A diferença entre a realidade e o realejo
Nivaldo T. Manzano
Nada na existência ou na natureza encaixa-se no modelo da estrutura
& função, como representação abstrata da realidade, embora seja esse o
modelo de pesquisa que prevalece ainda hoje, de maneira quase absoluta, na
Academia. Trata-se de uma representação tão distante da realidade quanto o é um
realejo da música nova.
O modelo de estrutura & função responde à exigência positivista, ou
funcionalista, de se produzir um resultado de validade universal, que esteja
sujeito ao fracionamento, à análise das partes e à sua manipulação, assim como
procedia Jack Estripador no esquartejamento de suas vítimas. Mediante o
procedimento analítico, despoja- se a realidade das circunstâncias de tempo e
lugar, de modo a tornar o objeto de estudo manejável, com o objetivo de se
proceder ao controle da realidade.
Tais circunstâncias são indissociáveis da realidade concreta, que o
modelo pretende representar, como um seu equivalente intelectual, realidade
concreta que na verdade não se desprende de seu aqui e agora. “O homem é o
homem e a sua circunstância”, de Ortega y Gasset (1883 – 1955) é uma expressão
que deve ser aqui tomado ao pé da letra. É dizer que não se representa
adequadamente a realidade se dela se exclui o contexto. O contexto pode ser
descrito como a representação da realidade no seu aqui e agora, razão por que o
contexto é necessariamente único, singular, irrepetível. Implica isso dizer que
não se pode fazer ciência de alcance universal? Não implica, pois é possível
empreender-se a representação da realidade mediante a noção de processo, que
permite enxergar o seu caráter contextual e ao mesmo tempo o seu caráter
universal, aqui entendido o ser humano como ponto de indução, sede e referência
última de todos os contextos, pois não há contexto na ausência da humanidade,
assim como não há objeto que possa ser definido fora da interação sujeito-objeto.
O sujeito está necessariamente embebido na apreensão do objeto e
vice-versa, apreensão que é obra sua, e o objeto é parte constituinte do
sujeito, como correlato da interface que lhe corresponde (pai, filho, por
exemplo), interface que, associada às demais interfaces, constitui o sujeito,
aqui assumido como um conjunto de interfaces, orientado por uma referência, que
lhe dá o caráter unitário, o seu contexto individual. É nesse sentido que se
pode compreender o que diz Terêncio: “Nada do que é humano me é estranho”.
Para assumir a sua pretensão à universalidade, o modelo de estrutura
& função precisa prescindir do meio, que é justamente o que, na diversidade
de suas interações com o sujeito, permite enxergar a sua contextualidade.
Na ecologia, a descrição do nicho de um pássaro é a descrição da lista
do que ele come; do material de que se utiliza para construir o seu ninho e do
local escolhido; do tempo que despende em diferentes partes da árvore ou no
solo para colher o seu alimento, do modo como faz a corte a seu companheiro e
se acasala etc. Ou seja, o nicho do pássaro é descrito em termos de sua
atividade em interação prática com o meio e não como consequência mecânica das
forças atuantes no meio, como o pretenderam Charles Darwin e Auguste Comte. O
meio do pássaro é inseparável do pássaro e não existe sem a atividade do
pássaro e vice-versa, compondo ambos uma única realidade cujas partes não
preexistem a ele, o seu contexto. O meio é constituído inventivamente pelo
pássaro, e este, pelo meio, sob a condição de que as suas interfaces (do
contexto do meio, do contexto do pássaro e do contexto interativo entre ambos)
estejam livres (não determinadas ou sobredeterminadas), para que a
criatividade, via acaso, delimitado pela necessidade contextual do meio, possa
exercer-se.
Em síntese: a singularidade do organismo influencia a sua própria
evolução, na condição ao mesmo tempo de objeto da seleção natural e sujeito
criador das condições dessa seleção. O organismo participa da criação de seu
próprio desenvolvimento, e o resultado de cada estado de seu desenvolvimento é
precondição para o estado seguinte. Isso não quer dizer que o estado anterior é
determinante na transição para o estado seguinte, pois o estado seguinte
depende do modo como o organismo, na condição de sujeito contextualizado,
intervém criativamente em cada um desses estados, estimulando a sua mudança.
Além de meio, o organismo é também interface que participa da formação de seu
próprio meio, que não é senão a expressão de sua individuação, ou a
individuação de sua expressão.
A “obra” da evolução das espécies, como um pássaro, ou como a
singularidade de Santos, é produto de sua interação criativa com o meio; é a
sua criatividade que dá a direção da mudança, não o meio externo ou interno,
isoladamente ou em conjunto, sem a mediação interativa do organismo. “O mesmo
genótipo dá origem a muitos organismos diferentes e o mesmo organismo
corresponde a muitos genótipos diferentes. Isso não quer dizer que o organismo
seja infinitamente plástico ou que a cada genótipo corresponda um fenótipo. As
respostas normativas de cada organismo para cada genótipo são diferentes, e é a
normatividade das respostas que se constituem em objeto de estudo dos biólogos
do desenvolvimento, e não algum organismo ideal supostamente susceptível de
ser produzido de maneira determinista pelos genes” (LEVINS, R. & LEWONTIN.
R. - 1985).
Esta crônica foi inspirada na leitura de:
Levins, R., Lewontin, R., The dialectical biologist, Cambridge,
Massachusetts, Harvard University Press, 1985.
Sobrinho, F. G.,, Processo – a máquina contextual nos negócios, Campinas
(SP), Editora Mundo em Processo, 2002.
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