segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A diferença entre a realidade e o realejo

A diferença entre a realidade e o realejo

Nivaldo T. Manzano

Nada na existência ou na natureza encaixa-se no modelo da estrutura & função, como representação abstrata da realidade, embora seja esse o modelo de pesquisa que prevalece ainda hoje, de maneira quase absoluta, na Academia. Trata-se de uma representação tão distante da realidade quanto o é um realejo da música nova.

O modelo de estrutura & função responde à exigência positivista, ou funcionalista, de se produzir um resultado de validade universal, que esteja sujeito ao fracionamento, à análise das partes e à sua manipulação, assim como procedia Jack Estripador no esquartejamento de suas vítimas. Mediante o procedimento analítico, despoja- se a realidade das circunstâncias de tempo e lugar, de modo a tornar o objeto de estudo manejável, com o objetivo de se proceder ao controle da realidade.

Tais circunstâncias são indissociáveis da realidade concreta, que o modelo pretende representar, como um seu equivalente intelectual, realidade concreta que na verdade não se desprende de seu aqui e agora. “O homem é o homem e a sua circunstância”, de Ortega y Gasset (1883 – 1955) é uma expressão que deve ser aqui tomado ao pé da letra. É dizer que não se representa adequadamente a realidade se dela se exclui o contexto. O contexto pode ser descrito como a representação da realidade no seu aqui e agora, razão por que o contexto é necessariamente único, singular, irrepetível. Implica isso dizer que não se pode fazer ciência de alcance universal? Não implica, pois é possível empreender-se a representação da realidade mediante a noção de processo, que permite enxergar o seu caráter contextual e ao mesmo tempo o seu caráter universal, aqui entendido o ser humano como ponto de indução, sede e referência última de todos os contextos, pois não há contexto na ausência da humanidade, assim como não há objeto que possa ser definido fora da interação sujeito-objeto.

O sujeito está necessariamente embebido na apreensão do objeto e vice-versa, apreensão que é obra sua, e o objeto é parte constituinte do sujeito, como correlato da interface que lhe corresponde (pai, filho, por exemplo), interface que, associada às demais interfaces, constitui o sujeito, aqui assumido como um conjunto de interfaces, orientado por uma referência, que lhe dá o caráter unitário, o seu contexto individual. É nesse sentido que se pode compreender o que diz Terêncio: “Nada do que é humano me é estranho”.

Para assumir a sua pretensão à universalidade, o modelo de estrutura & função precisa prescindir do meio, que é justamente o que, na diversidade de suas interações com o sujeito, permite enxergar a sua contextualidade.

Na ecologia, a descrição do nicho de um pássaro é a descrição da lista do que ele come; do material de que se utiliza para construir o seu ninho e do local escolhido; do tempo que despende em diferentes partes da árvore ou no solo para colher o seu alimento, do modo como faz a corte a seu companheiro e se acasala etc. Ou seja, o nicho do pássaro é descrito em termos de sua atividade em interação prática com o meio e não como consequência mecânica das forças atuantes no meio, como o pretenderam Charles Darwin e Auguste Comte. O meio do pássaro é inseparável do pássaro e não existe sem a atividade do pássaro e vice-versa, compondo ambos uma única realidade cujas partes não preexistem a ele, o seu contexto. O meio é constituído inventivamente pelo pássaro, e este, pelo meio, sob a condição de que as suas interfaces (do contexto do meio, do contexto do pássaro e do contexto interativo entre ambos) estejam livres (não determinadas ou sobredeterminadas), para que a criatividade, via acaso, delimitado pela necessidade contextual do meio, possa exercer-se.

Em síntese: a singularidade do organismo influencia a sua própria evolução, na condição ao mesmo tempo de objeto da seleção natural e sujeito criador das condições dessa seleção. O organismo participa da criação de seu próprio desenvolvimento, e o resultado de cada estado de seu desenvolvimento é precondição para o estado seguinte. Isso não quer dizer que o estado anterior é determinante na transição para o estado seguinte, pois o estado seguinte depende do modo como o organismo, na condição de sujeito contextualizado, intervém criativamente em cada um desses estados, estimulando a sua mudança. Além de meio, o organismo é também interface que participa da formação de seu próprio meio, que não é senão a expressão de sua individuação, ou a individuação de sua expressão.

A “obra” da evolução das espécies, como um pássaro, ou como a singularidade de Santos, é produto de sua interação criativa com o meio; é a sua criatividade que dá a direção da mudança, não o meio externo ou interno, isoladamente ou em conjunto, sem a mediação interativa do organismo. “O mesmo genótipo dá origem a muitos organismos diferentes e o mesmo organismo corresponde a muitos genótipos diferentes. Isso não quer dizer que o organismo seja infinitamente plástico ou que a cada genótipo cor­responda um fenótipo. As respostas normativas de cada organismo para cada genótipo são diferentes, e é a normatividade das respostas que se constituem em objeto de estudo dos biólogos do desenvolvimento, e não algum orga­nismo ideal supostamente susceptível de ser produzido de maneira determinista pelos genes” (LEVINS, R. & LEWONTIN. R. - 1985).

Esta crônica foi inspirada na leitura de:

Levins, R., Lewontin, R., The dialectical biologist, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1985.

Sobrinho, F. G.,, Processo – a máquina contextual nos negócios, Campinas (SP), Editora Mundo em Processo, 2002.

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