Um leão
de papel pode produzir mais estragos do que um leão de verdade
Nivaldo
Tetilla Manzano (28/09/20)
Com
frequência, as metáforas, que se utilizam necessariamente para expressar o
pensamento, costumam aderir na mente como emplastros ideológicos e assim
grudadas passam a infectar toda a cultura de determinada época, como mostra o
filósofo francês Michel Foucault, em seu livro “As palavras e as coisas”*.
Machado de Assis oferece um exemplo da resiliência das metáforas no cotidiano,
ao descrever as suas impressões ao viajar em um bonde elétrico, introduzido no
Rio de Janeiro em 8 de outubro de 1892. Em uma de suas crômicas, ele relata:
Inicialmente,
“as pessoas resistiam a viajar no novo veículo, a ponto de a Light mandar
pintar nos espaldares dos bancos os dizeres: ‘Senhores passageiros, a corrente
elétrica não oferece nenhum perigo’”. Ele acrescenta que, algum tempo depois,
as pessoas ainda o rodeavam à procura dos animais, que costumavam puxá-lo. Do
mesmo modo, na Grã-Bretanha os engenheiros da Revolução Industrial, ao
projetarem pontes de ferro, recorriam aos mesmos cálculos utilizados anteriormente
para a construção de pontes de madeira, sem se dar conta da diferença de
resistência entre um material e outro, relata o historiador francês Pierre
Francastel** (1900 – 1970)
Um
exemplo emblemático de emplastro mental é Dom Quixote, que persegue a coincidência
plena entre o mundo real, que tem à sua frente, e o mundo de sua fantasia
cavalheiresca que já não existe. A abstração fixa que traz no bestunto deve
corresponder à realidade em mudança na sua época. Ele o faz de maneira
racional, ao juntar num todo coerente com pertinácia e perspicácia todos os
pormenores e todos os fragmentos da realidade que olha à sua volta, escreve
Michel Foucault (1926 - 1984). “A façanha de Dom Quixote consiste não em
reconhecer uma novidade, mas em confirmar na realidade à sua frente a fantasia
inscrita nos livros. Cada novo lance de sua aventura consiste, não numa nova
aventura, mas na coleta de provas adicionais, que confirmem a adequação entre o
mundo real e o seu delírio. A nova aventura será tão familiar à continuidade
delirante, que se aloja na sua cabeça, quanto mais firmemente conseguir
enxergar como estranha a descontinuidade que o desconcerta no mundo real. Esta
não lhe desperta interesse em si mesma; serve apenas como suporte para
confirmar que o verdadeiro mundo real não passa de fantasia”.
Entre o
mundo projetado por Dom Quixote e o mundo real não pode haver diferença alguma.
Assim, os riscos, os tropeços, os perigos e os descaminhos fantasiosos, nos
quais se perde, representam para ele apenas um percurso abstrato em direção ao
reencontro da própria identidade, como se nada tivesse ocorrido de verdade.
Formalmente, Dom Quixote ao percorrer a sua realidade delirante apresenta-se
como precursor do turista da era globalizada: sempre o mesmo aeroporto, as
mesmas grifes, o mesmo frankenfood, o mesmo relógio, os mesmos hotéis, o mesmo
conjunto de malas – tudo ordenado e previsto de tal maneira que não existe
possibilidade de ocorrência de qualquer novidade, a despertá-lo para a sensação
de que não morreu. Vive a ilusão satisfeita de ter dado a volta ao mundo,
quando na verdade não saiu de casa; não saiu da projeção de sua fantasia.
A
metáfora de Dom Quixote é reencenada na ficção de Machado de Assis, em sua
novela “O alienista”, que tem como protagonista tragicômico o médico alienista
Simão Bacamarte. Bacamarte, ao perseguir os habitantes da Vila de Itaguaí, no
intuito obsessivo de separar-lhes a razão da loucura, percorre a realidade com
os olhos de seu modelo. Ocorre que o modelo, ou a metáfora, é sempre mais pobre
do que a realidade. Enquanto o modelo é fixo, a realidade é comportamento. Ao
disso não se dar conta, Bacamarte frustra-se e se rende em seu intento ante o
reconhecimento de sua incapacidade de remover de cada mente dos moradores das
Vila alguma nesga de loucura que nela havia projetado. Ao final, dá-se conta de
que o louco é ele e se encarcera de espontânea vontade no manicômio que criara.
A propósito do poder invasivo e
da vocação totalitária da metáfora, o sociólogo francês Roland Barthes escreve
em um de seus livros que um leão de papel pode ser mais ameaçador e produzir
mais estragos do que um leão de verdade.
*Foucault, M., As palavras e as coisas, Lisboa,
Portugália, 1967.
**Francastel, P., La realidad figurativa,
Barcelona, Paidos,1988.
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