Longe das
mãos peludas, a história da Filosofia é uma outra história (I)
Nivaldo T. Manzano
Tornou-se
clichê dizer que o olhar masculino ocidental separa o que o olhar feminino
junta. O olhar masculino criou o modelo analítico, assim como procedia Jack
Estripador; e o olhar feminino criou o modelo de rede, que interliga os nós na
comunicação. Atualizo aqui esse clichê na história da filosofia, ressaltando a
sua contribuição original, ao chamar atenção para pormenores, reentrâncias,
desvãos, sutilezas no pensamento de filósofos, que durante séculos passaram
despercebidos ao olhar masculino dos hermeneutas.
Na
esteira de Hipatia (370-415), Simone Weil e Hanna Arendt, entre outras, da
segunda metade do século passado, especialmente, aos dias de hoje, uma plêiade
de mulheres ensaístas, historiadoras da filosofia e da epistemologia das
ciências, estudiosas da educação, da condição feminina e da ética se tem
empenhado em localizar na cultura o desconforto gerado pelo excesso de macheza
na atualidade. Com esse propósito, elas têm feito uma releitura refrescante e
original de obras esquadrinhadas supostamente à exaustão pelo olhar masculino
ocidental, como é o caso em especial de Platão e Aristóteles.
O
resultado, nos casos bem-sucedidos, é que o leitor, à luz do olhar feminino,
acaba descobrindo em quase todos os chamados grandes pensadores, à exceção de
uma meia dúzia, um Bacamarte – personagem tragicômico de Machado de Assis,
considerado um advogado do pensamento único, binário, dicotômico, maniqueísta,
autoritário, que, em busca da uniformidade, debate-se em dificuldades
contorcionistas para conciliá-la na Filosofia Política com a diversidade, ou a
pluralidade de pontos de vista. As preciosidades hermenêuticas garimpadas nessa
releitura parecem indicar que a dimensão feminina da existência tem sabido
identificar as interações recorrentes entre abstração e realidade com mais
habilidade do que os que têm mãos peludas. É dizer que, fascinada pelos
instrumentos de que se serve, a dimensão masculina tem-se revelado cada vez
menos capaz de responder à indagação sobre a real extensão de sua contribuição,
ainda que dela não se duvide.
Nessa
empreitada ensaística, observa-se, não o propósito velado de trazer de volta as
bruxas, ou a irracionalidade, de que eram acusadas tradicionalmente as
mulheres, e sim o de remover a pretensão absolutista da racionalidade, de se
apresentar como o único intérprete legítimo da realidade. Graças à participação
crescente das mulheres - ou melhor, da dimensão feminina da existência -,
nesses estudos, os machos se veem instados a temperar o seu ímpeto de
açougueiro (partes extra partes), para reconhecer, mediante a combinação entre
razão e intuição, a complexidade, o contexto, que a visão analítica exclui.
Aprende-se, com o olhar feminino sobre a realidade, que a racionalidade é um
valor entre outros, todos igualmente legítimos, como o são a intuição, os
sentimentos, a ética e a estética. É com certeza graças à reflexão feminina que
de agora em diante não mais se dirá que a não-racionalidade é necessariamente o
contrário da racionalidade.
O caso
mais eloquente de hermenêutica na história da filosofia talvez seja o da
francesa Bárbara Cassin (1947 - ), autora, entre outros trabalhos, de “Ensaios
sofísticos” e “Aristóteles e o logos -contos da fenomenologia comum”. Eis o que
ela nos revela como absoluta novidade:
Ao eleger
Aristóteles como ponto de aplicação de sua acuidade, Cassin nos mostra um
filósofo que pretende rejeitar tanto a solução dada pelos sofistas para o
problema político da exigência de unidade na diversidade, quanto a solução
contrária à diversidade, de Platão, de quem foi discípulo. Os sofistas, que
ganhavam dinheiro ensinando retórica a quem pretendia fazer da política uma
profissão, defendiam em geral a ideia de que a verdade, ou a objetividade, que
se buscava na filosofia e na ética, tinha a sua matriz na política - um acordo
de ocasião entre pontos de vistas conflitantes, revogável de forma recorrente,
quando da mudança de um contexto para outro. Platão, que buscava uma verdade
com fundamentos tão sólidos como os axiomas da matemática, para ele de origem
divina, chegou a admitir a diversidade sob a condição de que esta pudesse ser
estruturada em hierarquias fixas.
Insatisfeito
com ambos os tipos de resposta, Aristóteles acreditou em poder desbravar um
novo caminho, que redesenhou à sua maneira genial, embora se tenha mantido na
ambiguidade, entre um e outro tipo de solução. Assim, graças à leitura que
Cassin faz de Aristóteles e dos sofistas, aprendemos a reconhecer então como
hoje a premência de um mesmo problema na Política, nas ciências e na cultura: a
dificuldade de se reconhecer a diversidade na unidade, evitando-se o pensamento
único, ou a intolerância. À medida em que se afasta de Platão, Aristóteles, que
construíra a mais poderosa máquina de moer sofistas, em razão de sua rejeição
frontal ao caráter de compromisso da verdade deles, apoia-se mais tarde em sua
reflexão na eficácia desse compromisso quando volta as suas baterias contra
Platão, para lhe desmanchar as hierarquias.
Ao
contrário de pensadores como Platão que fazem da abstração um duplo da
realidade na forma de pensamento transcendental, os sofistas veem na reflexão
expressão de humanidade, ao conceber a verdade como resultado de um processo
coletivo e prático de construção recorrente. Dessa forma, a sofística destitui
da fala humana o dom demiúrgico de enunciar adequadamente a verdade das coisas,
da natureza e da cidade para todo o sempre, a partir da verdade vista do
Olimpo. “O homem é a medida de todas as coisas”, afirma o sofista Protágoras,
para estupefação de Platão, que põe na boca de Sócrates a sua desaprovação, ao
perguntar por que, em vez do homem, a medida não poderia ser o porco ou o
cinocéfalo. Uma objeção a que os sofistas haviam respondido previamente: a
verdade somente poderia ser colhida no espaço do discurso, um espaço disputado
por falantes, a partir de perspectivas divergentes, que é preciso juntar na
solidariedade de um acordo, sem o qual não é possível a vida cidadã, sujeita ao
juramento de concordância, provisória, embora a referência última seja sempre a
mesma, o desejo de se comprazer na existência, sem que para isso seja
necessário eliminar o desejo de outrem.
Assim,
enquanto Platão em sua República configura a cidade política segundo um modelo
de diferenças hierárquicas e funcionais, definidas de uma vez por todas, para
afugentar o risco da sedição, os sofistas, ao olhar feminino, enxergam o espaço
da política como um processo - ou um estado de mudança para o melhor ou para o
pior –, no qual tanto pode ocorrer a sedição do poder por parte dos ricos
quanto a sua remoção por parte de quem se sente injustiçado pela sua ambição
desmedida. Ao contrário do que ocorre na geometria ou na aritmética, graças aos
seus postulados e axiomas, aqui não há certezas, fundamentos ou garantias
prévias, transcendentais e indiscutíveis, senão a evidência intuitiva de que se
deseja viver com prazer, ainda que ao preço da incerteza e do risco, razão por
que o sofista buscará mediante a retomada da conversa ampliar tanto quanto
possível o espaço da negociação.
Para o
sofista, a justa medida, ou o ideal da justiça não está, portanto, inscrito em
algum céu metafísico, no qual se poderia identificar com absoluta clareza a
distinção entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A realização do ideal
da justiça, sempre precária, é de ordem prática; resulta da retomada de um
procedimento, semelhante ao do discípulo, que somente mediante o exercício
migra do estado de ignorância para o estado de sabedoria; ou ao do doente, que
migra da doença para a saúde, sem garantias de que em outro contexto o seu
estado atual não se vá se reverter: o risco é sempre possível, não existindo
imunidade contra ele. O futuro está aberto: tudo vai depender do que resultar
do entrechoque retórico entre os falantes que, embora divirjam entre si, dizem
pretender a mesma coisa - assegurar mediante a explicitação do conflito a
possibilidade da concordância, para que a vida da cidade possa prosseguir em
harmonia - o que não quer dizer “em uníssono”.
Ao
advogar contra Platão que a política na cidade se define como uma polifonia de
vozes, a partir de cujas diferenças obtém-se um efeito harmônico,
diferentemente do que ocorre na homofonia platônica, Aristóteles toma o partido
dos sofistas, mostra-nos Cassin. Aqui, a grande novidade de sua hermenêutica:
Em Aristóteles, a política não somente é sofística na escolha do logos (razão,
no sentido grego e não atual do termo), como traço distintivo da condição
política do homem, mas é também sofística a sua maneira de articular a
pluralidade das diferenças, ou dos pontos de vista, na unidade plural da
cidade; mas é antissofística na interpretação que o filósofo dá do lógos, ao
subordinar normativamente a retórica – que apela tanto para a razão quanto para
o sentimento -, à lógica, incapaz de se movimentar fora do estreito espaço de
possibilidades assegurado pelos princípios da identidade e da não-contradição,
princípios masculinos por excelência.
Em outras
palavras, Barbara Cassin nos faz ver Aristóteles a destituir a pretensão de
Platão, de entregar unicamente aos filósofos o comando da Política, e o confia
aos cidadãos, aos quais cabe construir a unidade sem no entanto destituir como
ilegítima a diversidade dos pontos de vista.
Cá de meu
olhar masculino não consigo enxergar uma roda de mulheres em que não falem
todas ao mesmo tempo.
Um salve! para as historiadoras
da Filosofia.
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