segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Longe das mãos­­­­­­ peludas, a história da Filosofia é uma outra história (I)

 

Longe das mãos­­­­­­ peludas, a história da Filosofia é uma outra história (I)

Nivaldo T. Manzano

Tornou-se clichê dizer que o olhar masculino ocidental separa o que o olhar feminino junta. O olhar masculino criou o modelo analítico, assim como procedia Jack Estripador; e o olhar feminino criou o modelo de rede, que interliga os nós na comunicação. Atualizo aqui esse clichê na história da filosofia, ressaltando a sua contribuição original, ao chamar atenção para pormenores, reentrâncias, desvãos, sutilezas no pensamento de filósofos, que durante séculos passaram despercebidos ao olhar masculino dos hermeneutas.

Na esteira de Hipatia (370-415), Simone Weil e Hanna Arendt, entre outras, da segunda metade do século passado, especialmente, aos dias de hoje, uma plêiade de mulheres ensaístas, historiadoras da filosofia e da epistemologia das ciências, estudiosas da educação, da condição feminina e da ética se tem empenhado em localizar na cultura o desconforto gerado pelo excesso de macheza na atualidade. Com esse propósito, elas têm feito uma releitura refrescante e original de obras esquadrinhadas supostamente à exaustão pelo olhar masculino ocidental, como é o caso em especial de Platão e Aristóteles.

O resultado, nos casos bem-sucedidos, é que o leitor, à luz do olhar feminino, acaba descobrindo em quase todos os chamados grandes pensadores, à exceção de uma meia dúzia, um Bacamarte – personagem tragicômico de Machado de Assis, considerado um advogado do pensamento único, binário, dicotômico, maniqueísta, autoritário, que, em busca da uniformid­­­ade, debate-se em dificuldades contorcionistas para conciliá-la na Filosofia Política com a diversidade, ou a pluralidade de pontos de vista. As preciosidades hermenêuticas garimpadas nessa releitura parecem indicar que a dimensão feminina da existência tem sabido identificar as interações recorrentes entre abstração e realidade com mais habilidade do que os que têm mãos peludas. É dizer que, fascinada pelos instrumentos de que se serve, a dimensão masculina tem-se revelado cada vez menos capaz de responder à indagação sobre a real extensão de sua contribuição, ainda que dela não se duvide.

Nessa empreitada ensaística, observa-se, não o propósito velado de trazer de volta as bruxas, ou a irracionalidade, de que eram acusadas tradicionalmente as mulheres, e sim o de remover a pretensão absolutista da racionalidade, de se apresentar como o único intérprete legítimo da realidade. Graças à participação crescente das mulheres - ou melhor, da dimensão feminina da existência -, nesses estudos, os machos se veem instados a temperar o seu ímpeto de açougueiro (partes extra partes), para reconhecer, mediante a combinação entre razão e intuição, a complexidade, o contexto, que a visão analítica exclui. Aprende-se, com o olhar feminino sobre a realidade, que a racionalidade é um valor entre outros, todos igualmente legítimos, como o são a intuição, os sentimentos, a ética e a estética. É com certeza graças à reflexão feminina que de agora em diante não mais se dirá que a não-racionalidade é necessariamente o contrário da racionalidade.

O caso mais eloquente de hermenêutica na história da filosofia talvez seja o da francesa Bárbara Cassin (1947 - ), autora, entre outros trabalhos, de “Ensaios sofísticos” e “Aristóteles e o logos -contos da fenomenologia comum”. Eis o que ela nos revela como absoluta novidade:

Ao eleger Aristóteles como ponto de aplicação de sua acuidade, Cassin nos mostra um filósofo que pretende rejeitar tanto a solução dada pelos sofistas para o problema político da exigência de unidade na diversidade, quanto a solução contrária à diversidade, de Platão, de quem foi discípulo. Os sofistas, que ganhavam dinheiro ensinando retórica a quem pretendia fazer da política uma profissão, defendiam em geral a ideia de que a verdade, ou a objetividade, que se buscava na filosofia e na ética, tinha a sua matriz na política - um acordo de ocasião entre pontos de vistas conflitantes, revogável de forma recorrente, quando da mudança de um contexto para outro. Platão, que buscava uma verdade com fundamentos tão sólidos como os axiomas da matemática, para ele de origem divina, chegou a admitir a diversidade sob a condição de que esta pudesse ser estruturada em hierarquias fixas.

Insatisfeito com ambos os tipos de resposta, Aristóteles acreditou em poder desbravar um novo caminho, que redesenhou à sua maneira genial, embora se tenha mantido na ambiguidade, entre um e outro tipo de solução. Assim, graças à leitura que Cassin faz de Aristóteles e dos sofistas, aprendemos a reconhecer então como hoje a premência de um mesmo problema na Política, nas ciências e na cultura: a dificuldade de se reconhecer a diversidade na unidade, evitando-se o pensamento único, ou a intolerância. À medida em que se afasta de Platão, Aristóteles, que construíra a mais poderosa máquina de moer sofistas, em razão de sua rejeição frontal ao caráter de compromisso da verdade deles, apoia-se mais tarde em sua reflexão na eficácia desse compromisso quando volta as suas baterias contra Platão, para lhe desmanchar as hierarquias.

Ao contrário de pensadores como Platão que fazem da abstração um duplo da realidade na forma de pensamento transcendental, os sofistas veem na reflexão expressão de humanidade, ao conceber a verdade como resultado de um processo coletivo e prático de construção recorrente. Dessa forma, a sofística destitui da fala humana o dom demiúrgico de enunciar adequadamente a verdade das coisas, da natureza e da cidade para todo o sempre, a partir da verdade vista do Olimpo. “O homem é a medida de todas as coisas”, afirma o sofista Protágoras, para estupefação de Platão, que põe na boca de Sócrates a sua desaprovação, ao perguntar por que, em vez do homem, a medida não poderia ser o porco ou o cinocéfalo. Uma objeção a que os sofistas haviam respondido previamente: a verdade somente poderia ser colhida no espaço do discurso, um espaço disputado por falantes, a partir de perspectivas divergentes, que é preciso juntar na solidariedade de um acordo, sem o qual não é possível a vida cidadã, sujeita ao juramento de concordância, provisória, embora a referência última seja sempre a mesma, o desejo de se comprazer na existência, sem que para isso seja necessário eliminar o desejo de outrem.

Assim, enquanto Platão em sua República configura a cidade política segundo um modelo de diferenças hierárquicas e funcionais, definidas de uma vez por todas, para afugentar o risco da sedição, os sofistas, ao olhar feminino, enxergam o espaço da política como um processo - ou um estado de mudança para o melhor ou para o pior –, no qual tanto pode ocorrer a sedição do poder por parte dos ricos quanto a sua remoção por parte de quem se sente injustiçado pela sua ambição desmedida. Ao contrário do que ocorre na geometria ou na aritmética, graças aos seus postulados e axiomas, aqui não há certezas, fundamentos ou garantias prévias, transcendentais e indiscutíveis, senão a evidência intuitiva de que se deseja viver com prazer, ainda que ao preço da incerteza e do risco, razão por que o sofista buscará mediante a retomada da conversa ampliar tanto quanto possível o espaço da negociação.

Para o sofista, a justa medida, ou o ideal da justiça não está, portanto, inscrito em algum céu metafísico, no qual se poderia identificar com absoluta clareza a distinção entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A realização do ideal da justiça, sempre precária, é de ordem prática; resulta da retomada de um procedimento, semelhante ao do discípulo, que somente mediante o exercício migra do estado de ignorância para o estado de sabedoria; ou ao do doente, que migra da doença para a saúde, sem garantias de que em outro contexto o seu estado atual não se vá se reverter: o risco é sempre possível, não existindo imunidade contra ele. O futuro está aberto: tudo vai depender do que resultar do entrechoque retórico entre os falantes que, embora divirjam entre si, dizem pretender a mesma coisa - assegurar mediante a explicitação do conflito a possibilidade da concordância, para que a vida da cidade possa prosseguir em harmonia - o que não quer dizer “em uníssono”.

Ao advogar contra Platão que a política na cidade se define como uma polifonia de vozes, a partir de cujas diferenças obtém-se um efeito harmônico, diferentemente do que ocorre na homofonia platônica, Aristóteles toma o partido dos sofistas, mostra-nos Cassin. Aqui, a grande novidade de sua hermenêutica: Em Aristóteles, a política não somente é sofística na escolha do logos (razão, no sentido grego e não atual do termo), como traço distintivo da condição política do homem, mas é também sofística a sua maneira de articular a pluralidade das diferenças, ou dos pontos de vista, na unidade plural da cidade; mas é antissofística na interpretação que o filósofo dá do lógos, ao subordinar normativamente a retórica – que apela tanto para a razão quanto para o sentimento -, à lógica, incapaz de se movimentar fora do estreito espaço de possibilidades assegurado pelos princípios da identidade e da não-contradição, princípios masculinos por excelência.

Em outras palavras, Barbara Cassin nos faz ver Aristóteles a destituir a pretensão de Platão, de entregar unicamente aos filósofos o comando da Política, e o confia aos cidadãos, aos quais cabe construir a unidade sem no entanto destituir como ilegítima a diversidade dos pontos de vista.

Cá de meu olhar masculino não consigo enxergar uma roda de mulheres em que não falem todas ao mesmo tempo.

Um salve! para as historiadoras da Filosofia.


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