Arisca e soberana, a realidade não se deixa controlar
Nivaldo T. Manzano
Como nasce a democracia na Grécia Antiga:
Hesíodo (entre 750 e 650 A.C.) observa que toda rivalidade supõe
relações de igualdade: a concorrência jamais pode existir senão entre iguais
(Os trabalhos e os dias, 25-6).
“Esse espirito igualitário é um dos traços que marca a mentalidade da
aristocracia guerreira da Grécia e que contribui para dar à noção de poder um
conteúdo novo. A política converte-se numa disputa oratória, um combate de
argumentos cujo teatro é a praça pública, lugar de reunião antes de ser um
mercado. Trata-se de uma prova de forças, palavra contra palavra num torneio
sujeito a regras, comparável ao que põe em combate os atletas no curso dos
Jogos. Assim, o comando não poderia mais ser a propriedade exclusiva de quem
quer que seja. O Estado é precisamente o que se despojou de todo caráter
privado, particular, que, escapando à alçada das famílias guerreiras, aparece
como a questão de todos (...).
“Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os
valores e as técnicas mentais são levados à praça pública, sujeitos à crítica e
à controvérsia. Não são mais conservados como garantia de poder, no recesso das
tradições familiares; sua publicação motivará exegeses, interpretações
diversas, oposições, debates apaixonados. A discussão, a argumentação e a polêmica
tornam-se as regras do jogo intelectual e do jogo político, decidido pelo
controle que a comunidade exerce sobre as criações do espírito e sobre a
magistratura (...).
“Surge a exigência da redação das leis. Ao escrevê-las, busca-se
assegurar-lhes a permanência e a fixidez, subtraindo-as da autoridade privada
do sacerdote, cuja função era “dizer” o direito. Agora, tornam-se bem comum,
regra geral, susceptível de ser aplicada a todos da mesma maneira. Nesse
momento, a cidade passa a rejeitar as atitudes tradicionais da aristocracia
guerreira, tendentes a exaltar o prestígio, a reforçar o poder dos indivíduos e
das famílias guerreiras, e elevá-la acima do comum. São assim condenados como
descomedimento o furor guerreiro e a busca no combate de uma glória particular,
a ostentação da riqueza, o luxo das vestimentas, a suntuosidade dos funerais,
as manifestações excessivas da dor no caso do luto, um comportamento muito
ostensivo das mulheres ou o comportamento demasiado seguro e audacioso da
juventude nobre. Essas práticas são rejeitadas porque, acusando as
desigualdades sociais e o sentimento de distância entre os indivíduos, criam
dissonâncias no grupo, põem em perigo seu equilíbrio, sua unidade, dividindo a
cidade contra si mesma” (Vernant, J-P.,1973)
Em Esparta — rival de Atenas —, essa tendência, levada ao extremo, dará
origem à mentalidade hierárquica e funcionalista, segundo a qual se buscam
eliminar na aparência as diferenças em nome do igual. O espartano é treinado
para marchar em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, cuidar, no
meio da peleja, de não deixar seu posto. A virtude guerreira consiste num
completo domínio sobre si, num constante controle para submeter-se a uma
disciplina comum. A falange faz do hoplita (cidadão proprietário de arma) —
como a cidade liberal faz do cidadão —, uma unidade permutável, um elemento
semelhante a todos os outros e cujo valor individual não deve jamais
manifestar-se senão no quadro imposto pela manobra de conjunto, pelo efeito de
massa. Como resultado, a cidade fecha-se sobre si mesma, rompe o intercâmbio
com o exterior, permanece fora das grandes correntes intelectuais e artísticas
da época, não deixa como herança do pensamento grego nenhuma filosofia digna de
menção. O Estado espartano é dominado pelas preocupações utilitaristas. Em vez
da controvérsia retórica, tem-se a prática dos combates. Em vez da persuasão,
tem-se o poder que curva todos os cidadãos à obediência. A palavra tem a
eficácia de um oráculo sentencioso e definitivo. Assim é o reino da lei, da
cidade espartana.
Atenas, ao contrário, tenderá a manter a diversidade na unidade. A
cidade política assenta sobre o conflito, um conflito de caráter inclusivo,
sempre em busca da harmonia jamais acabada. Caberá à classe média flutuante
desempenhar o papel moderador na cidade, estabelecendo um equilíbrio precário
entre os dois extremos: a minoria dos ricos, que querem tudo conservar, e a
multidão dos pobres, que querem tudo obter. A classe média encarna os valores
cívicos novos, contra os ricos, que são vistos como a ¬perdição da cidade. Os
mesoi (as pessoas do meio) impõem um equilíbrio às forças contrárias,
estabelecendo um acordo entre elementos rivais (Calasso, R., 1990).
A arbitragem supõe um juiz que, para aplicar sua decisão, ou para impô-la
se necessário, refere-se a uma lei superior às partes, que deve ser igual para
todos. É para preservar o reino dessa lei comum a todos que o legislador
ateniense Sólon recusa a tirania, que lhe é oferecida. A sabedoria de Sólon
está em que ele uniu a Violência e a Justiça, os dois velhos acólitos de Zeus,
que não deviam afastar-se um instante de seu trono, porque personificavam o que
o poder do soberano comporta de absoluto, e passam
agora a personificar a Lei, uma tentativa racional de estabilizar o conflito,
equilibrar as forças sociais antagônicas, ajustar atitudes humanas opostas.
Está-se a operar num plano estritamente humano. “A justiça aparece como uma
ordem natural que por si mesma se regulamenta, da mesma forma que a maldade dos
homens, sua sede insaciável de riqueza, produz naturalmente a desordem, segundo
o processo seguinte: a injustiça engendra a escravidão do povo e este provoca a
sedição” (Vernant, J-P., 1973).
Esta crônica inspirou-se na leitura de:
Calasso, R., As núpcias de Cadmo e Harmonia, São Paulo, Companhia das
Letras, 1996.
Vernant, J-P., Mito e pensamento entre os gregos, São Paulo, Difusão
Europeia-USP, 1973.
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