremo, dará origem à mentalidade hierárquica e funcionalista, segundo a qual se buscam eliminar na aparência as diferenças em nome do igual. O espartano é treinado para marchar em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, cuidar, no meio da peleja, de não deixar seu posto. A virtude guerreira consiste num completo domínio sobre si, num constante controle para submeter-se a uma disciplina comum. A falange faz do hoplita (cidadão proprietário de arma) — como a cidade liberal faz do cidadão —, uma unidade permutável, um elemento semelhante a todos os outros e cujo valor individual não deve jamais manifestar-se senão no quadro imposto pela manobra de conjunto, pelo efeito de massa. Como resultado, a cidade fecha-se sobre si mesma, rompe o intercâmbio com o exterior, permanece fora das grandes correntes intelectuais e artísticas da época, não deixa como herança do pensamento grego nenhuma filosofia digna de menção. O Estado espartano é dominado pelas preocupações utilitaristas. Em vez da controvérsia retórica, tem-se a prática dos combates. Em vez da persuasão, tem-se o poder que curva todos os cidadãos à obediência. A palavra tem a eficácia de um oráculo sentencioso e definitivo. Assim é o reino da lei, da cidade espartana.

Atenas, ao contrário, tenderá a manter a diversidade na unidade. A cidade política assenta sobre o conflito, um conflito de caráter inclusivo, sempre em busca da harmonia jamais acabada. Caberá à classe média flutuante desempenhar o papel moderador na cidade, estabelecendo um equilíbrio precário entre os dois extremos: a minoria dos ricos, que querem tudo conservar, e a multidão dos pobres, que querem tudo obter. A classe média encarna os valores cívicos novos, contra os ricos, que são vistos como a ¬perdição da cidade. Os mesoi (as pessoas do meio) impõem um equilíbrio às forças contrárias, estabelecendo um acordo entre elementos rivais (Calasso, R., 1990).

A arbitragem supõe um juiz que, para aplicar sua decisão, ou para impô-la se necessário, refere-se a uma lei superior às partes, que deve ser igual para todos. É para preservar o reino dessa lei comum a todos que o legislador ateniense Sólon recusa a tirania, que lhe é oferecida. A sabedoria de Sólon está em que ele uniu a Violência e a Justiça, os dois velhos acólitos de Zeus, que não deviam afastar-se um instante de seu trono, porque personificavam o que o poder do soberano comporta de absoluto, e passam

agora a personificar a Lei, uma tentativa racional de estabilizar o conflito, equilibrar as forças sociais antagônicas, ajustar atitudes humanas opostas. Está-se a operar num plano estritamente humano. “A justiça aparece como uma ordem natural que por si mesma se regulamenta, da mesma forma que a maldade dos homens, sua sede insaciável de riqueza, produz naturalmente a desordem, segundo o processo seguinte: a injustiça engendra a escravidão do povo e este provoca a sedição” (Vernant, J-P., 1973).

Esta crônica inspirou-se na leitura de:

Calasso, R., As núpcias de Cadmo e Harmonia, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

Vernant, J-P., Mito e pensamento entre os gregos, São Paulo, Difusão Europeia-USP, 1973.


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